Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00566/12.2BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/28/2020
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; ÓNUS DA PROVA; DIFAMAÇÃO; LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
Sumário:1. Os factos que permitiriam concluir pela verificação de uma causa de justificação da difamação teriam de ser alegados pela Arguida, aqui Recorrente, no processo disciplinar e o ónus da sua prova recaía sobre a arguida, pelo que não o tendo feito não o pode alegar em sede de processo judicial.

2. O reporte de situações para melhorar as condições do serviço não se confunde com as insinuações feitas perante a tutela, desgarradas dos factos, que põem em causa o bom nome e a reputação dos superiores hierárquicos da arguida, pelo que sendo aquelas insinuações difamatórias, constituem infracção por violação dos deveres de zelo, lealdade e correcção.

3. Existe uma colisão de direitos entre o direito à liberdade de expressão de cada cidadão (artigos 37º, nºs 1 e 2, e 25º, nº 1, e 26º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa) e o direito à honra e consideração social dos mesmos cidadãos. Para determinar se certas expressões, imputações ou formulação de juízo de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra há que considerar o contexto em que o agente actuou, as razões que o levaram a agir como agiu, a maior ou menor adequação social do seu comportamento

4. A suspeita lançada pela arguida contra os seus superiores hierárquicos, de a escolha de assistentes jovens e graduados para coordenação ser subordinada a critérios de amizade ou para fazer currículo, desacompanhada de factos concretos, é difamatória e não traduz o exercício da liberdade de expressão. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:M.E.C.A.
Recorrido 1:Centro Hospitalar (...), E.P.E.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

M.E.C.A. veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 31.07.2014, pelo qual foi julgada improcedente a acção administrativa especial intentada pela Recorrente contra o Centro Hospitalar (...), E.P.E. para anulação da deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar (...), E.P.E., datado de 05.07.2012, que condenou a Autora na pena disciplinar de multa no montante de 3.143,88 €, suspensa pelo período de um ano.

Invocou para tanto em síntese a decisão recorrida não deu como provados factos relevantes, alegados na petição inicial e não impugnados pela Recorrida, não tratou de investigar as circunstâncias em que o ocorreram os factos que levaram à sua punição, não fez operar o ónus da prova a cargo da Entidade Demandada, mostrando-se a sentença ininteligível quanto à questão do ónus da prova e violando o artigo 32.º, n.º 2 e n.º 10 da Constituição da República Portuguesa; ao coartar a possibilidade de diligenciar no sentido da melhoria das condições de trabalho e das condições do serviço para os pacientes, a decisão recorrida violou o artigo 59.º, n.º1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa; ao limitar a possibilidade da recorrente reportar aos superiores hierárquicos as situações existentes no seu serviço (sem que tenha havido publicitação para além da fronteira do Ministério da Saúde), a decisão recorrida violou o artigo 37.º, n.º 1 e n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

á) A sentença recorrida deveria ter considerado como provados um conjunto de factos, essenciais para a boa decisão da causa e relativamente aos quais foram carreados para os autos elementos suficientes e que não foram impugnados pela entidade recorrida, a saber:

◦ Previamente à conduta objeto do procedimento disciplinar, a ora autora tinha, por várias vezes, solicitado reuniões ao presidente do primeiro réu.
◦ Porém, tal nunca se mostrou disponível para tal reunião.
◦ Ademais, a autora enviou ao presidente do primeiro réu uma carta, em 15 de dezembro de 2011, cujo conteúdo consta do documento junto à petição inicial como n.º5.
◦ Tal carta foi recebida pelo presidente do primeiro réu em 15 de dezembro de 2011.
◦ A autora nunca recebeu qualquer resposta a tal comunicação.
◦ Foi no seguimento daquela ausência de resposta, de resto, que a ora autora decidiu enviar uma carta ao Senhor Secretário de Estado da Saúde.
◦ Vista a ausência de resposta do Conselho de Administração à comunicação enviada previamente, o que denota uma manifesta desconsideração pelas situações denunciadas pela autora, esta entendeu que o Senhor Secretário de Estado seria a entidade a recorrer para ver resolvidos os problemas.

