Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00257/15.2BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/13/2020
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; PROVA; INJURIA; LIBERDADE DE EXPRESSÃO.
Sumário:1- A decisão disciplinar constitui o culminar de um procedimento próprio e autónomo pelo qual, no exercício do poder disciplinar, se visa, na sequência de uma tramitação legalmente prevista, apurar a responsabilidade disciplinar do trabalhador e aplicar, quando seja o caso, uma sanção disciplinar pela prática da infração disciplinar.

2- A condenação disciplinar para se dar determinado facto como provado, não exige uma certeza absoluta, sendo admissível à Administração usar de presunções naturais, desde que as mesmas sejam adequadas.

3- Demonstrado que o agente da GNR estava na linha da frente de uma manifestação, entre manifestantes que gritavam palavras de ordem contra o Ministro da Administração Interna, que incluíam as expressões “Gatuno, Gatuno”, dos quais não se apartou antes permanecendo no local próprio daqueles que detêm uma posição de liderança, comando ou de destaque, não é credível, também perante as regras da lógica e da experiência comum, que nesse contexto, o mesmo fosse proferir outras expressões que não as palavras de ordem que estavam a ser verbalizadas pelos manifestantes e que foram captadas pelos vários canais de televisão.

4- Um militar da GNR não pode ignorar que, se como cidadão em geral, não pode proferir as expressões “Gatuno, gatuno” contra terceiros, muito menos o poderia fazer enquanto agente da autoridade a quem se impõem particulares deveres funcionais, nomeadamente, o da manutenção da ordem democrática, do estado de direito e da paz, segurança e tranquilidade públicas.

5- As expressões “Gatuno, gatuno” são injuriosas, provocam o achincalhamento público e o rebaixamento do titular do departamento governamental a quem são dirigidas.

6- A previsão constitucional e o consequente reconhecimento do direito à liberdade de expressão a qualquer pessoa (artigo 37.º da CRP) não é ilimitado perante o respeito que a todos se impõe pelo bom nome e reputação da pessoa visada (artigo 26.º da CRP), o que reclama contenção relativamente ao uso de expressões ofensivas e inaceitáveis no contexto em que são proferidas. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:D.
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

I. RELATÓRIO

1.1. D., intentou ação administrativa especial contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, tendo por objeto a impugnação do ato praticado pela Ministra da Administração Interna que o condenou na pena disciplinar de suspensão, pedindo a declaração de nulidade ou anulação do ato.
Alegou, em síntese, para o efeito: a) a violação do Direito Fundamental ao uso da liberdade de expressão e reivindicação de forma pública; b) a inexistência de factos suscetíveis de integrarem qualquer tipo de ilícito disciplinar, ocorrendo manifesto erro na apreciação dos pressupostos de facto e sua integração jurídica; c) a caducidade do procedimento disciplinar, por incumprimento de diversos prazos procedimentais e, d) a nulidade da prova produzida, por não resultar do processo disciplinar de que modo se procedeu à identificação mediante registos fotográficos, por não ter prestado consentimento para o uso da sua imagem e por a utilização de filmagens e fotografias constituírem meios de prova proibidos.
*
Regularmente citado, o Réu contestou, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência da ação, e alegou, em suma que, os prazos procedimentais são meramente ordenadores, pelo que, da sua inobservância, não deriva a ilegalidade do ato; que consta do processo disciplinar o modo como o Autor foi identificado nas imagens e a utilização destas não carece de consentimento do Autor e constitui um meio admissível de prova, pois houve uma justa causa para a sua obtenção; que as imagens colhidas são elucidativas da participação do Autor nas palavras de ordem proferidas e da violação de deveres funcionais, que se impõem aos militares da GNR em todas as situações, estejam ou não ao serviço.
*
Em 17.01.2017, foi proferido despacho, que fixou o valor da causa e julgou desnecessária a produção de prova adicional.
*
O TAF de Mirandela proferiu sentença, que julgou a presente ação improcedente, constando a mesma do seguinte segmento decisório:
«Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolve-se o Réu do pedido.
Custas pelo Autor.
Registe e Notifique.»
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Inconformado com esta decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que a decisão recorrida seja revogada.
Concluiu as suas alegações da seguinte forma:
«1. Violou o Tribunal a quo ao dar provado no ponto 16 que o recorrente proferiu a expressão “Gatuno, Gatuno” dirigida ao Ministro da Administração Interna, errou na apreciação dos elementos probatórios, pois, de toda a prova, em especial, das gravações vídeo, não resulta com a mínima certeza, que tenha proferido esta ou aquela expressão.

2. Violou o Tribunal o Principio fundamental da Presunção da Inocência e de Nulla Pena Sine Culpa, que tem como corolário a absolvição do reu pela aplicação da regra/principio in dúbio pro reu.

3. Violou, pois, o previsto nos artigos, 18, n.º 2; art.º 26, 1 (direito à palavra); art.º 32, n.º2; art.º 37, n.º1 (direito de se exprimir livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio) e n.º2, todos da Constituição da República Portuguesa.

4. Violou-se o princípio fundamental da culpa, pois, a mesma não pode ser presumida, excepto nos casos legalmente previstos, sendo que no direito sancionatório não pode ser presumida em circunstância alguma, tem de ser individual, directa, e é intransmissível.

5. Violou o Tribunal a quo tal principio, pois imputa ao recorrente uma conduta voluntária, ilícita e culposa, por “osmose”, ou seja, por que inserido num grupo não identificável, indeterminado donde ouviu-se a expressão Gatuno, Gatuno, sendo que o mesmo, por associação, também a proferiu.

6. Esta conclusão do Tribunal a quo, é, salvo o devido respeito, a negação da culpa, e dos mais elementares direitos de um Estado de Direito.

