Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00361/11.6BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/17/2012
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Irene Isabel Gomes das Neves
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIROS
PENHORA
CONTA CONJUNTA E SOLIDÁRIA
OFENSA ILEGÍTIMA
Sumário:I - No depósito bancário o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (“res perit domino” - art. 796ºnº1 do CC).
II- Penhorado o saldo de uma conta de diversos titulares e solidária, pode o co- titular opor-se à penhora por embargos de terceiro invocando a sua exclusiva pertença.
III - Não é a posse o que aqui está em causa, mas a ofensa ilegítima causada pela diligência judicial a outro direito de que o mesmo é titular. (art. 237º do CPPT)*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:E...
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
I - RELATÓRIO
E…, melhor identificado nos autos, apresentou os presentes embargos de terceiro no âmbito da execução fiscal que lhe foi movida nos autos de execução fiscal n.º 0418200401040359, em que é exequente a Fazenda Pública e executada a firma “B… Fabricação de Bordados, Lda.” e R…, na qualidade de revertida.
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi proferida sentença que julgou os embargos procedentes, decisão com que a Fazenda Pública não se conformou, tendo interposto o presente recurso jurisdicional.
Alegou, tendo concluído da seguinte forma:
A - O acima identificado embargante, veio apresentar embargos de terceiros, nos termos dos artigos 237º e ss. do CPPT, requerendo que os mesmos fossem julgados procedentes e em consequência declarada suspensa a execução e levantada a penhora, invocando que os valores depositados na referida conta apenas ao embargante pertencem.
B - Para cobrança do processo de execução fiscal n.º 0418200401040359 e apensos, foi, em 23.11.2010, pelo Serviço de Finanças de Guimarães-1 (SF), solicitado ao Banco Santander Totta, S.A., a penhora do saldo das contas bancárias pertença da Executada R…, até ao montante de € 74.166,71.
C - O Mmo. Juiz ”a quo”, deu como provados os factos enunciados sob os pontos 1- a 3- da douta sentença recorrida, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
D - Tendo concluído, com base nos mesmos, e depois de analisada a prova documental e testemunhal, que “ … o embargante tinha na sua esfera jurídica o domínio de facto sobre a conta penhorada e a respetiva intenção de exercer sobre ele um direito correspondente àquele domínio de facto, isto é, o corpus e o animus dessa posse.
E - É entendimento da Fazenda Pública, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que a douta sentença recorrida enferma, de errada apreciação da prova produzida, senão vejamos,
F - O Embargante, para lançar mão dos presentes embargos, afirma que é cotitular da conta bancária cujo saldo foi objeto de penhora e que, não obstante a sua nora R… (Executada) ser também cotitular, os montantes penhorados são da sua exclusiva propriedade.
G - Pelo que, cabia ao embargante demonstrar e provar documentalmente, que os montantes penhorados são da sua exclusiva propriedade.
H - Não tendo, em momento algum oferecido qualquer documento que demonstrasse de que modo foi constituído o saldo da referida conta, ou seja, quem, de entre os contitulares, procedeu ao depósito e/ou depósitos que permitiram alcançar o saldo de € 13.129,08”
I - Não ofereceu documentos que demonstrassem a titularidade desta verba nem sequer do título constitutivo que deu origem à abertura e movimentação da questionada conta bancária, de modo a que se pudesse determinar, com a necessária segurança jurídica, qual a quota parte de cada um dos titulares.
J - Como prova testemunhal foi inquirida a executada e cotitular R…, sendo que o depoimento de parte é uma forma de confissão (confissão judicial) destinada a obter o reconhecimento de factualidade desfavorável ao depoente e que favoreça a parte contrária, o que determina, em nosso entender, a total falta de credibilidade da prova testemunhal produzida, sendo a mesma irrelevante.
K - A prova testemunhal desacompanhada de outro tipo de prova é insuficiente como meio de prova, apenas é admissível como prova adicional, quando seja de todo impossível a prova documental, o que não é o caso.
L - Pelo que, a prova testemunhal produzida nos autos não constitui meio suficiente e idóneo para demonstrar que os montantes existentes na conta eram da exclusiva pertença do embargante.
M - Assim, entende-se que a prova produzida foi erradamente valorada quando se decide que o embargante tinha na sua esfera jurídica o domínio de facto sobre a conta penhorada e a respetiva intenção de exercer sobre ele um direito correspondente àquele domínio de facto.
N - Salvo o devido respeito por opinião contrária, é nosso entendimento que o embargante não conseguiu demonstrar que, à data da penhora, tinha um direito de propriedade nem qualquer domínio de facto sobre a totalidade do saldo depositado.
O - Nem conseguiu demonstrar que era o único dono das verbas depositadas na referida conta.
P - Assim, ao decidir como decidiu o M.mo Juiz “a quo” fez uma errada apreciação da prova produzida nos autos e consequentemente aplicação da lei.
Pelo que, revogando a douta sentença recorrida, Vossas Excelências farão, agora como sempre, a costumada JUSTIÇA.
Não houve contra-alegações.
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos, pelo que importa apreciar e decidir.
Questões a decidir:
a) Saber se a sentença proferida padece de erro de julgamento sobre a matéria de facto, ao considerar provados os pontos 1, 2 e 3 do probatório;
b) Saber se a sentença proferida padece de erro de julgamento de direito, ao julgar procedentes os embargos de terceiros deduzidos pelo recorrido.
II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1. DE FACTO
O Tribunal a quo deu como assente a seguinte matéria de facto:
1. Na sequência de execução movida contra a firma “B… Fabricação de Bordados, Lda. “ e R…, na qualidade de revertida, foi penhorada conta bancária no Banco Santander Totta, com o n°003196555554061 e saldo no montante de 13.129,08€, na qual aquela última figura como cotitular com o aqui embargante;
2. As quantias ali depositadas são do embargante na sua totalidade;
3. A revertida apenas figura como cotitular dessa conta por favor ao embargante que, atenta a sua idade, poderia precisar que outrem dispusesse, por si, das quantias ali depositadas;
Motivação
Os factos acima foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos e, em especial, nos depoimentos das testemunhas inquiridas. R… e S…, a primeira nora do embargante e a segunda funcionário bancário, gestor da sua conta do embargante. Se em relação à segunda testemunha, o seu depoimento nos pareceu isento e credível, não merecendo quaisquer reparos. Em relação à primeira testemunha, por se tratar da revertida na execução onde foi penhorada a conta objeto dos presentes embargos, poder-se-iam levantar objeções à credibilidade e isenção do seu depoimento. No entanto, não foi assim. O depoimento foi claro e criou no tribunal a convicção da veracidade do que vinha arguido.
II.2. DE DIREITO
Para julgar procedente os embargos de terceiro, considerou o M. Juiz do Tribunal “a quo”, que a conta bancária donde foi penhorada a quantia em causa, em nome do embargante e da executada por reversão, aquele logrou demonstrar que, à data da penhora, tinha direito de propriedade (e o respetivo domínio de facto) sobre a totalidade do saldo depositado na conta bancária n.º 0031965555540610, do Banco Santander Totta.
Em sede de conclusões e alegações de recurso e que delimitam o seu objeto, a Fazenda Pública insurge-se contra o assim decidido, por além do mais, comportar erro de julgamento sobre a matéria de facto, ao ter dado como provado que a totalidade do dinheiro depositado na conta penhorada era da pertença do embargante e, erro de julgamento em matéria de direito ao considerar que a penhora efetuada ofendeu a sua posse.
Do erro de julgamento de facto
A recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal Tributário de 1ª instância quanto à matéria de facto, por entender que o depoimento de parte prestado pela executada revertida R… e da testemunha S… não era suficiente, sem demais elementos documentais de suporte, para dar como provado que “o embargante tinha na sua esfera jurídica o domínio de facto sobre a conta penhorada e a respetiva intenção de exercer sobre ela um direito correspondente àquele domínio de facto, isto é, o corpus e o animus dessa posse”.
E, desde já se adianta, que a recorrente não tem razão.
Antes de prosseguir, importa atentar no que diz a lei quanto aos poderes do tribunal de segunda instância para alterar a decisão do tribunal de primeira instância relativamente ao julgamento da matéria de facto, e na interpretação e aplicação que dessas normas legais vem fazendo a nossa mais alta jurisprudência.
Assim, tem vindo a ser entendido pela jurisprudência do STA que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto [artigo 712º CPC] deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto [artigo 655º nº1 CPC]. E que, tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância, e que a gravação da prova, por sua natureza, não poderá transmitir todo o conjunto de fatores de persuasão que foram percecionados, diretamente, por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal de primeira instância, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da ciência, da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável [ver, entre outros, AC STA de 19.10.05, Rº394/05; AC STA de 14.03.06, Rº1015/05; AC STA de 19.11.2008, Rº601/07; AC STA 27.01.2010, Rº358/09; AC STA de 14.04.2010, Rº0751/07; AC STA de 02.06.2010, Rº200/09; AC STA de 02.06.2010, Rº0161/10 e AC STA de 21.09.2010, Rº01010/09].
A livre apreciação da prova aponta para uma decisão de facto emergente de uma certeza relativa, empírica, dotada de um grau de probabilidade adequado às exigências práticas da vida.
A prudente convicção do tribunal aponta para a envolvência de algum convencimento íntimo do julgador, embora sem perder de vista um critério de persuasão racional, mormente no que respeita à prova pessoal, em que relevam as condições que permitiram aferir do rigor da narração dos factos feita por cada uma das testemunhas, e a sua razão de ciência, e as qualidades de isenção e de convicção que cada uma denotou.
Temos, portanto, que em princípio nada obsta a que o tribunal de primeira instância, caso o considere justificado, dê mais relevância ao depoimento de umas testemunhas em detrimento do depoimento de outras, ou que considere os depoimentos prestados mais ou menos decisivos para formar a sua convicção.
E que, em sede de recurso jurisdicional, o tribunal superior, em princípio, apenas deva alterar a matéria de facto, na qual assenta a decisão recorrida, se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, segundo a razoabilidade, foi mal julgada na instância de origem.
Em termos estritamente adjetivos, exige o artigo 685-B, nº1, do CPC, que quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnadas diversa da recorrida.
E no seu nº2 que, no caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados (…) incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
Posto isto, imperioso é avaliar e concluir que, in casu, a Recorrente não cumpriu o ónus da indicação, em conformidade com o exigido pelo art. 690.º -A n.º 2 CPC, dos depoimentos em que se apoia para imputar errado julgamento à sentença recorrida, quando fixou como provada a factualidade contida nos itens 1,2 e 3 do probatório. Efetivamente, limitou-se a fazer apelo genérico à valoração a dar ao depoimento de parte e depoimento da testemunha inquiridas no processo, cujos depoimentos mereceram registo áudio, sem que tenha acompanhado essa indicação de qualquer referência expressa aos mesmos, antes centrando a tónica do errado julgamento de facto na insuficiência e falta de credibilidade da prova testemunhal, desacompanhada de documentos e na valoração conferida ao depoimento de parte, que alega revestir a forma de confissão.
Deste modo, inevitável é a rejeição do recurso no que tange aos factos provados em sede de reapreciação da prova testemunhal, cumprindo apenas aferir da valoração da prova testemunhal aferida pelo julgador e da sua admissibilidade em face do caso concreto que lhe foi colocado.
Diz a recorrente que “não tendo, em momento algum oferecido qualquer documento que demonstrasse de que modo foi constituído o saldo da referida conta, ou seja, quem, de entre os contitulares, procedeu ao depósito e/ou depósitos que permitiram alcançar o saldo de € 13.129,08” (…), documentos que demonstrassem a titularidade desta verba nem sequer do título constitutivo que deu origem à abertura e movimentação da questionada conta bancária, de modo a que se pudesse determinar, com a necessária segurança jurídica, qual a quota parte de cada um dos titulares”.
Mais alega, que em sede de “prova testemunhal foi inquirida a executada e cotitular R…, sendo que o depoimento de parte é uma forma de confissão (confissão judicial) destinada a obter o reconhecimento de factualidade desfavorável ao depoente e que favoreça a parte contrária, o que determina, em nosso entender, a total falta de credibilidade da prova testemunhal produzida, sendo a mesma irrelevante. A prova testemunhal desacompanhada de outro tipo de prova é insuficiente como meio de prova, apenas é admissível como prova adicional, quando seja de todo impossível a prova documental, o que não é o caso. Pelo que, a prova testemunhal produzida nos autos não constitui meio suficiente e idóneo para demonstrar que os montantes existentes na conta eram da exclusiva pertença do embargante.
Em síntese, o erro de julgamento de facto invocado pela Recorrente reconduz-se em o tribunal a quo se ter bastado com a prova testemunhal, mais concretamente com o depoimento de parte, para dar como provados os factos vertidos nos itens 1, 2 e 3 do probatório Quid iuris?
E, neste particular, não podemos deixar de concordar com o Magistrado do Ministério Público quando o mesmo refere que: «O depoimento de parte, como é sabido, é um elemento probatório a apreciar segundo o prudente critério do julgador, uma prova livre portanto. Tal elemento probatório, da mesma forma que a prova testemunhal propriamente dita, tem causas de falibilidade, decorrente, designadamente, da possibilidade de infidelidade da perceção e da memória de que o afeta e do perigo da parcialidade. No entanto, trata-se de um elemento probatório permitido por lei, e não proibido no caso concreto, pois que a matéria sobre a qual versou não é passível de provar exclusivamente por documento. Portanto trata-se de elemento de prova que, apreciado livremente pelo julgador, é suscetível de ser valorado, de forma a criar a certeza jurídica quanto aos factos sobre os quais versou.
Assim, não havendo, como nos parece que não há, qualquer restrição legal quanto à utilização, como meio probatório, de depoimento de parte prestado por R… (…)”
Efetivamente, o depoimento de parte é um meio processual destinado a provocar a confissão judicial, na medida em que haja o reconhecimento pela parte da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art 352º CC); todavia mostra-se ultrapassada a conceção restrita de tal depoimento vocacionado exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto.
Assim, o juiz no depoimento de parte não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher alguns elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova” – cfr Ac STJ de 16.03.2011.
A confissão e o depoimento de parte são, pois, realidades jurídicas distintas, sendo este mais abrangente do que aquela, por ser um meio de prova admissível mesmo relativamente a factos que não sejam desfavoráveis aos depoentes, caso em que ficará sujeito à livre apreciação do tribunal – cfr. Ac. STJ de 02.10.2003; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pag. 573.
Efetivamente, o depoimento pode incidir sobre todos os factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, desde que não sejam criminosos ou torpes, incluídos na base instrutória – arts. 552º e 554º do CPC.
Esse depoimento pode ou não conduzir à confissão – art. 553º, n.º2, do CPC e 352º e 361º do CC.
Por outro lado, o regime do depoimento de parte está inserido na secção subordinada à epígrafe “Prova por confissão das partes” e, de acordo com o estatuído no art. 352º do CC, confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
O tribunal pode e deve atender a todas as provas produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência, princípio acolhido no art. 515.º, n.º 1 do CPC, pelo que o depoimento de parte prestado, deve ser livremente valorável em todo o seu conteúdo.
E, quanto a prova testemunhal estatui, efetivamente, o art. 392º do Cód. Civil que: “A prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja direta ou indiretamente afastada”, por vezes ela constitui o único meio utilizável para a demonstração em juízo da realidade de muitos factos.
Todavia, há determinados factos sobre os quais não é admissível depoimento testemunhal. Assim e entre outros casos, «não é admitida a prova testemunhal de declarações negociais que, por disposição da lei ou por estipulação das partes (art. 223º do Cód. Civil), só possam ser validamente emitidas ou provadas por documento (art. 393º, 1, do Cód. Civil). São os casos em que a forma do ato constitui, no pensamento da lei, requisito ad substantiam ou mesmo ad probationem do ato».
Assim, as declarações negociais que devam revestir a forma escrita (arts. 223º-1 CC e 364º-1 CC), bem como aquelas que só podem ser provadas por documento ou confissão documentada (art. 364º-2 CC), não podem, obviamente, ser objeto de prova por testemunhas (art. 393º-1 CC)), tal como não podem ser objeto de prova por outro meio que não o exigido.
Acontece que no caso dos autos, ao contrário do sustentado pela Recorrente de que a prova de que as quantias depositadas na conta bancária são do embargante na sua totalidade não carece ser provado exclusivamente por documento.
De sorte que, na ausência de junção aos autos de elementos escritos suscetíveis de comprovar a factualidade alegada pelo embargante, nada impede, como efetivamente veio a ocorrer, que a prova da mesma seja realizada e obtida por via de prova testemunhal, depoimento de parte da cotitular da conta e do gestor da conta, visto não funcionar, in casu, a proibição estabelecida no cit. artigo 393º-1 do Código Civil.
Improcede, pois, o alegado erro de julgamento de facto.
Do erro de Julgamento de direito
Atenta a improcedência do erro de julgamento concertante à matéria de facto, a manutenção na íntegra da matéria de facto proveniente do julgamento em 1ª instância, importa só por si que se considere correta a subsunção jurídica efetuada pela sentença sob recurso, falecendo os argumentos que a Recorrente assacava em sede de erro de julgamento de direito.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 1285.º do Código Civil, o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo. Pela reforma introduzida no CPC, em 1997, os embargos de terceiro passaram a ter uma feição inovadora, servindo para defender não só a posse mas também qualquer um outro direito, quando por ato judicial incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, nos termos do disposto no art.º 351.º do CPC (Cfr. neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 17.12.1998, recurso 179/98, publicado na CJ, Ano XXIII, Tomo V, pág. 69 e segs e Acórdão do STA de 17.5.2 000, recurso 22 168, publicado na CTF n.º 399, págs. 386 e segs.).
Por atos de efetiva privação da posse entende-se a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial o despejo ou qualquer outra diligência ordenada judicialmente, que não seja apreensão de bens em processo de falência ou de insolvência (in Código Civil Anotado, de Pires de Lima e Antunes Varela, III volume, 2.ª Edição revista e atualizada, pág.61).
Por sua vez, ao nível processual, a norma do art.º 237º do CPPT dispõe que, quando o arresto, a penhora ou outra diligência judicial ofenda a posse de terceiro, pode o lesado fazer-se restituir à sua posse por meio de embargos de terceiro, que serão apresentados na repartição de finanças onde pender a execução e regidos, na parte em que o possam ser, pelos preceitos relativos à oposição.
No caso, funda o recorrido os embargos por a penhora sobre a totalidade do saldo da conta bancária ofender a sua posse e/ou ser detentor de um direito incompatível com a mesma, pois que o saldo existente na conta ser de sua exclusiva pertença.
Ora, nos presentes autos, provou-se quanto a conta bancária objeto de penhora que na mesma figuram como cotitulares a executada por reversão R… e o ora embargante (ponto 1 do probatório), que as quantias ali depositadas são do embargante na sua totalidade e que a revertida apenas figura como cotitular dessa conta por favor ao embargante que, atenta a sua idade, poderia precisar que outrem dispusesse, por si, das quantias ali depositadas (ponto 2 e 3 do probatório).
Articulando o embargante a sua qualidade de “proprietário”, que de resto resultou provada nos autos, terá de se entender que penhora de tal saldo bancário é ofensiva do direito que se arroga e os embargos de terceiro não podiam, tal como decidido em 1ª instância, deixar de proceder.
Senão, vejamos:
O depósito bancário de disponibilidades monetárias (ou de numerário) é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, a qual dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restituí-la, mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas.
A noção de depósito bancário encontra-se ligada à de conta bancária. De facto, quando é efetuado um depósito bancário este dá origem à abertura de uma conta constituindo esta a expressão contabilística do depósito efetuado. Assim, é na conta que se vão registando todas as entregas feitas pelo cliente ao abrigo do contrato inicialmente celebrado, bem como todos os levantamentos das quantias nela depositadas (cfr. Paula Camanho, in “Do Contrato de Depósito Bancário”, págs. 93, 95 e 98).
O contrato de depósito bancário não se encontra expressamente previsto na lei portuguesa, encontra-se sujeito às regras do depósito mercantil (art.ºs 403º a 407º do Cód. Com.), e mais disposições aplicáveis, subsidiariamente, pelos estatutos e pelos usos mercantis bancários. E, de entre estas disposições aplicáveis, importa aqui destacar os art.ºs 1142º e 1144º do Cód. Civil.
Nos termos do primeiro, o depositante empresta dinheiro ao banco ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, mais os juros, se, devidos. Nos termos do segundo as coisas mutuadas tornam-se propriedade do mutuário pelo facto da entrega. O que mostra que o contrato de depósito bancário é, quanto à sua constituição, um contrato real “quoad effectum”, sem deixar de ser simultaneamente um contrato obrigacional “quoad effectum”, com o depositante a gozar do direito de crédito à restituição de “tantundem eiusdem generis” (crédito de valuta a que se aplica o princípio do nominalismo - art.º 550 do Cód. Civil).
Donde e pelo que vem dito, o depositante troca a propriedade da soma depositada por um direito de crédito à restituição de outro tanto, com a transferência do risco a acompanhar a transmissão da propriedade (res perit domino __ art.º 796º, n.º 1 do Cód. Civil) neste sentido, João Calvão da Silva in Direito Bancário Liv Almedina Coimbra, 2001, pág 348.
Sobre a natureza jurídica do depósito bancário centrou-se essencialmente entre os que entendem tratar-se de depósito irregular e os defensores da teoria do mútuo.
Antunes Varela considera que o depósito bancário reveste a natureza de um depósito irregular, pois, tal como este, é realizado predominantemente no interesse do depositante, enquanto que, para se poder considerar um verdadeiro mútuo, teria de ser predominantemente no interesse de utilização da coisa pelo mutuário (mesmo Código anotado, Vol. II, págs. 783 e 785).
Perde, no entanto, tal questão interesse conceitual de integração num ou noutro tipo contratual, assentado na ideia que estamos realmente perante um depósito irregular, sujeito às regras do mútuo na medida do possível, por meio do qual a posse e a propriedade do dinheiro depositado pelo cliente se transferem para o banco que recebeu o depósito, ficando o cliente depositário com um direito de crédito sobre o banco de outro tanto da soma depositada.
A abertura e manutenção de contas bancárias por duas ou mais pessoas, vulgarmente chamadas de contas conjuntas ou coletivas, em que cada uma livremente a pode movimentar a débito ou a crédito, não carecendo para o efeito de autorização do outro contitular gera uma obrigação solidária, sendo mesmo um dos seus casos mais típicos, como referem Pires de Lima e A. Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição revista e aumentada, em anotação ao art.º 513 (pág. 499).
As contas solidárias podem ser movimentadas, tanto a crédito como a débito por qualquer dos titulares, sozinhos, livremente, qualquer deles pode fazer levantamentos, e o banqueiro exonera-se, no limite, entregando a totalidade do depósito a um único dos titulares.
No que respeita à atribuição do saldo (direito de crédito sobre o banco), e não, portanto, da propriedade das quantias depositadas, face ao que se deixou dito, na conta solidária, e no que toca às relações entre os titulares e o banco, vale a presunção do art.º 516º do Cód. Civil, no que respeita à repartição do saldo: presume-se que todos os titulares participam em partes iguais no saldo, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, podendo a presunção ser ilidida nos termos gerais. E se um destes credores for satisfeito para além da parte que lhe compete no crédito comum, tem de satisfazer os outros na parte que lhes cabe nesse crédito (art.º 533º do Cód. Civil). E o direito de regresso destes limita-se apenas à parte, que por seu turno, lhe compete nas relações internas (art.º 533º do Cód. Civil - Antunes Varela in Das Obrig Vol I p 770).
A titularidade da conta e a titularidade exclusiva do direito de crédito sobre o saldo ou qual a quota-parte do direito de crédito que a cada titular da conta solidária detenha não são necessariamente coincidentes.
Voltando ao caso em apreço, o embargante e ora recorrido articulou e provou serem de sua pertença a totalidade das quantias ali depositadas, pelo que se o dinheiro existente na conta penhorada é da exclusiva proveniência de um dos cotitulares, não funciona a presunção de solidariedade contida no art. 516.º do Código Civil.
Sendo que, bem pelo contrário, aquela presunção judicial, foi ilidida pela prova do contrário nos termos do disposto nos art.s 350.º e 347.º do Código Civil.
O ónus da tal prova, cabia ao embargante efetuar, desde logo como parte do seu direito à ação de embargos, pelos factos e as razões de direito que fundamentam o peticionado – art.s 167.º, 237.º, 206.º e 108.º do CPPT – bem como tal ónus probatório resulta das normas gerais em tal matéria, com assento na norma do art.º 342.º n.º1 do Código Civil, que dispõe que aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, princípio que hoje também encontra expressa guarida na norma do art.º 74.º n.º1 da LGT.
Do exposto resulta que tendo ficado por via da penhora limitado o direito do embargante sobre o saldo bancário da referida conta solidária, o seu direito de crédito foi indevidamente lesado por ofensa do disposto no art. 237º do CPPT.
Por outras palavras, provado que foi pelo embargante a pertença da totalidade das quantias depositadas na conta objeto de penhora e, consequentemente do saldo existente e penhorado, a mesma ofendeu o direito de crédito do embargante sobre o mesmo.
Improcedem assim todas as conclusões do recurso, sendo de lhe negar provimento e de confirmar a sentença recorrida que no mesmo sentido decidiu, embora com fundamentação distinta.
III - DECISÃO.
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 17 de maio de 2012
Ass. Irene Neves
Ass. Pedro Marques
Ass. Nuno Bastos