Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00957/144.4BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/28/2022
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:RESPONSABILIDADE POR SACRIFÍCIO. DANO ESPECIAL E ANORMAL.
Sumário:I) – A responsabilidade por facto lícito/imposição de sacrifício tem, entre os seus pressupostos, a ocorrência de danos especiais e anormais.
Recorrente:AA e BB
Recorrido 1:EP – Estradas de Portugal, SA (Praça da …), Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP e Outro(s)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não foi emitido parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
AA e BB (Rua …) interpõem recurso jurisdicional de decisão do TAF de Aveiro, em acção administrativa comum, julgada improcedente, e na qual pretenderam, em síntese, efectivar responsabilidade extracontratual contra EP – Estradas de Portugal, SA (Praça da …), Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (Inir – Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias, IP; Rua dos …), A... – Auto-Estradas do ..., SA (Quinta da …), D... – ..., ACE (…. Vila Nova de Gaia), e onde também foi interveniente acessória CC
Os recorrentes concluem:

1- Vem o presente recurso em matéria de facto e de direito.
2-A douta sentença deu erradamente como provados os seguintes pontos da matéria provada:
Ponto 19-Que foi encerrado entre o 2°e o 3°trimestre de 2009 O depoimento prestado pelo Sr Engº DD em que se fundamenta tal prova é contraditório com o espaço temporal em que o mesmo coloca a execução deste troço da autoestrada.
Ponto 27-A casa geminada à dos AA encontrou-se em 2014, à venda pelo preço de 160000,00€. Tal facto foi impugnado com o teor da alínea e) da matéria dada como não provada e não foi produzida qualquer prova.
3-Tal matéria deverá ser julgada não provada, com base na inexistência de qualquer prova.
4- A douta sentença julgou incorretamente como não provados os factos constantes das seguintes alíneas da matéria não provada:
a) O valor do prédio dos AA ascendia ao montante mínimo de 200.000,00€
c)Por força da construção da A-32, p prédio dos AA sofreu uma desvalorização
d) Que ascende a € 70.000,00. Da matéria provada resulta que os AA adquiriram o prédio pelo valor de 104.748.00€ (cf. ponto 3) e que despenderam a importância de 41.766,47€ (cf. Ponto 6) para a conclusão das obras.
Os AA juntaram aos autos relatório de avaliação imobiliária, que foi admitido e do qual consta que o valor de mercado do prédio antes das obras da A-32, ascendia ao montante de 295.000.00€, pelo que, com base em tal avaliação, bem como, nos factos dados como provados nos pontos 3 e 6 da matéria provada, deverá o facto constante da al. a) ser dado como provado.
As alíneas c) e d) deverão ser dadas como provadas com base no relatório de avaliação imobiliária da qual resulta uma desvalorização de 76.500,00€ por força da construção da A-32.
5- Deve, pois, tal matéria ser dada como provada.
6- A construção da autoestrada causou aos AA danos patrimoniais e não patrimoniais, como expressamente resulta da matéria dada como provada.
7- Tais danos são danos especiais e anormais, porquanto, não afetam a generalidade das pessoas e ultrapassam os custos próprios da vida em sociedade, pelo que, integram os requisitos exigidos pela Lei
n°67/2007 de 31 de Dezembro.
8- Pelo que, a douta decisão fez errada interpretação do disposto no artigo 16° do Anexo à Lei n°67/2007 de 31 de Dezembro.
9-Tal interpretação viola o princípio constitucional da CRP previsto no seu artigo 13, inconstitucionalidade que se invoca.
10- Assiste, assim, aos AA o direito a serem ressarcidos de todos os prejuízos causados pela construção da A-32.
Contra-alegaram a ré A... e a interveniente acessória.
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A Exmª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu parecer.
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Dispensando vistos, vêm os autos a conferência, cumprindo decidir.
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Os factos, que na decisão recorrida se tiveram como provados:
1. Os Autores vivem em união de facto;
2. E são comproprietários, na proporção de ½ para cada um, de um prédio urbano, sito na Rua do…1, Concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o número …, descrito na conservatória do registo predial de Santa Maria da Feira, sob o n.º … – cf. documentos n.ºs 1 e 2, juntos com a petição inicial;
3. Para a referida aquisição, os Autores outorgaram, em 11.10.2016, contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual prometeram comprá-lo pelo preço de € 104.748,00 (cento e quatro mil setecentos e quarenta e oito euros) – cf. contrato promessa, documento n.º 2, junto com a petição inicial aperfeiçoada, a pág. 543 do processo no SITAF;
4. Que foi registada na Conservatória de Registo Predial através da apresentação 6, de 16.02.2007 cf. certidão, documento n.º 2, junto com a petição inicial;
5. O prédio em causa foi entregue aos Autores logo após a celebração do contrato promessa de compra e venda, em 11.10.2006, para conclusão da construção, uma vez que a mesma não se encontra ainda terminada – cf. contrato promessa, documento n.º 2, junto com a petição inicial aperfeiçoada, a pág. 543 do processo no SITAF;
6. Para a conclusão da construção da habitação, os Autores despenderam a quantia de € 41.766,47 – cf. faturas e recibos, documentos n.ºs 3 a 10 e 13 a 22, juntos com a petição inicial aperfeiçoada, a pág. 543 do processo no SITAF;
7. Os Autores habitam o prédio desde junho de 2007 cf. recibo, documento n.º 1, junto com a petição inicial aperfeiçoada, a pág. 543 do processo no SITAF;
8. Com dois filhos menores;
9. Tal prédio urbano é constituído por moradia de dois pisos, rés-do chão e 1ª andar, com cinco divisões;
10. Possui anexo para garagem, arrumos e lavandaria – cf. relatório pericial, a pág. 857 do processo no SITAF;
11. A A... dista 72 (setenta e dois) metros do tardoz dos anexos e limite do terreno do prédio dos autores;
12. E a 100 (cem) metros da traseira do corpo principal da moradia – cf. relatório pericial, a pág. 857 do processo no SITAF;
13. A A... é visível do arruamento que serve a moradia dos Autores e da própria moradia – cf. relatório pericial, a pág. 857 do processo no SITAF, fotografias, documentos n.ºs 3, 4 e 7, juntos com a petição inicial;
14. Alterando as vistas do prédio dos Autores – cf. fotografias, documentos n.ºs 5 e 6, juntos com a petição inicial;
15. Que se localizava-se numa zona rural, calma, aprazível, bucólica e saudável – cf. fotografias, documentos n.ºs 5 e 6, juntos com a petição inicial;
16. A proximidade da A... fez aumentar o ruído sentido no prédio dos Autores, resultante da passagem de veículos e da inexistência de barreiras sonoras;
17. Assim como aumentou a poluição, proveniente da queima de carburantes, com a consequente emissão de gases e a sua concentração;
18. Durante a construção da A..., foi instalado nas traseiras e ao lado do prédio dos Autores um aparcamento de maquinaria pesada, utilizada na construção da A... – cf. fotografias, documentos n.ºs 8 a 14, juntos com a petição inicial;
19. Que foi encerrado entre o 2º e 3º trimestres de 2009;
20. O que causou constantes ruídos incomodativos, poeiras, maus cheiros, resultantes dos carburantes emitidos pelas máquinas, bem como um forte impacto visual no prédio dos Autores e áreas envolventes;
21. Que, somado ao ruído resultante da proximidade da A..., produzido pelo tráfego automóvel;
22. Fizeram, e continuam a fazer, com que os Autores e seus familiares, sofram incómodos, arrelias e perturbações na sua vivência diária, designadamente, stress e insónias;
23. De acordo com a memória descritiva e justificativa do projeto de medidas de minimização do ruído da concessão ..., o imóvel dos Autores não se encontra numa zona de especial afetação pelo ruido da autoestrada, pelo que não existem nem foram projetadas a colocação de barreiras acústicas – cf. documento n.º 3, junto com a contestação da D...;
24. As obras da A... iniciaram-se durante o ano de 2009;
25. E terminaram em 11.10.2011, data da respetiva abertura ao trânsito;
26. Não foram instaladas barreiras acústicas;
27. A casa geminada à dos Autores encontrou-se, em 2014, à venda pelo preço de € 160.000,00 – cf. documentos n.ºs 1 e 2, juntos com a contestação da A...;
28. Entre o Estado Português, representado pelo Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças e pelo Secretário de Estado Adjunto, das Obras Públicas e das Comunicações, e a 3ª ré, A... – Auto-estradas do ..., SA, foi outorgado “contrato de concessão”, em 28.12.2007, ocupando esta a posição de concessionária, tendo por objeto, a conceção, projeto, construção, aumento do número de vias, financiamento, conservação e exploração do lanço de autoestrada A.../IC2 – São João da Madeira(ER327)/Carvalhos(IP1) – cf. contrato de concessão, a fls. 96 do processo físico;
29. No âmbito da execução do referido contrato, o 2º Réu exerceu as suas competências de gestão de contratos de concessão em que o Estado é concedente, ao abrigo do art.º 3º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 77/2014, de 14.05;
30. O 4º Réu é um agrupamento complementar de empresas, constituído, entre outras, com a interveniente, CC, a quem foi adjudicada a coordenação dos trabalhos de construção da A..., que subcontratou às agrupadas;
31. A construção da parte do lanço da A... que fica nas imediações do prédio dos Autores foi subcontratada à Interveniente;
32. O corredor ambiental para a construção da A... foi aprovado pela Agência Portuguesa do Ambiente, sob proposta da Estradas de Portugal, SA;
33. Tendo cerca de 400 metros de largura;
34. O traçado concreto da A... foi escolhido pela concessionária, aqui 3ª Ré, sujeita aos limites do corredor ambiental;
35. Que ocupa cerca de 55 metros daquele corredor, com a via e respetivos aterros;
36. No exercício da sua atividade, a Interveniente executou as obras de construção do lanço da A... em causa, em cumprimento do contrato de subempreitada que celebrou com a ré D...;
37. A ré A... – Auto-Estradas do ..., SA, foi citada a 21.10.2014 – cf. fls. 37 do processo físico;
38. A ré D... – ..., ACE, foi citada para a presente ação em 21.10.2014 – cf. AR, pág. 38 do processo físico;
39. A interveniente CC, foi citada para a presente ação em 12.03.2015 – cf. fls. 373 do processo físico;
40. A presente petição inicial deu entrada neste Tribunal em 1.10.2014 – cf. cf. fls. 1 do processo físico;
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Julgou-se não provado:
a) O valor do prédio dos Autores ascendia ao montante mínimo de € 200.000,00;
b) O prédio dos Autores perdeu qualquer possibilidade de vir a ser negociado com eventuais compradores;
c) Por força da construção da A..., o prédio dos Autores sofreu uma desvalorização;
d) Que ascende a € 70.000,00;
e) A casa geminada à dos Autores encontrou-se à venda em estado de abandono e degradação.
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A apelação:
Os autores vieram a juízo pedindo, em síntese, a respetiva condenação no pagamento das quantias de € 70.000,00, a título de danos patrimoniais, e de € 10.000,00, a título de danos não patrimoniais, alegando também em síntese, que são comproprietários, na proporção de ½ cada um, de um prédio urbano destinado à habitação, que, em consequência da construção da A…, sofreu uma grave e manifesta desvalorização, contendentes com a alteração das vistas e com o aumento exponencial do ruído e da poluição, traduzindo-se também numa degradação das suas condições de vida, sujeito a stress e insónias, verificadas desde que foi instalado nas traseiras e ao lado do prédio um estaleiro e maquinaria pesada para a construção da via, o que consubstanciam danos e encargos especiais e anormais.
→ Sobre os factos.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. (...)».
» Os factos sob 19. e 27 foram julgados como provados.
Sobre o primeiro ponto factual, os recorrentes oferecem que (cfr. corpo de alegações) «a única prova de tal facto foram as declarações da testemunha eng. DD, cujo depoimento se mostrou totalmente comprometido. Acresce que tal depoimento para alem de não ser peremptório quanto à data de encerramento, é contraditório com o espaço temporal em que o mesmo coloca a execução deste troço da A… «finais de 2008 a Setembro de 2011» (Cf. declarações prestadas em audiência) A testemunha EE, que frequentava diariamente a casa dos A. contraria tal facto.».
Os recorrentes remetem para dois testemunhos, gravados.
Mas ignora-se em que passagens do depoimento o recorrente se baseia, deficiência que - nem sequer atenuada por uma eventual transcrição dos excertos relevantes - inviabiliza o contraditório da contraparte e a análise pelo tribunal.
Pelo que se justifica a enunciada rejeição.
Sobre o segundo ponto factual, os recorrentes oferecem que (cfr. corpo de alegações) «O facto em causa é dado como provado com base nos documentos juntos na contestação da A..., que foram impugnados. Ora tal facto foi impugnado com o teor constante da alínea e) da matéria dada como não provada. Assim, não tendo sido produzida qualquer prova em julgamento, designadamente testemunhal, não deverá o mesmo ser dado como provado. Ou, caso tal não se entenda, deverá ser dado como provada a matéria constante da alínea e) da matéria dada como não provada.».
Não se coloca aqui mesma hipótese de aplicação do disposto no art.º 64º, n.º 2, a), do CPC, pois nada ancora em meio de prova gravado.
Apreciando do intrínseco mérito.
Numa primeira nota observar-se-á que nenhum préstimo - fora prova tarifada - tem a impugnação documental desacompanhada da própria impugnação factual.
Ainda assim, avançando.
A falta de prova testemunhal não é razão para modificar o decidido.
Suportam os recorrentes que “O facto em causa é dado como provado com base nos documentos juntos na contestação da A..., que foram impugnados”.
Foi, efectivamente, com essa base.
Verdade que os recorrentes impugnaram (cfr. resposta às contestações, em 12-01-2015).
Mas do que advém, documentos despojados de prova plena, é que ficam sujeitos à liberdade de julgamento; secundada a prova por tal critério, nada os recorrentes avançam que infirma.
Não promana, como que ao invés, que seja dada como provada a matéria constante da alínea e) da matéria dada como não provada; aliás distinta.
» Foram julgados como provados factos sob alíneas a), d), e d).
Os recorrentes apontam que devem ser julgados como provados; em relação ao primeiro com base no relatório de avaliação, também atendendo ao que a par se julgou como provado em dois pontos; em relação aos restantes, com base nesse relatório.
Mas os recorrentes demitem-se de elaborar crítica impugnatória; tudo em domínio de prova livremente valorada, que nem com concatenação com o mais apurado impõe juízo diverso.
→ Sobre o direito.
Os Autores sustentaram o pedido indemnizatório formulado no art.º 16º do RRCEE (Lei n.º 67/2007, de 31.12): “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado”.
No cerne do decidido, o tribunal “a quo” viu que:
«(…)
O art.º 2º do RRCEE define o que se deve entender como danos ou encargos especiais e danos ou encargos anormais, ao estabelecer que “Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afetarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito”.
Assim, por prejuízo especial entende-se aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa; por prejuízo anormal, aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a atividade lícita da Administração. Isto é, é a sua transcendência perante os encargos correntes, impostos a todos os que vivem em sociedade, que qualifica os prejuízos como indemnizáveis (Neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 15.03.2012, processo n.º 01290/06.0BEBRG).
Já não haverá responsabilidade indemnizatória por factos lícitos pelos prejuízos tidos como comuns – os que recaiam genericamente sobre todos os cidadãos ou sobre categorias amplas de pessoas, ou como normais – os que possam considerar-se habituais e aceitáveis dentro de um mínimo de risco que é próprio da vida em sociedade (Cf. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 3ª edição, vol. II, pág. 603). Deste modo, não serão indemnizáveis os prejuízos generalizados ou de pequena gravidade que devam ser entendidos como sendo normais como contrapartida dos benefícios que derivam do funcionamento dos serviços públicos, sob pena de fazer incorrer o Estado em encargos financeiros insuportáveis.
Descendo aos autos, os Autores, com a presente ação, pretendem ser ressarcidos por prejuízos quer de natureza patrimonial, contendentes com a desvalorização do imóvel, quer de natureza não patrimonial, relativos aos incómodos, arrelias e perturbações na sua vivência diária, designadamente stress e insónias.
Ora, por um lado, e conforme se extrai do probatório, não está provado nos autos que o prédio dos Autores sofreu uma desvalorização em resultado da construção da A….
Por outro lado, quanto aos danos não patrimoniais indemnizáveis pela atividade lícita do Estado, a lei remete para o tribunal o encargo de apreciar se o prejuízo concretamente alegado merece a tutela do direito, sendo irrelevantes os pequenos incómodos ou contrariedades, desgostos ou sofrimentos que resultem de uma sensibilidade exagerada ou anómala (cf. art.º 493º, n.º 1, do Código Civil). Ou seja, o dano não patrimonial deve ser aferido de modo objetivo, a partir de valorações ético-culturais aceites pela comunidade, num dado momento histórico, atendendo ao circunstancialismo do caso concreto, e não tanto a partir das perceções subjetivas do lesado (entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.07.2011, processo n.º 2619/05.4TVLSB.L1.S1 e de 26.06.2008, processo n.º 08B628).
Ora, a construção de uma autoestrada nas imediações de um prédio pode gerar incómodos, mormente derivados do aumento do ruído e da poluição – desde que não excedam os limites legais e recomendáveis –, assim como com a alteração da paisagem. Sucede que esses incómodos são normais da vida em sociedade, não ostentam gravidade suficiente, ao ponto de merecerem a tutela do direito, sob pena de banalização do instituto da responsabilidade civil.
Acresce que, uma avaliação objetiva das circunstâncias em causa nos presentes autos não permite concluir que as mesmas se revelem aptas a provocar o estado de stress e insónias dos Autores, apenas justificáveis pelas expectativas por eles geradas quanto à imodificabilidade das condições existentes nas imediações da sua habitação, sendo certo que, com a aquisição do respetivo prédio, os Autores não adquiriram, igualmente, a expectativa, merecedora de tutela, à manutenção dos prédios e terrenos vizinhos no estado em que se encontravam no momento da aquisição.
Assim sendo, é de concluir que os Autores não têm direito ao pagamento de quantia peticionada a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Por tudo o exposto, constata-se que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil invocada, restando julgar improcedente a presente ação.
(…)»
Afigura-se que se julgou correctamente.
Cfr. Ac. do STA, de 13-01-2022, proc. n.º 01279/14.6BEPRT:
«Resulta do exposto que os pressupostos em que assenta esta responsabilidade civil do Estado, por factos lícitos, são os seguintes:
(i) a prática de um acto lícito;
(ii) para satisfação de um interesse público;
(iii) causador de um prejuízo "especial" e "anormal";
(iv) existência de nexo de causalidade entre o acto e o prejuízo.
E entende-se por prejuízo especial aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma relativa posição específica; e por prejuízo anormal o que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração” - (cfr. acórdão do STA de 01.12.04, in proc. nº 0670/04).
Como refere António Dias Garcia, in: “Da Responsabilidade Civil Objectiva do Estado e Demais Entidades Públicas”, na compilação coordenada por Fausto Quadros, Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, 2ª edição, pág. 208 “... para que um prejuízo se possa ter como especial é necessário que se prove que um cidadão ou grupo de cidadãos, tenha sido, através de um encargo público, colocado em situação desigual em relação à generalidade das pessoas. Assim, o sacrifício será especial na medida em que viole o princípio da igualdade, a que a Administração Pública está vinculada na sua actuação (cfr. artigo 266º nº 2 da CRP).
É também o que resulta da jurisprudência dos Tribunais Superiores, designadamente deste Supremo Tribunal, já desde a vigência do DL nº 48051 de 21.11.1967.
Assim, a especialidade do dano decorre do desigual tratamento, que apenas atinge um ou alguns, no sentido de violar o princípio da igualdade, e a anormalidade resulta da sua gravidade intrínseca, não assimilável à normal compressão de direitos ou à imposição de pequenos encargos que a actividade administrativa e a vida em sociedade naturalmente comportam.
Trata-se, pois, de um dever de indemnizar que surge à margem de qualquer ilicitude ou censura jurídica, enquadrando-se apenas e só na circunstância de ter sido imposto ao administrado, em nome do interesse público, um sacrifício que ultrapassa os encargos normais da vida em sociedade ou de um sacrifício considerado grave e especial.
A nível da doutrina, refere o Prof. Gomes Canotilho, “O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos”, pág. 282/283: «(…) a exigência da anormalidade outra função não tem que salientar a importância, o peso que o sacrifício deverá ter para lhe ser atribuída relevância indemnizatória. Ora, a anormalidade do dano, de acordo com o já exposto, não pode nem deve substituir a necessidade da especialidade do prejuízo. Caso contrário, mesmo os danos generalizados de excepcional gravidade mereceriam tutela reparatória já que, sendo anormais, eram, ipso facto, especiais.
A ideia da exigência destes dois requisitos na responsabilidade objectiva só pode fundar-se na necessidade de um duplo travão ou limite: 1) – evitar a sobrecarga do tesouro público, limitando o reconhecimento de um dever indemnizatório do Estado ao caso de danos inequivocamente graves. 2) – procurar ressarcir os danos que, sendo graves, incidiram, desigualmente sobre certos cidadãos.
Introduzem-se, assim, dois momentos perfeitamente diferenciáveis: em primeiro lugar, saber se um cidadão ou grupo de cidadãos foi, através dum encargo público, colocado em situação desigual aos outros; em segundo lugar, constatar se o ónus especial tem gravidade suficiente para ser considerado sacrifício.»
É, assim, fundamento deste tipo de responsabilidade civil extracontratual o princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos, ou seja, a igualdade de contribuição dos cidadãos no suporte daqueles encargos. Por isso, se exige um prejuízo “especial”, não imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e determinada em função de uma específica posição relativa. E “anormal”, no sentido de não inerente aos riscos normais da vida em sociedade, suportados pela generalidade dos cidadãos.
Estarão, pois, afastados deste direito indemnizatório os danos gerais, normais ou comuns, ou seja, aqueles que recaem sobre a generalidade dos cidadãos, ou sobre grupos indeterminados e abstratos de pessoas, e que são considerados normais e inerentes ao risco próprio da vida em sociedade, constituindo como que “encargos sociais compensados por vantagens de outra ordem proporcionadas pela actuação da máquina estatal” (cfr. entre muitos outros, o Ac. deste STA de 10.10.2002, in rec. 048404, e os demais nele citados, bem como os Acs. de 02.12.2004, proc. 0670/04).».
Volvendo ao caso em mãos, não se nega a perturbação advinda para os autores/recorrentes no processo de construção e abertura da via.
Os factos sustentam.
Todavia, não se afigura, tal como também viu o tribunal “a quo”, que os prejuízos advindos possam reputar-se como um dano anormal.
Efectivamente, os sacrifícios impostos não ultrapassam os limites impostos pelo dever de suportar a actividade lícita da Administração.
Como tendencialmente acontecerá quando não ocorre dano especial (a intervenção suportável por todos mais se legitimará quanto menor for o sacrifício).
Dano especial de que o caso se encontra despojado.
De entre as circunstâncias apuradas avulta que: a A… dista 72 (setenta e dois) metros do tardoz dos anexos e limite do terreno do prédio dos autores; e a 100 (cem) metros da traseira do corpo principal da moradia.
Os prejuízos que possam resultar no processo construtivo e da implantação da obra, segundo padrão normal expectável, e para a generalidade de outros cidadãos em semelhante situações, não excedem ou ultrapassam aquilo que constitui o limiar dos custos próprios e normais e que são previsíveis na vida em sociedade.
Bem diferente de outros casos com diferentes distanciamentos à estrutura rodoviária só individualmente pesarosos.
Não se depara erro de julgamento na interpretação e aplicação de lei.
Sem que tenha de ser desaplicada: «Não basta invocar a verificação em abstrato de qualquer violação de princípio ínsito em lei ordinária ou inconstitucionalidade, importando que a sua verificação seja densificada e demonstrada, o que não ocorreu.
Assim, não é de conhecer por omissão de substanciação no corpo de alegação, a violação dos princípios Constitucionais, designadamente por interpretação desconforme mormente à Lei Fundamental, se o Recorrente se limita a afirmar a referida desconformidade de interpretação e de aplicação, sem apresentar, do seu ponto de vista, as razões de facto e de direito do discurso jurídico fundamentador nem, sequer, a modalidade a que reverte o vício afirmado» - Ac. deste TCAN, de 07-05-2021, proc. n.º 2035/15.0BEPNF.
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Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente.
Porto, 28 de Outubro de 2022.
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa