Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01220/18.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/11/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:INDEMNNIZAÇÃO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO
INTERRUPÇÃO PRESCRIÇÃO
CASO JULGADO
Sumário:1. Incumbe à contra parte alegar e provar a inverificação da prescrição, nomeadamente, no caso da interrupção da prescrição, demonstrar a realização de obras realizadas no imóvel eventualmente danificado com a intervenção de obras na via, assim, se possibilitando a interrupção da prescrição - art.º 325.º, n.º1 do Código Civil - pelo reconhecimento do direito, ainda que a relevância desse reconhecimento tenha que resultar de factos que inequivocamente o exprimam - n.º 2 do referido normativo.
2. Sendo diversas as causa de pedir e pedido inerentes à responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana pelo sacrifício (responsabilidade por acto lícito) versus indemnização por enriquecimento sem causa (art.º 437.º do Código Civil), não se verifica a excepção de caso julgado.
Recorrente:AA e BB
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE GONDOMAR
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso dos AA.;
Negar provimento à ampliação do âmbito do recurso peticionada pelo R./Recorrido Município de Gondomar;
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I. RELATÓRIO
1. AA e mulher BB, residentes na Rua ..., inconformados, vieram interpor recurso jurisdicional da sentença do TAF do Porto, datada de 23 de Janeiro de 2019, que, no âmbito da Acção Administrativa instaurada contra o Réu/Recorrido MUNICÍPIO DE GONDOMAR, --- na qual peticionavam a realização de obras do edifício onde se situa a fracção da qual os AA./Recorrentes são proprietários, bem como a fixação provisória dos prejuízos pelo não uso e fruição da referida fração desde a data da aquisição, no valor de € 42.600,00, e ainda o pagamento de € 300,00 mensais pelas prestações que se venham a vencer, a indemnização dos danos ainda não apurados e na condenação em sanção pecuniária compulsória --, concluiu pela verificação da excepção de prescrição do direito e assim absolveu o Réu dos pedidos.
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2. Nas suas alegações, os AA./Recorrentes formularam as seguintes conclusões:
"1º - Nos termos do artigo 331º nº 2 do CC o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido, impede a caducidade do prazo de propositura de acção.
2º - Tendo o Município de Gondomar efectuado obras de reparação e consolidação durante o mês de junho de 2017 e procedido à notificação em 11/05/2018, para a realização de uma vistoria de segurança e salubridade (sublinhado nosso) inutiliza-se o tempo decorrido anteriormente, e inicia-se novo prazo (artigo 326º nº 1 do CC).
3º - Tendo os A.A. invocado factos e apresentado documento justificativo de defesa por excepção que o tribunal não apreciou nem decidiu, cometeu-se não só nulidade de sentença por omissão de pronúncia,
4º - como a violação do princípio Constitucional ao direito de acesso ao direito e aos tribunais, como consagrado nos artigos 2º e 20º da CRP".
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3. Notificadas as alegações supra sumariadas, nas respectivas conclusões, veio o R./Recorrido, Município de Gondomar, apresentou Contra-alegações e ainda a ampliação do âmbito do recurso - art.º 636.º, n.º1 do Cód. Proc. Civil -, que concluiu do seguinte modo:
a) A única questão a dirimir nos termos do recurso apresentado, é a de saber se se verifica, ou não, o reconhecimento do direito dos recorrentes, o que constituiria assim uma causa impeditiva da caducidade.
b) Assim, os recorrentes interpuseram a presente ação com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, o qual não se encontra sujeito a caducidade conforme decorre do artigo 482.º do CC, mas sim a prescrição, ou seja, o não exercício de um direito durante o lapso de tempo estabelecido na lei que, no caso, é de 3 anos.
c) Prazo de prescrição que a sentença em crise, considerou verificado.
d) Mas, mesmo que os recorrentes alegassem a interrupção da prescrição como parecem querer fazer (e não da caducidade conforme fazem), o certo é que, também assim, o recurso não poderia ser procedente por ausência total de prova da existência de um facto capaz de consubstanciar-se num reconhecimento do direito dos autores, aqui recorrentes, por parte do recorrido Município.
