Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00323/13.9BEMDL-S1
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:11/09/2018
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Sumário:
I-O cerne da questão consiste em apurar se há matéria integradora de responsabilidade civil e, a existir, quem são os responsáveis;
I.1-no requerimento respectivo o Réu invocou, a título de interesse, que a responsabilidade dos dois chamados excluirá total ou parcialmente a sua;
I.2-face a tal alegação é claro que podia ter havido litisconsórcio voluntário mas, dado que o Autor não demandou os supostos responsáveis ou co-responsáveis, tem agora o Estado o direito de os chamar; isto porque tem um “interesse atendível”;
I.3-ao não atentar nesse “interesse atendível” o Tribunal não fez a melhor leitura do normativo visado - artº 316º do CPC - porque desconsiderou o “interesse atendível” do Estado em intervenção de terceiros litisconsortes, interesse traduzido na sua total desresponsabilização ou na parcial desresponsabilização com a co-responsabilização daqueles;
I.4-acresce que o despacho sob recurso viola igualmente o direito processual da Parte de suscitar a intervenção de terceiros para sua defesa, quando há interesse para tanto, há possibilidade de litisconsórcio voluntário, há a aquiescência do Autor e estão reunidos os demais pressupostos legais. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Estado Português
Recorrido 1:LTD
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar o despacho recorrido
Admitir o incidente da intervenção principal provocada
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
Nos autos atrás aludidos em que é Autor LTD, já neles melhor identificado, e Réu o Estado Português, foi proferido, pelo TAF de Mirandela, o seguinte Despacho:
Com a apresentação da Contestação, vem o Digno Magistrado do Ministério Público requerer a intervenção principal provocada de CALC e de AMTMM, conquanto estes, segundo alega, enquanto executado e fiel depositário, impediram dolosamente que a casa fosse entregue ao comprador no tempo legal, assim excluindo totalmente a responsabilidade do Estado.
Notificado para se pronunciar, o Autor não se opôs à intervenção requerida.
Vejamos então se esta deve proceder.
A intervenção principal provocada por iniciativa do Réu encontra-se prevista no art. 316.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, e confina-se (1) às situações de litisconsórcio necessário, (2) às situações de litisconsórcio voluntário, quando o Réu mostre interesse atendível, e (3) às situações em que o réu pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
Desde já se diga que, no caso dos autos, não está claramente em causa uma situação em que o Réu pretenda a intervenção de contitulares do direito invocado pelo autor.
Por outro lado, também não está em causa uma situação de litisconsórcio necessário. Na verdade, não estamos perante uma situação em que a lei ou o negócio exijam necessariamente a intervenção dos chamados ou em que seja necessária a intervenção do réu e dos chamados para que, em função da própria natureza da relação jurídica, a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, nos termos previstos no art. 33.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Fica, pois, por aqui, desde já afastada a aplicação do art. 316.º, n.º 1 e n.º 2, al. b) do CPC.
Resta então saber se está em causa, quanto a alguma destas entidades chamadas, um litisconsórcio voluntário que permita o chamamento por parte do Réu, ao abrigo do art. 316.º, n.º 2, al. a), do CPC.
Nos termos do art. 32.º do CPC, se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas também por um só ou contra um só, se a lei ou o negócio foram omissos a este respeito.
No litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição relativamente independente perante os seus compartes (cfr. art. 35.º do CPC).
Para se aferir da legitimidade das partes, recorrendo às doutas palavras do Tribunal Central Administrativo Norte, há que atender à “(…) forma como o autor configura a relação material controvertida; a intervenção provocada apenas é admissível em relação ao chamado que seja parte legítima e essa legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, deve apreciar-se em face da relação controvertida tal como é configurada pelo autor na sua petição; se o autor, na perspectiva com que delineia a acção, não alega causa que comporte qualquer apreciação do direito do interveniente, se ele aí não está em relação jurídica substantiva, então de nada serve o incidente, não se justifica a intervenção.” (assinalado nosso, in Ac. do TCAN de 13.06.2014, proc. n.º 03147/12.7BEPRT-A, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, vejam-se as seguintes palavras do Conselheiro Salvador da Costa: “A intervenção da lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação material controvertida, cuja medida de viabilidade é limitada pela latitude do acionamento implementado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio.” (assinalado nosso, in SALVADOR DA COSTA – Os Incidentes da Instância. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, pp. 88-89)
Na relação jurídica fundamental em causa nos autos encontram-se, por um lado, o Autor, por outro, o Réu, enquanto partes de uma venda em execução de um imóvel, levada a cabo por este último.
Constitui causa de pedir de direito apenas a responsabilidade contratual do Réu, pelo que está em causa essa relação jurídica fundamental.
As pessoas chamadas pelo Réu são-no em virtude da sua alegada responsabilidade pelo atraso na entrega do imóvel vendido ao Autor, estando então em causa uma relação jurídica alheia à relação jurídica contratual das partes e que deu origem à pretensão dos autos.
Assim sendo, os chamamentos efetuados não são legítimos, por não serem os chamados parte legítima na relação material controvertida, tal como delineada pelo Autor na p.i..
Neste sentido, atentem-se as seguintes palavras do Conselheiro Salvador da Costa, na senda de um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.03.2015 (CJ, Ano XL, Tomo 2, pág. 241): “Como o subempreiteiro não é parte na relação obrigacional estabelecida entre o dono da obra e o empreiteiro, este não os pode chamar a intervir a título principal na ação intentada pelo primeiro contra o último a exigir-lhe a reparação de defeitos de construção do prédio.” (cfr. SALVADOR DA COSTA – Os Incidentes da Instância. 8ª ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 87).
É de indeferir, pois, o pedido de intervenção principal provocada que vem requerido pelo Réu.
(…..)
Desta decisão vem interposto recurso.
Nas alegações o Réu concluiu:
1- O despacho de 03/01/2018 enferma de duplo erro de julgamento.
De facto e de direito.
2- Erro de julgamento de facto, porque não surpreendeu o interesse atendível do Estado em se desresponsabilizar total ou parcialmente da responsabilidade civil que lhe vem imputada, na possibilidade de litisconsórcio voluntário passivo com os terceiros chamados, responsáveis ou co-responsáveis;
3- Erro de julgamento de direito, porque o despacho recorrido viola ostensivamente o art. 316, nº 3, al. a), do CPC;
4- E viola também o princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 7 do CPTA.
5- E viola igualmente o direito processual da parte de suscitar a intervenção de terceiro para sua defesa, quando há interesse para tanto, há possibilidade de litisconsórcio voluntário, há a aquiescência do Autor e estão reunidos os demais pressupostos processuais.
6- No erro de julgamento de facto e na violação dos supra citados normativos e do direito de defesa da parte se deve alterar tal despacho, substituindo-se por outro que admita a intervenção principal provocada pelo Estado.
Assim farão JUSTIÇA.
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
*
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
Está posto em crise o despacho, na parte em que indeferiu a intervenção principal provocada de CALC e AMTMM.
Na óptica do Recorrente este enferma de erro de julgamento.
Cremos que lhe assiste razão.
Vejamos:
-em 10/12/2014 o Estado Português apresentou a sua contestação;
-a final suscitou incidente de intervenção de terceiro; pediu a intervenção principal provocada dos apontados CC (executado e fiel depositário) e AM (arrendatária pretensamente conluiada com o primeiro), ao abrigo dos artºs 316º e segs. do CPC.
Alicerçou o pedido no seguinte:
Só a obstinada e dolosa recusa de entrega do imóvel por parte do executado e fiel depositário obstou a que a casa fosse entregue ao comprador no tempo legal, como seria em qualquer execução, até ao título de adjudicação.
Foi o propósito doloso de manter a casa na sua posse aliada ao incumprimento dos seus deveres de fiel depositário que impediram a entrega da casa e arrastaram o processo de entrega até 06/03/2014.
Essa responsabilidade é sua.
O fiel depositário tem estatuto processual que o obriga especialmente a colaborar com a justiça. No caso, na violação desses deveres, obstruiu a justiça. E impediu a entrega do imóvel.
Por sua vez, a segunda chamada, em conluio com o primeiro, conseguiu o arrastamento da entrega da casa durante o tempo da sua reclamação e até decisão da mesma e chegada do processo ao Serviço de Finanças em fevereiro de 2014.
Essa responsabilidade é sua.
E continuou, pertencendo as responsabilidades aos agora chamados, não pode ser o Estado a arcar com elas.
O Estado nenhuma responsabilidade teve numa entrega não conseguida em tempo porque desenvolveu sempre o iter processual com o fim da entrega em tempo útil e legal e porque sempre se opôs aos ostensivos propósitos de não entrega dos aqui chamados.
E, se nalguma coisa condescendeu, foi tão só nos pedidos de tolerância do comprador para com o executado. Mas, nesse ponto, só o comprador, sibi imputet, é responsável pelo tempo da tolerância.
Por isso, nem mesmo em hipótese meramente académica, se aceita dividir culpas.
Configura, pois, a factualidade relatada manifestos propósitos quer de um quer de outro dos chamados de impedir a entrega da casa vendida.
Actuações deveras dolosas e que fizeram arrastar a entrega da casa por vários meses até 06 de março de 2014.
Responsabilidades dos chamados e não do Estado.
Assim sendo, responsáveis que são, devem os mesmos intervir processualmente hic et nunc como chamados co-Réus.
Sendo o chamamento do interesse do actual Réu já que a responsabilidade dos chamados excluirá no total a do Estado.
Se alegado comportamento danoso houve, foi do fiel depositário ao não cuidar de atempadamente entregar o imóvel.
Ora, como aduz o Réu, o 1º chamado, enquanto fiel depositário, tinha o domínio da acção de desocupação e de entrega do bem.
Também na sua óptica a co-chamada, em conluio com o fiel depositário, auxiliou e conseguiu o arrastamento da entrega da casa.
A ser assim, serão os únicos a quem o Autor pode assacar responsabilidade.
Porém, não estando nestes autos, teria o Estado, a ser condenado, de contra eles intentar outra acção e/ou exercer o seu direito de regresso, pelo que aqui se devem defender e exercerem os seus direitos de defesa.
O Estado repete-se, invoca a total responsabilidade dos chamados.
Daí o seu interesse na intervenção.
Mas mesmo que se venha a concluir pela sua não total responsabilidade, mesmo assim tem interesse em que as culpas se mostrem divididas. Daí, também por esta via, o seu interesse na intervenção.
Tal equivale a dizer que atentos os concretos termos em que vem alegada a causa de pedir que estrutura os pedidos formulados, apresenta-se como inegável que os apontados chamados dispõem de legitimidade para intervir nesta demanda como parte principal, assumindo um estatuto similar ao do Réu.
Na verdade, genericamente, dir-se-á que o conceito de “terceiros” se contrapõe ao conceito de “parte”, a qual insere a ideia de alguém por quem ou contra quem é solicitada, em nome próprio, uma providência judicial tendente à tutela de um direito (cfr. Gama Prazeres, em Dos Incidentes da Instância no Actual Código de Processo Civil, pág. 102); “Por ‘terceiro’, entende-se todo aquele que é inicialmente estranho a um determinado processo em curso; por outras palavras, aquele que não figura como parte originária” (Artur Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, I, reimpressão, 1970, pág. 320).
A partir do momento da intervenção, a intervenção produz este efeito: coloca ao lado do autor outro autor, ao lado do réu outro réu, como se a acção houvesse sido proposta por dois autores ou contra dois réus (cfr. Alberto dos Reis, em CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição-Reimpressão, Coimbra, 1982, págs. 520 e segs.).
Donde, resulta como procedente o pedido de intervenção principal deduzido pelo Réu/Estado Português.
Em suma:
-o cerne da questão consiste em apurar se há matéria integradora de responsabilidade civil e, a existir, quem são os responsáveis;
-em termos de apuramento dos responsáveis a questão a dirimir é a de saber (i) se o Estado é responsável; (ii) se é corresponsável; (iii) se não é responsável;
-em eventual litisconsórcio voluntário, o Autor poderia ter demandado os três;
-não o fez;
-pode agora o Estado pedir o chamamento dos dois que considera responsáveis por ter “interesse atendível” para tanto;
-atendendo à posição do Estado de negação da responsabilidade ou, no máximo, de co-responsabilidade com os dois chamados, necessário é chamar o fiel depositário e a arrendatária;
-o “interesse atendível” do Estado para o chamamento passa exactamente pela sua desresponsabilização, ou pela co-responsabilização com os dois chamados. Porque, no primeiro caso, o Estado será totalmente absolvido do pedido e, no segundo, será parcialmente absolvido face à concorrência de culpas;
-no requerimento respectivo o Réu invocou, a título de interesse, que a responsabilidade dos dois chamados excluirá total ou parcialmente a sua;
-face a tal alegação é claro que podia ter havido litisconsórcio voluntário mas, dado que o Autor não demandou os supostos responsáveis ou co-responsáveis, tem agora o Estado o direito de os chamar; isto porque tem o dito “interesse atendível”;
-ao não atentar nesse “interesse atendível” o Tribunal não fez a melhor leitura do normativo visado - artº 316º do CPC - porque desconsiderou o “interesse atendível” do Estado em intervenção de terceiros litisconsortes voluntários. Interesse traduzido na sua total desresponsabilização ou na parcial desresponsabilização com a co-responsabilização daqueles.
Procedem, pois, as conclusões do Recorrente; o princípio de acesso à justiça, consagrado no artigo 7º do CPTA, também impõe, no caso, o cabal conhecimento da questão, ou seja, o total conhecimento da factualidade invocada.
Acresce que o despacho sob recurso viola igualmente o direito processual da Parte de suscitar a intervenção de terceiros para sua defesa, quando há interesse para tanto, há possibilidade de litisconsórcio voluntário, há a aquiescência do Autor e estão reunidos os demais pressupostos legais.
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DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso revoga-se o despacho sub judice e admite-se a intervenção principal provocada pelo Estado.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.
Porto, 09/11/2018
Ass. Fernanda Brandão
Ass. Frederico Branco
Ass. João Sousa