â) Tal como o fez a decisão do procedimento disciplinar, a sentença recorrida deveria ter considerado como provado que “a arguida é profissional competente, dedicada ao trabalho e aos doentes, sendo pessoa afável, respeitadora e atenciosa”.

ã) A decisão recorrida deveria ter dado como provado que o procedimento disciplinar não provou qualquer falsidade das afirmações feitas pela recorrente.

ä) A decisão recorrida deveria ter dado como provado que o procedimento disciplinar não provou a existência de quaisquer danos provocados pela recorrente.

å) O tribunal a quo deveria ter diligenciado no sentido de conhecer as circunstâncias em que foi dada a resposta à comunicação do Presidente do Conselho Diretivo da Administração Regional de Saúde do Centro datada de 20 de fevereiro.

æ) A conduta censurada pela entidade recorrida teve a ver com a comunicação, a um seu superior hierárquico, como é o Secretário de Estado da Saúde, de uma situação de facto relativa ao seu serviço – a recorrente não se pronunciou em público, mas só reportou falhas do seu serviço à tutela.

ç) A decisão recorrida deveria ter valorado a circunstância de uma comunicação relativa ao serviço feita a um superior hierárquico – ou seja, que tem competência relativamente a tal serviço – não constituir, de alguma forma, a lesão da confiança, credibilidade, prestígio, bom-nome, idoneidade, isenção ou profissionalismo da instituição ou de qualquer pessoa que os constitua.

è) A decisão recorrida deveria ter avaliado criticamente os fundamentos utilizados pela entidade ora recorrida para tomar a decisão – caso o tivesse feito teria concluído que a recorrente não violou o dever de zelo (a recorrente sempre se atualizou e esforçou pela concretização dos objetivos do serviço onde trabalhou); o dever de lealdade (sempre a recorrente foi empenhada e dedicada, conforme concluiu a entidade recorrida no âmbito do procedimento disciplinar); ou o dever de correção (nunca a recorrente faltou ao respeito aos seus superiores hierárquicos).

é) A sentença recorrida deveria ter concluído que à arguida não cabia provar a sua inocência, e que teria a Administração de provar suficientemente os factos que fundamentassem a prática de uma infração disciplinar por parte daquela, o que não aconteceu, pelo que deveria ter operado o ónus da prova a favor da arguida.

ê) Acresce que, na parte em que considera a questão do ónus da prova, a sentença recorrida mostra-se ininteligível.

ë) Ao coartar a possibilidade de diligencia no sentido da melhoria condições de trabalho e das condições do serviço para os pacientes, a decisão recorrida violou o artigo 59.º, n.º1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

ì) Ao limitar a possibilidade da recorrente reportar aos superiores hierárquicos as situações existentes no seu serviço (sem que tenha havido publicitação para além da fronteira do Ministério da Saúde), a decisão recorrida violou o artigo 37.º, n.º1 e n.º2, da Constituição da República Portuguesa.
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II –Matéria de facto.

Em primeiro lugar, alega a Recorrente que não foram levados à matéria de facto dada como provada na 1ª instância os seguintes factos alegados na petição inicial e não impugnados na contestação:

Previamente àquela conduta, a ora autora tinha, por várias vezes, solicitado reuniões ao presidente do primeiro réu.
• Porém, tal nunca se mostrou disponível para tal reunião.
• Ademais, a autora enviou ao presidente do primeiro réu uma carta, em 15 de dezembro de 2011, cujo conteúdo consta do documento junto à petição inicial como n.º5.
• Tal carta foi recebida pelo presidente do primeiro réu em 15 de dezembro de 2011.
• A autora nunca recebeu qualquer resposta a tal comunicação.
• Foi no seguimento daquela ausência de resposta, de resto, que a ora autora decidiu enviar uma carta ao Senhor Secretário de Estado da Saúde.
• Vista a ausência de resposta do Conselho de Administração à comunicação enviada previamente, o que denota uma manifesta desconsideração pelas situações denunciadas pela autora, esta entendeu que o Senhor Secretário de Estado seria a entidade a recorrer para ver resolvidos os problemas.

Vejamos.

Tais factos foram alegados pela Autora nos artigos 49º a 54º e 56º da petição inicial.