e) Prova essa que não é admissível ser produzida em sede de recurso conforme pretendem os recorrentes fazer com a entrega de uma notificação de um auto de vistoria, não só por força do disposto no artigo 425.º do CPC, mas também porque a simples notificação (sem o auto de vistoria), não poderá constituir qualquer reconhecimento inequívoco por parte do recorrido.
f) Mas mesmo que tais conclusões do auto de vistoria tivessem sido juntas pelos recorrentes em tempo oportuno, não poderia, ainda assim, fazer prova de um reconhecimento inequívoco por parte do recorrido, uma vez que, a vistoria é levada a cabo por técnicos com conhecimentos especiais em determinadas matérias na qual são vertidas conclusões, e que as partes não têm que aceitar acriticamente.
g) Ou seja, as partes não ficam vinculadas pela opinião de tais técnicos.
h) Por dever de patrocínio dir-se-á ainda que, na verdade, das conclusões de tal vistoria, se fossem apresentadas em tempo oportuno, não resultaria qualquer responsabilidade para o Município aqui recorrido.
i) E ainda porque foi alegado pelos recorrentes, refira-se que nunca o recorrido efetuou quaisquer obras no imóvel dos autores.
j) Subsidiariamente, nos termos do artigo 636.º n.º 1 do CPC, requer-se ainda aos Venerandos Desembargadores que apreciem a exceção de caso julgado considerada improcedente pelo Mmo Juiz a quo, nos seguintes termos:
k) Assim e nos termos da sentença ora em crise, é referido, para justificar que os pedidos formulados são diferentes, em suma, o seguinte: “...na primeira ação é pedida a condenação do Réu na reparação dos danos sofridos em resultado das obras de construção em causa; na presente ação é peticionada a condenação do Réu na realização de prestações de valor correspondente à despesa em que não incorreu com a reparação daqueles danos, por via do que se enriqueceu. Ou seja, se a primeira ação é uma ação de responsabilidade civil extracontratual, na presente ação, partindo-se da impossibilidade de reparação dos danos por essa via, pretendem os Autores ser compensados pelo enriquecimento do património do Réu à custa dessa não reparação.”
l) Ora, nas demandas aqui em causa, o efeito jurídico numa e noutra é o mesmo, ou seja, a eliminação dos danos, seja por ação direta do município (reparação), seja por pagamento de uma indemnização no valor correspondente à reparação necessária para a eliminação dos danos.
m) Verifica-se assim que existe identidade dos pedidos (Cfr. artigo 581.º n.º 3 do CPC).
n) Quanto à causa de pedir, refere o Mmo Juiz a quo na douta sentença o seguinte: “Posto isto, na ação n.º 2240/11...., apensa a estes autos (...) Como causa de pedir da sua pretensão, os Autores alegaram as obras de construção da Avenida ... realizadas pelo Réu e os danos sofridos no edifício e na fração de que são proprietários e outros deles decorrentes.
Na presente ação (...) Como causa de pedir da sua pretensão, os Autores alegam as obras de construção da Avenida ... realizadas pelo Réu e os danos sofridos no edifício e na fração de que são proprietários e outros deles decorrentes.”
o) Ora, a causa de pedir é sempre a mesma, isto é, a construção da Avenida ..., sendo este o facto jurídico de onde procedem as pretensões deduzidas em ambas as ações, conforme resulta claramente da leitura da sentença.
p) O que quer dizer que se verifica também identidade da causa de pedir. (Cfr. artigo 581.º n.º 3 do CPC).
q) Acrescerá dizer que, na ação n.º 2240/11.... e na presente ação, as partes são as mesmas, facto que não merece qualquer dúvida.
r) Encontram-se assim reunidos todos os requisitos para se verificar a exceção dilatória de caso julgado nos termos dos artigos 89.º n.º 4 alínea l) do CPTA e 580.º e 581.º do CPC, o que, nos termos do artigo 89.º n.º 2 do CPTA obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância".
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4. O Digno Magistrado do M.º P.º neste TCA, notificado nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, não se pronunciou.
