Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02588/12.4BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/28/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:DEMOLIÇÃO/LEGALIZAÇÃO DE OBRAS PARTICULARES; ARTIGO 106º DO RJUE.
Sumário:I- Deriva do artigo 106º do R.J.U.E. que a ordem demolição deve ser precedida por um juízo relativo à possibilidade de legalização de tais obras e de resultar desse juízo a conclusão de que ela é impossível.

II- Não resultando processualmente adquirida a existência desse juízo por parte da Administração previamente à ordem de realização de trabalhos de correção/demolição, torna-se patente a violação do bloco legal aplicável por parte da Administração em matéria de tutela da legalidade urbanística.

III- Não constitui fundamento de rejeição liminar de pedidos de licenciamento de obras particulares a falta de apresentação de documento comprovativo de que os condomínios que representem dois terços do valor do prédio autorizam a modificação da linha arquitetónica, nos termos do disposto no nº. 3 do artigo 1422º do Código Civil. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MUNICÍPIO DO (...)
Recorrido 1:B., LDA.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
MUNICÍPIO DO (...), com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 08.07.2018, promanada no âmbito da Ação Administrativa Especial intentada por B., LDA., contra o aqui Recorrente, que julgou a presente ação procedente e, em consequência, anulou o despacho do Vereador do Pelouro da Proteção Civil, Fiscalização e Juventude da Câmara Municipal do (...), datado de 23/5/2012, proferido no âmbito do Processo Camarário com o n° 73485/10/CMP, que ordenou a realização de trabalhos de correção/alteração de obra executada no imóvel sito na Rua (...), n°(…), (…), (...).
Alegando, o Recorrente concluiu nos seguintes termos, que delimitam o objeto do recurso:“(…)
A. A sentença do tribunal a quo, para sustentar o sentido da decisão que ora se coloca em crise, entendeu que o ato impugnado deveria ser anulado porquanto padece de dois erros nos pressupostos , a saber: i)“o ato impugnado ordenou a correção/alteração das obras no pressuposto de que todas haviam sido efetuadas pela Autora” ; e ii) o ato impugnado “tem como pressuposto o indeferimento liminar do pedido de legalidade de obras realizadas com base na ausência desta autorização de dois terços do valor total do prédio e que a inexistência desta autorização não podia, como foi, ser determinante desse indeferimento” .
B. Contudo, a sentença enferma dos vícios de erro de julgamento - quanto aos dois referidos erros nos pressupostos -, bem como de errónea interpretação e aplicação das normas jurídicas - nomeadamente do artigo 1422°, n° 3 do Código Civil e do artigo 106° do RJUE (e do princípio da proporcionalidade que lá consta).
C. Os serviços do Recorrente foram avisados da existência de obras em curso no 8° andar direito do prédio sito na Rua (...), nesta cidade do (...). Nessa sequência, foram promovidas inspeções ao local em 11 e 12 de agosto de 2010, nas quais se confirmaram a existência dessas obras.
D. Verificou-se que as obras estavam na fase de acabamento, estando a estrutura toda executada. Existia uma alteração da compartimentação interior, pela deslocação de algumas portas no interior da habitação. Existia uma alteração do sentido das escadas que permitem o acesso ao duplex (9° andar). Existia alteração de fachada por diversas razões, e foram ainda obras de construção - cfr. fls. 27 e seguintes do PA.
E. Entendeu o tribunal a quo “o ato impugnado ordenou a correção/alteração das obras no pressuposto de que todas haviam sido efetuadas pela Autora” .
F. Ora, a pergunta que se impõe é a seguinte: e se as obras não foram todas realizadas pela Autora, não deverá ser notificada com vista à reposição da legalidade?
G. Isto é, se os serviços municipais se depararem com uma ilegalidade urbanística, devem providenciar pela reposição da legalidade ou, como parece defender a decisão judicial em apreço, terá que descobrir/apurar os responsáveis por essa obra.
H. O entendimento do Recorrente é muito claro: quando existe uma situação que consubstancia uma ilegalidade urbanística, o proprietário é, em primeira linha, responsável pela reposição da legalidade urbanística, adotando voluntariamente as medidas ordenadas pela administração municipal.
I. Para o Recorrente não é relevante saber se todas as obras foram realizadas pela Recorrida, porquanto pretende apenas a reposição da legalidade urbanística - conformação do edificado com o projeto aprovado -, através da legalização das obras (quando tal for possível) ou da realização voluntária dos trabalhos de correção ou alteração ordenados.
J. Da consulta do PA, verifica-se que a Recorrida deu entrada, em 5 de novembro de 2010, de um processo de legalização (NUD 98575/01/CMP), que foi rejeitado liminarmente por despacho do Diretor de Departamento Municipal de Gestão Urbanística de 22 de dezembro de 2011.
K. Mas será que existe um erro nos pressupostos quando os serviços municipais indeferem liminarmente um pedido de legalização de obras com base na ausência desta autorização de dois terços do valor total do prédio?