7. Mais ainda, mesmo que tivesse o recorrente proferido tal expressão, a mesma não violou o previsto no artigo 37, n.º 3 da CRP, pois ao considerar que tal preceito foi violado pelo recorrente o Tribunal a quo errou, tanto mais, que não contextualizou o porque e a origem de tal expressão nem o sentido da mesma.

8. Violou-se, igualmente, o previsto nos artigos 11, nº 1 e 2 alínea a) do RDGNR, artigo 14, nº1 e 2 alíneas a), d), h) e i) do RDGNR, nem o previsto no artigo 8º do RDGNR, já que a conduta do recorrente não violou o dever de proficiência, nem violou o dever de correção, nem o dever geral que sobre si recai.

Nestes termos alegados, e nos melhores de Direito que V. exas. Certamente suprirão, deve ser procedente o presente recurso, conforme conclusões formuladas e assim revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por acórdão que condene a R. conforme peticionado, ou seja, existência de erro nos pressupostos de facto e na apreciação da prova, inexistindo quaisquer factos suscetíveis de integrarem qualquer ilícito disciplinar; e pela violação do Direito Fundamental ao uso da liberdade de expressão, manifestação e reivindicação de forma pública.»
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O Réu contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
««1.ª - Pede o Recorrente que seja julgado procedente o recurso apresentado, "(...) e assim revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por acórdão que condene a R. conforme peticionado, ou seja, existência de erro nos pressupostos de facto e na apreciação da prova, inexistindo quaisquer factos suscetíveis de integrarem qualquer ilícito disciplinar; e pela violação do Direito Fundamental ao uso da liberdade de expressão, manifestação e reivindicação de forma pública."

2.ª - A Entidade Demandada não pode sufragar as suas conclusões, antes aderindo integralmente à douta sentença recorrida.

3.ª - Efetivamente, não se verifica o alegado erro nos pressupostos de facto e na apreciação da prova, porquanto as diligências instrutórias levadas a cabo no processo disciplinar - registos fotográficos e excertos de programas de televisão de vários canais que revelam a presença do Recorrente nas primeiras linhas da manifestação e ainda relatórios das reuniões efetuadas nos comandos para identificação dos militares visionados nos programas televisivos - revelam que o Recorrente se encontrava na primeira linha dos manifestantes que gritavam a palavra de ordem "Gatuno, Gatuno", defronte às instalações do Ministério da Administração Interna.

4.ª - A factualidade dada como provada é claramente subsumível aos artigos 8.°, n.° 1 e artigos 11.° e 14.° do RDGNR, uma vez que está em causa a violação dos deveres gerais da conduta dos militares da GNR e dos deveres especiais de proficiência e correção.
5.ª - Com efeito, a sua conduta traduz-se em comportamento lesivo do prestígio da instituição, além de falta de respeito pelos superiores hierárquicos.

6.ª - Relativamente à invocada violação do direito fundamental de liberdade de expressão, bem andou a douta sentença recorrida ao recordar que os direitos constitucionalmente consagrados estão sujeitos a várias limitações, previstas na própria Constituição, decorrentes do direito criminal, contraordenacional ou disciplinar.


7.ª -
In casu, a conduta do Recorrente foi apreciada à luz do Regulamento de Disciplina aplicável aos militares da GNR, constituindo os factos dados como provados ilícito disciplinar, não configurando violação do direito constitucional à liberdade de expressão.

TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E COM MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSA EXCELÊNCIA, DEVE:

- SER NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO APRESENTADO, MANTENDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA.»
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O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n. º1 do CPTA, não emitiu parecer.
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Prescindindo-se dos vistos legais mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II.DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1. Conforme jurisprudência firmada, o objeto de recurso é delimitado em função do teor das conclusões do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso –cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e artigos 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do NCPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA – e, por força do regime do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem no âmbito dos recursos de apelação não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Nos presentes autos, as questões que a este tribunal cumpre ajuizar, cifram-se em saber se a decisão recorrida violou o princípio da presunção de inocência do arguido em processo disciplinar e se violou o direito fundamental de liberdade de expressão previsto no artigo 37.º da Constituição.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.A DE FACTO
3.1. O Tribunal de 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
«
1. O Autor é militar da Guarda Nacional Republicana;
2. Em 01.03.2012, o Autor participou numa manifestação, em Lisboa, promovida pela Associação dos Profissionais da Guarda;
3. Em 02.03.2012, por despacho do Ministro da Administração Interna, foi determinado que, face aos relatos de que teria sido forçado o perímetro de segurança montado pela Polícia de Segurança Policial defronte do Ministério da Administração Interna, tendo sido utilizadas palavras de ordem apelando à ¯invasão, devia a Inspeção-Geral da Administração Interna ¯(…) proceder à averiguação dos factos, em consequência, apurar todas as responsabilidades legais e disciplinares – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 1 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
4. Por despacho de 05.03.2012, a Inspetora-Geral da Administração Interna determinou a instauração do procedimento de inquérito n.º 10/2012 – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 1 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
5. Por despacho de 01.07.2013, proferido sobre o relatório final do procedimento de inquérito, a Inspetora-Geral da Administração Interna propôs a instauração de procedimento disciplinar ao Autor – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 542 a 566 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
6. Em 08.07.2013, por despacho do Ministro da Administração Interna, foi determinada a instauração de procedimento disciplinar ao Autor – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 569 a 571 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
7. Em 01.08.2013, foi comunicado ao Autor a instauração do procedimento disciplinar – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 585 e 586 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
8. Ouvido na qualidade de arguido, o Autor declarou não desejar responder sobre os factos que lhe foram imputados – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 605 a 607 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
9. Os autos do procedimento disciplinar foram instruídos, entre o mais, com registos fotográficos e filmagens e com relatórios de reuniões efetuadas para identificação dos militares visionados nessas imagens – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 491 a 497 e 622 a 650 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
10. Em 06.11.2013, a Instrutora deduziu acusação, na qual descreveu os factos considerados provados e imputou ao Autor a violação dos deveres de proficiência e correção e dos seguintes normativos:
– Artigo 2.º, alínea h) da Lei n.º 11/89, de 1 de junho (Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar);
– Artigos 27.º, n.º 1 e 28.º, n.º 1, a contrario, da Lei Orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas);
– Artigo 6.º, n.º 2 e 16.º, alíneas e) e i) do Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14.10 (Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana);
– Artigos 11.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) e 14.º, n.º 1 e 2, alíneas a), d), h) e i) do RDGNR.
– cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 660 a 669 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
11. Da acusação, constava, entre o mais, que não se verificam circunstâncias dirimentes, que o arguido beneficia das circunstâncias atenuantes previstas nas alíneas i), b) e h) do n.º 1 do artigo 38.º (boa informação de serviço do superior hierárquico de que depende, bom comportamento anterior e o facto de ter louvores ou outras recompensas, respetivamente) e militam contra o mesmo as circunstâncias agravantes previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 40.º (infração cometida em público e infração cometida em conluio com outros), todos do Regulamento de Disciplina da GNR – idem;
12. Em 11.11.2013, foi comunicado ao Autor o teor da acusação –cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 676 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
13. Em 03.12.2013, o Autor apresentou defesa escrita, na qual arguiu a ¯caducidade do procedimento‖ e contestou os factos que lhe foram imputados, negando, designadamente, que tenha proferido a expressão ¯gatuno dirigida ao Ministro da Administração Interna, recordando-se de ter proferido a expressão ¯o que é nosso por direito ou outra semelhante, alegando ainda que a acusação está ferida de nulidade insanável, porquanto nenhuma prova é relacionada na acusação que fundamente os factos nela vertidos, e arrolou três testemunhas: José Manuel Carvalho Lourenço Dias, Horácio Jorge Tiago e César Nogueira – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 683 a 687 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
14. Ouvidas as testemunhas indicadas na defesa, a Instrutora notificou o Autor para, em 10 dias, informar se pretendia a realização de outras diligências de prova – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 745 a 751 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
15. Em 08.08.2014, foi comunicado ao Autor o fim das diligências e encerramento da fase da defesa e conferido um prazo de 10 dias para se pronunciar sobre a prova produzida – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 752 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
16. Em 03.12.2014, a instrutora elaborou o relatório final, do qual consta, entre o mais, que se deu como provado que, pelas 20.00 horas do dia 01 de Março de 2012, e quando se apercebeu das reportagens em direto para os telejornais das cadeias de televisão presentes no local, um número indeterminado de manifestantes não identificados, que ainda ali se encontrava, já em menor número, utilizou apitos e gritou, outra vez, ¯Nós só queremos o que é nosso por direito e ¯Gatuno, Gatuno, o que durou mais de cinco minutos, e que, entre esses manifestantes, encontrava-se o Autor que gritou, em uníssono com os outros manifestantes não identificados, ¯Gatuno, Gatuno, e que, ao gritar ¯Gatuno, o Autor dirigia-se ao Ministro da Administração Interna – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a 761 a 790 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
17. Em 04.12.2014, o Subinspetor-Geral e a Subinspetora-Geral da Administração Interna apresentaram proposta no sentido de ser aplicada ao Autor uma pena de suspensão, pelo período de 60 dias, suspensa na sua execução pelo período de um ano – cfr. documentos, que se dão por integralmente reproduzidos, a fls. 791 a 796 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
18. Em 04.12.2014, a Inspetora-Geral da Administração Interna proferiu despacho de concordância com a proposta referida no ponto anterior – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 795 e 796 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
19. Por despacho da Ministra da Administração Interna de 31.12.2014, foi aplicada ao Autor a pena de suspensão pelo período de 60 dias, com a execução suspensa pelo período de um ano – cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 799 a 781 do processo administrativo apenso aos autos físicos;
20. Em 12.02.2015, foi comunicado ao Autor o despacho referido no ponto anterior.
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Não foram dados como provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
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A prova dos factos baseou-se no teor dos documentos constantes dos autos, indicados por referência a cada concreto ponto da matéria, assim como no acordo das partes onde o mesmo foi possível.»
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III.B. DO DIREITO
3.2. O Recorrente discorda da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou improcedente a ação, absolvendo o Ministério da Administração Interna por entender que a mesma enferma de erro de julgamento decorrente de «erro notório na apreciação da prova e nos pressupostos de facto que levaram à aplicação da pena disciplinar» tendo violado o princípio fundamental da presunção de inocência concretizado no princípio in dúbio pro reu bem como no princípio nulla pena sine culpa e de erro de julgamento decorrente da violação do direito fundamental de liberdade de expressão.
3.2.1. Do Erro de Julgamento Por Violação do Princípio da Presunção de Inocência concretizado no princípio in dúbio pro reo bem como no princípio nulla pena sine culpa.
3.2.2. Para sustentar o apontado erro de julgamento, o Recorrente aduz que contrariamente ao que foi decidido pelo tribunal a quo inexistem quaisquer factos suscetíveis de integrarem qualquer ilícito disciplinar, uma vez que, se do visionamento das imagens relativas aos factos, não é possível identificar qualquer concreto agente que tivesse proferido a expressão “Gatuno, Gatuno”, então não pode o mesmo ser condenado, sob pena de inversão do princípio da inocência.
Tal como sustentou na petição inicial, reitera que não proferiu as expressões “ Gatuno, Gatuno” e que inexiste qualquer prova nesse sentido.
Consequentemente, conclui, que não violou os princípios da ética militar e de civismo nem desrespeitou o Governo. Que, pelo contrário, sente-se “humilhado e diminuído nos seus fundamentais Direitos e na sua função, pois, são-lhe imputadas afirmações que não proferiu”.
Advoga, que na dúvida insanável sobre quem proferiu as supras referidas expressões, teria que ter sido absolvido, em obediência ao principio in dúbio pro reo, pelo que não tendo sido esse o entendimento do Tribunal a quo, a decisão recorrida deve ser revogada por estar eivada de erro de julgamento.
3.2.3. A este respeito pode ler-se na decisão recorrida o seguinte:
«Nos presentes autos, o Autor formula o pedido de declaração de nulidade ou a anulação do ato que lhe aplicou a sanção disciplinar de suspensão, começando por invocar que o ato impugnado viola o seu direito fundamental ao uso da liberdade de expressão e reivindicação de forma pública, sustentando também a inexistência de factos suscetíveis de integrarem qualquer tipo de ilícito disciplinar.
Está em causa a factualidade dada como provada no procedimento disciplinar, segundo a qual o Autor participou numa manifestação, na qual os participantes, apercebendo-se das reportagens em direto para as cadeias de televisão, gritaram, em uníssono, ¯Gatuno, Gatuno, dirigindo-se ao Ministro da Administração Interna.
Ficou igualmente provado no procedimento disciplinar que, entre os referidos manifestantes, se encontrava o Autor.
A questão deve ser enquadrada pelo conjunto de deveres, gerais e especiais, a que o Autor, na qualidade de militar da Guarda Nacional Republicana, está legalmente sujeito, e que são sumariados no artigo 8.º do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana (aprovado pela Lei n.º 145/99, de 01.09):
“1 – O militar da Guarda deve ter sempre presente que, como agente de força de segurança e como autoridade e órgão de polícia criminal, fiscal e aduaneira, é um soldado da lei, devendo adotar, em todas as circunstâncias, irrepreensível comportamento cívico, atuando de forma íntegra e profissionalmente competente, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas.
2 – Cumpre ainda ao militar da Guarda a observância dos seguintes deveres:
a) Dever de obediência;
b) Dever de lealdade;
c) Dever de proficiência;
d) Dever de zelo;
e) Dever de isenção;
f) Dever de correção;
g) Dever de disponibilidade;
h) Dever de sigilo;
i) Dever de aprumo.
2 — Constituem ainda deveres dos militares da Guarda os que constam quer das leis orgânica e estatutária por que os mesmos e a instituição se regem quer da demais legislação em vigor.”