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5. Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
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6. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir, por um lado (i) as questões colocadas pelos AA./Recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 685.º A, todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts. 1.º e 140.º, ambos do CPTA e ainda (ii), se necessário, conhecer da ampliação do objecto do recurso, como peticionado pelo R./recorrido, em sede de contra alegações.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
O saneador/sentença, prolatado pelo TAF do Porto, tem a seguinte fundamentação/decisão, no que se refere à apreciação das excepções de caso julgado e prescrição, questionadas em sede de ampliação do âmbito do recurso, nas contra alegações e do recurso jurisdicional, respectivamente:" Da exceção do caso julgado:
Na contestação o Réu aduz a exceção dilatória do caso julgado, com fundamento na repetição da causa que correu termos neste Tribunal com o n.º 2240/11...., cuja decisão, julgando verificada a exceção da prescrição do direito à indemnização invocado pelos Autores, já transitou em julgado.
Sustenta o Réu que são os mesmos os sujeitos, o pedido, uma vez que o efeito jurídico pretendido é o mesmo, isto é, uma indemnização, assim como a causa de pedir, pois que o facto jurídico donde emerge a pretensão dos Autores é, também, as obras da Avenida ..., como causa dos danos que pretendem ver indemnizados.
Os Autores replicaram, pugnando que a causa de pedir nos presentes autos é o enriquecimento sem causa, ao passo que naqueloutra ação foi pedida uma indemnização com base no dano.
O caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. art.º 89º, n.ºs 2 e 4, al. l), do CPTA.
A exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, pressupondo a repetição de uma causa com tradução no facto de entre as mesmas partes haver uma nova ação, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir e que haja sido decidida por decisão judicial de que já não admita recurso ordinário (cfr. art.º 580º, n.ºs 1 e 2, do CPC), garantindo, desse modo, a necessária certeza e segurança jurídica e o prestígio da administração da justiça.
A causa repete-se quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. No que aqui interessa, o pedido é o mesmo quando se pretende obter o mesmo efeito jurídico; já a causa de pedir é idêntica quando é o mesmo o facto jurídico constitutivo do efeito pretendido pelo autor (cfr. art.º 581º, n.ºs 1, 3 e 4, do CPC).
No que respeita ao pedido (pretensão), é consabido que o efeito jurídico pretendido é determinado não só pela providência judicial concretamente solicitada ao tribunal, mas também pela situação jurídica subjetiva afirmada pelo autor que, com aquela providência, pretende tutelar.
Por outro lado, a causa de pedir consiste nos factos que fundamentam a situação jurídica subjetiva afirmada pelo autor, para a qual pretende a tutela judicial, o que aponta para a relevância das normas de direito substantivo em cuja previsão se contém o facto para o qual estatuem o efeito pretendido (cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª edição, 2017, pág. 69).
Significa, portanto, que a causa de pedir não é formada pelos factos enquanto acontecimentos naturalísticos, mas enquanto suscetíveis de preencher a previsão normativa de direito substantivo em que se funda a pretensão do autor. Só na medida em que visam preencher determinada previsão legal é que esses factos exercem a função de individualizar a pretensão para o efeito da conformação do objeto do processo – razão pela qual sobre o autor pende o ónus de alegação na petição inicial dos factos essenciais que permitam a individualização do pedido, sob pena de ineptidão (cfr. art.º 5º, n.º 1, al. a) e art.º 186º, n.º 2, al. a), ambos do CPC). Isto é, os factos que constituem a causa de pedir delimitam o pedido para o efeito de, juntamente com ele e com as partes, identificar a causa.
Posto isto, na ação n.º 2240/11...., apensa a estes autos, os aqui Autores peticionaram a condenação do Réu na reparação a nível estrutural ao Módulo B do edifício onde se encontra a sua fração, na reparação de toda a fissuração e danos na referida fração, no pagamento de € 9.550,00 a título de rendas pagas pelo arrendamento de outra habitação e da quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais, ou, em substituição do pedido de reparação do imóvel, a condenação do Réu na aquisição ao Autor, pelo preço de € 65.000,00, da fração em causa – todos com fundamento na responsabilidade civil extracontratual do Réu pelos danos sofridos.