A Ré impugnou especificadamente parte desses factos no artigo 67º da contestação, só não impugnando os factos constantes dos artigos 51º e 52º da petição inicial e que são os seguintes:

51º- Ademais, a autora enviou ao presidente do primeiro réu uma carta, em 15 de dezembro de 2011, cujo conteúdo consta do documento junto à petição inicial como n.º5.

52º- Tal carta foi recebida pelo presidente do primeiro réu em 15 de dezembro de 2011.

Mas tanto os factos não impugnados como os impugnados são inócuos, ou seja, não têm qualquer relevo para o desfecho da causa, pelo que, com acerto, o acórdão da 1ª Instância não os incluiu na matéria de facto relevante para apreciação da acção.

Com efeito, a carta dirigida ao Presidente do Conselho de Administração da Recorrida é distinta da dirigida ao Secretário de Estado da Saúde e apenas o teor daquela está em causa.

E mostra-se irrelevante que a segunda carta tenha sido enviada pela falta de resposta à primeira.

São completamente irrelevantes as razões do envio da segunda carta porque não está em causa no acto sancionatório o envio em si mesmo da segunda carta, mas tão-só o teor desta.

Em segundo lugar, alega a Recorrente que:

- a decisão recorrida deveria ter dado como provados os factos relativos à intenção da Autora, à veracidade dos factos mencionados pela Autora na carta dirigida ao Secretário de Estado da Saúde e, ainda quanto à (in)existência de danos.

- a Recorrente detectou um conjunto de situações no seu serviço, que pretendia ver resolvidas pelos superiores – tendo contactado o presidente da Recorrida sem sucesso, a Recorrente viu-se obrigada a proceder ao envio da missiva ao Secretário de Estado da Saúde, com o objectivo de contribuir para a melhoria do funcionamento dos serviços, o que deveria ter sido dado como provado, já que a decisão do procedimento disciplinar movido à Recorrente reconheceu que “a arguida é profissional competente, dedicada ao trabalho e aos doentes, sendo pessoa afável, respeitadora e atenciosa (cfr. Documento nº 2 junto à petição inicial, não se compreendendo como pode a Recorrida e o tribunal a quo reconhecerem que a Recorrente é uma pessoa dedicada ao trabalho e contestar que a intenção da mesma, ao reportar irregularidades detectadas nos serviços, foi a melhor: contribuir para a melhoria do funcionamento dos serviços.

Também aqui sem razão.

A segunda carta, dirigida ao Secretário de Estado da Saúde, não se limita a reproduzir a primeira carta, dirigida ao Presidente do Conselho de Administração.

Apenas o teor da segunda carta aqui está em causa por ser, ao contrário da primeira, ofensiva da honra, consideração social, credibilidade, prestígio e confiança do Conselho de Administração da Recorrida e dos elementos que integram o Conselho de Administração e a directora técnica da Recorrida.

É certo que a decisão recorrida não abordou os factos relativos à intenção da Autora, mas também não tinha de o fazer por tal intenção se mostrar irrelevante.

Na difamação não releva a intenção do autor, o que releva é se os factos que imputados ao visado pelo autor das imputações são idóneos a ofender a honra e consideração social daquele.

No caso concreto são idóneos, como melhor veremos.

Com efeito, como se sustenta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.11.2018, no processo nº 35/17.4 PRT.P1:

“os crimes de difamação e de injúria contentam-se hoje com o chamado dolo genérico, não exigindo o dolo específico enquanto especial direcção da vontade.”

A punibilidade está excluída quando, cumulativamente:

a) A imputação feita visar a realização de interesses legítimos;

b) Se faça a prova da verdade da imputação ou de que a mesma é tida , em boa-fé, como verdadeira.

O que resulta do disposto no artigo 180º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do Código Penal, aplicável ao caso concreto, por força dos princípios gerais de direito disciplinar.

Ora, a Recorrente não alegou na sua resposta à acusação que as imputações feitas contra a Directora Técnica e contra os membros do Conselho de Administração eram verdadeiras ou que as mesmas eram tidas, em boa-fé como verdadeiras.

Tais alegações tinham que constar da defesa da arguida para no processo disciplinar serem objecto da prova produzida pela defesa, o que não aconteceu.

A prova dos factos constitutivos da difamação e das causas de justificação supra aludidas tinha que ser feita no processo disciplinar, pelo que está precludida a possibilidade de alegar e provar que as imputações dos factos que constam do relatório final do processo disciplinar são verdadeiras.

Assim, não pode tal causa de justificação ser objecto de prova nos presentes autos.

Os factos que permitiriam concluir pela verificação de uma causa de justificação da difamação teriam de ser alegados pela Arguida, aqui Recorrente, no processo disciplinar e o ónus da sua prova recaía sobre a arguida.

Como matéria de excepção, a afastar a ilicitude objectivada no seu comportamento, e porque o princípio in dubio pro reo não se aplica à prova da verdade dos factos no âmbito da alínea b) do nº 2 do artigo 180º do Código Penal – neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.12.2008, no processo nº 0846092.

O que esta não fez.

Isto sendo certo que o tribunal não é uma segunda instância administrativa nem se substitui à Administração nas suas funções, por tal estar vedado pelo princípio da separação de poderes e até por uma questão prática, não tem os meios humanos nem as estruturas da Administração para a substituir nas suas funções.

Assim, não se justifica a produção de prova pretendida.

Em terceiro lugar alega a Recorrente que as suas imputações ofensivas não produziram qualquer dano no seio da Recorrida, pois não foi afectado o funcionamento ou a imagem da instituição hospitalar, bem como não houve qualquer dano para a imagem dos titulares de cargos de direcção daquela, não se tendo, igualmente, produzido qualquer dano com a conduta da ora Recorrente.

Também aqui sem razão.

O crime de difamação não é um crime de dano mas um crime de perigo.

Basta a potencialidade de criar o dano para se consumar, não exigindo que o dano se consume.

“III - Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano.”

- Sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, no processo nº 07P4817.

Assim sendo, não assume qualquer relevância a alegação da Recorrente de que a Ré deu pouca importância à difamação praticada pela Autora, já que só respondeu três meses depois.

Deveremos, assim, dar como provados os seguintes factos, constantes da decisão recorrida:

1) Mediante deliberação proferida em 22.03.2012 do Conselho de Administração do Centro Hospitalar (...), E.P.E, foi ordenada a instauração de processo disciplinar contra a Autora Dr.ª M.E.C.A. – cfr. folhas 1 e 2 do processo administrativo.

2) Da deliberação proferida em 22.03.2012, consta o seguinte:

“ Deliberação n.º …. - Exposição sobre integração do Hospital Cândido de Figueiredo/(...) no Centro Hospitalar (...), E.P.E., Mestre M.E.C.A..

Considerando a exposição remetida pela Srª Drª M.E.C.A. a Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado da Saúde, da qual este órgão teve conhecimento através do ofício nº 7275, de 20 de Fevereiro, entrado, sob o número 525, em 23 de Fevereiro do corrente ano, endereçado pelo Sr. Presidente do Conselho Directivo da Administração Regional de Saúde do Centro ao Sr. Presidente do Conselho de Administração, e depois de convenientemente pesada a liberdade de expressão constitucionalmente garantida a todos os cidadãos, face à imposição constitucional da eficácia e eficiência da Administração Pública, da qual deriva um genérico dever de respeito, delibera instaurar, nos termos do nº 1 do artigo 29.º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro, procedimento disciplinar contra a mencionada Drª M.E.C.A., por considerar que as afirmações constantes na citada carta de 19 de Janeiro de 2012 são passíveis de constituir violação dos seguintes deveres gerais e especiais inerentes à função que exerce: dever de correcção (a título de exemplo, no último parágrafo da página 3, onde faz referência à nomeação dos adjuntos da directora clínica, afirma, questionando se tais decisões foram tomadas para fazer currículo ou por amizade, quando, como não pode a Srª Drª M.E.C.A. ignorar, tais nomeações foram efectuadas na prossecução do interesse público da optimização da assistência médica do Centro Hospitalar), dever de lealdade (por exemplo, a formulação das questões, na página 10, ao colocar em causa decisões tomadas pelo Conselho de Administração e que são competência exclusiva deste órgão, apenas susceptíveis de apreciação a posteriori pela tutela e pelas instâncias de controlo e de inspecção, faz temer que a trabalhadora não se abstenha de actuar no sentido de fazer perigar a concretização dos objectivos do Centro Hospitalar, com os quais não tem sequer de concordar, sendo suficiente, como atesta o facto de ser trabalhadora nomeada, ter prestado um juramento … Dir-se-á ainda que a nomeação da Direcção do Internato Médico foi feita de acordo com as disposições legais sobre a matéria e, assim, na convicção firme de se estar a prosseguir o interesse público) e o dever de zelo (revelando desconhecimento de normas regulamentares, ordens e instruções superiores, designadamente sobre a referenciação entre as unidades de (...) e Viseu).

Como instrutor do processo disciplinar delibera-se nomear o Sr. Dr. F.A., Director de Recursos Humanos e Administrador Hospitalar de 3ª classe do quadro de pessoal deste Centro Hospitalar.”

– cfr. folhas 2 do processo administrativo.

3) A Autora enviou carta ao Senhor Secretário de Estado da Saúde alertando a tutela para um conjunto de circunstâncias que no seu entender se verificaram no serviço, e que deram origem à instauração do processo disciplinar, cujo teor, em parte se reproduz:

“ … Aconteceram reuniões entre os órgãos dirigentes e as medicinas de Viseu e houve por parte da direcção a nomeação de assistentes e assistentes graduados muito jovens para adjuntos da directora clínica (para fazer currículo? Por amizade ?) (há chefes de serviço no hospital de Viseu) (eu própria sou chefe de serviço, tenho o curso PGOM da UCP, competência em gestão pela Ordem dos Médicos …), mantendo a unidade de medicina de (...) sempre à margem destas reuniões.”

– folhas 7, último parágrafo do processo administrativo – documento n.º 5, folhas 3, ultimo parágrafo, da petição inicial, dado por reproduzido.

“… Parece-me que a contratualização poderá ter sido um pretexto para nos manter a mim e à outra médica naquela unidade de (...)”.

– folhas 9 e 11 do processo administrativo; documento n.º 5, folhas 5, da petição inicial.

“…Também em relação ao que o Presidente do Conselho de Administração escreve nesta resposta: “mesma orgânica funcional, em colaboração com a unidade do Hospital de São Teotónio”, tenho a tecer várias considerações:
(…)
j) Os doentes são previamente “negociados ou conversados” pelas médicas da unidade com os internistas de Viseu, mas mesmo assim, os doentes chegam de forma diferente do apresentado. (por exemplo infecções respiratórias que correspondem a pneumonias extensas ….), (não é possível aceder aos registos informáticos de Viseu, nomeadamente, radiológicos);

l) Os doentes transferidos pelos médicos de Viseu são sempre os de pior diagnóstico;

m) Os doentes transferidos são sempre os mais idosos;”

- folhas 10 do processo administrativo – documento n.º 5, folhas 6, da petição inicial, dado por reproduzido.

“… Salienta-se ainda:

Esta unidade nunca poderá ter bons indicadores de qualidade porque a patologia enviada corresponde a maior parte das vezes a infecções nosocomiais, ou a doentes de prognóstico muito reservado.

Esta unidade serve para “limpar” as medicinas de Viseu, ajudando-lhes a conferir os melhores indicadores de qualidade.

A isto chama-se enviesamento estatístico”.

- folhas12, parágrafos 1 a 4, do processo administrativo, documento n.º 5, folhas 8, da petição inicial, dado por reproduzido.

“…O que tem acontecido nesta direcção é o convite sistemático de jovens assistentes (…)”

- folhas 14, 1º parágrafo, do processo administrativo, documento n.º 5, folhas 10, da petição inicial.

4) Em 11.05.2012, foi deduzida acusação no âmbito do processo disciplinar instaurado contra a ora Autora, notificada a 14.05.2012 – cfr. documento 3 junto com a petição inicial e folhas 48 a 56.

5) A Autora apresentou a sua defesa em 21.05.2012 – cfr. documento 4 junto com a petição inicial e folhas 58 a 69 do processo administrativo.

6) Em 11.07.2012, a Autora foi notificada da deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar (...), E.P.E., datado de 05 .07.2012, concordando com o Relatório Final datado de 27.06.2012 – cfr. documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial e folhas 106 a 117 do processo administrativo.

7)Nos termos do referido relatório do Instrutor do processo, foram os seguintes os factos imputados à então arguida:

“…4. Concluiu-se a instrução nos termos do art.º 48.º e, com base no seu n.º 2, foi deduzida contra a referida arguida a correspondente acusação que aqui se dá como integralmente reproduzida e que consta de fls. 48 a 53, mas de que se repetem, sinteticamente os factos acusados:

“a. Datado de 19 de janeiro de 2012, a arguida enviou uma exposição dirigida ao Senhor Secretário de Estado da Saúde, Dr. M.L.T.;
b. Decidiu fazer tal exposição em 19/01/2012, após a cerimónia de tomada de posse do Conselho de Administração do CHTV, em 20/12/2011, tendo, por conseguinte, decorrido cerca de um mês;
c. Nessa exposição a arguida:

i. Questiona os critérios utilizados pela Diretora Clínica do CHTV para a escolha dos seus adjuntos que considera serem muito jovens e, por isso insinuando, interrogativamente, que foram escolhidos “para fazer currículo” ou “por amizade”;
ii. Considera que o Processo Interno de Contratualização do CHTV, com intenção de início para janeiro de 2012, foi um pretexto para manter as especialistas de medicina interna na unidade de (...);
iii. Afirma que a Unidade de (...) “nunca poderá ter bons indicadores de qualidade porque a patologia enviada corresponde a maior parte das vezes a infeções nosocomiais ou a doentes de prognóstico muito reservado”;
iv. Acusa a instituição de, com este alegado procedimento, “limpar” as medicinas de Viseu ajudando-lhes a conferir os melhores indicadores de qualidade” e acusando-a ainda de praticar “enviesamento” estatístico”;
v. Questiona e põe em causa as designações para as coordenações afirmando que “o que tem acontecido nesta direção é o convite sistemático de jovens assistentes e outros graduados, médicos que podiam dar o seu melhor em urgência, mas que já ficam sobrecarregados com coordenações”;
vi. Questionar diretamente o Senhor Secretário de Estado da seguinte forma: “Porque é que a unidade de medicina de (...) continua a funcionar?”, “Porque não sou chamada para fazer a direção do internato médico do centro hospitalar, dado ser a única especialista do assunto no Centro Hospitalar?” e “Porque não sou chamada para as diversas reuniões sobre os assuntos de medicina e Internato Médico do Centro Hospitalar?”

d. Com esta exposição, dirigida a quem o é – Senhor Secretário de Estado da Saúde – sendo a arguida um elemento categorizado da Administração Pública:

i. Sabia que esta exposição causaria graves prejuízos para a imagem, bom nome e confiança da Diretora Clínica, do Conselho de Administração e dos restantes membros, que a nível da tutela, quer a nível institucional;
ii. Coloca em causa decisões do Conselho de Administração, contestando a sua correção e visando a desestabilização e descredibilização deste órgão perante a tutela e internamente;
iii. Põe em causa, perante o Secretário de Estado, o bom nome institucional, da Direção Clínica, do Conselho de Administração, dos seus membros, bem como das Direções de Serviço, visando abalar a confiança da tutela no órgão de gestão institucional;
iv. Põe em causa a competência das decisões na área de recursos humanos, nomeadamente as designações de adjuntos, imiscuindo-se em matéria da exclusiva competência da Direção Clínica e do Conselho de Administração, visando fragilizar o exercício funcional da diretora clínica e quebrar a relação de confiança entre a tutela e os órgãos de gestão institucional;
v. Tem uma conduta com a qual manifesta intenção de influenciar e interferir negativamente na paz e ordem social institucional, causando conflitos entre a tutela e os órgãos de gestão, colocando em causa as decisões destes últimos e o normal exercício das funções da diretora clínica, para além de perturbar a normal organização e estrutura institucional.
vi. Tece juízos de valor depreciativos sobre as medidas gestionárias da exclusiva competência da Direção Clínica e do Conselho de Administração do CHTV;
vii. Faz afirmações ofensivas e de caráter difamatório em relação aos critérios para a designação dos adjuntos da Direção Clínica do CHTV;
viii. Revela uma conduta suscetível de prejudicar a relação funcional, pela destruição da relação de confiança que, necessariamente há-de existir entre quem dirige e quem é dirigido.

e. A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida por lei e que, com o seu comportamento, incorria em responsabilidade jurídico-disciplinar, tendo em conta que se trata de uma profissional experiente, com mais de 34 anos de serviço na instituição, dos quais 7 na direção do Serviço de Medicina do ex-HCF e, portanto, perfeitamente conhecedora do quadro normativo vigente;

f. Com o comportamento descrito, a arguida violou os deveres gerais de zelo, de lealdade e de correção previstos, respetivamente nos números 7, 9 e 10 do artigo 3.º do ED;

g. Com tal comportamento a arguida atentou gravemente contra a dignidade e prestígio das funções da Diretora Clínica e do Conselho de Administração, agiu a título de dolo direto (art. 3.º, n.º1 do ED) incorrendo assim em infração disciplinar (…)

h. Com a conduta a arguida revela vontade determinada de produzir resultados prejudiciais aos órgãos de Direção Técnica e de Direção Executiva do CHTV, de forma premeditada, constituindo estas circunstâncias agravantes especiais (…)

i. A favor da arguida milita a circunstância da inexistência de antecedentes sancionatórios jurídico-disciplinares”.

– cfr. documento 2 junto com a petição inicial e folhas 106 a 109 do processo administrativo.

8) Do relatório final relativamente aos pontos 9.c, 10, 11, 12, Conclusões e Proposta, consta:

[imagem que aqui se dá por reproduzida]

– cfr. documento 2 junto com a petição inicial e folhas 112 a 116 do processo administrativo.
*
III - Enquadramento jurídico.

1. As expressões proferidas pela Recorrente.

Alega a Recorrente que não se dirigiu para o exterior, não tendo prestado quaisquer declarações aos meios de comunicação social, tendo-se dirigido a um seu superior hierárquico, o Secretário de Estado da Saúde, tendo-se limitado a reportar uma situação de facto a um seu superior hierárquico. Mais alega que a Ré está hierarquicamente dependente dos membros do Governo que exercem a tutela, mormente o Secretário de Estado da Saúde e que é princípio do Direito Administrativo que a competência do superior compreende a atribuída aos seus subalternos. Também alega que a competência do Conselho de Administração da Ré cabe também ao Secretário de Estado da Saúde, se a Recorrente detecta uma falha no seu serviço e a reporta ao Conselho de Administração, que ignora tal comunicação, a alternativa é reportar a situação à tutela.

Sem razão.

Se a Recorrente reportasse as situações que reportou ao Conselho de Administração e se cingisse a tal, não haveria difamação, mas os factos provados espelham imputações de factos e juízos de valor, sob a forma de suspeições que estão muito para além do reporte de uma situação carecida da tutela do Secretário de Estado da Saúde, ou seja a arguida faz imputações de factos e de juízos de valor que são ofensivos do bom nome, da honra, da consideração social e profissional de membros dos órgãos da Ré, imputações como tal ilegítimas, sem qualquer justificação.

2. A violação dos deveres de zelo, lealdade e correcção.

À presente situação aplica-se a Lei nº 58/2008, de 09.09, que no seu artigo 3º, nºs 1 e 2, alíneas e), g) e h), considera como infracção disciplinar o comportamento do trabalhador, por acção ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce, sendo os três deveres em epígrafe deveres gerais dos trabalhadores.

Os nºs 7, 9 e 10 do citado artigo 3º definem em que consistem tais deveres:

O dever de zelo consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objectivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas – nº 7. O dever de lealdade consiste em desempenhar as funções com subordinação aos objectivos do órgão ou serviço – nº 9. O dever de correcção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos – nº 10.

Quanto ao dever de zelo, a Recorrente na exposição que dirigiu pôs em causa as orientações dos seus superiores hierárquicos a que estava sujeita em vez de as respeitar, levantando suspeitas sobre as mesmas.

Tanto basta para se considerar violado este dever.

Quanto ao dever de lealdade, o mesmo foi violado já que a Recorrente na carta dirigida ao Secretário de Estado da Saúde levantou suspeitas relativamente aos objectivos delineados pela Ré, através dos seus órgãos dirigentes, imputando ao Conselho de Administração e à directora técnica da Recorrida, a cujas orientações e ordens estavam sujeita, factos ofensivos da sua honra e bom nome.

Quanto ao dever de correcção, a sua violação é a que assume maior gravidade, pelo ostensivo desrespeito para com os seus superiores hierárquicos.

3. Do ónus da prova.

Alega a Recorrente que o ónus da prova das infracções disciplinares incide sobre a entidade disciplinar.

Porém o elemento objectivo das infracções disciplinares foi aceite pela Arguida, ora Recorrente, pois não negou a autoria e a genuinidade da carta em apreço, nem o respectivo teor.

Sobre a mesma recaía o ónus de alegar e provar uma causa de justificação dessas infracções objectivamente documentadas, causa de justificação que não alegou, nem provou no processo disciplinar, sendo que toda a prova tinha de ser feita nesse processo, sob pena de ficar precludida, não se lhe aplicando em matéria de causas de justificação o princípio in dubio pro reo e porque estamos em matéria de excepção e não, como defende a Recorrente, como acima se referiu.

Não se aplicando à situação dos autos o invocado acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 22.11.2012, no processo 00691/10.4 CBR.

4. A inconstitucionalidade da interpretação legal feita pela sentença recorrida.

Alega a Recorrente que a interpretação que o Tribunal a quo fez do artigo 3º nºs 7, 9 e 10 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas - Lei nº 58/2008, de 09.09, violou os artigos 59º, nº 1, alínea b), 37º nºs 1 e 2 e 32º nºs 2 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa, com os seguintes fundamentos: a Recorrente fez a comunicação que deu origem ao presente processo com o único objectivo de contribuir para a melhoria dos serviços, fê-lo por considerar que as condições a que se referia correspondiam a condições socialmente dignificantes e para que, quer a Recorrente, quer todos os seus colegas de trabalho, se sentissem realizados profissionalmente. Nada disto resultou provado, pelo que não se provou o pressuposto da invocação do artigo 59º, nº 1, alínea b), que dispõe: “Todos os trabalhadores…têm direito à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal…”.

Vejamos.

Existe uma colisão de direitos entre o direito à liberdade de expressão de cada cidadão (artigos 37º, nºs 1 e 2, e 25º, nº 1, e 26º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa) e o direito à honra e consideração social dos mesmos cidadãos. Para determinar se certas expressões, imputações ou formulação de juízo de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra há que considerar o contexto em que o agente actuou, as razões que o levaram a agir como agiu, a maior ou menor adequação social do seu comportamento (neste sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 9447/14.4 TDPRT.P1, datado de 14.06.2017).

A Recorrente fez insinuações graves sobre a escolha de assistentes jovens e graduados para a coordenação, lançando a suspeita de a escolha ser subordinada a critérios de amizade ou para fazer currículo.

As outras imputações são menos graves, mas mesmo assim, lesivas da honra dos visados. A arguida não tinha a seu cargo a fiscalização dessas condutas e se queria denunciar erros, não teria que socorrer-se de linguagem tão lesiva da integridade moral dos visados. Relataria as situações e faria as suas sugestões. A Recorrente foi muito para além do direito de informar e cometeu efectivamente difamações que, porque não adequadas socialmente ao seu comportamento, devem ser sancionadas, preferindo o direito à honra e consideração social dos visados sobre o direito à liberdade de expressão da Recorrente.

De tudo o exposto, resulta que não foi violado o artigo 32º, nºs 2 e 10, da Constituição da República Portuguesa.

O recurso não merece, pois, provimento, impondo-se manter a decisão recorrida.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.
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Porto, 28.02.2020



Rogério Martins
Luís Garcia
Frederico Branco