A decisão sancionatória imputa ao devedor a violação dos deveres especiais de proficiência e correção, enunciados nos artigos 11.º e 14.º do mesmo Regulamento, de cujo teor se destaca, com particular relevância para os autos, o seguinte:
“Artigo 11.º
Dever de proficiência
1 — O dever de proficiência consiste:
a) Na obrigação genérica de idoneidade profissional, a revelar-se no desempenho eficiente e competente, pelo militar, das suas funções;
[…]
2 — Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, deve o militar da Guarda, designadamente:
a) Assumir-se como exemplo de respeito pela legalidade democrática, agindo de forma a incutir na comunidade a confiança na ação desenvolvida pela instituição de que faz parte;
[…]”
“Artigo 14.º
Dever de correção
1 – O dever de correção consiste na boa convivencialidade, trato e respeito entre os militares da instituição, independentemente da sua graduação, e com o público em geral, tendo sempre presente que as relações a manter se devem pautar por regras de cortesia, justiça e integridade.
2 – No cumprimento do dever de correção, cabe ao militar da Guarda, designadamente:
a) Não adotar condutas lesivas do prestígio da instituição;
[…]
d) Não se referir aos seus superiores hierárquicos por qualquer forma que denote falta de respeito, nem consentir que subordinados seus o façam;
[…]
h) Fora de situação de serviço, quando de folga ou mesmo em gozo de licença no País ou no estrangeiro, não perturbar a ordem, nem transgredir os preceitos que vigorem no lugar em que se encontre, jamais maltratando os habitantes ou ofendendo os seus legítimos direitos, crenças, costumes e interesses;
i) Respeitar os membros dos órgãos de soberania e as autoridades judiciárias, administrativas e militares, prestando-lhes as devidas deferências, tratando por modo conveniente os seus agentes e cumprindo as ordens legítimas que destes emanem;
[…]”

Decorre destes preceitos um elenco de específicos deveres inerentes ao exercício das funções, e que subsistem ainda que o militar da Guarda Nacional Republicana se encontre fora de situação de serviço.
Por outro lado, o exercício dos direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados, sofre restrições e limitações negativas, em particular quando em confronto com direitos fundamentais de outros cidadãos.
No caso concreto do direito à liberdade de expressão, a própria Constituição prevê que, embora não possa ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura, o seu exercício fica submetido aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, caso consubstanciem a prática de alguma infração (cfr. artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa).
Assim, e por maioria de razão, as infrações cometidas no exercício do direito à liberdade de expressão ficam também sujeitas ao específico regime disciplinar aplicável ao agente infrator, sem que esta sujeição constitua qualquer violação ao direito fundamental em causa.
Nesta medida, os factos explicitados no procedimento disciplinar foram enquadrados do âmbito de aplicação do específico regime disciplinar dos militares da Guarda Nacional Republicana, à luz do qual foi apreciada a conduta do Autor e determinada a aplicação da sanção disciplinar.
Deste modo, não se afigura que a sujeição do Autor às disposições do regime disciplinar constitua uma violação do direito à liberdade de expressão, na estrita medida em que os factos que lhe são imputadas configurem um ilícito disciplinar.
Ora, quanto à existência desse ilícito, ficou demonstrado no procedimento disciplinar que o Autor participou numa manifestação, no âmbito da qual, e no momento em que esta era reportada em direto para as cadeias de televisão, proferiu as palavras de ordem, em uníssono com outros manifestantes, ¯Gatuno, Gatuno‖, dirigindo-se ao Ministro da Administração Interna.
De facto, analisado o processo administrativo, no qual vem materializado o procedimento disciplinar, conclui-se que foram recolhidos suficientes elementos de prova da referida factualidade imputada ao Autor, nomeadamente da sua presença no específico grupo de manifestantes que proferiu as palavras de ordem.
Verifica-se que foram consideradas e ponderadas as imagens recolhidas no local e que foram encetadas as diligências necessárias para permitir identificar o Autor como um dos intervenientes que pronunciou as referidas palavras.
Por esse motivo, não colhe a argumentação apresentada pelo Autor de que, do visionamento das imagens, não é possível determinar se o próprio, no contexto de um coro uníssono, proferiu efetivamente as expressões em causa, pois, desse entendimento, sempre resultaria a impossibilidade de identificar qualquer concreto agente infrator no contexto de um aglomerado de manifestantes.
Acresce que, como vem expresso no relatório final, quer para a fixação dos factos essenciais, quer para a determinação da concreta sanção disciplinar aplicada, foram considerados os argumentos aduzidos na defesa e valorada toda a prova produzida, incluindo os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Autor.
Por sua vez, a decisão que determinou a aplicação da sanção disciplinar teve por referência o referido relatório final elaborado pela instrutora, remetendo expressamente para o seu teor e fundamentação.
Afigura-se, por fim, que esta factualidade dada como provada configura, efetivamente, uma violação dos deveres gerais de conduta, consagrados no artigo 8.º n.º 1 do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana, bem como deveres especiais de proficiência e de correção, previstos nos artigos 11.º e 14.º do mesmo Regulamento.
Em concreto, com a sua conduta, o Autor violou o dever de se assumir como exemplo de respeito pela legalidade democrática e adotou uma conduta lesiva do prestígio da Guarda Nacional Republicana, perturbadora da ordem e desrespeitosa para com um membro de um órgão de soberania.
Nestes termos, serão de improceder, quer a suscitada violação do direito fundamental à liberdade de expressão, quer a alegada inexistência de factos subsumíveis a um tipo de ilícito disciplinar.
(…)»
3.2.4. O direito disciplinar público fundamenta-se num poder de supremacia da Administração face aos seus trabalhadores, poder esse que lhe permite sancionar comportamentos destes considerados desviantes relativamente ao exigido, que causem prejuízo ao funcionamento, imagem e prestígio do serviço. O objetivo imediato do direito disciplinar público são os interesses da boa organização e do eficaz funcionamento dos serviços da Administração Pública, sem que se esqueça, no entanto, que ele representa também um instrumento de proteção do trabalhador contra o arbítrio da hierarquia administrativa, assegurando-lhe um conjunto de garantias essenciais.
Por isso, a decisão disciplinar constitui o culminar de um procedimento próprio e autónomo pelo qual, no exercício do poder disciplinar, se visa, na sequência de uma tramitação legalmente prevista, apurar a responsabilidade disciplinar do trabalhador e aplicar, quando seja o caso, uma sanção disciplinar pela prática da infração disciplinar.

O Supremo Tribunal Administrativo tem sustentado, em relação à prova pela entidade administrativa, no âmbito do processo disciplinar, que a condenação disciplinar (na linha daquela que era já a posição de Manuel Andrade) para se dar determinado facto como provado, não exige uma certeza absoluta, sendo admissível à Administração usar de presunções naturais, desde que as mesmas sejam adequadas- cfr. Ac. do STA, de 21/10/2010, Proc. 0607/10.
Este entendimento foi também afirmado pelo STA no seu acórdão de 15-03-2012, proferido no processo nº 0426/10, onde se sumariou a seguinte jurisprudência:
“I - A condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade, bastando que os elementos probatórios coligidos a demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável.
II - Não incorre em violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, a deliberação punitiva, que se baseia em factos, cuja existência é demonstrada por elementos de prova com o alcance indicado supra em I.»

Frise-se que o TCAN tem vindo a seguir essa jurisprudência do STA, como se pode ver no acórdão de 20.05.2016, proferido no processo nº 03132/11.6BEPRT onde se diz que «em relação à apreciação da prova pela entidade administrativa, no âmbito do processo disciplinar, o STA já firmou o entendimento pacífico de que a condenação disciplinar não exige uma certeza absoluta, sendo admissível à Administração usar de presunções naturais, desde que as mesmas sejam adequadas (vide, por todos, o acórdão do STA, de 21/10/2010, Proc. 0607/10).»
Assim também, no acórdão de 15.06.2018, proferido no processo n.º03073/12.0BEPRT, em cujo sumário se lavrou a seguinte jurisprudência:
«I) - A fixação dos factos materiais do processo disciplinar encontra justificação no material probatório recolhido, alcançada que seja uma racional certeza.
II)- Se o ato punitivo não desconsiderou razões de defesa, tal pecha não lhe pode ser imputada.»

É irrefutável que a decisão disciplinar tem de estar fundamentada, devendo conter a apreciação crítica das provas produzidas, revelando a apreciação lógica e racional das provas em confronto, à luz de critérios de racionalidade objetiva e com justo critério lógico, realizada pelo instrutor, contendo as razões da valorização e/ou da desvalorização das provas e permitindo ao arguido ficar ciente e apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo que levou o instrutor do procedimento disciplinar a fundamentar a sua convicção relativamente aos meios probatórios existentes.
Tal significa que o princípio da presunção de inocência do arguido se impõe ao decisor disciplinar, sendo sobre a Administração que impende o ónus da prova dos factos que integram as infrações disciplinares que imputa ao trabalhador.
A este respeito, o STA, no seu acórdão de 07.06.2005, proferido no processo n.º 0374/05] afirma que a “… «prova dos factos integrantes da infração disciplinar cujo ónus impende sobre a entidade administrativa que exerce o poder disciplinar, através do instrutor do processo, tem de atingir um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito sancionatório», o que, de todo, se confunde com uma prova apodítica.

Quanto à valoração da prova, escreveu-se no acórdão deste TCAN, proferido no processo 827/07.2BEPRT: “(…) a fase da apreciação da prova, actividade que tem por fim extrair de cada um dos meios de prova o máximo de conclusões com o máximo de probabilidades e do conjunto do material probatório uma determinada conclusão. Produzida a prova, o órgão instrutor deve fazer uma interpretação das provas, dizendo o que se deve concluir delas, e uma avaliação ou valoração, indicando qual o grau de probabilidade que reveste essa conclusão.
Dada a natureza inquisitória do procedimento disciplinar e em conjugação com o princípio da verdade real (cfr. arts. 56º e 86º do CPA), em regra, nesta fase vigora o princípio da livre apreciação das provas, segundo o qual o órgão instrutor tem a liberdade de, em relação aos factos que hajam servir de base à aplicação do direito, os apurar e determinar como melhor entender, interpretando e avaliando as provas de harmonia com a sua própria convicção.
Todavia, esta “liberdade probatória” não é total e completa, pois evidentemente que está condicionada pela finalidade de se obter o mais elevado grau possível de aproximação à verdade. O instrutor não pode avaliar as provas simplesmente segundo as suas opiniões individuais, mas segundo as regras da verdade histórica e com fundamentação da decisão. A «livre convicção», sob pena de não ter qualquer conteúdo lógico, não significa ausência de motivos de convicção, mas apenas que o juízo em que se traduz a apreciação não decorre directamente de regras legalmente impostas.
[…] Na apreciação das provas, não se trata de decidir através da impressão ou intuição que se tem, mas segundo a persuasão racional que o órgão administrativo tem das provas recolhidas através do processo. A autonomia que o órgão administrativo tem na apreciação das provas está pois submetida a um princípio de racionalidade, cuja violação é controlável pelo tribunal. A função de controlo judicial limita-se assim a detectar se a apreciação das provas tem uma base racional, se o valor das provas produzidas foi pesado com justo critério lógico, não enfermando de erro de facto ou erro manifesto de apreciação.
É através da fundamentação da decisão que se deve averiguar se a valoração das provas está racionalmente justificada e se ela é capaz de gerar uma convicção de verdade sobre a prática dos ilícitos disciplinares imputados ao recorrente.”
«O nosso ordenamento jurídico não consagra uma conceção substancialista ou objetivista da fundamentação, que confunde esta com a justificabilidade objetiva da decisão ou a conformação desta com a normação jurídica, mas sim uma conceção formalista ou instrumentalista, no sentido de que a exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do ato administrativo e não à validade substancial do respetivo conteúdo ou pressupostos, sendo relevante o esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não no sentido da sua indiscutibilidade substancial ou da sua convincência - cfr. Ac. do STA, de 04-07-2002, proc. nº 0616/02; de 20-01-2005, proc. nº 0857/04; de 05-02-2005, proc. nº 01753/03; Ac. do TCAN, de 19-12-2014, proc. nº 00907/12.2BEAVR.» - vide citado Ac. deste TCAN de 15/06/2018.

No mesmo sentido da Jurisprudência acima referida, veja-se no “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública- Anotado”, de Paulo Veiga e Moura, (2ª Edição- Coimbra Editora), as anotações ao art.º 54º do EDTFP (pontos 1. a 4. de páginas 255 a 258) e a “JURISPRUDÊNCIA” ali transcrita (páginas 258 a 261).


À luz de citada jurisprudência, a decisão punitiva aqui em questão está devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito.

A prova recolhida e que foi considerada para acusar o Recorrente e, posteriormente para decidir a aplicação da pena de suspensão, é exaustiva. Note-se que as imagens colhidas pelos diversos canais de televisão são elucidativas da participação do Recorrente nas palavras de ordem que naquele momento estavam a ser proferidas.
E tal como foi entendido no âmbito disciplinar, os factos imputados ao arguido foram demonstrados cabalmente, para além de qualquer dúvida lógica ou racional, resultando que o mesmo praticou realmente os factos que lhe são assacados.
Vejamos.

No processo existem autos de registos fotográficos e excertos de programas de televisão de vários canais que revelam a presença do Recorrente nas primeiras linhas da manifestação ( cfr. fls. 622 a 650). E constam também do processo relatórios das reuniões efetuadas nos comandos para identificação dos militares visionados nos programas televisivos ( cfr. fls. 491 a 497). Trata-se de matéria provada.

Não obstante a prova recolhida, o Recorrente sustentou, no âmbito do processo disciplinar, que não pronunciou as expressões que lhe são assacadas, mas tendo sido ouvidas as testemunhas que indicou aquelas não lograram convencer o instrutor do processo disciplinar.
E na ação que intentou, o Recorrente não trouxe novos elementos de prova que pudessem infirmar a valoração que foi efetuada pelo instrutor do processo dos elementos probatórios recolhidos, que claramente fundamentam a decisão disciplinar proferida, pretendendo uma nova apreciação da prova produzida, a realizar pelo tribunal a quo, sem que, da prova produzida pela Administração resulte uma situação de erro, muito menos, grosseiro, na ponderação/ valoração que foi realizada.
Os elementos de prova que foram recolhidos, máxime, as imagens colhidas pelos diversos canais de televisão que comprovam a presença do Recorrente na linha da frente da dita manifestação, por si e quando submetidas ao crivo da experiência de vida não deixam dúvidas sobre a participação do Recorrente na manifestação nos termos em que ela se estava a processar, ou seja, nas palavras de ordem que estavam a ser proferidas.

Salientamos que o Recorrente se encontrava na linha da frente da manifestação, entre manifestantes que gritavam palavras de ordem contra o Ministro da Administração Interna, que incluíam as expressões “Gatuno, Gatuno”.
Estando o recorrente entre os manifestantes que gritavam tais palavras de ordem, sendo também um dos manifestantes, não é credível que também não gritasse tais palavras, contra o Ministro da Administração Interna.
E, note-se, o Recorrente não se se afastou dos manifestantes, não se apartou dos mesmos, como seria expectável se perfilhasse uma posição de discordância ou de repúdio pelo que se estava a passar, antes ali permaneceu, e mantendo-se na frente dessa manifestação, isto é, no local próprio daqueles que detêm uma posição de liderança, comando ou de destaque.
Assim, não é credível, também perante as regras da lógica e da experiência comum, que nesse contexto, o mesmo fosse proferir outras expressões que não as palavras de ordem que estavam a ser verbalizadas pelos manifestantes e que foram captadas pelos vários canais de televisão.
Se assim não fosse, cumpre questionar: o que estava lá a fazer o apelante na linha da frente da manifestação?
Quem não se limita a intervir numa manifestação mas nela participa ativamente incluindo-se na linha da frente da mesma, está não só imbuído do espirito de contestação que mobiliza os demais manifestantes mas determinado a contribuir ativamente para que essa manifestação siga um determinado rumo na expressão das respetivas reivindicações.

Como tal, a decisão disciplinar não enferma de erro nos pressupostos de facto, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao confirmar a validade daquela decisão, não colocando em crise que o Recorrente proferiu contra o Ministro da Administração Interna as expressões “Gatuno, Gatuno”, tidas como demonstradas pela Administração no competente processo disciplinar.
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3.3. Da Violação do Direito Á Liberdade de Expressão.
3.3.1. Pretende ainda o Recorrente que mesmo que tivesse proferido contra o Ministro da Administração Interna as palavras “Gatuno, Gatuno”, não podia ser punido disciplinarmente uma vez que no âmbito do seu direito á liberdade de expressão aquelas expressões não podiam ser havidas como constituindo infração disciplinar, por aquele estar no contexto de uma manifestação pública, reivindicativa, sob pena de violação do direito fundamental de expressão.
Advoga que o Tribunal não podia deixar de considerar que «num contexto de reivindicação pública, numa manifestação, existe como que “descompressão” dos limites aos direitos fundamentais nomeadamente e in casu, a quem se dirigia a reivindicação. Isto é, não é toda e qualquer expressão que leva a violação de direitos fundamentais de terceiros».
Acrescenta que se está a falar de cidadãos que, à data da manifestação, estavam particularmente afetados nas suas progressões na carreira e com elevados “cortes” nas suas remunerações e que se exprimiam publicamente para “reivindicar o que era por direito deles” e que entendiam que tinham sido defraudados pela tutela, MAI, que não estava a dar cumprimento em tempo útil a várias disposições legais que permitiriam atenuar os efeitos de recessão que viviam os Militares da GNR.
Por isso, na sua ótica, a expressão “gatuno” deve ser interpretada cum grano salis, pois, tal “excesso” não representa qualquer ofensa aos direitos fundamentais dos cidadãos, nem configura um crime ou a violação de qualquer disposição legal, tratando-se de uma expressão utilizada num contexto próprio e onde naturalmente tem o sentido de não lhe ser imputado o significado normal.
Diferente seria, na ótica do Recorrente, se tivessem afirmado que o Ministro da Administração Interna era corrupto, ou um filho da puta ou outra palavra semelhante, em que, aí sim, se estaria perante um ilícito não só disciplinar como criminal, não sendo esse o caso.
Por conseguinte, é seu entendimento que mesmo provando-se que proferiu a expressão gatuno, a mesma nunca configuraria um ilícito disciplinar, pois, desde logo, lhe faltaria o elemento fundamental, o ato voluntário e ilícito.
Ao assim não ter considerado, a decisão recorrida padece de erro de julgamento por violação do direito fundamental da liberdade de expressão.
Que dizer?
Discordamos. Vejamos.
O Ministério da Administração Interna (MAI), é o departamento governamental que tem por missão a formulação, coordenação, execução e avaliação das políticas de segurança interna, do controlo de fronteiras, de proteção e socorro, de segurança rodoviária e de administração eleitoral, conforme redação do art.º 1.º da lei orgânica daquele ministério, vigente ao tempo dos factos - o D. Lei n.º 126-B/2011, de 29.11.
O MAI prossegue as suas atribuições através das forças e serviços de segurança e de outros serviços integrados na administração direta do Estado, bem como de entidades integradas no sector empresarial do Estado ( art.º 3.º do D. Lei n.º 126-B72011, de 29.11).
Nos termos do art.º 4, nº 1, al. a) do referido diploma integram a administração direta do Estado, no âmbito do MAI, além de outros serviços centrais de natureza operacional «As forças de segurança».
Por sua vez, prevê-se no art.º 6.º, n.º 1 daquele diploma que «As forças de segurança têm por missão defender a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, nos termos do disposto na Constituição da República e na lei» e no seu n.º 2 estabelece-se que « As forças de segurança organicamente dependentes do MAI são a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública».
A Guarda Nacional Republicana é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas estando institucionalmente posicionada no conjunto das forças militares e das forças e serviços de segurança, sendo a única força de segurança com natureza e organização militares, caracterizando-se como uma Força Militar de Segurança.
De acordo com o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, ao tempo vigente, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de Outubro, os militares da GNR são agentes da força pública e de autoridade,
encontrando-se obrigados “a manter em todas as circunstâncias um bom comportamento cívico e a proceder com justiça, lealdade, integridade, honestidade e competência profissional, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas.”

Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 8.º do RDGNR « o militar da Guarda deve ter sempre presente que, como agente de força de segurança e como autoridade e órgão de polícia criminal, fiscal e aduaneira, é um soldado da lei, devendo adotar, em todas as circunstâncias, irrepreensível comportamento cívico, atuando de forma íntegra e profissionalmente competente, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestigio da Guarda e das instituições», estando sujeito à observância dos deveres de proficiência e de correção consagrados nos artigos 11.º e 14.º do referido regulamento.
Dito isto, não obstante ser perfeitamente compreensível que numa manifestação os seus protagonistas profiram palavras de ordem agressivas, rudes e duras, considerando que estão em ação de luta por objetivos que consideram ser direitos que lhe devem ser reconhecidos ou garantidos, e por conseguinte, num ambiente avinagrado, pouco dado a doçuras ou mesuras, tal não pode justificar que se permita ou condescenda no insulto sob a justificação do contexto em que certas expressões são proferidas ou porque a tal se tem de aquiescer em respeito pelo princípio da liberdade de expressão. Este princípio tem limites.

No caso, está em causa o comportamento de um agente de autoridade, que é órgão de policia criminal, como são os agentes da Guarda Nacional Republicana, e, por isso, com especiais responsabilidades ao nível da manutenção da ordem e da segurança públicas.

Não é tolerável que um agente de autoridade recorra, em geral, à injúria e à difamação e, em especial, numa manifestação contra o membro de governo que tutela a respetiva área, como sucede no caso em juízo, fazendo-o publicamente e à frente de câmaras de televisão, que bem sabe tornarão visionável esse comportamento por toda a comunidade.

Se não é tolerável que um cidadão dirija palavras como as proferidas pelo Apelante de “gatuno” as quais têm uma conotação objetiva e subjetivamente lesiva da honra e consideração do destinatário dessas expressões, que significam que esse destinatário subtraiu ilegitimamente do património da pessoa que as profere ou de terceiro, bens ou direitos, fazendo-os seus e que, por conseguinte, esse destinatário não é sério, é abusador, em síntese, é um ladrão, que vive ou sobrevive à custa do património e do esforço de terceiros, é absolutamente inaceitável que sejam proferidas por alguém que é órgão de policia criminal.
É assim que se compreende que quem profere tais expressões, seja perseguido e condenado criminalmente.

O Apelante não é um cidadão comum e, note-se, também não estava naquela manifestação como cidadão comum, mas como agente de autoridade ainda que reivindicando pretensões legitimas do seu estatuto profissional, mais especificamente, remuneratório.
O Apelante não pode ignorar que, se como cidadão em geral, não pode proferir tais expressões contra terceiros, muito menos o poderia fazer enquanto agente da autoridade a quem se impõem particulares deveres funcionais, nomeadamente, o da manutenção da ordem democrática, do estado de direito e da paz, segurança e tranquilidade públicas.
Igualmente não pode ignorar, sequer ignorava, que se tais expressões não podem ser dirigidas em relação a um qualquer cidadão em geral, por maioria de razão, não podem ser dirigidas em relação à pessoa do Ministro da Administração Interna, porquanto este é a entidade politica, legalmente detentora dos poderes de direção sobre a GNR, a quem incumbe fazer as opções politicas que em cada momento histórico tenham que ser feitas, integrando essas opções dentro das demais opções que se imponham ao governo fazer nas múltiplas áreas que envolvem o funcionamento de uma sociedade politica, organizada e democrática e dentro dos recursos disponíveis que existem para acudir a todas essas necessidades.
O Apelante não pode ignorar, sequer ignora, que o MAI é o topo da sua hierarquia, logo, o Apelante não só está sujeito a especiais deveres funcionais que lhe impõem o respeito estrito pelo principio da legalidade que indiscutivelmente infringiu ao proferir as expressões “gatuno, gatuno” como não ignora, sequer pode ignorar, que se encontra sujeito a especiais deveres de respeito em relação a quem dirigiu as expressões “gatuno, gatuno” que foi, nem mais, nem menos, à pessoa do Ministro da Administração Interna.
Tais expressões são injuriosas, provocam o achincalhamento público e o rebaixamento do titular daquele departamento governamental, pelo que, para além da falta de respeito que traduzem para com aquele superior hierárquico, configuram-se como um comportamento lesivo do prestígio da instituição, pelo que, implicam claramente violação dos deveres de proficiência e correção, previstos nos artigos 11.° e 14.° do mesmo Regulamento.
Deveres funcionais que se impõem ao militar, esteja ou não ao serviço.

O exercício dos direitos consagrados na Constituição, como o direito á liberdade de expressão (artigo 37.º), que o Recorrente diz ter sido violado pela decisão sob recurso, sofrem limitações, e no caso, também por força do regime disciplinar aplicável ao Recorrente.
A previsão constitucional e o consequente reconhecimento do direito à liberdade de expressão a qualquer pessoa não é ilimitado perante o respeito que a todos se impõe pelo bom nome e reputação da pessoa visada (artigo 26.º da CRP), o que reclama contenção relativamente ao uso de expressões ofensivas e inaceitáveis no contexto em que são proferidas.
Em anotação ao artigo 26º da CRP, referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “(…)Tal como sucede em relação a outros direitos o âmbito do direito ao bom nome e reputação não é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal, devendo ser harmonizado e balanceado com a liberdade do debate político e com a liberdade de crítica política, que são inerentes à democracia. Neste aspeto, o TEDH tem adotado um critério assaz liberal na proteção da liberdade de expressão e opinião e do direito de crítica política em desfavor do bom nome e reputação política dos titulares de cargos políticos ou dos agentes políticos. No contexto constitucional português, os direitos em colisão devem considerar-se como princípios suscetíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstrata- cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I , , 4ª edição, Coimbra Editora, página 46.
Não pode, pois, o direito à liberdade de expressão aniquilar ou esmagar o direito à honra e consideração do ofendido, pois a isso se opõe, desde logo, o artigo 18º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, que limita a restrição dos direitos, liberdades e garantias, as quais não podem “(…) diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
In casu, a conduta do Recorrente foi apreciada à luz do Regulamento de Disciplina aplicável aos militares da GNR, constituindo os factos dados como provados claramente ilícito disciplinar, não configurando violação do direito constitucional à liberdade de expressão.
Termos em que improcede o apontado fundamento de recurso.
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IV- DECISÃO

Nesta conformidade, as Juízas Desembargadoras deste Tribunal Central Administrativo do Norte, acordam em julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Custas pelo Apelante (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Registe e notifique.
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Porto, 13 de março de 2020


Helena Ribeiro
Conceição Silvestre
Alexandra Alendouro