Como causa de pedir da sua pretensão, os Autores alegaram as obras de construção da Avenida ... realizadas pelo Réu e os danos sofridos no edifício e na fração de que são proprietários e outros deles decorrentes.
Na presente ação, os mesmos Autores pedem a condenação do Réu na realização de obras de consolidação da estrutura e paredes do edifício onde se situa a fração de que são proprietários, no pagamento de € 42.600,00, a título de fixação provisória dos prejuízos pelo não uso e fruição da referida fração desde a data da aquisição, no pagamento da importância de € 300,00 mensais e nas que se vencerem, na indemnização dos danos ainda não apurados e na condenação em sanção pecuniária compulsória – todos com fundamento no enriquecimento do Réu à custa do património dos Autores, por não ter incorrido na despesa à reparação dos danos.
Como causa de pedir da sua pretensão, os Autores alegam as obras de construção da Avenida ... realizadas pelo Réu e os danos sofridos no edifício e na fração de que são proprietários e outros deles decorrentes.
Significa, portanto, que embora haja uma larga coincidência nas providências solicitadas em ambas as ações, é possível identificar distintas pretensões em cada uma das ações – na primeira ação é pedida a condenação do Réu na reparação dos danos sofridos em resultado das obras de construção em causa; na presente ação é peticionada a condenação do Réu na realização de prestações de valor correspondente à despesa em que não incorreu com a reparação daqueles danos, por via do que se enriqueceu. Ou seja, se a primeira ação é uma ação de responsabilidade civil extracontratual, na presente ação, partindo-se da impossibilidade de reparação dos danos por essa via, pretendem os Autores ser compensados pelo enriquecimento do património do Réu à custa dessa não reparação.
Por outro lado, uma vez que o fundamento da situação jurídica subjetiva alegado nesta ação é outro, é outra a causa de pedir. Na verdade, após a alegação dos factos danosos e dos danos sofridos, os Autores aludem ao enriquecimento do Réu à custa do seu património, por via da não realização de despesa com a reparação dos danos, o que permite individualizar o pedido na afirmação da situação jurídica subjetiva a que se refere o art.º 473º do Código Civil.
Não havendo coincidência nos pedidos nem nas causas de pedir, não se tem por verificada a invocada exceção de caso julgado.
Em face do exposto, o Tribunal julga não verificada a exceção do caso julgado.
Da nulidade:
Em requerimento a fls. 25 do processo físico, o Réu vem arguir a nulidade decorrente da apresentação pelo Autor do documento junto com a réplica, com fundamento no disposto no art.º 195º do CPC.
Nos termos do art.º 423º do CPC, os documentos de prova devem ser apresentados com os respetivos articulados em que se aleguem os factos a provar (n.º 1), sendo que, após esse momento, os documentos podem ser apresentados até vinte dias antes da data de realização da audiência final, sendo a parte condenada em multa, exceto se provar que não pôde oferecer com o articulado (n.º 2).
Por outro lado, nos termos do art.º 86º do CPTA, é admissível a apresentação de articulado superveniente para deduzir factos, também eles, supervenientes.
Ora, o documento em questão foi junto aos autos com o articulado onde o respetivo facto foi alegado – no articulado de réplica, com o qual os Autores visam provar a realização da Vistoria de Segurança e Salubridade ao edifício em causa no dia 5.06.2018.
Uma vez que a petição inicial foi apresentada em juízo em 14.05.2018 (fls. 1 do processo físico), e dada a superveniência do facto a provar, é admitido aos Autores a apresentação de articulado superveniente para a sua alegação e a junção de documento para a respetiva prova, nos termos conjugados nos art.º 86º, n.º 1 e 2 do CPTA e 423º, n.º 1, do CPC, sem que nada obste a que o faça na Réplica, sendo esta admissível.
Em face do exposto, Tribunal julga não verificada a alegada nulidade e, em consequência, admite a junção aos autos do documento a fls. 20 do processo físico.
Custas do incidente pelo Réu, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC – cfr. art.ºs 527º, nºs 1 e 2, e 539º, n.º 1, do CPC (aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA), e do art.º 7.º, n.º 4, do RCP e tabela II-A anexa.
Da prescrição:
O Réu invoca, ainda, a prescrição do direito dos Autores na realização das obras e na indemnização pecuniária peticionadas.
Como acima ficou patente, os Autores fundam os seus pedidos no instituto do enriquecimento sem causa, cujo regime legal se encontra previsto nos art.ºs 473º a 482º do Código Civil.
Conforme resulta do disposto no art.º 473º do Código Civil, para que haja a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa – e, consequentemente, para que exista o respetivo direito na esfera do credor – é necessário que se reúnam cumulativamente três requisitos: um enriquecimento, a ausência da causa justificativa do mesmo e que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
Àqueles pressupostos atinentes ao enriquecimento sem causa propriamente dito acresce, ainda, um outro pressuposto, relativo à natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, como fonte de obrigações, que resulta do disposto no art.º 474º do Código Civil – o da inexistência de outro meio processual para a tutela do direito.
Para que o empobrecido tenha ao seu dispor este meio legal de se ver ressarcido da deslocação patrimonial que lhe provocou um empobrecimento na sua esfera jurídica, terá previamente que se certificar de que o ordenamento jurídico não lhe assegura qualquer outro meio capaz de corrigir aquela deslocação patrimonial. Se a lei facultar ao empobrecido um meio específico de desfazer aquela deslocação, então não será admissível o recurso à actio in rem verso, pois que não nasceu a obrigação de restituir, nem o correspetivo direito à restituição, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
Importa neste ponto notar que deve ser equiparada à inexistência de outro meio de processual de tutela, considerando-se, assim, preenchido o pressuposto aqui em análise, a circunstância do meio não poder ser exercido em consequência de um obstáculo legal, como por exemplo a prescrição, atento ao disposto no art.º 498º, n.º 4, do mesmo diploma (Neste sentido, MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 421).
Posto isto, sobre a prescrição do direito à restituição por enriquecimento, o art.º 482º do referido diploma fixa o respetivo prazo em três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento. Por sua vez, prescreve o art.º 306° n.°1 que o prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido.
Ora, do pressuposto da inexistência de causa justificativa para a deslocação patrimonial e da natureza subsidiária do instituto em análise, é mister concluir que o prazo de prescrição não se inicia enquanto o empobrecido puder invocar causa concreta para o respetivo empobrecimento, que o mesmo é dizer enquanto tiver à sua disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição. Enquanto tiver esse meio à disposição o prazo de prescrição não corre, sem prejuízo do decurso do prazo da prescrição ordinária que começa a correr a partir do enriquecimento (cfr. art.º 482º do Código Civil, in fine).
Assim, o prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa de três anos, porque só se conta a partir da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete, não abarca o período em que, com boa-fé, se utilizou, sem êxito, outro meio de ser indemnizado.
Pelo que, caso o credor tenha lançado mão de ação de indemnização tendo em vista a reparação dos danos sofridos, o prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento só se conta a partir da data da notificação da decisão definitiva da ação de indemnização (Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 03.05.2012, processo n.º 05529/09).
É assim porque, só após o trânsito em julgado da decisão judicial que negou o direito à indemnização é que se constituiu na esfera do credor o direito à restituição por enriquecimento, uma vez que só aí se tem por verificado o pressuposto da inexistência de outro meio processual para a tutela do direito.
Atente-se que o regime da prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa prevê um prazo de prescrição mais dilatado em relação ao direito à indemnização, já que na responsabilidade civil o prazo de três anos inicia-se sem que o lesado conheça a pessoa do responsável (cfr. art.º 498°n°1 do Código Civil) enquanto na restituição por enriquecimento exige-se esse conhecimento para início do prazo – ao que não será alheia a circunstância do art.º 482º do Código Civil ressalvar o decurso do prazo de prescrição ordinária, naturalmente prevendo que, em diversas situações, o prazo de prescrição para o exercício do direito de restituição fundado no enriquecimento (prazo curto) poderia iniciar-se mesmo depois de decorrido o período de três anos a contar da deslocação patrimonial havida.
Vertendo para o caso em apreço, os Autores fundam a presente ação nos danos causados em consequência da construção da Avenida ... levada a cabo pelo Réu.
Para a reparação desses danos os Autores intentaram a ação de responsabilidade civil que correu termos neste Tribunal, processo n.º 2240/11...., apenso aos autos. Por decisão de 2.12.2014, a ação foi julgada improcedente por se julgar verificado a prescrição do direito dos Autores à indemnização. Esta decisão foi notificada por ofício de 5.12.2014 (cfr. Fls. 650 a 655 do respetivo processo físico), da qual não foi interposto recurso.
Assim, só após o trânsito em julgado da decisão de improcedência proferida na ação de responsabilidade civil, processo n.º 2240/11...., é que começou a correr o prazo de prescrição do direito à restituição por enriquecimento, pois só então os Autores deixaram de ter à disposição outro meio ou fundamento que justifiquem a restituição alicerçados em causa concreta.
Acontece que os Autores intentaram a presente ação para o exercício do direito à restituição por enriquecimento no dia 14.05.2018 (cfr. Fl. 2 do processo físico), isto é, decorridos mais de três após o trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 2240/11.....
Ora o decurso do prazo de três anos após o trânsito em julgado da sentença que julgou prescrito o direito à indemnização dos Autores pelos danos sofridos em consequência da construção da Avenida ..., tem por efeito a prescrição do direito à restituição por enriquecimento, nos termos do art.º 482º do Código Civil.
Em face do exposto, resta concluir pela procedência da exceção invocada".
2. MATÉRIA de DIREITO
Atentas as alegações e contra alegações - supra sumariadas, nas respectivas conclusões - as questões que cumpre decidir são as seguintes:
- no que se refere à prescrição - houve (ou não) interrupção do respectivo prazo;
- quanto à ampliação do objecto do recurso - peticionada a título subsidiário pelo Réu/Recorrido em sede de contra alegações - art.º 636.º, n.º1 do Cód. Proc. Civil - verificar se se verifica (ou não) a excepção de caso julgado.
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Quanto ao recurso dos AA./Recorrentes.
Analisados criticamente os autos, nos seus elementos estruturantes (causa de pedir e pedido) verificamos que estão em causa eventuais danos na fracção dos AA. decorrentes de obras realizados pelo Município de Gondomar, realizadas já no longínquo ano de 1996.
Na contestação, o R./Recorrido Município de Gondomar, além, de elencar matéria impugnatória, suscitou também as excepções de caso julgado e prescrição que importaram a réplica dos AA.
Na decisão recorrida - nos termos supra transcritos - , no que se refere à prescrição, foi decidido que a mesma se verificava, na medida em que a acção dos autos - baseada no instituto do enriquecimento sem causa - foi interposta além de 3 anos depois do trânsito em julgado de anterior acção, esta, por sua vez, baseada na responsabilidade civil extracontratual, aí definitivamente julgada prescrita.
Esta decisão - verificação da excepção peremptória de prescrição - , na sua essência, não se mostra questionada neste recurso jurisdicional, ou seja, as partes concordam que, na base da argumentação fáctico-jurídica exposta na decisão do TAF do Porto, a mesma se mostra acertada.
A discordância/argumentação dos AA./Recorrentes baseia-se na existência de factos que, se considerados, importariam, a interrupção da prescrição e daí a prescrição de 3 anos não se ter concluído, o que teria importado a sua inverificação.
Para tanto, sustentam a sua argumentação em duas ocorrências factuais, a saber:
- (i) - reconhecimento por parte do R./Recorrido dos danos causados na sua propriedade. em virtude das obras realizadas, na medida em que, em Junho de 2017, o Município "...procedeu a obras de consolidação da estrutura e reparação da escadaria e passeio exterior ...";
- (ii) - a comunicação, pelo ofício de 11/5/2018, da realização de uma vistoria de segurança e salubridade ao local.
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Ora esta factualidade, alegada, obviamente, em sede de réplica, na sequência da contestação do Município, não foi analisada em sede de despacho saneador/sentença, ora em reanálise, pelo que os AA./Recorrentes imputam a esta decisão judicial a sua nulidade por omissão de pronúncia.
Sem necessidade de considerações dogmáticas, por despiciendas, temos de concordar que, independentemente da sua repercussão jurídica, deveria a decisão recorrida ter analisado estas alegadas causas interruptivas da prescrição.
Não o tendo efectivado e porque foi questão concretamente suscitada pela parte e que impunham o seu conhecimento, além de não prejudicado pela decisão de procedência da prescrição, verifica-se, nesta parte, nulidade da decisão, por omissão de pronúncia - art.º 615.º n.º1, al. d) do Cód. Proc. Civil.
Constatada esta nulidade de decisão judicial, por omissão de pronúncia, importa conhecer da factualidade alegada e da sua repercussão na decisão tomada pelo TAF - art.º 145.º n.º1 do CPTA.
Assim, se, efectivamente - como refere o R./Recorrido nas contra alegações [als. e) a h)] - a realização de Vistoria de Segurança e Salubridade - art.º 7.º da réplica - , sem mais, não importa qualquer reconhecimento da ocorrência dos danos em virtude da construção da Avenida ... no prédio dos AA., já a alegada realização de obras, reparação na estrutura e fundações do imóvel - art.º 6.º da réplica - poderá entender-se como reconhecimento dos danos e decorrência/consequência das obras realizadas na Avenida ....
No entanto, porque a "alegada" realização dessas hipotéticas obras de reparação no imóvel dos AA se mostra controvertida, como decorre das alegações dos AA. em sede réplica e recurso jurisdicional, em contraponto com as constantes das contra alegações do Município de Gondomar - cfr. al. i) das respectivas conclusões - importa que se possibilite a prova dessas obras, a cargo dos AA./Recorrentes, por ser facto constitutivo do seu direito - interrupção da prescrição - , na medida em que, alegada a prescrição - decurso de 3 anos - incumbe à contra parte alegar e provar a sua inverificação, demonstrando a realização dessas concretas obras, assim, se possibilitando a interrupção da prescrição - art.º 325.º, n.º1 do Código Civil - pelo reconhecimento do direito, ainda que a relevância desse reconhecimento tenha que resultar de factos que inequivocamente o exprimam - n.º 2 do referido normativo.
Inexistindo pronúncia pelo TAF do Porto acerca desta alegada causa interruptiva da prescrição - como se impunha - para o seu conhecimento e repercussão jurídica, importa que o TAF do Porto, proceda à devida instrução, de modo a que os AA./Recorrentes possam fazer prova dessas obras e seu reconhecimento relevante, de modo a, demonstrando-o, se possibilitar a interrupção da prescrição e bem assim da improcedência dessa excepção.
Neste conspectu, importa, em provimento do recurso, ordenar a baixa dos autos para os referidos fins, sendo certo que só após a instrução e decisão acerca da verificação (ou não) da interrupção da prescrição se poderá decidir definitivamente esta questão, com eventual repercussão na continuação (ou não) dos autos para conhecimento/decisão do seu mérito.
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Tirada esta conclusão decisória, porque o R./Recorrido, Município de Gondomar, nos termos previstos no art.º 636.º, n.º1 do Cód. Proc. Civil, em sede de contra alegações, suscitou a ampliação do objecto/âmbito do recurso de modo a, subsidiariamente (ou seja, em caso de procedência do recurso que, como vimos, supra se decidiu), importa conhecer da questão que objectiva essa ampliação, ou seja, a verificação ou não da excepção suscitada em sede de contestação - a verificação (ou não) da excepção dilatória do caso julgado.
Relembrando a decisão recorrida, nesta parte - supra transcrita - não podemos deixar de com ela concordar, sendo a argumentação do R./Recorrido, em sede de contestação/contra alegações improcedente.
Efectivamente - após assertiva abordagem dogmática atinente aos requisitos integrativos do caso julgado - em apreciação da situação concreta dos autos, o Sr. Juiz de direito do TAF do Porto, entendeu que eram diversas as causas de pedir e pedido na Acção n.º 2240/11.... e nesta (1220/18.7BEPRT), pois que " ... Na presente ação, os mesmos Autores pedem a condenação do Réu na realização de obras de consolidação da estrutura e paredes do edifício onde se situa a fração de que são proprietários, no pagamento de € 42.600,00, a título de fixação provisória dos prejuízos pelo não uso e fruição da referida fração desde a data da aquisição, no pagamento da importância de € 300,00 mensais e nas que se vencerem, na indemnização dos danos ainda não apurados e na condenação em sanção pecuniária compulsória – todos com fundamento no enriquecimento do Réu à custa do património dos Autores, por não ter incorrido na despesa à reparação dos danos".
E continua "...Como causa de pedir da sua pretensão, os Autores alegam as obras de construção da Avenida ... realizadas pelo Réu e os danos sofridos no edifício e na fração de que são proprietários e outros deles decorrentes.
Significa, portanto, que embora haja uma larga coincidência nas providências solicitadas em ambas as ações, é possível identificar distintas pretensões em cada uma das ações – na primeira ação é pedida a condenação do Réu na reparação dos danos sofridos em resultado das obras de construção em causa; na presente ação é peticionada a condenação do Réu na realização de prestações de valor correspondente à despesa em que não incorreu com a reparação daqueles danos, por via do que se enriqueceu. Ou seja, se a primeira ação é uma ação de responsabilidade civil extracontratual, na presente ação, partindo-se da impossibilidade de reparação dos danos por essa via, pretendem os Autores ser compensados pelo enriquecimento do património do Réu à custa dessa não reparação.
Por outro lado, uma vez que o fundamento da situação jurídica subjetiva alegado nesta ação é outro, é outra a causa de pedir. Na verdade, após a alegação dos factos danosos e dos danos sofridos, os Autores aludem ao enriquecimento do Réu à custa do seu património, por via da não realização de despesa com a reparação dos danos, o que permite individualizar o pedido na afirmação da situação jurídica subjetiva a que se refere o art.º 473º do Código Civil".
Assim, finaliza " ... Não havendo coincidência nos pedidos nem nas causas de pedir, não se tem por verificada a invocada exceção de caso julgado".
Vejamos!
Ora, não sendo questionável a identidade das partes e ainda que não deixe de se verificar alguma similitude nos elementos estruturantes de cada uma das acções - seja a causa de pedir (i), seja o pedido - , na medida em que os AA. pretendem a reparação dos danos ou a indemnização de valor correspondente para reparação dos mesmos danos, com base na construção da Avenida ..., o certo é que, estando em causa institutos jurídicos diversos --- responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana pelo sacrifício (responsabilidade por acto lícito) versus indemnização por enriquecimento sem causa (art.º 437.º do Código Civil) --- com causas de pedir e pedidos diversos, como é imanente a cada um dos diferentes institutos jurídicos, temos de concordar que, pese embora a identidade das partes, em bom rigor formal, inexiste identidade de causa de pedir e pedido entre as duas acções o que, assim, importa, a inexistência de caso julgado, sendo este, como se sabe, uma excepção dilatória, que se verifica desde que haja identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos (cfr. art.º 494.°, n.° 1, al. i) e 498.° do Cód. Proc. Civil).
Na verdade, "se o autor tiver perdido a acção de responsabilidade civil extracontratual, poderá pedir a condenação do mesmo réu na restituição do que lhe for devido a título de enriquecimento sem causa, desde que, naquela acção, não haja invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento” (Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.°, pág. 324 e ss.).
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Concluindo, procede o recurso principal - dos AA./Recorrentes - e improcede a ampliação do âmbito do recurso, deduzida pelo R./Recorrido, a título subsidiário.
III. DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em revogação da decisão recorrida:
- conceder provimento ao recurso dos AA.;
- negar provimento à ampliação do âmbito do recurso peticionada pelo R./Recorrido Município de Gondomar; e assim,
- ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para continuação, nos termos supra explicitados, se, entretanto, nada mais obstar.
Custas pelo R./Recorrido, em ambas as instâncias.
Notifique-se.
DN.
Porto, 11 de Novembro de 2022
Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho

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(i) Como refere Alberto dos Reis, “Temos várias vezes acentuado que a causa de pedir nada tem a ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe”.