L. Recorde-se a este propósito que o que estava em causa era a modificação da linha arquitetónica do prédio, situação que se subsume no n° 3 do artigo 1422° do Código Civil. Disposição legal essa que a tribunal a quo não deu, a nosso ver, a devida importância.
M. Contudo, importa sublinhar que o dito artigo 1422° do Código Civil, cuja epígrafe refere “Limitação ao exercício de direitos” - o que só por si sugere desde logo uma restrição aos proprietários de frações - refere no seu n° 3 que: “As obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício podem ser realizadas se para tal se obtiver prévia autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio”. Foi com este fundamento legal que o Recorrente indeferiu liminarmente o pedido de legalização das obras, por manifesta falta de legitimidade da Recorrida, não se vislumbrando qualquer erro nos pressupostos da atuação municipal.
N. Se a lei é clara e a Recorrida bem sabia que necessitava de “prévia autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio”, e não a tinha obtida, deveria o Recorrente ter apreciado um pedido para o qual sabia que a Recorrida não tinha legitimidade e ao qual não podia dar sequência? A resposta é necessariamente negativa, sob pena de os serviços municipais não cumprirem o princípio da legalidade.
O. No limite e como derradeiro argumento, sempre se dirá que a sentença recorrida, ao socorrer-se de uma interpretação baseada no artigo 11° da Portaria n° 232/2008, de 11 de março, está a desconsiderar uma disposição legal oriunda do Código Civil, aprovado por Decreto-Lei, que, como se sabe, ocupa um lugar superior na hierarquia das normas jurídicas portuguesas.
P. Verifica-se assim um vício de erro de julgamento e uma errónea interpretação e aplicação do artigo 1422°, n° 3 do Código Civil, na sentença recorrida.
Q. Seguindo o raciocínio acima expendido, não restava outro caminho ao Recorrente que não fosse ordenar o ato administrativo que a Recorrida colocou em crise, uma vez que se verifica a existência de obras ilegais e que tal informação “desperta” as suas competências fiscalizadoras no que se refere à reposição da legalidade urbanística.
R. Na verdade, a situação em apreço implica essa demolição, prevista no artigo 106° do RJUE, tratando-se, reitera-se, do único caminho que a Recorrente podia tomar no caso em apreço.
S. Não existe assim qualquer violação do artigo 106° do RJUE, nem do princípio da proporcionalidade que lá se encontra contido.
T. Por todo o exposto, deverá ser revogada a sentença recorrida julgando-se a ação administrativa especial improcedente e mantendo-se o ato impugnado como válido na ordem jurídico (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, a Recorrida produziu contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido quanto à procedência da presente ação.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu o parecer a que se alude no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a única questão a dirimir resume-se a saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, designadamente, por errónea interpretação e aplicação do artigo 1422°, n° 3 do Código Civil.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
IV.1 – DE FACTO
O quadro fáctico positivo e negativo apurado na decisão recorrida foi o seguinte:
(…)
1) Encontra-se inscrita a favor da autora, a fração autónoma designada pelas Letras “CM” correspondente a uma habitação duplex, situada no 10 piso, 8 andar (8.1), com entrada pelo n° … da Rua (...), integrada no prédio urbano sito na Rua (...) 594 a 610 e Rua (...), 81 a 229, (...), constituída por hall de entrada, banho de serviço, quarto de serviço, despensa, cozinha, varanda de serviço com 3m2, sala comum com terraço com 41,7m2, escada de acesso ao piso superior, sendo este constituído por 2 banhos, 3 quartos, 2 terraços envolvendo a habitação, 1 com 16m2 e outro com 55m2, escada exterior de acesso ao piso superior, sendo este constituído por piscina e terraço com 84,1m2 – cf. doc. 2 (certidão da conservatória do registo predial) e 3 (inscrição matricial) juntos com a p.i. que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
2) A Autora adquiriu em 14/5/2010 a fração referida em 1) a M.C.P.S.V.B.M.;
3) Na sequência de denúncia remetida à CMP pela Administração do Condomínio, ora contrainteressada respeitante à realização de “... obras ilegais na habitação 8° direita com entrada pelo n° 604 da Rua (...) (fração CM), as quais estão a alterar a linha arquitetónica inicial do edifício e aumentar a cércea sem as devidas autorizações...”, foi instaurado e organizado o processo camarário 73485/10/CMP – cfr. Fls. 27 e ss. do PA;
4) Em tal processo camarário e após deslocações ao local realizadas em 11 e 12 de agosto de 2010, face à licença de construção nº37/86 e aditamentos e licença de utilização nº 551/96, constatou-se a existência das seguintes obras: - alteração da compartimentação interior, pela deslocação de algumas portas no interior da habitação; - alteração do sentido das escadas que permitem o acesso ao duplex (9° andar); - alteração de fachada por diversas razões, como: - a eliminação da varanda da cozinha e prolongamento do quarto com a construção de paredes e colocação de janela; - construção de marquise com colocação de vidro da parte de fora da varanda e colocação de porta de alumínio no alinhamento da parede da sala de jantar; - No quarto virado a norte nordeste (9° andar), houve alteração da fachada pelo aumento da casa de banho para a varanda e colocação de janelas, abertura de porta e fecho de outra e alinhamento com a fachada a noroeste com colocação de duas janelas/porta de alumínio e vidro; - No quarto virado a noroeste (duplex, 90 andar) houve alteração da fachada, pela diminuição do comprimento e aumento da largura do quarto, para cima da varanda, assim como aumento da casa de banho que ficou afeta ao quarto e colocação de porta em alumínio e vidro e eliminação da janela junto do lavatório; - No hall que permite o acesso à varanda e terraço de cobertura a sul sudoeste (duplex, 9° andar) houve alteração da volumetria, pelo alinhamento com a fachada do quarto. Foram ainda efetuadas as seguintes obras de construção: - construção de uma laje de betão, com aproximadamente 3,24 m X 1,87 m, para fixação de escada metálica que permite o acesso a cobertura do terraço; -construção de escada metálica, com aproximadamente 3,24 m X 1,87 m e altura de 4,75 m, que permite o acesso a cobertura do terraço, a iniciar no duplex (9° andar); -Edificação de degraus para vencer a altura entre a laje do piso da cobertura e a nova laje construída, construção de Laje aligeira a toda a volta da piscina, construção de piscina com aproximadamente 5,81 m X 6,29m e com altura aproximada de 1,13 m e construção de muro a toda a volta; alterações significativas ao nível das instalações hidráulicas – cf. fls. 160-170 dos autos;
5) Foi considerado pela Demandada que somente as obras de alteração da compartimentação interior, pela deslocação de algumas portas no interior da habitação, se encontram isentas de controlo prévio (artigo 6°, n° 1, b) do RJUE) e que as restantes sendo obras de construção, de alteração ou de ampliação, estão sujeitas a licenciamento administrativo, nos termos do disposto no artigo 4°, n° 2, e), do RJUE, pelo que, foi a Autora notificada por ofício datado de 26/8/2010: “ …que é intenção desta Câmara ordenar a realização dos trabalhos de correção/alteração da obra, nos termos do n.° 1 do art. 105.0 do Regime Jurídico e Edificação (R.JUE), aprovado pelo Decreto- Lei n° 555/99 de 16 de dezembro, na redação atual, conforme descrito na informação n°1/114264/ 10/CMP, cuja fotocópia se anexa” – cf. fls. 159 dos autos;
6) Na referida informação n°1/114264/10/CMP, de 25/8/2010 prestada no processo camarário 73485/10/CMP foi proposta a “… Notificação da intenção de ordenar a realização dos trabalhos de correção/alteração da obra, nas termos do disposto no n° 1 do artigo 105 do R.J.U.E., devendo o interessado, no prazo de 15 dias, pronunciar-se acerca do conteúdo do projeto de decisão nos termos dos artigos 100° e 1010 do C.P.A., podendo, nesse prazo, apresentar projeto de legalização das obras, se legalizáveis. Consequentemente, deve ser: Enviada cópia da presente informação e despacho ao(s) interessado(s) referidos no ponto 1.3, para conhecimento das diligências efetuadas. Enviada cópia da presente informação às entidades responsáveis referidas (Águas do (...)), para conhecimento da situação” – cf. fls. 171 dos autos;
7) A ora Autora pronunciou-se, ao abrigo do disposto no art.º 100º e 101º do CPA, concluindo: “ (…) a. não considerar o parecer técnico referido na notificação, por o mesmo não consubstanciar, nem traduzir, uma correta apreciação fáctica (e correspondente integração de direito); b. conceder ao pronunciante prazo suplementar, nunca inferior a 45 (quarenta e cinco) dias, para apresentar aos serviços camarários competentes, o projeto de legalização das obras referidas na informação dos autos; c. ordenar a suspensão do presente procedimento, até a apreciação e deferimento do projeto de licenciamento a dar entrada nos serviços competentes e, tão logo tal ocorra, o arquivamento deste processo, em virtude da inexistência de qualquer obra de correção/alteração a ser realizada. em todo o caso e de qualquer forma, d. reapreciar a aludida situação fáctica, com a consequente e indispensável alteração da intenção de ordenar a realização dos trabalhos de correção e alteração da obra. sem prescindir e subsidiariamente (atenta a impossibilidade de pronúncia decorrente de vicio da notificação realizada), e. caso assim se não entenda superiormente e no sentido de evitar um litígio judicial desnecessário, desde já se requer que essa edilidade se digne proceder à repetição da notificação para o exercício da audiência prévia, integrando a mesma todos os elementos indispensáveis a uma fundamentada pronúncia (designadamente com indicação precisa da intervenção exigida pela edilidade, prazo em que a mesma deve ser realizada, etc, etc)” – cf. fls. 173-180 dos autos;
8) A Autora deu entrada nos serviços da Demandada, em 5/11/2010, de um processo de legalização das obras realizadas na fração em questão (NTJD 98575/10/CMP) quer as que foram realizadas por si quer as que foram realizadas pelo construtor e anteriores proprietários;
9) No âmbito do referido processo (n° 98575/10/CMP), foi prestada em 19/7/2011 a I/1413025/11/CMP na qual consta o seguinte:

[imagem que aqui se dá por reproduzida]

cf. fls. 127-130 dos autos.
10) Através de notificação datada de 21.09.2011 foi comunicado à A. o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

cf. fls. 126 dos autos.
11) A A. não se conformando com o entendimento expresso na informação e comunicação antecedentes, apresentou requerimento de fls. 136 a 148 que aqui se dá por reproduzido no qual concluiu formulando o pedido de:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

12) Por ofício datado de 9/2/2012, no âmbito do pedido de legalização de obras foi comunicado à A. o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

- cf. fls. 149 dos autos;

13) A Informação a que se reporta a comunicação antecedente é do seguinte teor:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]


14) A A. pronunciou-se através de requerimento de fls. 152 a 156 dos autos que aqui se dá por reproduzido no qual requereu:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

15) Através de ofício datado de 24/5/2012, no âmbito do processo camarário 73485/10/CMP comunicou à A. o seguinte:

[imagem que aqui se dá por reproduzida]

16) Dá-se aqui por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, a I/83879/12/CMP que integra fls. 59 dos autos;
17) A A. apresentou reclamação do despacho de 23/5/2012 do Vereador com o Pelouro da Proteção Civil, Fiscalização e Juventude, na qual concluiu:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

cf. doc. fls. 65-87 dos autos.
18) Correu termos no Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, 1º Juízo o recurso de contraordenação nº 283/11.0TPPRT, no qual o representante da ora A. impugnou a decisão proferida pelo Vereador do Pelouro da Proteção Civil, Controlo Interno e Fiscalização da Câmara Municipal do (...) que aplicou a C.B.A.P. a coima de 1 000,00 €, pelo facto de ter realizado uma operação urbanística sujeita a prévio licenciamento, sem o necessário alvará de licenciamento, o que foi considerado como a prática de contraordenação, prevista e sancionada pelos arts. 4° e 98°, n°s 1, ai. a) e 2 do DL 555/99, de 16/1 2, com as alterações introduzidas pela Lei 60/2007, de 04109 – cfr. Fls. 88 a 117 dos autos;
19) No preferido recurso de contraordenação foi proferida sentença em 7/2/2012, na qual se julgou o recurso parcialmente procedente, revogando-se a coima aplicada ao arguido e condenando-se o mesmo, pela prática da contraordenação por que vem acusado, na sanção de admoestação, tendo sido dado como provado que “1. O arguido entrou na posse do imóvel sito na Rua (...), n° 604, 8° direito, no (...), em maio de 2010 e tomou-o de arrendamento em 01.08.2010; 2 No dia 11.08.2010, verificou-se que o arguido havia realizado as seguintes obras no referido imóvel, sem que tivesse pedido o respetivo licenciamento: a) alteração do sentido das escadas que permitem o acesso no duplex (8°/9° andar), entre andares; b) no quarto virado a norte/nordeste (duplex, 9° andar) alteração da fachada pelo aumento da casa de banho para a varanda e colocação de janelas; c) construção de laje de betão, com aproximadamente 3,24m x 1,87m, para fixação de escada metálica que permite o acesso a cobertura do terraço; d) colocação de uma escada metálica, com aproximadamente 3,24m x 1 ,87m e altura de 4,75m, que permite o acesso à cobertura do terraço, a iniciar no 9° andar; e) edificação de degraus para vencer a altura entre a laje de piso da cobertura e a nova laje construída, construção de laje aligeirada a toda a volta da piscina e construção de muro a toda a volta da piscina; (…); 4. Em data posterior à referida no ponto 2., o arguido deu entrada a CMP de um pedido de licenciamento de todas as obras realizadas no imóvel em causa que se encontravam em desconformidade com o projeto aprovado, compreendendo em tal pedido quer as obras por si realizadas quer as obras realizadas por anteriores proprietários; em 05.11.2010 a CMP comunicou ao arguido a intenção de rejeitar liminarmente tal pedido, pelo facto de não ter sido apresentada autorização dos restantes condóminos, tendo simultaneamente concedido ao arguido o prazo de 15 dias para apresentação de tal autorização; o arguido pediu a prorrogação deste prazo por 6 meses, aguardando ainda resposta da CMP‖ e não provada a seguinte factualidade: a) na mesma data (01.08.2010), o arguido houvesse realizado as seguintes obras no mencionado imóvel: • eliminação da varanda (designação 9 — 8° andar) da cozinha e prolongamento do quarto com construção de parede e colocação de janela; • construção de marquise com colocação de vidro da parte de fora da varanda e colocação de porta de alumínio e vidro no alinhamento da parede da sala de jantar; e no quarto virado a norte/nordeste (duplex, 9° andar), abertura de porta e fecho de outra para a varanda e alinhamento com a fachada a noroeste com colocação de duas janelas/porta em alumínio e vidro; e no quarto virado a noroeste (duplex, 9° andar), alteração da fachada pela diminuição do comprimento e aumento da largura do quarto para cima da varanda, assim como aumento da casa de banho que ficou afeta ao quarto e colocação de porta de alumínio e vidro e eliminação da janela junto do lavatório; no hall que permite o acesso à varanda e terraço de cobertura, a sul/sudoeste (duplex, 9º andar), houve alteração da volumetria, pelo alinhamento com a fachada do quarto” - cfr. fls. 88 a 117 dos autos;
20) Na fração identificada em 1) a autora executou as seguintes obras: alteração do sentido das escadas que permitem o acesso no duplex (8°/9° andar), entre andares; no quarto virado a norte/nordeste (duplex, 9° andar) alteração da fachada pelo aumento da casa de banho para a varanda e colocação de janelas; construção de laje de betão, com aproximadamente 3,24m x 1,87m, para fixação de escada metálica que permite o acesso a cobertura do terraço; d) colocação de uma escada metálica, com aproximadamente 3,24m x 1 ,87m e altura de 4,75m, que permite o acesso à cobertura do terraço, a iniciar no 9° andar; edificação de degraus para vencer a altura entre a laje de piso da cobertura e a nova laje construída, construção de laje aligeirada a toda a volta da piscina e construção de muro a toda a volta da piscina.
21) No edifício em que se integra a fração em causa nestes autos ocorreram várias alterações entre os desenhos de licenciamento aprovados pelo aditamento de 16 de fevereiro de 1995 (folhas 359 e 360, do PA NUD 16564S2) e o existente;
22) Na Propriedade Horizontal mais concretamente na alínea C) remete-se para os desenhos de licenciamento aprovados à data de 2 de abril de 1984, de onde não consta qualquer piscina (folhas 12 e 14, do PA NUD 1656Ø2);
23) O edifício em que se integra a fração em causa nestes autos possui irregularidades factuais e discrepâncias entre o que foi licenciado, o que foi construído, o que se encontra na respetiva matriz e o que se encontra predialmente descrito, desconhecendo-se a data da sua realização.
24) Em 10 de maio de 2010 realizou-se uma Assembleia de Condóminos do Edifício em que se integra a fração descrita em 1), da qual foi elaborada ata que aqui se dá por reproduzida e integra fls. 211 a 216 dos autos, na qual se concluiu:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

25) Na descrição da fração “CM” constante do documento complementar anexo à escritura de Propriedade Horizontal, realizada em 27/11/1989, consta que a referida fração autónoma (CM) possui uma escada exterior de acesso ao piso superior sendo este constituído por piscina e terraço com oitenta e quatro vírgula dez metros quadrados.
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Factos não provados:
- Algumas obras realizadas na fração identificada em 1) do probatório são impostas pela própria natureza e função da utilização da fração aqui em causa; - Como é o caso da laje aligeirada instalada à volta da piscina, para a colocação dos equipamentos técnicos indispensáveis a esta (ponto 2.1.5.2. da l/11426Q10/CMP).
- Tal tipo de obra foi realizada nas outras frações autónomas do mesmo piso. - A obra realizada confere uma linha de continuidade a todo o edificado. - É o caso, entre outras, das seguintes obras referidas na notificação datada de 26.08.2010 (I/114984110/CMP): • Piscina; • Escada metálica de acesso à piscina; • Laje aligeirada para criar a galeria técnica de apoio à piscina; e Prolongamento do quarto junto à cozinha; e Marquise; • Aumento da casa de banho para a varanda e alinhamento com a fachada a noroeste.
- Foi a autora que realizou as seguintes obras: eliminação da varanda da cozinha e prolongamento do quarto com a construção de paredes e colocação de janela; construção de marquise com colocação de vidro da parte de fora da varanda e colocação de porta de alumínio no alinhamento da parede da sala de jantar.
(…)”.
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IV.2 - DO DIREITO
Cumpre decidir, sendo que, como se referiu supra, a única questão que se mostra controversa e objeto do presente recurso jurisdicional consiste em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, designadamente, por errónea interpretação e aplicação do artigo 1422°, n° 3 do Código Civil.
Vejamos.
A decisão recorrida considerou que o despacho impugnado - que determinou a realização de trabalhos de correção/alteração da obra realizada pela Autora, aqui Recorrida - padecia de erro nos pressupostos de facto, porquanto não se provou que, tal como assumido no despacho impugnado, as obras irregulares efetuadas nos autos tivessem, efetivamente, sido realizadas pela Recorrida.
Mais considerou que o despacho impugnado estribou-se num pressuposto prévio desconforme ao bloco legal aplicável, como seja, a inviabilidade do projeto de legalização de obras apresentado pela Autora fundada na falta de autorização de dois terços do valor total do prédio, pelo que o mesmo era anulável, por falta da necessária ponderação prévia e fundamentação em matéria de tutela da legalidade urbanística [artigo 106º do RJUE].
Expostas, assim, as considerações pertinentes da constelação argumentativa da sentença recorrida, e cotejando as mesmas com a natureza do alegado pelo Recorrente no âmbito do presente recurso jurisdicional, adiante-se, desde já, que a decisão recorrida não merece o menor reparo, encontrando-se abundante e certeiramente justificada.
De facto, conforme dimana grandemente de probatório coligido nos autos, não resultou processualmente adquirido que fosse a Autora a entidade responsável pela realização das obras irregulares detetadas pelos serviços camarários do Réu.
Neste capítulo, cabe notar que não se ignora a dificuldade dos serviços camarários, muitas vezes, na descoberta destas realidades.
De igual modo, não se desconhece a obrigação vinculada de reposição da legalidade urbanística que impede sobre o Réu.
Julgamos, porém, que a dificuldade supra exposta não faz paralisar a atuação do Réu no domínio da tutela da legalidade urbanística, claro está, desde que a Administração não assuma algo que não corresponde à verdade material dos factos, sob pena de incorrer em erro nos pressupostos de facto.
Efetivamente, relativamente ao erro nos pressupostos que esteiam o ato administrativo, cumpre esclarecer que o mesmo existe quando o acervo factual considerado provado e que esteia a subsunção jurídica não assume correspondência com a realidade ôntica.
Desta feita, e no tocante aos fundamentos fácticos em que se estribou a atuação da Administração, ademais e especialmente na aplicação de coima no valor de € 1,000,00, donde se capta a imputação à aqui Recorrida da autoria da realização das obras irregulares detetadas pelos serviços camarários, - impera concluir pela procedência do invocado erro nos pressupostos da atuação da Administração.

Sendo assim, não se descortina, quanto ao aspeto ora tratado, quaisquer razões legais sustentáveis para sustentar o erro de julgamento da decisão recorrida.
Idêntica conclusão é atingível no que tange ao demais decidido pelo T.A.F. do Porto na sentença recorrida.
Na verdade, o regime jurídico fixado no artigo 106.º do DL 555/99, de 16/12, pauta-se pelo princípio da proporcionalidade, numa lógica de impor ao executado o menor sacrifício possível, o que se traduz na impossibilidade de ordenar a demolição de obras que, apesar de ilegais, cumprem os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade, ou são suscetíveis de os vir a cumprir.
Deste modo, a ordem demolição deve ser precedida por um juízo relativo à possibilidade de legalização de tais obras e de resultar desse juízo a conclusão de que ela é impossível.
Este regime não elege, assim, no caso de construção ilegal, a demolição como a única medida capaz de satisfazer interesse público visto prever o aproveitamento da obra quando a Administração reconheça que a mesma é suscetível de vir a satisfazer os requisitos legais.
E não se duvidará que, desse modo, a lei quer salvar não só as obras que, sem mais, cumpram aqueles requisitos, mas também as que, com modificações, os possam vir a cumprir.
“Percebe-se, assim, que a solução legislativa consagrada nestas normas é informada pelo princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de necessidade e da proporcionalidade propriamente dita. A primeira a proclamar que só deve lesar-se a posição do particular se não houver outro meio para realizar o interesse público. A segunda a ditar que a medida corretiva a suportar pelo administrado deve ser justa, na relação custo/benefício, isto é, que deve reduzir-se ao mínimo indispensável para reparar a legalidade ofendida.
A esta luz, sob pena de se admitir a destruição de uma construção que, no plano material, é conforme ao ordenamento jurídico, resultado este desrazoável e incoerente com a teleologia legal, as referidas normas de competência têm de interpretar-se como modeladoras de um tipo de poder que não atribui à Administração, face a uma obra clandestina, a possibilidade de optar, discricionariamente, ou pela demolição ou pela legalização. A melhor interpretação é, pois, a de que a Administração está vinculada a não ordenar a demolição se a obra, com ou sem alterações, puder ser legalizada. Vinculação da qual, por imperativo lógico, decorre uma outra: a de não ordenar o desmantelamento da construção sem precedência de um juízo acerca da suscetibilidade de legalização.” [cfr. Ac. do Pleno do STA, de 29/11/06 (rec. n.º 633/04) No mesmo sentido podem ver-se, entre outros, Acórdãos de 9/04/2003 (rec. 9/03), de 14/12/2005 (rec. 959/05) e de 16/01/2008 (rec. 962/07)].
Mas se é certo - como se afirma no transcrito Aresto - que a lei não autoriza que a medida mais radical e mais gravosa para o particular – a demolição – seja tomada sem precedência de uma avaliação, ainda que sumária, sobre a possibilidade de legalização, haverá que concluir que a Administração tem o dever legal de formular esse juízo, independentemente de requerimento.
O que não significa que a Administração está, sempre e em qualquer caso, impedida de ordenar a demolição quando verifique que as obras, apesar de ilegais, são suscetíveis de legalização.
E isto porque, pautando-se a sua atividade pelo princípio da legalidade [art.º 3.º do CPA], cumpre-lhe reparar a ordem jurídica violada ordenando, se necessário, a demolição da obra ilegal, o que deverá acontecer sempre que constatar que o interessado, pela sua passividade, não irá contribuir para a reposição da legalidade ou que a irá dificultar.
Ou seja, verificada a ilegalidade da obra e admitindo-se que esta poderá vir a ser legalizada cumprirá, em primeiro lugar, ao interessado diligenciar nesse sentido e, na falta de iniciativa deste, à Administração impulsioná-lo a dar origem ao respetivo procedimento.
Se tal não acontecer ou se se verificar que o particular procura protelar essa legalização não resta à Administração outra alternativa senão a de mandar demolir a construção ilegal [vd. art.º 106.º do DL 555/99].
A não ser assim, isto é, a considerar-se que a falta de iniciativa do particular na regularização da obra, que sendo ilegal é suscetível de legalização, não legitimaria a ordem da sua demolição, seríamos forçados a concluir que a Administração ficaria refém daquele, permitindo que a persistência da sua inércia – muitas vezes calculada - eternizasse situações de flagrante ilegalidade.
O que se traduziria numa inaceitável violação do princípio da legalidade.
Volvendo agora ao caso recursivo, e bem visto o probatório coligido nos autos, logo se constata que a imposição dos referidos trabalhos de correção/alteração emergiu da “projetada inviabilidade” do projeto de legalização apresentado pela Recorrida fundada na falta de apresentação de documento comprovativo de que os condomínios que representem dois terços do valor do prédio autorizam a modificação da linha arquitetónica, nos termos do disposto no nº. 3 do artigo 1422º do Código Civil.
E dizemos “projetada inviabilidade”, pois que nada resultou demonstrado no sentido deste procedimento administrativo de legalização de obras ter conhecido, efetivamente, decisão final promanada pelo Réu.
Deste modo, e considerando que, quando está em causa um procedimento de licenciamento, como é o caso nos autos, o silêncio da Administração não forma ato tácito de deferimento, apenas faculta ao particular a possibilidade de pedir ao Tribunal a intimação da autoridade administrativa competente para proceder à prática do ato que se mostre devido [cfr. artigos 111º e seguintes do RJUE], haverá que se entender que o Recorrente, ao ordenar a realização dos trabalhos de correção/alteração/demolição na obras visada nos autos sem previamente proferir decisão sobre o pedido de legalização de obras referenciado no ato impugnado, violou o disposto no artigo 106º do R.J.U.E., porquanto este preceito legal obstaculiza que qualquer ordem de demolição seja tomada sem precedência de uma avaliação, ainda que sumária, sobre a possibilidade de legalização das obras visadas pela demolição.
Mas, e para que não subsistam quaisquer dúvidas, ainda que tivesse sido já prolatada decisão final com base na mesma constelação argumentativa, o que não se concede pelas razões já expostas, sempre se imporia extrair a mesma conclusão no que tange à invalidade do ato impugnado.
De facto, como se decidiu no aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 23.09.2016, tirado no processo n° 534/09.1BEPRT, e devidamente invocado na sentença recorrida: “(…) a legitimidade a considerar no ato de apreciação liminar de um pedido de licenciamento de obras particulares é a legitimidade em termos meramente formais: cabe à entidade demandada verificar se formalmente foi apresentado documento que comprove que a Requerente é dona da fração onde pretende levar a cabo as obras. E não averiguar se o espaço onde se pretende construir é parte comum (como defende a Autora — cfr. artigo 40° da petição inicial) ou não (como subjaz ao ato impugnado), e, assim, se é necessária a autorização dos restantes condóminos ou não, e em que termos, pois isso é questão que releva do ponto de vista do direito civil, num domínio de eventual litígio privado (…)”
Donde se colhe a “certeza férrea” que a Administração não pode rejeitar liminarmente um pedido de licenciamento de obras com fundamento na falta de apresentação do documento comprovativo de que os condomínios que representem dois terços do valor do prédio autorizam a modificação da linha arquitetónica.
O que serve para concluir que, na eventualidade da Administração ordenar a realização das obras de correção/alteração/demolição visadas nos autos assente na inviabilidade do processo de legalização de obras fundada nesse mesmo quadro de fundamentação, sempre incorreria a mesma em violação do bloco legal aplicável, ademais e especialmente, do disposto no artigo 106º do RJUE.
Não se divisa, portanto, qualquer erro de julgamento na sentença recorrida no domínio em apreço.
Concludentemente, improcedem as todas conclusões de recurso em análise.
Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, confirmando-se o despacho recorrido, ao que se provirá em sede de dispositivo.
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V – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e manter a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente em ambas as instâncias.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 28 de fevereiro de 2020,



Ricardo de Oliveira e Sousa
Fernanda Brandão
Helder Vieira