Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01290/12.1BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/09/2022
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO, CINTOS DE SEGURANÇA, ERROS DE JULGAMENTO DE FACTO/DIREITO
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO

AA..., residente no Lugar (…), instaurou acção administrativa comum contra:

Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, com sede na Avenida de Casal de

Cabanas, Urbanização de Cabanas de Golf, n.º 1, 2734-507 Barcarena;

Ministério da Administração Interna, com sede na Praça do Comércio - Ala

Oriental, 1149-018 Lisboa,

Guarda Nacional Republicana, com sede no Largo do Carmo, 1200-092 Lisboa,

BB..., soldado n.º (…) com domicílio profissional na Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial (…),

Estado Português, representado pelo Magistrado do Ministério

Público junto do Tribunal, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de

€42.634,56, a título de privação de uso do veículo ligeiro de mercadorias, marca

Toyota, matrícula (...), bem como de €4.000,00, a título de danos morais, tudo

acrescido de juros contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.


Por sentença proferida pelo TAF de Braga foi julgada improcedente a

acção e absolvido do pedido o Estado Português.

Desta vem interposto recurso pela Autora.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:

A. Conforme resultou das declarações das testemunhas e prova documental, impõe-se a alteração da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º do CPC), dando-se como provado que, nos termos da portaria n.º 311-A/2005, de 24 de março, se excetuam da obrigatoriedade de instalação de cintos de segurança os automóveis da categoria N1 (automóveis de mercadorias) matriculados antes de 27 de maio de 1990 – exclusão que abrange o veículo da A. em crise nos presentes autos.
B. Devendo, ainda, ser incluído no elenco dos factos provados que:
1. “O veículo foi adquirido pela A. em 16/04/2004, no estado de usado.” – cfr. documento 1 da petição inicial e declarações da testemunha CC... (minuto
4:00).

2. “A testemunha CC... (marido da A.) nunca conheceu o veículo (...) com cintos de segurança”. - declarações da testemunha CC... (minuto 4:00 a 5:00).
3. Que a testemunha CC... declarou, ao minuto 11:00, que a viatura em crise “nunca teve cintos de segurança”, “nunca teve peças de cintos”, “nunca teve pilares de retenção”.
4. Que, ao minuto 12:00, a referida testemunha,

CC..., disse que “o homem que me vendeu disse que pode circular sem cintos, está em ordem”.
5. “O veículo (...) passou nas inspeções” - cfr. documento notificado à A. em 11/04/2018 (despacho com a ref.ª 005730538) e declarações da testemunha CC... (minuto 14:00).
6. Que, ao minuto 16:00, afirmou a testemunha CC... que
“comprei o carro a um particular”.

7. Que a testemunha leva a viatura às inspeções todos os anos - declarações da testemunha CC... (minuto 37:00). Sendo que o IMT sempre aprovou a viatura - declarações da testemunha CC… (minuto 37:50)

8. Que a testemunha DD..., que ao minuto 53:00, declarou “conheço o carro em questão, não tem cintos de segurança. Nas portas não tem. E tensores não tem.” Mais declarou que “antes de maio de 1990 estas viaturas não precisam de cinto”, “não tinham que se preocupar”.
9. Que, à 1h:01m, declarou DD... que “a viatura não tem marcas nos pilares das portas nem os sistemas para cintos, que comprou a viatura no estado de usada.”
10. Que a testemunha EE... que, à 1h:07m, declarou que “a viatura não tem cintos de segurança” e que “foi comprada usada, tendo circulado na mesma”.
11. Que as testemunhas CC…, DD... e EE... depuseram com verdade e clareza, pelo devia ter merecido credibilidade do Tribunal.

12. Que os mesmos referiram que o veículo foi adquirido no estado de usado (no ano de 2004, conforme documento 1 da petição inicial), nunca tendo sido levantado pelo Centro de Inspeções qualquer problema relacionado com os cintos de segurança.
13. Que a testemunha CC... estava convencida que o veículo poderia circular sem estar provido de cintos de segurança e que nunca conheceu o veículo provido de cintos de segurança.
C. Acresce que, com referência à inspeção a que foi submetido o veículo da A. (cfr. documento notificado à A. em 11/04/2018 (despacho com a ref.ª 005730538), nos termos do n.º 1, do art. 2.º do DL 554/99, de 16 de dezembro (com alterações introduzidas pelos DL 107/2002, de 16 de abril, e 109/2004, de 12 de maio, as inspeções periódicas (confirmadas nos autos) visam confirmar, com regularidade, a manutenção das boas condições de funcionamento e de segurança de todo o equipamento e das condições de segurança dos veículos, de acordo com as suas características originais homologadas ou as resultantes de transformação autorizada nos termos do Código da Estrada.
D. Para além de uma verificação sumária das condições de conservação da carroçaria e dos interiores, pode ainda verificar, entre outros, o funcionamento correto dos cintos de segurança.
E. De facto, de acordo com documento notificado à A. em 11/04/2018 (despacho com a ref.ª 005730538), do centro de inspeções, o veículo é de 03/01/1990 e a instalação dos cintos de segurança em veículos desta categoria tornou-se obrigatória apenas a partir de 27/05/1990.
F. O inspetor referiu no dito documento que “não estaria a ser rigoroso caso indicasse “expressamente” se o veículo possuía ou não cintos de segurança na frente, dado que o mesmo poderia ter sido aprovado em qualquer das situações.” “Posso afirmar que o veículo, no momento em que ocorreu a inspeção, cumpria todos os requisitos legais, motivo pelo qual foi aprovado.”
G. Quanto à apreciação jurídica, o tribunal à quo fez uma errada interpretação dos diplomas que impõe a instalação e o uso do cinto de segurança.
H. De facto, o Código da Estrada, designadamente no seu artigo 82.º, impõe o uso de equipamentos e acessórios de segurança e prevê a necessidade de, por portaria do Ministro da Administração Interna, estabelecer o modo de utilização, as características técnicas e as condições excecionais de isenção ou de dispensa da obrigação de uso dos referidos acessórios.
I. Nos termos conjugados da alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro, e do n.º 2 do artigo 82.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, na última redação que lhe foi conferida, o seguinte:
1.º É aprovado o Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança, previsto no artigo 82.º do Código da Estrada, anexo à presente portaria e que dela faz parte integrante.
2.º É revogada a Portaria n.º 849/94, de 22 de setembro.
J. Nos termos da portaria n.º 311-A/2005, de 24 de março, excetuam-se da obrigatoriedade de instalação de cintos de segurança os automóveis da categoria N1 (automóveis de mercadorias) matriculados antes de 27 de maio de 1990 (o que aliás vem disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do DL n.º 170-A/2014, de 07 de novembro).
K. Sem dúvida que excetuar significa: excluir, isentar e/ou subtrais à regra! Sem dúvida que a regra é a instalação de cintos de segurança em todos os veículos, sendo que a exceção é a vertida nos presentes autos, ou seja, a viatura não tem instalação de cintos!
L. por conseguinte, instalação é diferente de homologação:
1. Instalar é “ato ou efeito de instalar ou de se instalar; ação de colocar no seu lugar os diferentes objetos”. (cfr. Dicionário Universal Língua Portuguesa, 7.º edição, Lisboa, 2007, pág. 876. ISBN: 972-47-0662-1)
2. Homologar é “ação ou efeito de homologar, aprovação.” (cfr. Dicionário Universal Língua Portuguesa, 7.º edição, Lisboa, 2007, pág. 834.
ISBN: 972-47-0662-1)

M. De facto, a lei excetua (ou seja, subtrai à regra/isenta) todos os veículos matriculados antes de 27 de maio de 1990, quer tenham sido homologados com cintos de segurança ou sistemas de retenção ou não.
N. Ou seja, não existe nenhuma exceção à exceção de obrigatoriedade que obrigue a instalação de cintos de segurança num veículo matriculado antes de maio de 1990, como é o veículo da A..
O. Ora, independentemente da homologação do veículo pelo fabricante (a qual se faz de forma genérica para todos os veículos de um determinado modelo), a lei é clara quando refere que não é obrigatória a instalação de cintos de segurança em automóveis da categoria N1 (automóveis de mercadorias) matriculados antes de 27 de maio de 1990 (ou seja, estes veículos estão dispensados de ter cinto de segurança – conforme disposto no artigo no artigo 82.º, n.º 2, alínea a) do Código da Estrada).
P. E não há que confundir instalação com homologação!
Q. Pois, não é a homologação de um determinado modelo de veículos feita pelo fabricante que determina a obrigação de instalação de cintos de segurança, mas sim a lei. E essa é bem clara.
R. Até porque os cintos de segurança foram sujeitos a uma homologação legal que determinou a constituição dos cintos de segurança e dos sistemas de retenção e que à data de janeiro de 1990 (data da matrícula do veículo da A.) ainda não estava em vigor.
S. Sem dúvida que a portaria n.º 311-A/2005 desobriga a viatura da A. a circular com cintos de segurança instalados,
T. sendo que a portaria apenas regula a circulação de um veículo com cintos de segurança instalados e nada tem a ver com a homologação da viatura com ou sem cintos de segurança.
U. De facto, como supra se referiu, instalar é diferente de homologar, pelo que de nada releva existir homologação e local para instalação de cintos de segurança, o que importa é se, efetivamente, se encontram instalados os cintos de segurança.
V. E o Tribunal a quo concluiu e verificou que não!

W. O tribunal a quo tem obrigação de distinguir homologação de instalação. Ora, independentemente da homologação o que a portaria n.º 311-A/2005 prevê é que os automóveis da categoria N1 (automóveis de mercadorias) matriculados antes de 27 de maio de 1990 possam circular sem a instalação de cintos de segurança, X. O que acontece no caso da viatura da A..
Y. Pelo que a decisão apenas deve contemplar o facto de a viatura circular sem instalação de cintos de segurança e não confundir a instalação com a homologação do modelo da viatura.
Z. Nessa medida, a decisão do Tribunal a quo ao conjugar a prova documental e não considerar o que vimos de invocar (confundiu homologação com possibilidade de circulação sem instalação de cintos de segurança) andou mal,
AA. Devendo ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, a decisão de que se recorre ser revogada e substituída por outra que consagre o vertido na PI,
BB. declarando a ilicitude da atuação da GNR, contra o espírito da criação da portaria n.º 311A/2005, de 24 de março, que nada contende com a homologação dos cintos de segurança, mas apenas com a possibilidade de os ter instalados.

Termos em que, decidindo em conformidade, farão JUSTIÇA!

O Senhor Procurador, em representação do Estado Português, juntou contra-alegações, sem conclusões, finalizando assim:

Não se tendo verificado os pressupostos de que depende a constituição da obrigação de indemnizar a título de responsabilidade civil extracontratual tal como foi peticionada impunha-se a absolvição do Estado com os fundamentos aduzidos na sentença recorrida que, por não merecer qualquer reparo, deve ser integralmente mantida, julgando-se o recurso improcedente.
JUSTIÇA

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:

A) A Autora é dona e legítima proprietária do veículo ligeiro de mercadorias, marca Toyota, matrícula (...) (matriculado em Janeiro de 1990) – cf. documento de fls. 93 dos autos.
B) (...) que se encontrava matriculado desde 03/01/1990 como veículo ligeiro de mercadorias na categoria N1 (Código CE) com lotação para dois lugares nos bancos da frente – cf. documento de fls. 93, 94, 95 dos autos.

C) (...) é um veículo ligeiro misto, de mercadorias e passageiros – cf. documento de fls. 93 dos autos.

D) (...) que foi fabricado e homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente – cf. documento de fls. 102 e ss, 134 e ss., fotografias captadas por ocasião da inspecção ao veículo.
E) No dia 29 de Outubro de 2007, pelas 14 horas e 18 minutos, o veículo da Autora, conduzido pelo seu marido CC..., encontrava-se a circular na Avenida Aníbal Ferreira Basto, em Felgueira – cf. documentos de fls. 18 e ss., 97 e ss. dos autos; cf. depoimento de CC....

F) Nesse dia e hora, e após ordem da Guarda Nacional Republicana, o condutor parou, tendo o veículo sido inspeccionado em contexto de operação “stop” – cf. documento de fls. 97 e ss. dos autos; depoimento das Testemunhas CC...; FF... e GG....

G) Foi aplicada à Autora uma coima pela prática da seguinte infracção: “na hora e local acima mencionados o veículo acima mencionado, circulava, não dispondo dos componentes com que foi aprovado (sistema de retenção, cinto frente)” – cf. documentos de fls. 18 e ss., 97 e ss. dos autos; depoimento da Testemunha CC..., FF... e GG....

H) Tendo dado origem à Contra-ordenação n.º 252485459, cuja entidade autuante foi 244230300 – cf. documento de fls. 18 e ss. dos autos.

I) Tendo o condutor do veículo referido aos Militares da GNR que, tendo sido matriculado antes de 27/5/1990, entendia que o veículo não estava obrigado a estar provido de cintos de segurança nos bancos da frente, razão pela qual os cintos foram retirados – cf. documento de fls. 20 e ss. dos autos; depoimento das Testemunhas FF... e GG....

J) O marido da Autora exerce a actividade de chapeiro de automóveis – facto complementar introduzido à luz do princípio da aquisição processual; cf. depoimento da Testemunha CC....

K) Foram apreendidos os documentos da viatura em causa: livrete e registo de propriedade do veículo de matrícula (...) – cf. documentos de fls. 18 e ss. dos autos.

L) O Auto de Apreensão de Documentos não foi acompanhada de guia de substituição de documentos, mas de uma notificação com os seguintes termos:

«O interessado deverá dirigir-se a j) ao IMTT do Porto, a fim de regularizar a situação. Dirigir-se ao IMTT (Instituto de Mobilidade de Transportes Terrestres) proceder à inspecção extraordinária.» - cfr. de fls. 19 e ss. dos autos.
M) A Autora não compareceu no IMTT para proceder à inspecção extraordinária do (...) – cf. depoimento de CC....
N) A Autora não requereu emissão de guia de substituição dos documentos apreendidos – cf. depoimento de CC....

O) A Autora, perante esta situação, em 16 de Novembro de 2007 apresentou defesa escrita, a qual deu entrada na Direcção Regional de Viação no dia 19 de Novembro de 2007 – cf. documento de fls. 20 e ss. dos autos.

P) Os documentos continuaram apreendidos, não sendo por isso possível circular com a viatura –cf. documentos de fls. 18 a 30 dos autos.

Q) Como não obtinha qualquer resposta, a Autora em 8/7/2012 solicitou a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (1.ª Ré) que esclarecesse se os documentos ainda se encontravam apreendidos, uma vez que já havia decorrido um “grande lapso de tempo” e a Autora continuava sem poder circular com o veículo – cf. documento de fls. 27 e ss. dos autos.

R) Em 23/07/2010, a Autora obteve da 1.ª Ré a seguinte resposta: “informa-se que o processo de contra-ordenação n.º 252485459 se encontra extinto por prescrição pelo que foi arquivado com esse fundamento, nos termos do artigo 188.º do Código da Estrada.
Relativamente à documentação, esta poderá ser levantada no Governo Civil, da área de residência, onde a conduta se deverá deslocar acompanhado da respectiva guia de substituição.” – cf. documento de fls. 30 e ss. dos autos.
S) Em 23/07/2010, os documentos foram levantados por terceiro – cf. documento de fls. 99 dos autos.

T) O veículo em causa foi matriculado em Janeiro de 1990 – cf. documento de fls. 123 dos autos.
U) Em 23/07/2010, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária comunicou à Autora que o processo de Contra-ordenação estava extinto por prescrição – cf. documento de fls. 30 dos autos.

V) De segunda-feira a Sábado, Autora usava o veículo marca Toyota, matrícula (...), para tratar de assuntos administrativos, permitindo-lhe deslocar-se a serviços sociais, finanças, bancos, fazer recados, entregas/levantamentos de objectos, idas às compras, entre o mais – cf. depoimento da Testemunha CC....
W) Durante o período em que a viatura (...) ficou imobilizada, a Autora socorreu-se de outro automóvel, de marca “Volkswagen”, modelo “Passat”, pertencente ao agradado familiar, passando a ter a necessidade de conciliar horários com os restantes membros da família – cf. depoimento da Testemunha CC....

X) A viatura esteve parada/imobilizada por falta de documentos desde os dias 29 de Outubro de 2007 até ao dia 23 de Julho de 2010, num total de 998 dias – cf. documentos de fls. 23 e ss. e 101 dos autos.

Y) A presente acção deu entrada em juízo em 20/07/2012 – cf. de fls. 1 e ss. dos autos.

Z) O preço médio de aluguer de um veículo de idênticas características é de € 42,72/diários – cf. documento de fls. 32 dos autos.

Em sede de factualidade não provada o Tribunal consignou:

1) Tal situação acarretou inquietação e insegurança para a Autora.

2) Sentiu e sente grande inquietação, angústia, ansiedade, mal-estar psicológico e tristeza.
3) Viu-se atingida na sua integridade moral.

4) Todos estes factos tornaram a Autora, outrora pessoa alegre e bem-disposta, numa pessoa pesarosa, amargurada e revoltada.

5) Sente receio de ver outras viaturas apreendidas, sem que haja fundamento para isso e de ficar sem meio de transporte para trabalhar.


X
DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que julgou improcedente a acção.
Atente-se no seu discurso fundamentador:
Cumpre apreciar do preenchimento cumulativo dos pressupostos atinentes à responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito à luz do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21-12-1967, a saber:

- acto - de conteúdo positivo ou negativo - de um órgão ou seu agente, no exercício das suas funções e por causa delas;

- ilicitude, que advém da ofensa de direitos ou de disposições legais que se destinam a proteger interesses alheios;

- culpa, como nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente;

- dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de exercício das suas funções e por causa delas;

- nexo de causalidade entre o facto (acto ou omissão) e o dano, a apurar segundo a teoria da causalidade adequada.

Importa destacar que a análise da actuação da Guarda Nacional Republicana não constitui uma reapreciação da contra-ordenação, mas tão só conhecimento incidental de eventual ilegalidade da sua actuação para efeitos – unicamente - de efectivação da responsabilidade civil, tendo sido alegado:

i) o facto – aplicação de Contra-ordenação, sustentada na verificação de que o aludido veículo circulava sem os cintos de segurança da frente, com consequente levantamento do Auto n.º 2 5245459, acompanhado de
Auto de Apreensão de Documentos, ii) a ilicitude da conduta administrativa – o veículo ligeiro de mercadorias não estava obrigado a estar provido dos cintos de segurança nos bancos da frente, atento o preceituado no artigo 2.º, .º 2, alínea b), da Portaria n.º
311-A/2005, de 24 de Março; iii) a culpa do agente – traduzida na falta de cumprimento do dever de zelo, em violação da alínea d) n.º 2 do artigo 8.º e no artigo 12.º do Regulamento de Disciplina da GNR, aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, iv) danos tanto patrimoniais, privação do uso do veículo desde o dia 29 de Outubro de 2007 até ao dia 23 de Julho de 2010, como não patrimoniais, este últimos merecedores, segundo Autora, da atribuição de uma compensação a rondar os € 4.000,00;

v) nexo de causalidade entre a conduta ilícita e o dano.


O Código da Estrada, designadamente no seu artigo 82.º, impõe o uso de equipamentos e acessórios de segurança, tendo a Portaria n.º 311-A/2005, de 24 de Março, estabelecido o modo de utilização, as características técnicas e as condições excepcionais de isenção ou de dispensa da obrigação de uso dos referidos acessórios, por via de Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança.

Pertinentemente, resulta do diploma que “Cinto de segurança” é o conjunto de precintas com fivela de fecho, dispositivos de regulação e peças de fixação, susceptível de ser fixado no interior de um automóvel e concebido de maneira a reduzir o risco de ferimento para o utente, em caso de colisão ou de desaceleração brusca do veículo, limitando as possibilidades de movimento do seu corpo. E, bem assim, que o “Conjunto do cinto” é a montagem que engloba cinto de segurança e qualquer dispositivo de absorção de energia ou de retracção do cinto (cf. artigo 1.º).

Os automóveis ligeiros devem estar providos de cintos de segurança ou de sistemas de retenção aprovados nos lugares do condutor e de cada passageiro (cf. artigo
2.º ).

O veículo (...), matriculado desde 03/01/1990 como veículo ligeiro de mercadorias na categoria N1 (Código CE) tinha lotação para dois lugares nos bancos da frente, tendo sido fabricado e homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente.

Assim, por o veículo ter sido fabricado de harmonia com a regra da obrigatoriedade de instalação de cintos de segurança, o caso em apreço não era enquadrável no âmbito da excepção prevista no número 2 do artigo 2.º do Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança.

Com efeito, o espírito da excepção não admite a possibilidade de alteração das características do veículo para circulação sem cintos de segurança nos bancos da frente de todos os automóveis ligeiros de passageiros e mistos matriculados antes de 1 de Janeiro de 1966 e os restantes automóveis ligeiros matriculados antes de 27 de Maio de 1990. Apenas comporta a possibilidade de circulação para aqueles veículos que foram fabricados sem cinto de segurança.

Nada de ilícito há a apontar à actuação da Guarda Nacional Republicana quando aplicou à Autora uma coima pela prática da infracção: “o veículo acima mencionado circulava, não dispondo dos componentes com que foi aprovado (sistema de retenção, cinto frente).”

A Guarda Nacional Republicana agiu segundo era sua obrigação, em estrito cumprimento do dever funcional, alicerçada pelo Direito, em prol da segurança rodoviária.

O que vem dito é suficiente para concluir pelo naufrágio do pedido formulado, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação da verificação dos restantes pressupostos deste tipo de responsabilidade.

X

A Recorrente, na qualidade de proprietária de veículo ligeiro de mercadorias, marca Toyota, matrícula (...), peticionou a condenação do Réu no pagamento da quantia de €42.634,56, a título de privação de uso do veículo decorrente da sua apreensão por militares da GNR por circular na via pública sem cintos de segurança nos bancos da frente, bem como de €4.000,00, a título de danos morais, tudo acrescido de juros contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Na sentença recorrida foram, entre outros, dados como provados os seguintes factos:
A) A Autora é dona e legítima proprietária do veículo ligeiro de mercadorias, marca Toyota, matrícula (...) (matriculado em janeiro de 1990) – cf. documento de fls. 93 dos autos.
B) (...) que se encontrava matriculado desde 03/01/1990 como veículo ligeiro de mercadorias na categoria N1 (Código CE) com lotação para dois lugares nos bancos da frente – cf. documento de fls. 93, 94, 95 dos autos.
C) (...) é um veículo ligeiro misto, de mercadorias e passageiros – cf. documento de fls. 93 dos autos.

D) (...) que foi fabricado e homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente – cf. documento de fls. 102 e ss, 134 e ss., fotografias captadas por ocasião da inspecção ao veículo.
E) No dia 29 de Outubro de 2007, pelas 14 horas e 18 minutos, o veículo da Autora, conduzido pelo seu marido CC..., encontrava-se a circular na Avenida Aníbal Ferreira Basto, em Felgueira – cf. documentos de fls. 18 e ss., 97 e ss. dos autos; cf. depoimento de CC....
F) Nesse dia e hora, e após ordem da Guarda Nacional Republicana, o condutor parou, tendo o veículo sido inspeccionado em contexto de operação “stop” – cf. documento de fls. 97 e ss. dos autos; depoimento das Testemunhas CC...; FF... e GG....
G) Foi aplicada à Autora uma coima pela prática da seguinte infracção: “na hora e local acima mencionados o veículo acima mencionado, circulava, não dispondo dos componentes com que foi aprovado (sistema de retenção, cinto frente)” – cf. documentos de fls. 18 e ss., 97 e ss. dos autos; depoimento da Testemunha CC..., FF... e GG....

I) Tendo o condutor do veículo referido aos Militares da GNR que, tendo sido matriculado antes de 27/5/1990, entendia que o veículo não estava obrigado a estar provido de cintos de segurança nos bancos da frente, razão pela qual os cintos foram retirados - cf. documento de fls. 20 e ss. dos autos; depoimento das Testemunhas FF... e GG....
T) O veículo em causa foi matriculado em janeiro de 1990 - cf. documento de fls. 123 dos autos.

Na fundamentação da matéria de facto dada como assente consignou a Senhora Juíza que «A convicção deste Tribunal resultou de uma ponderação global e conjugada de toda a prova produzida que permitiu ao Tribunal alcançar um elevado grau de segurança no julgamento da matéria de facto.
Atendeu-se à prova documental, para a qual remete o probatório, que os autos foram reunindo na sequência de diversas diligências instrutórias, bem como à prova testemunhal, que compreendeu um momento de acareação, seguido de inspecção ao veículo (...), para debelar dúvidas sobre se este veículo - em concreto - foi colocado no mercado para circulação com cintos de segurança nos bancos da frente.
No que concerne à prova Testemunhal:

CC... apresentou-se em juízo com um discurso simples, firme, pretendendo gerar no Tribunal a convicção, pese embora as informações do fabricante já reunidas nos autos, de que não havia sido instalado no veículo cintos de segurança ou de sistema de retenção no lugar do condutor ou do passageiro. Acrescentando que o veículo foi adquirido pela Autora em estado de usado, nunca tendo sido levantado pelo Centro de Inspecções qualquer problema relacionado com os cintos de segurança. Saltava à vista que esta Testemunha estava convencida que pelo facto de se tratar de um automóvel misto matriculado antes de 1 de janeiro de 1966 o mesmo poderia circular sem estar provido de cintos de segurança dianteiros. Mais tentou convencer o Tribunal que o veículo não tinha instalação desse acessório.
Várias vezes afirmou - sob juramento legal - que nunca conheceu este veículo provido de cintos de segurança, tendo-o adquirido a um particular, sequer o veículo apresentava sinais de ter sido fabricado com peças de fixação, dispositivos de regulação, entradas ou saídas de fivela de fecho. Tentou inclusivamente fazer com que o Tribunal representasse uma realidade bem diferente da verificada em inspecção quando afirmou em juízo que existe no interior do automóvel alguns pontos de fixação, mas destinados à colocação de protecções para evitar deslocações da carga para a zona do condutor e passageiro. O Tribunal ouviu atentamente a Testemunha que conhecia perfeitamente o veículo, ao pormenor, não esquecendo que o mesmo percebia do ramo, uma vez que exercia a actividade de pintor de automóveis.


Aos olhos deste Tribunal, a versão de CC..., que já se apresentava frágil face ao documento de fls. 134 dos autos, deixou de merecer qualquer credibilidade com o depoimento seguro, isento e sincero das Testemunhas FF... e GG....
Indo ao encontro da descrição dos factos por FF..., a Autora do Auto de Contra-Ordenação GG..., Militar da GNR, asseverou que o veículo tinha sinais visíveis de ter sido fabricado com cintos de segurança na parte da frente. Questionado o condutor, a Testemunha ouviu de CC... que os cintos da frente foram retirados por a sua utilização não ser, segundo o mesmo, obrigatória atendendo à data da matrícula do veículo. Assim, da concatenação de toda a prova produzida com o que o Tribunal percepcionou com a inspecção ao veículo - cf. fotos captadas por essa mesma ocasião - resultou, com elevado grau de certeza, que foi colocado no mercado para circulação com cintos de segurança nos bancos da frente. Porém, em momento anterior à operação STOP foram retirados o conjunto de precintas, dispositivos de regulação e peças de fixação, mantendo todos os sinais da instalação daquele acessório: aberturas nas barras laterais para recolha de precintas com fivela de fecho e buracos para colocação das peças de fixação.

Temos, assim, que o convencimento do Tribunal relativamente aos factos provados vem suportado numa persuasão racional, segundo juízos de probabilidade séria, baseada no resultado da prova apreciado à luz das regras de experiência comum e atentas as particularidades do caso que nos ocupa.
(…)».

Pretende a Recorrente a reapreciação dos factos dados como provados, pugnando pelo aditamento dos seguintes factos uma vez que, devidamente analisada a prova documental e testemunhal pelo Tribunal a quo, tal resulta da fundamentação de facto:

“O veículo foi adquirido pela A. em 16/04/2004, no estado de usado.”

“As testemunhas CC... (marido da A.), DD... e EE... nunca conheceram o veículo (...) com cintos de segurança”.
“O veículo (...) passou nas inspeções”.

Sendo que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é exclusivamente sustentada em prova testemunhal.

Como é sabido, o objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (artº 637º nº 2, do CPC, ex vi artº 140º do CPTA).
Pretendendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto a Autora não formula nas suas conclusões, de forma clara, os erros de julgamento daqueles factos, limitando-se, nas conclusões, a verter a versão factual que tem como correta.
Ora, quando se pretenda impugnar a matéria de facto o artigo 640º do CPC impõe um ónus especial de alegação que impende sobre a aqui recorrente e que a mesma, nos termos que decorrem da alegação do recurso e das suas respetivas conclusões, não satisfaz, limitando-se a invocar a sua discordância quanto a alguma matéria de facto não dada como provada.

Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos.

Conforme tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o Tribunal de recurso só deve intervir quando a convicção desse julgador não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se, assim, a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto - acórdão do STA, de 19/10/2005, proc. 0394/05. Aí se refere, no que aqui releva, que “o art. 690º-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida. Este artigo deve ser conjugado com o 655° do CPC que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (É pacífico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. Abrantes Geraldes “Temas da Reforma do processo Civil, II vol., 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267
Este entendimento tem sido seguido pela generalidade da jurisprudência (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e fatores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13/10/2001, em Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)”.
Na verdade, decorre do regime legal vertido nos arts. 140º e 149º do CPTA que este Tribunal ad quem conhece de facto e de direito sendo que na apreciação do objeto de recurso jurisdicional que se prende com a impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo se aplica ou deve reger-se, na ausência de regime legal especial, pelo regime que se mostra fixado em sede da legislação processual civil nesta sede. Ora com a revisão do CPC operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, e pelo DL 180/96, de 25/09, foi instituído, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto. Importa, porém, ter presente que o poder de cognição deste Tribunal sobre a matéria de facto ou controlo sobre a decisão de facto prolatada pelo tribunal a quo não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto, sendo certo que da situação elencada (impugnação jurisdicional da decisão de facto - artº 690º-A do CPC) se distinguem os poderes previstos no n.º 2 do artº 149º do CPTA que consagram solução diversa e de maior amplitude da que se mostra consagrada nos artº 712º e 715º do CPC. Assim, pese embora tal regime e situações diversas temos, todavia, que referir que os poderes conferidos no artº 149º/2 do CPTA não afastam os poderes de modificação da decisão de facto por parte deste Tribunal ao abrigo do artº 712º do CPC por força da remissão operada pelos arts. 1º e 140º do CPTA porquanto o TCA mantém os poderes que assistem ao tribunal de apelação no âmbito da fixação da matéria de facto quando esta constitui objeto ou fundamento de recurso jurisdicional. Daí que sobre o Recorrente impenda um especial ónus de alegação quando pretenda efetuar impugnação com aquele âmbito mais vasto, impondo-se-lhe, por conseguinte, dar plena satisfação às regras previstas no artº 690º-A do CPC. É que ao TCA assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal a quo desde que ocorram os pressupostos vertidos no artº 712º/1 do CPC, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objecto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.
A este propósito e tal como sustentado pelo Prof. Mário Aroso e pelo Cons. Fernandes Cadilha “(…) é entendimento pacífico que o tribunal de apelação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (…). Por analogia de situação, o tribunal de recurso pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados. (…) ” (em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pág. 743).” (…)
“Retomando o que supra fomos referindo sobre a amplitude dos poderes de cognição do tribunal de recurso sobre a matéria de facto temos que os mesmos não implicam um novo julgamento de facto, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artº 690º-A n.ºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Os poderes de modificabilidade da decisão de facto que o artigo 712º do CPC atribui ao tribunal superior envolvem apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento e não uma reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto.” “Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida “salte à vista” do Tribunal de recurso um erro grosseiro da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada”.
E como ressalta ainda do sumário do proc. nº 00242/05.2BEMDL, de 22/02/2013, acolhido por este TCAN em 22/05/2015 no âmbito do proc. 840/05.4BEVIS I.“Como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (art. 655º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que na formação dessa convicção não intervêm apenas fatores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.
II. Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no tribunal «a quo», aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo tribunal “ad quem”.

Como resulta sumariado no Acórdão deste TCAN nº 2078/20.1BEPRT-A, de 02/07/2021, “Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
A alteração da matéria de facto por instância superior, sempre deverá ser considerada uma intervenção excecional.”
Mais, se sumariou no Acórdão também deste TCAN nº 01466/10.6BEPRT, de 04/11/2016, “À instância recursiva apenas caberá sindicar e modificar o decidido quanto à factualidade dada como provada e não provada, caso verifique a ocorrência de erro de apreciação, suscetível de determinar a viciação da decisão final, mormente enquanto erro de julgamento, patente, ostensivo palmar ou manifesto.”
Assim, em sede de recurso jurisdicional o tribunal, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
Voltando ao caso concreto, a leitura do aresto recorrido não revela um julgamento errado, porque fixou factos de forma arbitrária ou contrária às regras da prova, ou os fixou de forma inexata, ou porque os valorou erroneamente. Antes pelo contrário, o aresto revela uma criteriosa e bem cuidada análise crítica da prova e assenta numa convicção coerente, concisa, fortemente estruturada e fundamentada.

Como bem anota o Recorrido, do alegado pela Recorrente apenas se fica a saber qual seria a sua convicção se fosse o julgador. Atendendo a que visa alterar uma “decisão anterior” sobre a matéria de facto fundamentalmente na base de prova testemunhal, não havendo elementos que imponham sequer superficialmente (e muito menos “muito claramente”) uma decisão em sentido diferente daquele que se encontra vertido na decisão contida na sentença, o recurso sobre a matéria de facto tem de ser julgado improcedente.
Com efeito, face às normas legais aplicáveis e à jurisprudência consolidada resulta evidente que ao tribunal de recurso, apenas é permitido alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excecionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão (Ac. do STA de 02/06/2010, in rec. 0200/09, bem como o Ac. nº 248/2009, in proc. nº 78/09 do Tribunal Constitucional, publicado no DR, II série, nº 113, de 15/06/2009).
«Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artº 371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr. artº 607, nº 5, do CPC, na redação da Lei 41/2013, de 26/6; Prof. Alberto dos Reis, CPC anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 660 e seg.).»
Sucede que a Senhora Juíza exarou a motivação quanto à decisão da

matéria de facto, da qual se retira a sua convicção.

Ora, repete-se, como o nosso sistema processual consagra o princípio da

livre apreciação das provas no artº 607º, nº 5, do CPC, tal significa que o

juiz decide com intermediação de elementos psicológicos inerentes à sua

própria pessoa e que por isso não são racionalmente explicáveis e

sindicáveis, embora a construção da sua convicção deva ser feita segundo

padrões de racionalidade e com uma valoração subjetiva devidamente

controlada, com substrato lógico e dominada pelas regras da experiência, o

que manifestamente se verifica no caso em apreço.

Por outro lado, o princípio da imediação limita a tarefa de reexame da

matéria de facto fixada no tribunal a quo, que só pode ser modificada se

ocorrer erro manifesto ou grosseiro ou se os elementos documentais

fornecerem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi

anteriormente considerado, o que também se não verifica no caso posto,

pelo que não é possível ao tribunal de recurso alterar a decisão da matéria

de facto, designadamente nos segmentos propugnados pela Recorrente,

porquanto tal equivaleria a uma indevida intromissão na liberdade de

apreciação da prova do tribunal a quo, que a lei não aconselha a não ser,

repete-se, que seja evidente uma errada apreciação da prova por parte deste.

Na falta de uma prova firme, indiscutível ou irrefutável, que necessariamente abalasse a convicção que o tribunal de 1.ª instância retirou da prova produzida, não se bulirá no probatório.
Como refere Abrantes Geraldes: «Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.» (v. Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 129).

Na situação vertente, o que está em causa é a verificação da imputada ilicitude da conduta dos militares da GNR, ou seja, se o veículo (...) podia ou não circular na via pública sem cintos de segurança na frente, sendo indiferente o ano em que foi comprado, o estado de uso em que foi comprado, se foi ou não comprado sem cintos de segurança e se foi ou não aprovado nas inspeções periódicas. Sendo de igual modo certo que a Recorrente nem sequer impugna o que na verdade e relevante foi dado como provado, isto é, que o (...) foi fabricado e homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente, tendo, por isso, sido colocado no mercado para circulação com cintos de segurança nos bancos da frente.
Acresce que o depoimento da testemunha CC… não mereceu do Tribunal recorrido a credibilidade que a Recorrente lhe confere porquanto afirmou que o veículo não apresentava

sinais de ter sido fabricado com peças de fixação, dispositivos de

regulação, entradas ou saídas de fivela de fecho e a inspeção feita ao

veículo pelo Tribunal veio evidenciar que o veículo em causa na verdade

apresentava sinais de ter sido fabricado com peças de fixação, dispositivos

de regulação, entradas ou saídas de fivela de fecho, tentando fazer com que

o Tribunal representasse uma realidade bem diferente da verificada em

inspeção. Também é irrelevante o facto: “O veículo (...) passou nas

inspeções”.

A Recorrente ancora a prova deste facto no referido ofício do Centro de

Inspecções que não tem o valor probatório que lhe quer conferir. Esse

ofício apenas refere que o (...) foi sujeito a uma inspecção periódica

em 12/12/2014 e foi aprovado.

Porém não esclarece se foi inspecionado com ou sem cintos de segurança,

tendo o signatário do ofício se dignado a emitir a sua opinião jurídica no

sentido de que o veículo seria aprovado em qualquer dos casos porque a

instalação de cintos de segurança na frente nesse tipo de veículos só se

tornou obrigatória para os matriculados a partir de 27/5/1990. Isto é, para o

signatário do ofício é irrelevante se o (...) foi ou não fabricado e

homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente.

Incontroverso é que o (...) se encontra matriculado desde 03/01/1990 como veículo ligeiro de mercadorias da categoria N1 (Código CE) com lotação para dois lugares nos bancos da frente. Embora na homologação desse modelo de veículo (Toyota Corolla) tivesse sido enquadrado no tipo de veículo ligeiro de mercadorias por ser adequado à função de transporte de carga o certo é que, tendo lotação para dois lugares nos bancos da frente, também estava adequado à função normal de transporte de passageiros, sendo, por isso, o (...) um veículo ligeiro misto, de mercadorias e passageiros. Sendo o (...) um veículo ligeiro misto matriculado depois de 01/01/1966 não estava dispensado da obrigatoriedade da instalação dos cintos de segurança nos bancos da frente (artigo 2º, nº 2, alínea b), 1ª parte, do Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança aprovado pela Portaria nº 311-A/2005, de 24/3).
Por outro lado, e por ter as características de um veículo ligeiro adequado ao transporte de carga e de passageiros, o (...) foi homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente.
Ora, o signatário do referido ofício, pelas funções que exerce, não podia desconsiderar as características da aprovação e homologação do (...) e, consequentemente, não podia ignorar que os acessórios de segurança são partes integrantes dos veículos e que não se pode alterar as características do veículo e dos respetivos sistemas, componentes e acessórios com que o (...) foi aprovado/homologado, sendo que nos termos do n.º 1, do artº 2.º do DL 554/99, de 16 de dezembro, as inspeções periódicas visam confirmar, com regularidade, a manutenção das boas condições de funcionamento e de segurança de todo o equipamento e das condições de segurança dos veículos, de acordo com as suas características originais homologadas ou as resultantes de transformação autorizada nos termos do Código da Estrada, dever que evidentemente omitiu, aprovando um veículo que, se não tinha instalados os cintos de segurança na frente não podia ser aprovado por não apresentar as suas características originais homologadas.
Como se referiu, sendo o (...) um veículo ligeiro misto matriculado

depois de 01/01/1966 não estava dispensado da obrigatoriedade da

instalação dos cintos de segurança nos bancos da frente (artigo 2º/2, alínea

b), 1ª parte, do Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança

aprovado pela Portaria nº 311-A/2005, de 24/3).

Em suma:

-Como sentenciado, «O veículo (...), matriculado desde 03/01/1990

como veículo ligeiro de mercadorias na categoria N1 (Código CE) tinha

lotação para dois lugares nos bancos da frente, tendo sido fabricado e

homologado com a instalação de cintos de segurança nos bancos da frente.

Assim, por o veículo ter sido fabricado de harmonia com a regra da obrigatoriedade de instalação de cintos de segurança, o caso em apreço não era enquadrável no âmbito da excepção prevista no número 2 do artigo 2.º do Regulamento de Utilização de Acessórios de Segurança.
Com efeito, o espírito da excepção não admite a possibilidade de alteração das características do veículo para circulação sem cintos de segurança nos bancos da frente de todos os automóveis ligeiros de passageiros e mistos matriculados antes de 1 de janeiro de 1966 e os restantes automóveis ligeiros matriculados antes de 27 de maio de 1990. Apenas comporta a possibilidade de circulação para aqueles veículos que foram fabricados sem cinto de segurança.».
-O esforço interpretativo da Recorrente não belisca sequer a interpretação

do Tribunal a quo.

-Este não confundiu homogação com instalação. O que disse foi que os

acessórios de segurança são partes integrantes dos veículos e que não se

pode alterar as características do veículo e dos respetivos sistemas com que

foi aprovado e homologado. Se um veículo foi aprovado e homologado

com cintos de segurança na frente estes acessórios de segurança até podem

ser desinstalados desde que essa transformação de uma parte integrante do

veículo seja autorizada nos termos do Código da Estrada, o que

decididamente não ocorreu.

-Não se tendo verificado os pressupostos de que depende a constituição da

obrigação de indemnizar a título de responsabilidade civil extracontratual

tal como foi peticionada, impunha-se a improcedência da acção,

como veio a acontecer.

-Com efeito, nada de ilícito há a apontar à actuação da Guarda Nacional Republicana quando aplicou à Autora uma coima pela prática da infracção: “o veículo acima mencionado circulava, não dispondo dos componentes com que foi aprovado (sistema de retenção, cinto frente).”;

-O que vem dito é suficiente para concluir pelo naufrágio do pedido formulado, ficando, por conseguinte, prejudicada a apreciação da verificação dos restantes pressupostos deste tipo de responsabilidade.

Daí que, por falta de fundamento, tenham de claudicar as Conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Notifique e DN.

Porto, 09/6/2022

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro