Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00968/10.9BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/12/2019
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PENA DE DEMISSÃO; INVIABILIZAÇÃO DA RELAÇÃO FUNCIONAL.
Sumário:
É de anular um acto que aplicou a pena de demissão ligando automaticamente essa consequência jurídica à verificação de um determinado facto sem ponderar se as circunstâncias concretas do caso, pela sua gravidade, inviabilizam a manutenção da relação funcional. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:CHDV, E.P.E.
Recorrido 1:EMAA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer pugnando pela manutenção da decisão recorrida
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

CHDV, E.P.E., veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença de 10.05.2017 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, pela qual foi julgada procedente a acção administrativa especial que EMAA intentou contra o Recorrente, com vista à anulação da deliberação de 10.02.2010, do Conselho de Administração do Recorrente, que lhe aplicou, na sequência de processo disciplinar, uma pena de demissão, nos termos da alínea o) do artigo 18º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas.
Invocou para tanto e em síntese que o processo disciplinar não enferma de nenhuma irregularidade ou nulidade, não se verificando o vício de violação de lei em que se funda a decisão recorrida para anular a deliberação impugnada.
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1. O processo disciplinar não enferma de nenhuma irregularidade ou nulidade, ao contrário do que entendeu a sentença recorrida.
2. A acusação movida contra a recorrida cumpre com o preceituado no artigo 48º/3 do ED, possuindo em si todos os elementos essenciais aí exigidos, nomeadamente a indicação dos factos integrantes da mesma, as circunstancias de tempo, modo e lugar da prática das infracções e das que integram atenuantes e agravantes, fazendo também referência aos preceitos legais respectivos e às penas aplicáveis.
3. Para além disso, a acusação cumpre com a sua função principal, conforme é jurisprudencialmente referido, que é a de dar a conhecer à arguida os factos que lhe são imputados de modo a que esta possa reagir contra tais imputações e exercer esclarecidamente o seu direito à defesa.
4. O que a recorrida fez, pois exerceu cabalmente esse direito, demonstrando ter compreendido perfeitamente o teor da acusação e o que se discutia no seu âmbito.
5. E fê-lo sem que houvesse alguma vez suscitado qualquer tipo de nulidade da acusação até à deliberação final, o que, por força do preceituado no artigo 37º/2 do ED, leva a que, a existir a alegada nulidade, a mesma se teria que dar como suprida, pelo que a sentença violou o indicado artigo.
6. Por sua vez, a acusação e o Relatório Final realizado pela Sra. Instrutora nomeada está em perfeito cumprimento com o disposto no artigo 18º do ED, nomeadamente no que se refere à demonstração da inviabilização da manutenção da relação funcional, porquanto é a mesma manifesta.
7. Com efeito, dos factos transcritos nos referidos articulados e de toda a prova produzida no processo disciplinar em crise, é notório que a referida relação se encontra impossibilitada de subsistir, e o elemento subjectivo da inviabilidade da manutenção da relação funcional, que funciona como pressuposto da aplicação da medida da pena de demissão, encontra-se devidamente ponderado pela Sra. Instrutora.
8. A conduta ímproba da recorrida não só abalou a relação de confiança com a entidade patronal, como também a existente com os seus colegas de trabalho.
9. Está aqui efectivamente posto em causa o interesse público da administração de cuidados de saúde, pois não haverá ninguém que compreenda como é que, mormente numa área tão sensível e universal como é a da saúde, e perante a gravidade do comportamento da recorrida, possa a mesma se manter a trabalhar no CHEDV, por o processo disciplinar de que foi alvo não ser válido por meras questões de interpretação de formalismo exacerbadas, não obstante o processo disciplinar estar de acordo com a lei.
10. Como é jurisprudencialmente inculcado, neste tipo de processos disciplinares haver uma maior flexibilidade formalística e menor exigência de rigor, e, por via disso, em relação a determinadas infracções, por serem muito graves, o que é o caso, não é exigível que a demonstração do indicado elemento seja feita de forma elevada, mas sim mais ligeira ou quase inexistente, através, também, de juízos implícitos.
11. Pelo que carece a sentença de razão ao afirmar que não se encontra demonstrado no processo disciplinar em crise que a relação funcional não é mais viável.
12. Resulta ainda provado no processo disciplinar que a recorrida se apropriou do medicamento psicotrópico Petidina.
13. Com efeito, quer no processo de inquérito quer no subsequente processo disciplinar, constam diversos elementos de prova dos factos imputados à recorrida e que aparecem mencionados quer no relatório do instrutor do Processo de Inquérito, quer no Relatório Final da Sra. Instrutora do Processo Disciplinar.
14. Aliás foi confessado pela recorrida que nos dias 28, 29 e 30 de Setembro de 2009 retirou três unidades do estupefaciente Petidina e que assinou em nome dos seus colegas, sem conhecimento destes e sem as suas autorizações, criando depois uma estória na tentativa de disfarçar e encobrir a situação, a qual notoriamente não corresponde à verdade.
15. Analisada toda prova de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e segundo as regras da razoabilidade, experiência e razão, o juízo feito pela Sra. Instrutora traduz-se na única leitura possível face à matéria factual existente, pelo que o mesmo não deve ser alvo de censura, carecendo, também aqui, a sentença de razão.
16. Pelo exposto, impõe-se a revogação da sentença recorrida, julgando válida a deliberação impugnada quanto aos indicados vícios.
17. Em conformidade com o artigo 149º do CPTA, cumpre ainda abordar os restantes vícios apontados pela recorrida na petição inicial.
18. Não tem razão a recorrida ao dizer que no processo disciplinar ocorreu uma omissão de diligências por parte da Sra. Instrutora que não teria requerido exames às faculdades mentais da arguida nos termos do art. 50º/4 do ED.
19. Com efeito, esse preceito dispõe que «Quando o instrutor tenha dúvidas sobre se o estado mental do arguido o inibe de organizar a sua defesa, solicita uma perícia psiquiátrica nos termos do n.º 6 do artigo 159.º do Código de Processo Penal, aplicável com as necessárias adaptações.»
20. Ou seja, os pressupostos da realização da diligência em causa por iniciativa do instrutor do processo disciplinar são a existência de dúvidas sobre se o estado mental do arguido o inibe de organizar a sua defesa, o que manifestamente não é o caso, pois a recorrida prontamente constitui advogado após ser notificada da acusação, que consultou o processo e apresentou a sua defesa, pelo que não há qualquer indício ou conduta por parte da recorrida indiciadora de o seu estado mental a inibir de organizar a sua defesa, pois comportou-se como pessoa com plena capacidade jurídica.
21. A recorrida invoca ainda que no Relatório Final é feita menção a circunstância agravante não mencionada na acusação, e, por isso, não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar na defesa sobre tal circunstância agravante.
22. Não é porém verdade, pois da acusação emanam factos que integram a circunstância da recorrida ter o dever de prever a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço como consequência necessária da sua conduta, nomeadamente ao nela se fazer expressa menção (itens 1º, 14º e 15º) de que a arguida exercia funções de enfermeira, sabia que a Petidina é um estupefaciente propriedade do CHEDV pelo que não lhe pertencia e não podia dispor dela e que, apesar disso, a recorrida de forma deliberada, livre e consciente, valendo-se das suas funções e da confiança que nela era depositada, apropriou-se daqueles estupefacientes em seu benefício, como se fossem seus, prejudicando o recorrente, pelo que a mesma teve oportunidade de versar sobre os mesmos.
23. Ademais, refira-se que o enquadramento jurídico advindo da indicada circunstância agravante não foi relevante para chegar à conclusão de demissão da recorrida, pois antes de se ter em conta o mesmo, já se concluíra pela impossibilidade da manutenção da relação funcional, pois foram os comportamentos da arguida e a circunstância de lhe ter já sido aplicada a pena de suspensão que levaram, por si só, à decisão expulsiva.
24. A recorrida diz também no item 78 da petição inicial que há mais matéria nova no Relatório Final relativamente à acusação, sobre a qual não teve oportunidade de se pronunciar na defesa, pelo que houve violação de lei por falta de audiência da recorrida, o que, salvo melhor opinião, não se verifica.
25. Assim, quanto à violação do dever de isenção, todos os factos referidos na acusação em que se imputa à recorrida a apropriação do estupefaciente Petidina e em especial nos art. da acusação nos quais se refere as funções de enfermeira exercidas pela recorrida (item 1 da acusação), por virtude das quais tinha acesso àquele estupefaciente (item 6) e que dele se apropriou em seu benefício, sabendo que não lhe pertencia (itens 6, 9, 13, 14), com isso prejudicando o recorrente (item 15), são factos concretos constantes da acusação que integram comportamentos violadores do indicado dever de isenção, dos quais resulta suficientemente identificado, nomeadamente, o dever profissional de isenção pela recorrida, factos sobre os quais, como é visível, teve a mesma oportunidade de se pronunciar, pelo que não há violação do direito de audiência e de defesa da recorrida.
26. Quanto ao facto de a recorrida ter demonstrado incumprimento de normas essenciais reguladoras do serviço, tendo da sua actuação resultado prejuízo para o mesmo, os factos integradores desta conclusão constam dos itens 4 a 16 da acusação.
27. Quanto ao facto de que a recorrida fez uso de bens pertencentes ao recorrente que lhe estavam confiados para fim diferente daquele a que se destinavam, os factos integradores desta conclusão constam dos itens 5, 6, 9, 13, 14 e 15 da acusação.
28. Quanto ao facto de a recorrida ter agido com intenção de obter para si um benefício económico ilícito, faltando aos respectivos deveres funcionais, mediante o extravio desses interesses funcionais que, em razão das suas funções, lhe competia administrar e defender, os factos integradores desta conclusão constam dos itens 1, 4 a 6, 8, 9, 12 a 16 da acusação.
29. A recorrida alega, por fim, não se verificar no processo disciplinar a existência de um benefício económico ilícito que pretendesse obter pelo que há violação da lei por erro nos pressupostos de facto, o que não corresponde à verdade como resulta da prova produzida.
30. Com efeito, é notório que a recorrida usou a sua função, para um fim inadequado e censurável, como é o de obter uma vantagem, um benefício económico ilícito, ao apropriar-se de medicamentos estupefacientes do recorrente, sujeitos a receita médica, guardados em cofre com segredo e destinados a administração aos doentes, como bem sabia a recorrida, e da simples apropriação dos mesmos resulta já uma obtenção de benefício económico ilícito.
31. Do exposto, e ao contrário do que alega a recorrida, o acto punitivo é inteiramente legal e os pressupostos da al. o) do nº 1 do artigo 18º encontram-se preenchidos.
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II –Matéria de facto.
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:
A) A Autora é Enfermeira Graduada, integrada no Mapa de Pessoal do CHDV, E.P.E.
B) Tendo exercido, até 27.05.2010, funções na Unidade de S SJM.
C) Em 19.11.2009, na sequência de processo de inquérito, foi instaurado pela Entidade Demandada um processo disciplinar contra a Autora, processos que dou aqui por integralmente reproduzidos.
D) Processo disciplinar que culminou com a aplicação à Autora de uma pena de demissão, ao abrigo do disposto na alínea o), do artigo 18º do Estatuto Disciplinar, cuja deliberação dou aqui por integralmente reproduzida – deliberação impugnada.
E) A Autora interpôs recurso hierárquico, que foi indeferido por despacho de 24.05.2010 do Secretário-Geral da Saúde.
F) Na acusação deduzida contra a Autora, a Senhora Instrutora referiu o seguinte (alínea C) do probatório):
«ICDN, Administradora Hospitalar de 2ª classe do Mapa de Pessoal do CHDV, nomeada Instrutora do Processo Disciplinar nº 01/2009, conforme deliberação do Conselho de Administração do CHDV, datado de 19 de Novembro de 2009, vem ao abrigo do disposto no nº 4 do artº 68º da Lei nº 55/2008 de 9 de Setembro (Estatuto Disciplinar), deduzir a acusação contra EMAA, Enfermeira do Mapa de Pessoal do referido Centro Hospitalar, com base nos seguintes fundamentos:
Artº 1
A arguida é Enfermeira e exerce a sua profissão no CHDV, na Unidade de SJM.
Artº 2º
No dia 28 de Setembro de 2009, no período compreendido entre as 15.00 horas e as 22.00 horas (turno da tarde), a arguida prestou funções no Serviço de Especialidades Cirúrgicas da unidade de SJM, conforme cópia da escala da Carreira de Enfermagem, folha 22 dos autos.
Artº 3º
Durante a realização deste turno, a arguida procedeu ao registo de uma saída do estupefaciente Petidina.
Artº 4º
Para o efeito, a arguida preencheu o respectivo registo, escrevendo o nome do doente, o número do respectivo Processo Clínico e a quantidade de medicamento retirada utilizando a rubrica habitual da Enfermeira MAS, conforme resulta de folha 25 dos autos.
Artº 5º
Para além disso, procedeu ainda a arguida ao registo de administração do referido estupefaciente ao doente da cama 20 sem que a mesma tivesse ocorrido, tendo utilizado uma rubrica não identificável, conforme resulta de folhas 10 dos autos.
Artº 6º
A arguida retirou aquele estupefaciente, que pela sua natureza e composição se encontra guardado no cofre existente na Sala de Trabalho do Serviço, provido de segredo e de acesso restrito ao pessoal de Enfermagem, tendo ficado com ele sua posse, fazendo-o seu, apesar de saber que não lhe pertencia.
Artº 7º
No dia 29 de Setembro de 2009, no período compreendido entre as 15.00 horas e as 22.00 horas (turno da tarde), a arguida prestou funções no Serviço de Especialidades Cirúrgicas da unidade de SJM, conforme cópia da escala da Carreira de Enfermagem (folha 22 dos autos).
Artº 8º
Para o efeito, a arguida preencheu o respectivo registo, escrevendo o nome do doente, o número do respectivo Processo Clínico e a quantidade de medicamento retirada utilizando a rubrica habitual da Enfermeira MVPP (conforme resulta de folha 25 dos autos.
Artº 9º
Também neste caso, a arguida retirou aquele estupefaciente, que pela sua natureza e composição se encontra guardado no cofre existente na Sala de Trabalho do Serviço, provido de segredo e de acesso restrito ao pessoal de Enfermagem, tendo ficado com ele na sua posse, fazendo-o seu, apesar de saber que não lhe pertencia.
Artº 10º
Na noite de 30 de Setembro de 2009, no período compreendido entre as 22.00 horas deste mesmo dia e as 08.00 horas do dia 1 de Outubro, (turno da noite), a arguida prestou funções no Serviço de Especialidades Cirúrgicas da unidade de SJM, conforme cópia da escala da Carreira de Enfermagem, folha 22 dos autos.
Artº 11º
Durante a realização deste turno, a arguida procedeu ao registo de uma saída do estupefaciente Petidina.
Artº 12º
Para o efeito, a arguida preencheu o respectivo registo, escrevendo o nome do doente, o número do respectivo Processo Clínico e a quantidade de medicamento retirada utilizando a rubrica habitual da Enfermeira AP.
Artº 13º
Também neste caso, a arguida retirou aquele estupefaciente, que pela sua natureza e composição se encontra guardado no cofre existente na Sala de Trabalho do Serviço, provido de segredo e de acesso restrito ao pessoal de Enfermagem, tendo ficado com ele na sua posse, fazendo-o seu, apesar de saber que não lhe pertencia.
Artº 14º
A arguida sabia que a Petidina é estupefaciente, propriedade do CHDV, pelo que não lhe pertencia e não podia dispor dele.
Artº 15º
Apesar disso, a arguida de forma deliberada, livre e conscientemente, valendo-se das suas funções, e na confiança que nela era depositada, apropriou-se daqueles estupefacientes em seu benefício, como se fossem seus, prejudicando o CHDV.
Artº 16º
Para além disso, procedeu ao registo de saída do estupefaciente Petidina, escrevendo e preenchendo-o com os elementos obrigatórios e colocou as rúbricas dos seus colegas de trabalho.
Dos factos enunciados resulta que a arguida violou designadamente os deveres de prossecução do interesse público, previsto na alínea a) do nº 1 do artº 3º; o dever de zelo, previsto na alínea e) do nº 1 do artº 3º; o dever de obediência, previsto na alínea f) do nº 1 do artº 3º; o dever de lealdade, previsto na alínea g) do nº 1 do artº 3º, e o dever de correcção previsto no nº 1 do artº 3, todos do Estatuto Disciplinar.
Pela prática dos factos atrás enumerados a arguida incorre numa pena de demissão prevista no artº 18º do Estatuto Disciplinar.
CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES
Constitui circunstância agravante a aplicação de uma pena de suspensão de funções, pelo período de 30 dias, com início a 15 de Fevereiro de 2001, cujo registo consta do respetivo Processo Individual.
CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES
Constitui circunstância atenuante a confissão espontânea dos factos descritos nos artigos 4º e 12º da Acusação.
À arguida é fixado o prazo de vinte dias úteis, nos termos do nº 1 do artº 49º do Estatuto, a contar do recebimento deste Despacho de Acusação, para, querendo, apresentar a sua defesa escrita e quaisquer elementos de prova que repute relevantes.
CHDV, 26 de Novembro de 2009…».
G) Depois de a Autora ter apresentado a sua defesa, na qual juntou um documento intitulado “Informação Clínica de EMAA”, de terem sido inquiridas duas testemunhas e de terem sido efetuadas diligências de consulta de registos de enfermagem de processos clínicos, conforme auto de diligências junto ao processo disciplinar (alínea C) do probatório), no relatório final a Senhora Instrutora referiu o seguinte:
«CONCLUSÕES QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
Tendo em conta a matéria constante nos autos, mostra-se provado, com relevância para a decisão do caso, a seguinte matéria de facto:
- Utilização da rubrica habitual da Enfermeira Graduada MASP, no dia 28 de Setembro de 2009, constante do artº 4º da Acusação, por confissão, conforme o artº 5º da Defesa;
- Registo de uma administração de Petidina no dia 28 de Setembro de 2009, sem que a mesma tivesse ocorrido, constante do artº 5º da Acusação, por confissão, conforme o artº 7º da Defesa;
- Utilização da rubrica habitual da Enfermeira Graduada AFP, no dia 30 de Setembro de 2009, constante do artº 12º da Acusação, por confissão, conforme o artº 20º da Defesa;
- Apropriação indevida de uma ampola de Petidina no dia 28 de Setembro de 2009, conforme artº 6º da Acusação;
- Apropriação indevida de uma ampola de Petidina no dia 29 de Setembro de 2009, conforme artº 9º da Acusação, uma vez que nos registos de enfermagem da doente CB, folhas 2 e 7 dos autos, não existe evidência de lhe ter sido administrado o referido estupefaciente, nem elementos que demonstrem a necessidade de administração do mesmo face à informação constante dos referidos registos;
- Apropriação indevida de uma ampola de Petidina no dia 30 de Setembro de 2009, conforme artº 13º da Acusação. A confissão espontânea de que ao pretender encobrir o incidente terá registado a administração do medicamento à doente CB, sem que tal tivesse ocorrido, não corresponde à verdade, pois que na folha 9 dos autos, correspondente ao Processo Clínico desta doente, não consta qualquer registo nesse sentido.
CONCLUSÕES QUANTO AO DIREITO
Qualificação jurídico-disciplinar
Do comportamento descrito nos artºs 4º, 5º e 12º da Acusação, resulta que a Arguida violou, designadamente, o dever de zelo e o dever de obediência, previstos nos nºs 7 e 8 do art 3º do ED, demonstrando incumprimento de normas essenciais reguladoras do serviço, tendo da sua actuação resultado prejuízo para o mesmo (alínea d) do artº 17º ED), fazendo ainda uso de bens pertencentes ao Centro Hospitalar que lhe estavam confiados para fim diferente daquele a que se destinava (alínea n) do artº 17º ED), incorrendo numa pena de suspensão, conforme previsto na alínea d) do artº 7º do ED.
Do comportamento descrito nos artºs 6º, 9º e 13º da Acusação, resulta que a Arguida violou o dever de isenção previsto no nº 4 do art 3º do ED, agindo com intenção de obter para si um benefício económico ilícito, faltando aos respectivos deveres funcionais, mediante o extravio de interesses patrimoniais que, em razão das suas funções, lhe competia administrar e defender, incorrendo numa pena de demissão, conforme previsto na alínea o) do nº 1 do artº 18º do ED.
Acresce ainda que os factos provados demonstram a existência de vários ilícitos criminais, envolvendo colegas de trabalho através da utilização do seu nome e rubrica.
Estes factos são também elementos integradores da pena de demissão da Arguida.
Consideram-se circunstâncias agravantes a existência no respectivo Processo Individual de uma pena de suspensão de funções pelo período de 30 dias, no ano 2001, bem como o dever que recaia sobre a Arguida, de prever a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço como consequência necessária da sua conduta, conforme resulta da alínea b) no nº 1 do artº 24º do ED.
Consideram-se circunstâncias atenuantes a confissão espontânea das infracções descritas nos artºs 4º, 5º, 8º e 12º da Acusação.
A Defesa alega a existência de perturbações mentais da Arguida decorrentes de uma depressão major contraída há vários anos. Este quadro clínico encontra-se devidamente justificado por uma declaração médica, a qual refere que a Arguida vem sendo acompanhada desde o ano de 2002 devido a Síndroma de dependência de álcool.
A referida declaração médica considera ainda que a manutenção do posto de trabalho “tem sido um factor de equilíbrio muito importante”, dado que a Arguida é uma pessoa frágil do ponto de vista emocional e com elevados níveis de ansiedade. Acrescenta ainda que a retoma da actividade profissional se afigura muito importante para a Arguida, devendo no entanto a mesma poder desenvolver a respectiva actividade num local que “não seja muito gerador de ansiedade e em que não esteja exposta a factores de risco em relação à dependência”.
Tal significa que a Arguida vem sendo acompanhada há pelo menos 8 anos devido a um quadro clínico de dependência de álcool. Contudo, na respectiva Defesa, a Arguida embora apresente a confissão relativamente à utilização indevida das rubricas das colegas, optou por não adoptar idêntica postura relativamente à dependência do álcool.
Ora, tal atitude pode indiciar uma insensibilidade face à aplicação de medidas de carácter correctivo.
Recorde-se que a arguida conta com um registo de uma pena de suspensão de 30 dias no respectivo Processo Individual, não tendo esta pena produzido alterações no respectivo comportamento profissional.
PROPOSTA
De acordo com o exposto, propõe-se:
1 – Seja aplicada à Arguida a pena de demissão, nos termos do disposto no artº 3º nºs 4, 7 e 8; artº 24º nº 1 alínea b) e artº 18º alínea o) do ED;
2 – Sejam notificados, nos termos habituais, do presente relatório final e do despacho que sobre ele vier a recair, a Arguida e respectivo Mandatário, o Participante e o Instrutor…».
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III - Enquadramento jurídico.
1. O não conhecimento do objecto do recurso.
Sustenta o Ministério Público junto deste Tribunal que o Recorrente deve ser “convidado o recorrente para, no prazo de 10 dias, completar e esclarecer as suas conclusões, indicando quais os vícios e normas jurídicas que foram violados, que, no seu entender, inquinam a sentença recorrida, face aos fundamentos desta, sob pena de não se conhecer do mesmo, nos termos do Art. 146º nº 4 do CPTA.
Não se justifica, no entanto, tal convite.
O recurso tem por fundamento, levado às conclusões, o erro de julgamento ao considerar, a decisão recorrida, que não ficou demonstrada, com factos, a inviabilidade da relação da manutenção da relação funcional, e, com esse fundamento, ter julgado procedente a acção de anulação.
Impõe-se por isso, sem mais, conhecer do objecto do recurso.
2. O acerto da decisão recorrida.
É o seguinte o teor fundamentador da decisão recorrida:
“Na esteira do decidido pelo Venerando Tribunal Central Administrativo Sul, em 14/10/2010, no Processo 06525/02, que com a devida vénia ao seu Relator passo a citar o seu sumário «Tendo sido aplicada ao arguido a pena de demissão, configuram a nulidade insuprível do processo disciplinar, prevista no artigo 42º nº1 ED, as deficiências da acusação consistentes na falta de discriminação precisa dos factos que constituem a infracção; na falta de referência aos preceitos legais que tipificam essas infracções e prevêem a correspondente pena; e, finalmente, na falta de menção à possibilidade de tais factos inviabilizarem a manutenção da relação funcional.».
Preceituava o artigo 48º, nº 3, do ED, sob a epígrafe “Termo da instrução”, que «A acusação contém a indicação dos factos integrantes da mesma, bem como das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infracção e das que integram atenuantes e agravantes, acrescentando sempre a referência aos preceitos legais respectivos e às penas aplicáveis.».
Assim, no âmbito de um processo disciplinar, a acusação deve conter a indicação:
(i) dos factos integrantes da mesma
(ii) das circunstâncias de tempo, modo e lugar da prática da infração e das que integram atenuantes e agravantes
(iii) a referência aos preceitos legais respetivos e às penas aplicáveis.
Conforme resulta do douto acórdão do Colendo Supremo Tribunal Administrativo, de 06/05/2010, Processo 0709/09, que com a devida vénia ao seu Relator passo a citar o seguinte trecho «…Este Supremo Tribunal vem afirmando, pacificamente, que a acusação formulada no processo disciplinar deve indicar de forma clara e concisa os factos concretos que suportam a imputação infraccional, as circunstâncias em que ocorreram, as atenuantes e agravantes verificadas, os normativos que os punem e a pena que lhes corresponde e que se tal não acontecer se verifica a nulidade prevista no art.º 42.°/1 do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo DL 24/84, de 16/01. E isto porque uma das funções da acusação é a de dar a conhecer ao arguido os factos que lhe são imputados de modo a que este possa reagir contra tais imputações e exercer esclarecidamente o seu direito de defesa. Todavia, isso não significa que dela devam constar todos os factos que se tenham apurado visto que também tem sido dito que a acusação não sofre do apontado vício se, independentemente de alguma deficiência narrativa e/ou de particularização, satisfizer o mínimo indispensável que possibilite ao arguido compreender o seu sentido e defender-se eficazmente. Com efeito, como o Pleno deste Tribunal já assinalou «... os processos disciplinares não estão sujeitos às férreas exigências de rigor técnico-jurídico dos processos criminais, não só devido à distinta natureza dos interesses em presença, mas também porque seria excessivo impor aos instrutores daqueles processos uma proficiência pensada para a magistratura. Consequentemente, a circunstância de a acusação carecer de referências expressas ao conhecimento, por parte do arguido, das circunstâncias que rodearam a acção e à sua vontade de realizar as condutas que lhe eram atribuídas não acarretava a conclusão automática de que a respectiva responsabilidade disciplinar seria necessariamente indetectável, por falta do seu necessário elemento subjectivo. E, exactamente ao invés, deverá considerar-se que a imputação dessa responsabilidade foi suficientemente feita se os termos da acusação, ainda que através de juízos implícitos, inequivocamente a revelarem.» - Acórdão de 11/12/2002, (rec. n.º 38.892) No mesmo sentido podem ver-se, entre outros, Acórdãos de 16/01/99, (rec.º n.° 38869) de 25/01/2005, (rec.º 729/04) de 31/10/2006, (rec.º n.° 1276/05), de 17/01/2007 (rec.º 0820/06), de 13/02/2008 (rec.º 167/07) e de 4/02/2010 (rec.º 849/08).
O que significa que o rigor técnico-jurídico exigido para os processos penais não é inteiramente transponível para os processos disciplinares e que, por ser assim, a acusação formulada nestes últimos se basta com os elementos referidos no transcrito normativo do ED, por eles serem os únicos essenciais e serem indispensáveis para que o arguido conheça aquilo de que, verdadeiramente, é acusado por forma a poder defender-se eficazmente. Daí que, muito embora se exija que a mesma identifique os factos com clareza e exactidão de modo a impedir que o arguido os represente erradamente, não é exigível que ela seja uma descrição pormenorizada da factualidade apurada e das circunstâncias em que ocorreu…».
Ora, aplicando a jurisprudência acabada de citar ao caso dos presentes autos, que ocorre no âmbito de um processo disciplinar, conclui-se que devem constar pelo menos da acusação os elementos referidos no já citado artigo 48º, nº 3, do ED.
Como nos ensina Paulo Veiga e Moura «…, o direito de pronúncia reclama ainda que, para além dos factos que lhe são imputados, seja dado a conhecer ao arguido o correspondente enquadramento jurídico, ou seja, qual a infracção que se entende corresponder a tais factos e qual a sanção aplicável aos mesmos, uma vez que só conhecendo os deveres que se acusam ter sido violados e a sanção correspondente a essa violação é que o arguido poderá exercer o seu contraditório ou, pelo menos, ajuizar se o deve ou não exercer. Por isso mesmo, não se entenda a não reprodução integral da redacção constante do art. 42º do anterior estatuto como uma desnecessidade de a acusação efectuar o enquadramento jurídico dos factos nela descritos, sendo seguro que o procedimento disciplinar será nulo por violação do direito fundamental de audiência sempre que da acusação não conste a referência aos deveres que se consideram ter sido violados e à correspondente sanção (o que pressupõe que se enunciem as normas onde tais deveres estão previstos e que prevêem determinada sanção – v. nº 3 do artº 48º)….» (Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública, Anotado, 2ª Edição, página 208).
Em concreto, da acusação deduzida contra a Autora constam os factos integrantes da mesma e as circunstâncias de tempo, modo e lugar, nos artigos 1º a 14º, a Autora foi acusada de nos dias 28, 29 e 30 de setembro de 2009 (existe um lapso de escrita na acusação quando é referido o ano de 2008), se ter apropriado indevidamente do estupefaciente denominado Petidina e em seu benefício, em virtude do exercício das suas funções na ED. e da confiança em si depositada, prejudicando a ED. e, ainda, de ter procedido ao registo de saída do mesmo estupefaciente, escrevendo e preenchendo-o com os elementos obrigatórios e de ter colocado as rubricas dos seus colegas de trabalho.
Mais constam da acusação as circunstâncias atenuantes e agravantes, na mesma é referido expressamente que “Constitui circunstância agravante a aplicação de uma pena de suspensão de funções, pelo período de 30 dias, com início a 15 de Fevereiro de 2001, cujo registo consta do respetivo Processo Individual.” e “Constitui circunstância atenuante a confissão espontânea dos factos descritos nos artigos 4º e 12º da Acusação.”.
Já quanto à referência aos preceitos legais respetivos e às penas aplicáveis, consta apenas que «Dos factos enunciados resulta que a arguida violou designadamente os deveres de prossecução do interesse público, previsto na alínea a) do nº 1 do artº 3º; o dever de zelo, previsto na alínea e) do nº 1 do artº 3º; o dever de obediência, previsto na alínea f) do nº 1 do artº 3º; o dever de lealdade, previsto na alínea g) do nº 1 do artº 3º, e o dever de correcção previsto no nº 1 do artº 3, todos do Estatuto Disciplinar.
Pela prática dos factos atrás enumerados a arguida incorre numa pena de demissão prevista no artº 18º do Estatuto Disciplinar.».
Da simples comparação e leitura da acusação e do relatório final verifica-se que a Senhora Instrutora no relatório final, nas conclusões quanto ao direito, considerou determinados factos subsumíveis à pena de suspensão e outros à pena de demissão, fazendo referência expressa aos factos cujo comportamento da Autora se traduziu, alegadamente, na violação de determinados deveres reconduzíveis a uma pena ou a outra.
Enquanto no relatório final é referido «Do comportamento descrito nos artºs 4º, 5º e 12º da Acusação, resulta que a Arguida violou, designadamente, o dever de zelo e o dever de obediência, previstos nos nºs 7 e 8 do art 3º do ED, demonstrando incumprimento de normas essenciais reguladoras do serviço, tendo da sua actuação resultado prejuízo para o mesmo (alínea d) do artº 17º ED), fazendo ainda uso de bens pertencentes ao Centro Hospitalar que lhe estavam confiados para fim diferente daquele a que se destinava (alínea n) do artº 17º ED), incorrendo numa pena de suspensão, conforme previsto na alínea d) do artº 7º do ED.
Do comportamento descrito nos artºs 6º, 9º e 13º da Acusação, resulta que a Arguida violou o dever de isenção previsto no nº 4 do art 3º do ED, agindo com intenção de obter para si um benefício económico ilícito, faltando aos respectivos deveres funcionais, mediante o extravio de interesses patrimoniais que, em razão das suas funções, lhe competia administrar e defender, incorrendo numa pena de demissão, conforme previsto na alínea o) do nº 1 do artº 18º do ED.», na acusação apenas é referido «Dos factos enunciados resulta que a arguida violou designadamente os deveres de prossecução do interesse público, previsto na alínea a) do nº 1 do artº 3º; o dever de zelo, previsto na alínea e) do nº 1 do artº 3º; o dever de obediência, previsto na alínea f) do nº 1 do artº 3º; o dever de lealdade, previsto na alínea g) do nº 1 do artº 3º, e o dever de correcção previsto no nº 1 do artº 3, todos do Estatuto Disciplinar.
Pela prática dos factos atrás enumerados a arguida incorre numa pena de demissão prevista no artº 18º do Estatuto Disciplinar.».
Do exposto resulta que a Senhora Instrutora na acusação não observou integralmente o estatuído no artigo 48º, nº 3, do ED, porquanto não individualizou os factos a que corresponde a violação de cada um dos deveres invocados e a consequente indicação de cada norma infringida por cada infração disciplinar, bem como dos preceitos legais que determinam a punição da violação desses deveres (vide Ac. do STA de 12/05/2010, Processo 0116/09), assim como não fez qualquer juízo de inviabilização da manutenção da relação jurídico funcional, para efeitos de escolha e aplicação da sanção disciplinar de demissão, o que constitui nulidade insuprível face ao estabelecido no artigo 37º, nº 1, do ED, conjugado com o que dispõe o nº 3, do artigo 48º do ED.
Mais referiu a Autora que a deliberação impugnada padece de vício de violação de lei, por ofensa do disposto no artigo 18º do ED.
Para a Autora, não foram ponderadas as circunstâncias concretas que, pela sua gravidade, indiciavam a inviabilização da manutenção da relação funcional.
Vejamos.
O pressuposto fundamental da aplicação da pena de demissão, prevista no artigo 18º do ED, é o de que seja impossível a manutenção da relação jurídico funcional, o qual deve sempre ser demonstrado pela Administração, não sendo, pois, suficiente, a subsunção dos factos a alguma(s) das alíneas do referido artigo 18º.
É uma obrigação que se impõe em virtude de se estar perante uma sanção disciplinar que põe termo à relação jurídico funcional, com todas as consequências que daí derivam.
Conforme já referi supra, na acusação, para efeitos de escolha e aplicação da pena disciplinar de demissão, não foi efetuado qualquer juízo de inviabilização da manutenção da relação funcional.
Em qualquer procedimento, no qual se inclui o procedimento disciplinar, é exigida «…uma ponderação objectiva, isenta e imparcial dos factos e interesses envolvidos.» (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e João Pacheco Amorim, Código de Procedimento Administrativo, 2ª Edição, pág. 246).
Estabelece o artigo 18º, nº 1, do ED, que as penas de demissão e de despedimento por facto imputável ao trabalhador são aplicáveis em caso de infração que inviabilize a manutenção da relação funcional, as quais estão exemplificadas no seu nº 2.
É jurisprudência unânime que o juízo de inviabilização da relação funcional não resulta do facto de se invocar o disposto de qualquer das alíneas do nº 1, do artigo 18º, do ED, porque tem que ser alicerçado em factos e circunstâncias concretas que conduzam à conclusão de que não é mais possível a manutenção do vínculo jurídico-funcional existente, ónus que incumbe à Administração, porque sobre si recai o ónus de alegar e provar os factos que preencham o conceito indeterminado correspondente à inviabilidade da manutenção da relação funcional, não bastando uma referência genérica a tal inviabilidade (vide Acs. do STA de 09/07/98, Processo 040931, de 13/01/99, Processo 040060, de 02/12/2004, Processo 01038, de 11/10/2006, Processo 010/06, de 30/11/94, Processo 32500).
Foi decidido pelo Colendo Supremo Tribunal Administrativo em 2/06/2011, no Processo 103/11, que, com vénia ao seu Relator, passo a citar, concordando inteiramente com o decidido:
«I – Nos termos do art. 26º do anterior Estatuto Disciplinar (de 1984), a aplicação duma pena expulsiva pressupunha a prévia certeza de que a infracção «sub specie» inviabilizava a manutenção da relação funcional.
II – O juízo de prognose acerca dessa inviabilidade partia, como condição necessária, da gravidade objectiva da falta.
III – Mas essa condição necessária não era suficiente, pois a infracção disciplinar devia também revelar que, fosse pela especial personalidade do arguido, fosse pelas repercussões da falta no futuro, definitivamente se rompera a possibilidade da relação funcional persistir.
IV – Os factos caracterizadores desse «plus», acrescente à gravidade objectiva da falta, tinham de ser levados à acusação – para serem discutidos e, se fossem verdadeiros, neles se estribar o juízo de prognose sobre a inviabilidade da manutenção da relação funcional.
V – Assim, padece de violação de lei o acto que aplicou uma pena expulsiva sem que da acusação, e para além da gravidade da falta, constassem quaisquer factos caracterizadores daquela inviabilidade.».
Foi também decidido pelo Venerando Tribunal Central Administrativo Norte, em 28/10/2010, no Processo 598/08.5BEPRT, que com vénia ao seu Relator passo a citar e concordando inteiramente com o decidido, que:
«I. A ruptura da relação funcional não integra o mero tipo de infracção disciplinar traduzido na violação do dever de correcção [artigo 3º nº1 e nº4 f) e nº10 do ED], mas antes tipo agravado dessa mesma infracção, que exige, para além dos elementos típicos comuns, uma gravidade objectiva que leve à quebra incurável da relação funcional;
II. A gravidade objectiva da conduta desrespeitosa não acarreta automaticamente a inviabilização da relação funcional, pois esta tem a ver com um juízo de prognose, que, enraizando nessa gravidade, se projecte no futuro da relação funcional e permita concluir que ou a conduta desrespeitosa do arguido inviabiliza a sua futura adequação ao serviço, ou revela inconveniência na sua manutenção no mesmo.».
Em concreto, não resulta da acusação a realização de qualquer juízo de prognose acerca da inviabilidade da manutenção da relação jurídico funcional com a Autora, a Senhora Instrutora limitou-se a invocar o artigo 18º do ED, sem efetuar o referido juízo de prognose.
A alegada conduta da Autora não implica maquinalmente a inviabilização da relação funcional, a qual tem necessariamente que ver com o referido juízo de prognose que não foi feito na acusação, não foram identificados e levados à acusação factos concretos caracterizadores desse juízo de prognose e que constituíssem um plus à gravidade objetiva da falha, para que à Autora fosse dada a possibilidade de os contradizer.
A pena aplicada à A. não foi precedida da perscrutação de facto que permitiria fundar e suportar o juízo de inviabilidade previsto no artigo 18º, nº 1, do ED.
Falta, assim, um elemento essencial, que impedia a ED. de lançar mão do citado preceito legal.
Sem o referido juízo de prognose, não foram sequer explicitadas na acusação as razões concretas pelas quais se entendia haver inviabilidade da manutenção da relação jurídico-funcional, afetando, desse modo, o cabal exercício do direito de defesa da Autora.
Recentemente foi decidido pelo Colendo Supremo Tribunal Administrativo, em 25/02/2016, no Processo 0212/15 (que pode ser consultado em www.dgsi.pt), que com vénia à sua Relatora passo a citar o seu sumário, que:
«I - As penas disciplinares de demissão ou de despedimento abstractamente aplicáveis aos trabalhadores que, nomeadamente, dentro do mesmo ano civil derem 5 faltas seguidas ou 10 interpoladas sem justificação, conforme previsto no art. 18º, nº 1, al. g) da Lei nº 58/2008, de 9/9, que aprovou o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, só podem ser aplicadas se a infracção inviabilizar a manutenção da relação funcional.
II - É portanto de anular, por violação daquela norma, um acto que aplicou a pena de demissão ligando automaticamente essa consequência jurídica à verificação do referido facto sem previamente ponderar se as circunstâncias concretas do caso, pela sua gravidade, inviabilizam a manutenção da relação funcional.».
A jurisprudência acabada de citar tem aplicação nas situações de pena de demissão e de despedimento por facto imputável ao trabalhador, sendo o pressuposto fundamental da aplicação destas penas a impossibilidade de subsistência da relação jurídico funcional, nos termos do artigo 18º do ED, a enunciação dos comportamentos que podem integrar uma infração disciplinar e que resultam das diversas alíneas deste preceito é meramente exemplificativa.
Não basta a subsunção dos factos a qualquer uma das alíneas do artigo 18º, nº 1, do ED, também é preciso demonstrar, no âmbito do processo disciplinar, a inviabilidade da manutenção da relação laboral.
A deliberação impugnada aplicou a pena de demissão ligando automaticamente essa consequência jurídica à alegada verificação dos comportamentos descritos nos artigos 6º, 9º e 13º [Apropriação de ampolas de Petidina] da acusação, sem previamente ponderar se as circunstâncias concretas do caso, pela sua gravidade, inviabilizavam a manutenção da relação funcional, violando, assim, o disposto no artigo 18º, nº 1, do ED.
Diga-se, ainda, que a Autora, na defesa apresentada, rejeitou a imputação de se ter apropriado do medicamento (artigos 3º, 25º e 26º da defesa) e da prova produzida, em sede disciplinar, não é possível concluir que a Autora se tivesse apropriado do medicamento, ficando com ele na sua posse e fazendo-o seu.
Por todo o exposto, a deliberação impugnada não se pode manter na ordem jurídica, ficando, pois, prejudicada a apreciação dos demais vícios alegados.
Mostra-se inatacável esta decisão.
Na verdade os factos apurados em sede instrutória não são, por si só, suficientes para concluir pela inviabilidade da manutenção da relação funcional.
Em particular não ficou apurado em que contexto se deu a retirada do medicamento estupefaciente do lugar onde estava guardado.
Assim como não ficou demonstrado, perante a negação da Arguida, que se tenha efetivamente apropriado do medicamento, ficando com ele na sua posse e fazendo-o seu.
Face ao exposto, é de manter a decisão recorrida e, com ela, a procedência da acção.
***
IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 12.07.2019
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia
Ass. Conceição Silvestre