Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00364/05.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/05/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Margarida Reis
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL, IRC DE 1998, FACTO NEGATIVO, PROVA TESTEMUNHAL
Sumário:Estando em causa a produção de prova de um facto negativo, não pode o Tribunal a quo rejeitar o requerimento de produção de prova testemunhal da impugnante, e depois decidir em seu desfavor, com o argumento de que não logrou fazer prova. Ao não admitir a produção de prova testemunhal neste caso, a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, por incorreta interpretação da lei processual.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:F., Lda
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
F., Lda., com os demais sinais nos autos, inconformada com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação judicial por si deduzida, tendo por objeto a liquidação adicional de IRC do exercício de 1998, vem dela interpor o presente recurso jurisdicional.
A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
CONCLUSÕES

I. Na parte final da impugnação - em que se questiona se a Impugnante efectuou, ou não, um pagamento de rendimentos a entidade não residente - , foi indicada uma testemunha a inquirir, nos termos do disposto no art. 108.º, n.º 3, do CPPT.
II. A inquirição desta testemunha não foi realizada, tampouco foi proferido atinente despacho de indeferimento.
III. A produção dessa prova testemunhal foi ignorada e negligenciada pelo Tribunal “a quo”, que, sem dar à Impugnante a possibilidade de provar aquilo que alegou, veio a proferir sentença que julgou improcedente a impugnação.
IV. Segundo o art. 201.º do CPCivil (subsidiariamente aplicável, ex vi art. 2.º do CPPT), a omissão de um acto que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.;
V. A decisão (implícita, in casu) de dispensar a inquirição da testemunha é relevante, podendo influir decisivamente na decisão da causa.
VI. Ocorreu, assim, nulidade relativa ou secundária, cujo conhecimento depende de atempada arguição pela parte prejudicada, no prazo de 10 dias (art. 153.º, n.º 1, do CPCivil.
VII. A Impugnante só verdadeiramente tomou conhecimento da prática de tal nulidade com a notificação da sentença.
VIII. Sendo que, o recurso interposto da sentença é o meio adequado de reagir e de apreciar nulidades processuais anteriores à publicação daquela (neste sentido, Ac. STA de 30.01. 2002, no Rec. 26653, disponível em www.dgsi.pt).
IX. Por isso a presente arguição está em tempo e a via utilizada para o efeito é a própria.
X. Ainda que assim não fosse entendido, sempre teria ocorrido erro de julgamento por na douta sentença recorrida se ter julgado que não foi apresentada prova pela Impugnante.
XI. De facto, conclui-se à evidência que a Impugnante requereu a produção de prova testemunhal nos presentes autos.
XII. Ora, ao ignorar-se esse circunstancialismo e ao julgar-se que nenhuma prova foi oferecida pela Impugnante, provocou-se um défice instrutório susceptível de afectar a boa decisão da causa (posto que na sentença se julgou a impugnação improcedente por não provada), causa de anulação oficiosa da sentença nos termos do disposto no art. 712.º, n.º 4, do CPCivil, devendo ser dada à Impugnante a oportunidade de demonstrar os factos que alegou através da prova que requereu.
XIII. E assim, caso não procedesse a invocada nulidade secundária, sempre seria de anular a sentença recorrida, por défice instrutório, a fim de os autos serem instruídos com os indicados elementos de prova e outros que eventualmente viessem a mostrar-se necessários e úteis, após o que seria de proferir nova decisão de acordo com a prova produzida.”
Termina pedindo:
“Nestes termos, nos mais de Direito e com o douto suprimento do omitido, deve ser concedido provimento ao presente recurso, anulada a douta sentença recorrida e ordenada a remessa dos autos ao Tribunal “a quo”, para que complete a instrução do processo, proferindo, depois, nova decisão, como é de inteira JUSTIÇA.”

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A Recorrida não contra-alegou.
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido ser julgado procedente o recurso, determinando-se que a 1.ª instância proceda à inquirição da testemunha arrolada sobre a factualidade relevante alegada na Petição Inicial e proceda à prolação de nova decisão.
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Os vistos foram dispensados, com a anuência dos Juízes-Adjuntos.
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Questões a decidir no recurso
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso.
Assim sendo, importa analisar se a sentença recorrida padece de nulidade ou de erro de julgamento, ao ter dispensado a prova testemunhal oferecida pela Recorrente.

II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância em 2010-03-12, consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz na parte considerada pertinente:

3 – OS FACTOS:
Com interesse para a decisão da causa resulta apurada a seguinte factualidade:
a) A impugnante apresentou em 28/05/1999, para o ano de 1998, a declaração Modelo 130, ali declarando de rendimentos pagos a entidades não residentes, dentre as quais a sociedade E., LDA.
b) A Direcção de Serviços dos Benefícios Fiscais ao efectuar o controle da tributação de rendimentos pagos a não residentes, através da análise da declaração referida em a), detectou várias inexactidões, propondo correções às retenções na fonte do imposto, tendo em conta a aplicação indevida das normas previstas nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação (cf. doc. de fls. 24 do processo de reclamação graciosa apenso aos autos, doravante apenas PA).
e) A impugnante foi notificada para exercer o direito de audição prévia (cf. doc. de fls. 21 e 22 do PA).
d) Foi efectuada a liquidação n.º 642003439/2002, no total de € 85.336,90, sendo € 61.605,95 de imposto e €23.730,95 de juros compensatórios (cf. fls. 14 do PA).
e) Inconformada a impugnante apresentou reclamação graciosa onde solicita a anulação parcial da liquidação, no montante de € 38.350,41 de imposto, uma vez que aceitou a parte relativa aos agentes comerciais sediados na Dinamarca e Israel, então sem convenção (cf. doc. de fls. 3 a 12 do PA).
f) A reclamação foi apreciada e foi proposto o indeferimento parcialmente alegando-se que “Aos comissionistas, para a qual não há convenção em vigor, no ano de pagamento das comissões e, para os que o reclamante não apresentou certificado de residência, considera-se falta de retenção na fonte, no montante de €12.388,07” (cf. doc. de fls. 35 a 48 do PA).
g) Notificada, em 18/11/2004, através do ofício n.º 33349, para efeitos de audição prévia a impugnante veio alegar a errada inclusão da firma ET LET (PRSUM) LDA., com sede em Israel, na Declaração Modelo 130, uma vez que nada lhe foi pago (cf. doc. de fls. 53 do PA).
h) Não atendendo ao exposto pela impugnante na antecedente alínea, a reclamação foi parcialmente deferida (cf. doc. de fls. 55 do PA).
(…)

II.2. Fundamentação de Direito
A Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, por ter julgado improcedente a impugnação judicial que interpôs contra o ato de liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 1998 por considerar que a mesma não cumpriu o seu ónus de provar os factos que alegou sem ter promovido a inquirição da testemunha indicada, ou “tampouco (…) proferido atinente despacho de indeferimento”.
Considera que está em causa uma nulidade secundária, nos termos do disposto no art. 201.º do CPC (subsidiariamente aplicável, ex vi art. 2.º do CPPT), e ainda que assim não se entenda, que se verifica um erro de julgamento “por na douta sentença recorrida se ter julgado que não foi apresentada prova pela Impugnante”.
Vejamos.
Na impugnação judicial a Recorrente peticionou a anulação parcial da liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 1998, com fundamento na “inexistência de facto tributário no que respeita a um alegado rendimento de 9.949.455$00 (= 49.627,67 Euros) por verificar que este não chegou a ser pago nem colocado à disposição da empresa E., LDA.” (cf. art. 2.º da sua petição inicial).
Com efeito, alegou perante o Tribunal a quo que embora tenha feito constar a empresa E., LDA entre os beneficiários de comissões na Declaração Modelo 130, não chegou a ser pago por si qualquer montante à mesma, e que o preenchimento da referida Declaração se deveu à circunstância de nela terem sido incluídos todos os valores creditados aos comissionistas, independentemente do seu efetivo pagamento. Não tenho ocorrido qualquer pagamento, entende que também não tinha obrigação de efetuar a correspondente retenção na fonte.
A sentença recorrida julgou a ação improcedente, fundada na falta de prova produzida pela Recorrente.
Ora, em face das circunstâncias descritas, não pode deixar de se dar razão à Recorrente.
De facto, não podia a decisão em crise ter julgado a impugnação improcedente com fundamento na falta de cumprimento do ónus da prova da Recorrente sem ter diligenciado ouvir a testemunha por ela indicada, tanto mais que em causa estava a prova de um facto negativo, cuja dificuldade acrescida exige da parte do julgador uma maior flexibilidade na aceitação da respetiva demonstração.
Nesse sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão proferido em 2008-12-17, no proc. 0327/08 (disponível para consulta em www.dgsi.pt/jsta), cuja argumentação aqui se acompanha, ali se frisando que “a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur»”.
No entanto, e quanto à qualificação do vício apontado pela Recorrente à sentença sub judice, importa esclarecer que em causa não está uma nulidade processual, mas sim, um erro de direito no julgamento, originado pela incorreta interpretação da lei processual.
Também neste sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão proferido em 27-11-2013 no proc. 01159/09, jurisprudência na qual nos revemos inteiramente, e que vai no sentido de que “A falta de inquirição das testemunhas arroladas não consta do rol de nulidades insanáveis do art. 98º do CPPT nem constitui uma nulidade processual à luz do art. 201º e segs. do CPC, na medida em que a lei não prescreve que deva ter sempre lugar a produção de prova, antes conferindo ao juiz o poder de ajuizar da necessidade da sua produção; pelo que não havendo essa imposição legal, se o juiz dispensa a produção de prova não se pode dizer que foi preterida uma formalidade legal. O que não obsta a que a omissão de diligências de prova possa afectar o julgamento da matéria de facto e acarretar, nessa medida, a anulação da sentença por défice instrutório”.
Ora, estando o cerne da questão a decidir precisamente no apuramento da existência ou não do referido pagamento, há que concluir que estamos perante um erro de julgamento, por incorreta interpretação da lei processual, que não legitimava neste caso a rejeição da prova testemunhal, erro esse gerador de um défice instrutório, que se reflete na decisão da matéria de facto em apreço.
Assim sendo, deve a sentença recorrida ser anulada, nos termos do disposto no artigo 712.º, n.º 4 do CPC, na redação anterior à alteração introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 (aqui aplicável atendendo a que a ação de impugnação em causa foi interposta em 2005-01-18, data anterior a 2008-01-01, e a decisão recorrida foi prolatada antes de 2013-09-01, nos termos do disposto no art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013), aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, de modo a permitir que, no tribunal recorrido, seja promovida a inquirição da testemunha arrolada pela impugnante e feitas as demais diligências probatórias que se mostrem adequadas e necessárias ao esclarecimento deste aspeto.
Com efeito, e para além do mais, deverá o Tribunal ad quem ter em consideração que atendendo ao disposto no art. 99.º, n.º 1 da LGT, e art. 13.º, n.º 1 do CPPT, o princípio do inquisitório enforma toda a atividade instrutória no processo judicial tributário, sendo a base normativa de toda a atividade instrutória (cf. neste sentido BASTOS, Nuno – O Princípio do Inquisitório no Processo Tributário, in AAVV - A Prova no Processo Tributário. Lisboa: CEJ, 2017. Disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_Prova _PT2017.pdf).
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No que diz respeito à responsabilidade por custas, em face da decisão de procedência, a Fazenda Pública decai no presente recurso, pelo que é sua a responsabilidade pelas custas.
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Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

Estando em causa a produção de prova de um facto negativo, não pode o Tribunal a quo rejeitar o requerimento de produção de prova testemunhal da impugnante, e depois decidir em seu desfavor, com o argumento de que não logrou fazer prova. Ao não admitir a produção de prova testemunhal neste caso, a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, por incorreta interpretação da lei processual.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, e em consequência anular a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos à primeira instância, para que seja suprido o défice instrutório supra identificado e após, proferida nova decisão.
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Custas pela Fazenda Pública.
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Porto, 5 de novembro de 2020

Margarida Reis (relatora) - Cláudia Almeida - Paulo Moura