Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00304/04.3BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/09/2012
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Catarina Almeida e Sousa
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
TEMPESTIVIDADE
LOCAL DA APRESENTAÇÃO DA P.I
REMESSA DA P.I POR CORREIO
ÓRGÃOS PERIFÉRICOS LOCAIS E ÓRGÃOS PERIFÉRICOS REGIONAIS
ARTIGOS 102º, Nº2 E 103º, NºS 1, 2 E 6 DO CPPT
PRINCÍPIO PRO ACTIONE
ERRO DESCULPÁVEL
Sumário:I - Nos termos previstos no artigo 102º, nº2 do CPPT, em caso de indeferimento de reclamação graciosa, o prazo de impugnação será de 15 dias após a notificação.
II - Sobre a apresentação da petição de impugnação judicial rege o artigo 103º do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho), nos termos do qual se dispõe, além do mais, que a petição é apresentada no tribunal tributário competente ou no serviço periférico local onde haja sido ou deva legalmente considerar-se praticado o acto e, bem assim, que a petição inicial pode ser remetida a qualquer daquelas entidades pelo correio, sob registo, valendo, nesse caso, como data do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal.
III - Nos termos do artigo 6º, nº1 do DL 433/99, de 26 de Outubro, que aprovou o CPPT, consideram-se, para efeitos deste código, órgãos periféricos locais as repartições de finanças, considerando-se órgãos periféricos regionais as direcções de finanças da DGCI.
IV – Em matéria de tempestividade da apresentação de petição de impugnação judicial, o circunstancialismo do caso concreto pode justificar o abandono do estrito rigor formal e o apelo ao princípio de promoção de acesso à justiça (pro actione).
V – Na interpretação das normas processuais deve prevalecer a que melhor garanta a tutela efectiva do direito e a concretização da justiça material, devendo repudiar-se as interpretações meramente formais que obstaculizem o exercício do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva
VI - Não resulta de negligência grosseira e, como tal, indesculpável, a remessa, dentro do prazo legal, de uma petição de impugnação judicial à Direcção de Finanças de Coimbra quando essa remessa devia ser feita para serviço de finanças (ou, em alternativa, para o respectivo TAF), tanto mais que, no caso, a própria decisão impugnada – indeferimento de reclamação graciosa – foi proferida precisamente pelo Director de Finanças de Coimbra.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:F...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte
1- RELATÓRIO
F…, inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que, com base na “procedência da excepção da caducidade do direito de deduzir impugnação judicial”, julgou improcedente a impugnação apresentada contra o indeferimento da reclamação graciosa interposta contra as liquidações de IVA dos anos de 1998 e 1999 e respectivos juros compensatórios, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
“1. A douta sentença de fls. deve ser revogada.
2. A impugnação judicial de fls. foi apresentada tempestivamente.
3. O Tribunal “a quo” dá por provado, no ponto 5 do probatório, que “A presente impugnação deu entrada na Direcção Distrital de Finanças de Coimbra em 24/05/2004, tendo sido remetida ao Tribunal a 27/05/2004 - carimbo de fls. 2 dos autos e que aqui se dá por reproduzido”.
4. Ora, tal facto é inexacto.
5. Com efeito, a impugnação judicial foi remetida ao Serviço de Finanças competente dentro do prazo legal de 15 dias (dado o indeferimento expresso referido no ponto 4 do probatório), através de correio registado.
6. Tal carta foi remetida no dia 21.05.2004 (ou seja, dentro do prazo, considerando a notificação do mandatário em 6.05.2004... cfr. ponto 4 do probatório).
7. Assim, tal carta foi remetida em tempo.
8. Facto que seguramente consta do PA.
9. Em todo o caso, entendemos estarem verificados os pressupostos para a junção, em recurso, de 1 documento (face à imprevisibilidade do sentido da decisão recorrida).
10. Pelo que infra se requer a junção de 1 documento, correspondente ao talão de registo datado de 21.05.2004, dos CTT (subscrito pelo mandatário ora subscritor, e dirigido à DF de Coimbra), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 524°, n° 1, e 706°, n° 1, ambos do CPC, na redacção aplicável ao caso vertente.
11. Assim, deve considerar-se provado, em contradição ao exarado no ponto 5 do probatório da sentença recorrida, que a impugnação foi remetida à DF de Coimbra, por correio registado, em 21.05.2004.
12. A impugnação é tempestiva.
13. Pelo que deve revogar-se a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos, tudo com as legais consequências”.
Não foram produzidas contra-alegações.
Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.
Como é sabido, são as conclusões das alegações do recurso que definem o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração.
Assim, as questões sob recurso são, pela ordem indicada pelo Recorrente, as seguintes:
- Saber se a matéria de facto fixada no probatório da decisão recorrida, concretamente o ponto 5, deve ser alterada, para o que deve ser admitido o documento junto com as alegações de recurso – conclusões 3 a 11;
- Saber se a decisão recorrida errou ao considerar a impugnação judicial intempestiva – conclusões 1, 2, 12 e 13.
2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Matéria de facto
É a seguinte a matéria de facto fixada na 1ª instância:
1 - Em 09/07/2001, foram efectuadas ao ora impugnante duas liquidações adicionais de IVA, referentes aos anos de 1998 e 1999, nos montantes de Esc. 982.188$00 e Esc. 5.224.502$00, bem como 6 liquidações de juros compensatórios referentes àquelas duas primeiras liquidações, tudo no montante global de € 33 322,38 cujo prazo de pagamento voluntário terminou no dia 30/09/2001 - documentos de cobrança, com nota demonstrativa das liquidações de fls. 103 a fls. 110 dos autos e que aqui se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais.
2 - Em 03/01/2002 o ora impugnante reclamou graciosamente das liquidações, ids. no parágrafo antecedente, em sede do Processo de Reclamação Graciosa a que coube o n.° 0787-02/400002.1 - articulado do processo de reclamação graciosa junta de fls. 153 e segs. do PA e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3 - Por despacho, proferido a 04/05/2004, pelo Director de Finanças de Coimbra, foi indeferida a reclamação graciosa, apresentada pela ora impugnante e identificada no parágrafo antecedente - despacho de fls. 68 dos autos, que aqui se dá por reproduzido.
4 - O despacho de indeferimento da reclamação graciosa foi regularmente notificado ao ora impugnante, na pessoa do seu I. mandatário em 06/05/2004 - ofício de fls. 70 e aviso de recepção de fls. 70 verso dos autos e que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
5 - A presente impugnação deu entrada na Direcção Distrital de Finanças de Coimbra em 24/05/2004, tendo sido remetida ao Tribunal a 27/05/2004 - carimbo de fls. 2 dos autos e que aqui se dá por reproduzido.
Resultou a convicção do Tribunal da análise dos documentos juntos aos autos e ao PA, supra ids. os quais não foram impugnados.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não há factos não provados, relevantes para o conhecimento da excepção da caducidade do direito de impugnar”.
Em função das conclusões transcritas, a questão que, desde já, importa solucionar prende-se com o julgamento factual efectuado na 1.ª instância, concretamente a requerida alteração do facto dado como provado na sentença recorrida, no ponto 5 do probatório, relativo à data de apresentação da p.i de impugnação.
Vejamos, então.
No ponto 5 do probatório fixado na sentença recorrida deu-se como provado que “A presente impugnação deu entrada na Direcção Distrital de Finanças de Coimbra em 24/05/2004, tendo sido remetida ao Tribunal a 27/05/2004 - carimbo de fls. 2 dos autos e que aqui se dá por reproduzido”.
Contra o assim fixado insurge-se o Recorrente, defendendo que tal facto não corresponde à realidade, devendo, antes, ser substituído por outro que consigne que a impugnação foi remetida à Direcção de Finanças de Coimbra, por correio registado, em 21/05/04. Para tanto, juntou, com as alegações de recurso, um documento correspondente ao talão de registo dos CTT, datado de 21/05/04, o qual requer seja admitido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 524°, n° 1 e 706°, n° 1, ambos do CPC.
Como está bem de ver, tendo a sentença recorrida julgado verificada a caducidade do direito do Recorrente de impugnar, o facto que o Recorrente agora pretende ver alterado e fixado é, no seu entendimento, susceptível de produzir relevantes efeitos jurídicos com vista a aferir da tempestividade da apresentação da p.i.
Por seu turno, e incontornavelmente ligado a este aspecto, está a questão da admissibilidade do documento junto com as alegações de recurso, concretamente o talão de registo dos CTT, datado de 21/05/04.
Ora, quanto a este ponto dir-se-á, desde já, que, nos termos do disposto no artigo 706º, nº1 do CPC Preceito entretanto revogado pelo artigo 9º, a) do DL 303/2007, de 24 de Agosto, mas aqui aplicável por força do disposto nos artigos 11º, nº1 e 12º do referido DL 303/2007., as partes podem juntar documentos às alegações, nos casos excepcionais a que se refere o art.º 524.º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Ora, é esta precisamente a situação em apreciação.
Com efeito, no caso em análise, só em resultado da decisão proferida em 1ª instância, decisão esta que julgou a impugnação apresentada fora do prazo, se tornou necessária a junção do documento comprovativo da data do envio por correio da petição inicial de impugnação. Neste caso, portanto, o próprio julgamento proferido em 1ª instância constitui ocorrência que tornou necessária a apresentação do documento ora junto com as alegações de recurso.
Assim, e ao abrigo do artigo 706º, nº1 do CPC, admite-se a sua junção aos autos.
Vistos que estão estes aspectos, e acolhendo a pretensão do Recorrente (conclusões 3 a 11), procede-se à substituição do ponto 5 do probatório fixado na sentença, nos seguintes termos:
5 - A presente impugnação foi remetida à Direcção de Finanças de Coimbra através de correio registado com o nº RR 966386403 PT, em 21/05/04, tendo sido enviada ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra em 27/05/2004 – cfr. fls. 1, 8 e 140 dos autos.
Naturalmente, em face da alteração ora efectuada, dá-se como não escrito o teor do ponto 5 dos factos provados fixados na sentença recorrida.
Estabilizada a matéria de facto provada, nos moldes expostos, a única questão a resolver é, pois, a de saber se a impugnação judicial foi, ou não, tempestivamente apresentada.
A decisão recorrida, para considerar verificada a excepção da caducidade do direito de impugnar, considerou que:
“Os presentes autos foram instaurados em 24/05/2004, pelo que, ao caso é aplicável o Código de Procedimento e Processo Tributário (artigo 4.° do DL 433/99 de 26/10).
Com interesse para os autos, prescreve o artigo 102º, n.° 2 do CPPT que, em caso de indeferimento “expresso” de reclamação graciosa, o prazo de impugnação é de 15 dias após a notificação.
Ora, conforme resulta do probatório, o ora impugnante foi regularmente notificado do indeferimento da reclamação graciosa em 06/05/2004.
Tal prazo é de natureza substantiva, ou seja, contínuo e contado de acordo com as regras do artigo 279º do Código Civil e do artigo 20.°, n.° 1 do CPPT, isto é, os prazos substantivos são de contagem contínua e sem suspensões, ao contrário dos prazos adjectivos ou processuais.
E, de acordo com as alíneas a) e b) do artigo 279.° do C.C. (não se inclui na contagem do prazo o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr), o prazo para deduzir impugnação judicial iniciou-se em 07/05/2004 e terminou em 21/05/2004.
Pelo exposto, de acordo com a disposição supra referida (artigo 102.°, n°2 do CPPT), uma vez que a p.i. de impugnação apenas deu entrada na Direcção de Finanças em 24/05/2004, a mesma é extemporânea”.
Vejamos, então.
Está em causa, como decorre dos autos, a impugnação da decisão de indeferimento de reclamação graciosa apresentada contra actos de liquidação de IVA.
Nos termos previstos no artigo 102º, nº2 do CPPT, em caso de indeferimento de reclamação graciosa, o prazo de impugnação será de 15 dias após a notificação.
Tal prazo de 15 dias, como os demais previstos no artigo 102º do CPPT, contam-se nos termos do artigo 279º do Código Civil, como decorre do artigo 20º, nº1 do CPPT. Assim, correm continuamente, sem qualquer interrupção ou suspensão.
Naturalmente, na contagem destes prazos não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr (no caso, a notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa), sendo que quando o prazo termine em domingo ou dia feriado ou em férias judiciais transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil subsequente.
No caso dos autos, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada ao mandatário do ora Recorrente em 6/05/04. Quer isto dizer, pois, que em 21/05/04, sexta-
-feira, terminava o prazo de 15 dias para deduzir impugnação de tal indeferimento da reclamação.
Ora, sobre a apresentação da petição de impugnação judicial rege o artigo 103º do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho), nos termos do qual se dispõe nos seguintes termos:
1 - A petição é apresentada no tribunal tributário competente ou no serviço periférico local onde haja sido ou deva legalmente considerar-se praticado o acto.
2 - Para os efeitos do número anterior, os actos tributários consideram-se sempre praticados na área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da liquidação.
3 - No caso de a petição ser apresentada em serviço periférico local, este procederá ao seu envio ao tribunal tributário competente no prazo de cinco dias após o pagamento da taxa de justiça inicial.
4 - A impugnação tem efeito suspensivo quando, a requerimento do contribuinte, for prestada garantia adequada, no prazo de 10 dias após a notificação para o efeito pelo tribunal, com respeito pelos critérios e termos referidos nos n.os 1 a 5 e 9 do artigo 199
5 - Caso haja garantia prestada nos termos da alínea f) do artigo 69.º, esta mantém-se, independentemente de requerimento ou despacho, sem prejuízo de poder haver lugar a notificação para o seu reforço.
6 - A petição inicial pode ser remetida a qualquer das entidades referidas no n.º 1 pelo correio, sob registo, valendo, nesse caso, como data do acto processual a da efectivação do respectivo registo postal. (o sublinhado é nosso).
Em face do preceito legal transcrito, concretamente do seu nº6, dúvidas não restam, como sustenta o Recorrente, que, no caso de petição remetida por correio, sob registo, vale, como data do acto processual, a da efectivação do respectivo registo postal. Porém, como decorre desta mesma disposição legal, isto é assim quando a petição de impugnação tenha sido remetida a qualquer das entidades referidas no nº 1 do artigo 103º do CPPT.
Com efeito, nos termos do apontado nº1 do artigo 103º, a petição de impugnação pode ser apresentada no tribunal tributário competente ou no serviço periférico local onde haja sido ou deva legalmente considerar-se praticado o acto, esclarecendo o nº 2 que, para os efeitos do disposto no nº1, os actos consideram-se sempre praticados na área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da liquidação.
Ora, nos termos do artigo 6º, nº1 do DL 433/99, de 26 de Outubro, que aprovou o CPPT, consideram-se órgãos periféricos locais, para efeitos do código aprovado pelo presente decreto-lei (leia-se, CPPT), as repartições de finanças e tesourarias da Fazenda Pública da Direcção-Geral dos Impostos (DGCI) – (sublinhado nosso).
Por seu turno, esclarece o nº 3 do referido artigo 6º do DL 433/99 que “consideram-se órgãos periféricos regionais, para efeitos do código aprovado pelo presente decreto-lei (leia--se, CPPT) as direcções de finanças da DGCI(sublinhado nosso).
Recuperando o caso concreto, temos que a impugnação judicial foi remetida por correio registado no dia 21/05/04 (último dia do prazo, como vimos) para a Direcção de Finanças de Coimbra, ou seja, para um órgão periférico regional.
Aqui chegados, parece não ser difícil concluir que, efectivamente, o Recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 103º, nº1 do CPPT, quanto ao local de apresentação da p.i de impugnação, a qual, nos termos expostos, teria que ter dado entrada ou no tribunal tributário competente ou no serviço periférico local onde haja sido ou deva legalmente considerar-se praticado o acto (e não, como aconteceu, no serviço periférico regional, concretamente na Direcção de Finanças de Coimbra).
Quer isto dizer que numa visão estritamente formalista, apegada exclusivamente à letra da lei, teríamos que concluir inexoravelmente pela intempestividade da petição de impugnação, pois que, apesar de enviada no último dia do prazo, por correio registado, a mesma foi remetida à Direcção de Finanças de Coimbra e não, como devia, ao Serviço de Finanças (ou, claro, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra).
Porém, como procuraremos demonstrar, o circunstancialismo do caso concreto, justifica o abandono do estrito rigor formal e o apelo ao princípio de promoção de acesso à justiça (pro actione), a reclamar decisões de mérito em detrimento de meras decisões de forma – cfr. neste sentido o voto de vencido proferido no ac. do STA, de 20/12/06 (proc. 0473/06), cuja argumentação, em parte, aqui recuperamos.
Na verdade, nas últimas reformas processuais, o nosso legislador tem vindo a privilegiar a apreciação do fundo sobre a forma, admitindo amplos poderes de correcção de irregularidades processuais em que as partes tenham incorrido, com vista ao efectivo conhecimento das questões de mérito. Exemplos disto mesmo podem encontrar-se nos artigos 88ºe 89º do CPTA onde se permite ao juiz a prolação de despacho destinado a corrigir irregularidades de carácter formal ou a convidar as partes a corrigi-las.
No mesmo sentido, o nº 2 do artigo 110.º do CPPT relativo à impugnação judicial permite que o juiz convide o impugnante a suprir no prazo que designar qualquer deficiência ou irregularidade.
Outro exemplo desta preocupação anti-formalista do legislador pode encontrar-se no artigo 58º, nº4 do CPTA, o qual permite a admissão da impugnação para além do prazo de três meses previsto na alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito (desde que ainda não tenha expirado o prazo de um ano), caso se demonstre que, pelas razões aí previstas, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente.
Na mesma senda anti-formalista e de promoção do acesso ao Direito, o artigo 476º do CPC concede ao autor o benefício de apresentar nova petição dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, com fundamento, entre outros, no facto de a mesma ter sido apresentada em tribunal diferente daquele ao qual está dirigida (cfr. artigo 474º, al. a), 2ª parte do CPC). Neste caso, conforme decorre do referido 476º do CPC, a acção considera-se proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.
Quer isto dizer, portanto, que, perante uma situação de claro erro entre o tribunal a quem é dirigida a petição e aquele onde a mesma é entregue, o legislador optou por não comprometer, em definitivo, o exercício direito de acção, considerando-se o mesmo exercido na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.
Dir-se-á, pois, que é notória a preocupação do legislador em assegurar que as pretensões dos interessados não faleçam por irregularidades que possam ser corrigidas, privilegiando o fundo em detrimento da forma.
Também a jurisprudência vem defendendo que na interpretação das normas processuais deve prevalecer a que melhor garanta a tutela efectiva do direito e a concretização da justiça material, devendo repudiar-se as interpretações meramente formais que obstaculizem o exercício do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva. Trata-se, sem dúvida, de uma tendência claramente anti-formalista, que favorece o acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva – cfr., entre outros, os Acórdãos do STA de 2/6/99 (rec. 44.498), de 7/12/99 (rec. 45.014), de 15/12/99 (rec. 37.886), de 16/8/00 (rec. 46.518), de 9/4/02, (rec. 48.200), de 2/10/02 (rec. 760/02), de 25/6/03 (rec. 1008/03) e de 12/12/2006 (rec.426/06).
É neste contexto que se justifica plenamente o apelo ao disposto no artigo 34º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), não obstante o mesmo estar inserido num diploma que regula a actividade administrativa.
Com efeito, dispõe o referido artigo:
1. Quando o particular, por erro desculpável e dentro do prazo fixado, dirigir requerimento, petição, reclamação ou recurso a órgão incompetente, proceder-se-á da seguinte forma:
a) Se o órgão competente pertencer ao mesmo ministério ou à mesma pessoa colectiva, o requerimento, petição, reclamação ou recurso ser-lhe-á oficiosamente remetido, de tal se notificando o particular;
b) Se o órgão competente pertencer a outro ministério ou a outra pessoa colectiva, o requerimento, petição, reclamação ou recurso será devolvido ao seu autor, acompanhado da indicação do ministério ou da pessoa colectiva a quem se deverá dirigir.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, começa a correr novo prazo, idêntico ao fixado, a partir da notificação da devolução ali referida.
3. Em caso de erro indesculpável, o requerimento, petição, reclamação ou recurso não será apreciado, de tal se notificando o particular em prazo não superior a quarenta e oito horas.
4. Da qualificação do erro cabe reclamação e recurso, nos termos gerais.” (Sublinhados nossos.)
Também aqui, o legislador privilegiou o direito dos administrados a que as suas petições sejam decididas e, por isso, a considerar que serão de relevar certos erros que aqueles possam ter cometido na sua apresentação quando os mesmos sejam de qualificar como desculpáveis.
É certo que sempre aqui poderíamos encontrar um obstáculo à aplicação do citado preceito (leia-se, o artigo 34º do CPA), concretamente a circunstância de o mesmo respeitar a erros em petições dirigidas às autoridades administrativas, quando aqui está em causa uma petição de impugnação judicial dirigida ao juiz.
Entendemos, porém, que esta questão tem que encontrar uma solução focada no caso concreto e nos seus específicos contornos. É que, como está bem de ver, o apelo ao artigo 34º do CPA pode aqui funcionar entre as próprias autoridades administrativas. Explicitando, no caso, a Direcção de Finanças de Coimbra – órgão periférico regional - poderia ter remetido ao Serviço de Finanças – órgão periférico local – a petição de impugnação judicial que erradamente lhe foi remetida.
E assim sendo, não obstante a inserção do citado artigo 34º no CPA, nada na lei impede que o mesmo aqui possa ser aplicado, tanto mais que, como defendemos, se trata, no caso, de aplicar este preceito em relação a autoridades administrativas, em concreto à remessa, por parte da Direcção de Finanças de Coimbra, da petição de impugnação, ao Serviço de Finanças.
Isto dito, e sem desconsiderar, uma vez mais, que, efectivamente, o Recorrente não remeteu ao local correcto a petição, a questão que se coloca é a de saber se esse seu erro se pode considerar desculpável, devendo assim ser entendidos “pelo menos, todos os erros de direito que não sejam notórios e grosseiros, bem como todos aqueles erros de facto que não resultem de despreocupação ou ligeireza com que o interessado encarou a questão da competência para o procedimento.” – Esteves de Oliveira e outros, CPA Anotado, 2.ª ed., pg. 207. Este juízo sobre a desculpabilidade do erro, prosseguem os autores, “deve pautar-se por um princípio de favor do administrado, que contrabalance a teia cada vez mais complexa e desdobrada de serviços da Administração Pública”.
Por outras palavras, como tem vindo a afirmar a jurisprudência do STA, deve qualificar-se como indesculpável o erro notório, grosseiro e evidente em que um interessado medianamente diligente, cuidadoso e avisado não cairia e, por isso, se for um erro resultante de uma grave negligência - neste sentido, entre outros, vide os acórdãos do STA de 3/11/92 (rec. 30.997), de 2/10/97 (rec. 41.690), de 9/2/00 (rec. 45.581), de 21/11/00 (rec. 46.478), de 3/5/01 (rec. 47.384), 29/1/02 (rec. 48.201), de 24/4/04 (rec. 536/02) e de 12/3/03 (rec. 1950/02).
Ora, recuperando o caso concreto, entendemos que não resulta de negligência grosseira e, como tal, indesculpável, a remessa, dentro do prazo legal, de uma petição de impugnação judicial à Direcção de Finanças de Coimbra quando essa remessa devia ser feita para serviço de finanças (ou, obviamente e em alternativa, para o TAF de Coimbra), tanto mais que, no caso, a própria decisão impugnada – indeferimento de reclamação graciosa – foi proferida precisamente pelo Director de Finanças de Coimbra.
Na verdade, num caso como aquele que aqui está em apreciação, há que concluir, adoptando uma interpretação da lei mais favorável ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que o erro cometido pelo ora Recorrente deve ser considerado desculpável.
Note-se, aliás, que, no caso concreto, a sentença recorrida, embora tenha tomado em consideração que o local onde efectivamente a p.i deu entrada foi a Direcção de Finanças (isto mesmo ficou a constar do probatório), não valorizou esse facto, no sentido de dele retirar consequências jurídicas em termos de intempestividade. Com efeito, o juízo formulado na sentença sobre a intempestividade assenta unicamente na data da apresentação da p.i, a qual, aliás, foi erradamente considerada no dia 24 de Maio e não na data de remessa por correio, no dia 21.
Em suma, a sentença recorrida não retirou nenhuma conclusão quanto ao erro sobre o local da apresentação da p.i, o que deixa perceber a razão pela qual o Recorrente (igualmente) não valorizou esse facto.
Portanto, face a tudo o quem vem dito, há que concluir que a petição de impugnação judicial, remetida à Direcção de Finanças de Coimbra, em 21/05/04, dentro do prazo de 15 dias previsto no artigo 102º, nº2 do CPPT, deve ser admitida e considerada tempestivamente apresentada. É esta a solução que, atento o caso concreto, assegura o exercício do direito de acção que o impugnante quis inequivocamente efectivar, manifestando essa sua vontade, através da remessa da p.i, dentro do prazo de 15 dias de que dispunha.
Acrescente-se, ainda, um argumento que, não sendo retirado de uma situação igual, apresenta algumas semelhanças e que reforça a interpretação propugnada.
Como se sabe, nos termos do artigo 207º do CPPT a petição de oposição à execução fiscal é apresentada no órgão da execução fiscal onde pender a execução fiscal, embora seja dirigida ao juiz do tribunal tributário competente.
Ora, se a petição for directamente apresentada no tribunal tributário a quem é dirigida, o juiz não deve recusar o seu recebimento por tal motivo. Neste caso, o que se tem vindo a entender é que, recebida e distribuída a petição, o juiz deve providenciar no sentido de sanar tal irregularidade, o que, no caso, se traduz na remessa da petição ao órgão da execução fiscal onde a petição deveria ter sido entregue. Neste caso, como afirma Jorge Lopes de Sousa, “deverá considerar-se como data da apresentação da oposição aquela em que for apresentada ou deva considerar-se apresentada no tribunal tributário, aplicando por analogia o artº 18º, nº4 do CPPT, pois, até se está perante uma irregularidade menos grave do que a aí prevista de apresentação da petição a tribunal incompetente”vide, Jorge Lopes de Sousa, CPPT, anotado e comentado, vol. III, Áreas Editora, 6ª Edição, 2011, pág. 549.
Acresce dizer, por último, que nos casos a que se refere a 2ª parte do nº1 e o nº 2 do artigo 103º do CPPT, em que não foi o órgão periférico local que praticou o acto impugnado, a alternativa estabelecida para o local de apresentação da p.i é claramente estabelecida por razões de conveniência do impugnante, pelo que inexiste aqui qualquer motivo ponderoso que inviabilize a aceitação da apresentação de uma p.i que, em rigor, foi remetida dentro do prazo legal.
Para mais, no caso concreto, a própria Direcção de Finanças remeteu de imediato a petição ao Tribunal (como tinha que o fazer o Serviço de Finanças, caso a petição ali tivesse dado entrada), pelo que se obteve, afinal, o mesmo resultado prático que se alcançaria caso a petição tivesse sido apresentada ou remetida ao local estabelecido no nº1 do artigo 103º do CPPT.
Face a tudo quanto foi dito, há que concluir que a petição de impugnação foi apresentada tempestivamente, em 21/05/04, não se verificando, portanto, a caducidade do direito de deduzir impugnação judicial.
Em procedência das conclusões do recurso, a sentença deve, portanto, ser revogada.
3 - CONCLUSÃO
Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCAN em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, revogar a decisão recorrida que, nos termos apontados, julgou a impugnação judicial intempestiva, devendo o Tribunal a quo conhecer do mérito da impugnação, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.
Porto, 9 de Fevereiro de 2012
Ass. Catarina Almeida e Sousa
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves