Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01818/11.4BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/31/2019
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:EMPREITADA; CESSÃO DE CRÉDITOS;
Sumário:1 – Verifica-se a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, designadamente de natureza contratual, transmite a terceiro o seu direito. A cessão de créditos está prevista nos artigos 577.º a 588.º do Código Civil. Esta figura do direito das obrigações permite substituir o credor originário por outra pessoa, sem alterar os restantes elementos da relação obrigacional. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, salvo se a cessão for interdita por determinação da lei ou convenção das partes ou no caso de o crédito se encontrar ligado à pessoa do credor pela própria natureza da prestação.

2 - O município sempre teria pois de ser condenado no pagamento dos serviços prestados no âmbito da empreitada contratualizada, pois que mesmo que verificadas as imputadas irregularidades à cessão de créditos, tal não autorizaria que se tirasse a ilação de que o negócio jurídico seria equivalente a um nada, como se pura e simplesmente não tivesse acontecido.*
* Sumário elaborado pelo relator.
Recorrente:Município de B...
Recorrido 1:Serralharia O S., S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
O Município de B..., no âmbito da Ação Administrativa Comum, intentada pela Serralharia O S., S.A., tendente ao pagamento da quantia de €62.470,18, acrescida de juros desde a data do vencimento das faturas até integral pagamento, relativa à empreitada de “Remodelação e valorização do museu de Olaria” em B..., inconformado com a Sentença proferida em 26 de julho de 2018, no TAF de Braga, através da qual a ação foi julgada procedente, veio interpor recurso da referida decisão.
Formula a aqui Recorrente/Município nas suas alegações de recurso, apresentadas em 4 de outubro de 2018, as seguintes conclusões:
“I. Entende o aqui Recorrente que não andou bem o Tribunal recorrido ao considerar que a comunicação da cessão em crise foi regulamente efetuada pela P., S.A. e, em virtude disso, os efeitos do contrato de cessão de créditos lhe serem oponíveis e, ainda, que o mesmo não se encontra desobrigado do pagamento da quantia de €62.470,18 em virtude das notificações judiciais que lhe foram efetuadas conforme resulta da aliena T) dos Factos Provados.
II. No que respeita à comunicação da cessão de créditos prevista no artigo 583º n.º1 do Código Civil, o Tribunal a quo entendeu que a mesma foi efetuada no dia 17/3/2011 (cfr, ponto D) dos Factos Provados), tendo o Recorrente aceite essa cessão através do envio de fax em 29/03/2011 (cfr, ponto F) dos Factos Provados), não obstante, cessão de créditos em que a Recorrida pretende assentar a pretensão que deduz nos presentes autos tem a data de 10 de Abril de 2011 (cfr, ponto G) dos Factos Provados).
III. Ora, nunca se pode aceitar que a comunicação de cessão de créditos seja anterior à celebração do próprio contrato de cessão,
IV. Como forma de contornar a dificuldade da alegação produzida pela Recorrida, a sentença recorrida vem aventar a tese segundo a qual o aqui Recorrente foi notificado da cessão de créditos futuros.
V. Ora, um contrato de cessão de créditos futuros não é a mesma coisa que um futuro contrato de cessão de créditos.
VI. Com o devido respeito, o Tribunal a quo não poderia decidir nos termos em que decidiu, tendo em conta um silogismo lógico-jurídico da submissão do artigo 583º n.º1 do Código Civil aos factos dados como provados.
VII. Decorrendo, em virtude disso, a nulidade da sentença dos autos em crise nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do Código do Processo Civil.
VIII. A alegada “comunicação” ao Recorrente mais não é que uma comunicação geral e abstrata, apresentando apenas uma lista de fornecedores que eventualmente figurariam como cessionários.
IX. Mesmo concedendo que, caso não tenha sido anteriormente notificado o devedor da cessão de créditos, sê-lo-á por efeito da citação, não se poderá ignorar que, à data da citação para os termos da presente ação, já o Recorrente havia sido notificado das penhoras e arrestos dos créditos detidos pela Perfilcasssa, Lda., conforme resulta da matéria assente na alínea T) dos Factos Provados.
X. Destarte, não recai sobre o aqui Recorrente qualquer obrigação de pagamento do crédito no montante de €62.470,18 reclamado pela Recorrida.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao recurso e em consequência ser revogada a decisão em crise, absolvendo-se o Recorrente, fazendo assim inteira e sã Justiça!”

A aqui Recorrida/Serralharia não veio a apresentar Contra-alegações de Recurso.
O Recurso Jurisdicional apresentado, veio a ser admitido por Despacho de 28 de Novembro de 2018
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 10 de dezembro de 2018, nada veio dizer, requerer ou Promover.
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, importando verificar, designadamente, se a “comunicação da cessão em crise foi regulamente efetuada”

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo considerou a seguinte factualidade:
“A) A Autora dedica-se à atividade industrial de serralharia, fabrico e montagem de estruturas metálicas, alumínio anodizado e gradeamentos de ferro e bem assim à sua inerente comercialização – cf. documento de fls. 135 e ss. dos autos.
B) No exercício da sua atividade, em 10/11/2010, a Autora contratou com a Sociedade P. – Empreendimentos Imobiliários, Lda., com sede na Rua (…), a execução por parte da Autora de trabalhos na obra “Remodelação e Valorização do Museu de Olaria”, em B..., em regime de subempreitada – cf. documento de fls. 8 a 17 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
C) Extrai-se desse “contrato de (sub)empreitada”, assinado pela Autora e pela Sociedade P. – Empreendimentos Imobiliários, Lda., o seguinte:
(…)
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. documento de fls. 8 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
D) Em 16/03/2011, a Sociedade P. dirige ao Município de B... a missiva que segue:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. de fls. 20 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
E) Missiva esta que deu entrada nos Serviços do Município em 17/03/2011 – de fls. 20 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
F) O Município de B... respondeu à Sociedade P., por fax enviado a 29/3/2011, nos termos que seguem:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. de fls. 23 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
G) Em 10/4/2011, os Legais Representantes da Sociedade P. – Construções e Obras, Lda., e da Serralharia O S., S.A., assinaram um acordo intitulado “contrato de cessão de créditos”, do qual se extrai:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. de fls. 18 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
H) O Município tinha conhecimento dos termos deste contrato de cessão de créditos – cf. depoimento da Testemunha M. F. M. A. F..
I) Os trabalhos a realizar pela Autora consistiram, designadamente, no fornecimento, execução e montagem da cobertura em vidro assente por caixilharia autoportante de alumínio do tipo “Sistema Elegance 52 ST-Arkial, SAPA alumínios” ou equivalente, do vidro duplo do tipo “Isolar Glass” ou equivalente – cf. documento de fls. 8 a 17, 144 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
J) Bem como no fornecimento, execução e montagem por parte da Autora da janela exterior basculante de uma folha, em alumínio anodizado à cor natural com sistema de ruptura térmica, do tipo série “A045-Extrusal” ou equivalente, da janela exterior fixa com caixilharia em aço inox com acabamento mate e vidro laminado - cf. documento de fls. 8 a 17, 144 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
K) E ainda no fornecimento, execução e montagem de porta exterior de abertura para fora de uma folha em alumínio anodizado à cor natural com sistema de rutura térmica, do tipo série “A045-Extrusal”, ou equivalente - cf. documento de fls. 8 a 17, 144 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
L) Estes trabalhos foram realizados, tendo sido aprovados e aceites pela P. – cf. depoimento da Testemunha J.M. R. P..
M) Dando origem à emissão da fatura n.º 236/2011, de 27/05/2011, no montante de €14.361,15, que se venceu em 26/07/2011 - cf. documento de fls. 15 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
N) À emissão da fatura n.º 243/2011, de 31/05/2011, no montante de €41.862,01, que se venceu em 30/07/2011 - cf. documento de fls. 16 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
O) À emissão da fatura n.º 279/2011, de 20/06/2011, no montante de € 6.247,02, que se venceu em 19/08/2011 - cf. documento de fls. 17 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
P) O dono da obra “Remodelação e Valorização do Museu de Olaia” em B... era o Réu – cf. documento de fls. 23, 42, 46, 205 e ss. dos autos.
Q) Em 2/9/2011, representada por Mandatário, a Autora dirige ao Presidente da Câmara Municipal de B... a missiva que se transcreve:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. documento de fls.142 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
R) A petição inicial que deu origem à presente ação entrou em Tribunal no dia 9/11/2011 – cf. documento de fls. 1 e ss. dos autos.
S) O Município de B... foi citado na presente ação em 2/12/2011 – cf. de fls. 30 e ss. dos autos.
T) Certas quantias devidas pelo Réu à P., Lda., foram objeto de penhoras e arrestos no âmbito de processos judiciais conforme segue:
1. No âmbito do processo de execução n.º 213553/10.3YIPRT-A, do 3.º Juízo Cível de Vila Nova de F…, em que figura como Exequente “A. – I de A, do A., Lda.”, o Réu Município foi notificado da penhora do crédito que a Executada P. detinha em consequência de um contrato datado de 26/02/2010 até ao montante de €4.981,56, com referência à obra Remodelação e Valorização do Museu de Olaria da Cidade de B..., tendo o Município procedido ao pagamento;
2. No âmbito do processo de execução n.º 1480/11.4TJVNF, do 3.º Juízo Cível de Vila Nova de F..., em que figura como Exequente ICBP B. P., Lda., foi o Réu notificado em 03/08/2011 da penhora do crédito que a P. detinha até ao montante de € 8.688,55, relativamente a qualquer valor a receber pelo aí Executado;
3. No âmbito do processo de execução n.º 2391/11.9TJVNF, do 4.º Juízo Cível de Vila Nova de F..., no qual figura como Exequente E. & E., Construções, Lda., o Réu foi notificado em 16/08/2011 da penhora do crédito que a P. detinha, até ao montante de € 72.567,10, relativamente a qualquer valor a receber pelo Executado, inclusivamente os relacionados com a obra Remodelação e Valorização do Museu de Olaria da Cidade de B..., encontrando-se os autos extintos por falta de pagamento;
4. No âmbito do processo de execução n.º 3170/11.9TJVNF, do 3.º Juízo Cível de Vila Nova de F..., em que figurava como Executado Adb – Águas de B..., S.A., o Réu foi notificado em 06/10/2011 de que foi penhorado crédito, relativamente a qualquer valor a receber pelo Executado;
5. No âmbito do processo de execução n.º 2386/11.2TJVNF, do 1.º Juízo Cível de Vila Nova de F..., no qual figurava como Exequente E. & E., Construções, Lda., foi o Réu notificado em 24/10/2011, no qual foi penhorado crédito até ao montante de € 17.671,03, relativamente a qualquer valor a receber pelo Executado a título de prestação de serviços e/ou contratos de empreitada;
6. O processo de execução n.º 3508/11.9 TJVNF, do 2.º Juízo Cível de Vila Nova de F..., no qual figurava como Exequente J. H. C. P. e o valor da execução correspondia a € 5658,86, extinguiu-se por desistência da instância;
7. No âmbito do processo de arresto n.º 6823/11.8 TBMAI, do 3.º Juízo Cível da Maia, no qual figurava como Requerente A. – Instalações Electromecânicas, Lda., o Réu foi notificado da sentença que decretou o arresto de créditos da P. sobre o Município, no valor de € 94.936,00, parte do qual veio a ser depositado nos autos em 11/5/2012.
- cf. documentos de fls. 42 a 53, 101 a 105, 160 e ss., 169 e ss., 184 e 185, 192, 199 e ss., 202, 230 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
U) Em 12/12/2011, o Município de B..., aqui Réu, e a empresa P. – Construções Públicas, Lda.”, assinaram um acordo, intitulado “revogação do contrato de empreitada de “Remodelação e Valorização do Museu de Olaria”, do qual resultava:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
- cf. de fls. 207 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
V) Em 12/12/2011, a quantia em débito pelo Réu para com a P., Lda., ascendia a € 109.660,81 (€93.660,81 + €16.000,00) – cf. documento de fls. 163, 185, 199 e ss., conjugado com o de fls. 205 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
W) A Sociedade aqui Autora “O S., S.A.” apresentou-se no processo de insolvência da Sociedade P., como credora da sociedade insolvente pelo valor de €62.470,18, relativamente às faturas identificadas n.º 236, 243, 279, crédito esse que foi reconhecido – cf. de fls. 205 e ss. dos autos.
X) No processo de insolvência da Sociedade P., foi solicitada informação ao Município de B... se entregou o valor de € 16.000,00, referente a trabalhos efetuados durante os meses de Abril, Maio e Junho de 2011 – cf. de fls. 205 e 206 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Y) O Município de B... não entregou o valor correspondente a €16.000, invocando para tal o motivo que segue: existência de anomalias em número muito superior às detetadas por ocasião da celebração do acordo – cf. documento de fls. 252 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.”

IV – Do Direito
O recurso jurisdicional em análise foi interposto pelo Município de B..., relativamente à presente Ação, intentada pela Serralharia O S., S.A., tendente ao pagamento da quantia de €62.470,18, acrescida de juros desde a data do vencimento das faturas até integral pagamento, relativa à empreitada de “Remodelação e valorização do museu de Olaria” em B...

No que ao direito concerne e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“Tal como se avançou na audiência prévia, o objeto do litígio reconduz-se a saber se a cessão de créditos, operada por contrato celebrado entre a Autora e a P., Lda., produziu efeitos em relação ao Réu Município. E, em caso afirmativo, a partir de que data.
A doutrina tem afirmado: “Verifica-se a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, designadamente de natureza contratual, transmite a terceiro o seu direito”. A cessão de créditos está prevista nos artigos 577.º a 588.º do Código Civil. Esta figura do direito das obrigações permite substituir o credor originário por outra pessoa, sem alterar os restantes elementos da relação obrigacional. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, salvo se a cessão for interdita por determinação da lei ou convenção das partes ou no caso de o crédito se encontrar ligado à pessoa do credor pela própria natureza da prestação.
Uma modalidade específica da cessão consiste na cessão de créditos futuros. Na verdade, prevendo o artigo 399.º do Código Civil a prestação de coisa futura, a lei admite que os bens futuros possam ser objeto de venda (art.º 880.º do Código Civil); ponto é que tais créditos sejam determináveis (art.º 280.º, n.º 1, do Código Civil). É manifestamente o caso dos autos.
A P. cedeu à Autora um crédito futuro, mas logo determinado no contrato de (sub)empreitada assinado em 10/11/2010, por corresponder ao preço global da subempreitada, no montante de €62.470,18. A Cláusula Sétima deste mesmo contrato de (sub)empreitada foi ulteriormente densificada no contrato de cessão de créditos, celebrado em 10/4/2011.
Esta cessão de créditos futuros é reconduzível ao regime previsto no artigo 880.º do Código Civil, atento o negócio causal e a causa da cessão, aqui a convocar.
Com efeito, a causa da cessão operada tanto no âmbito do contrato de (sub)empreitada, assinado em 10/11/2010, como por força do contrato de cessão de créditos, celebrado em 10/4/2011, prendia-se com a situação de pré-insolvência em que se encontrava a Sociedade Cedente – P., situação mais tarde judicialmente requerida como resulta dos factos provados.
Por conseguinte, é possível desde já afirmar que a modalidade de cessão de créditos futuros aqui em discussão é em sentido próprio, tanto mais que a Autora veio a juízo exigir o cumprimento da obrigação de pagamento do preço pelas obras que realizou.
A questão decidenda apresenta-se sob o ponto de vista da relação entre a cessionária, aqui Autora, e o devedor, Município Réu, a quem sempre cabia, em primeira linha, proceder ao pagamento da empreitada.
Observa-se também que neste caso a cessão deixou inalterado o crédito transferido.
Na cessão de créditos, e tal como foi já referido, o devedor desempenha um papel passivo, não se exigindo o seu consentimento. Porém, a notificação da cessão, ainda que extrajudicialmente, ou a aceitação do/pelo devedor apresentam-se como requisitos de eficácia da cessão.
Concretizada a notificação ou havendo aceitação, o cessionário será, para todos os efeitos, o único credor.
Mas acrescenta o artigo 583.º, n.º 2, do CC: “Se, porém, antes da notificação ou aceitação, o devedor pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio jurídico relativo ao crédito, nem o pagamento nem o negócio é oponível ao cessionário, se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão.”
Atribui-se, assim, eficácia ao simples conhecimento da cessão pelo devedor.
Em 17/03/2011, o Réu Município foi notificado pela P. da cessão de créditos futuros, com expressa identificação da Autora na qualidade de cessionária e do montante do crédito a ceder: €63.436,00. Mais, nesse ofício verteram-se as razões que levaram a P., em situação de insolvência, a ceder créditos futuros. Por não ter condições financeiras para finalizar a empreitada “Remodelação e Valorização do Museu da Olaria”, a P. convocou a figura da cessão de créditos junto dos fornecedores e subempreiteiros, de entre os quais a Autora, a título de “garantia (…) de recebimento”, motivando-os e mobilizando-os para a execução dos trabalhos.
Da factualidade assente resulta evidente que a Autora só aceitou contratar com a P. se o contrato de empreitada fosse acompanhado da cessão de créditos, a operar a substituição do devedor originário – insolvente – por um novo credor – Réu Município. Basta, para tanto, atentar na sequência lógica e cronológica do vertido nas alíneas C) a G) dos factos provados.
Porém, importa atentar nas palavras da notificação que a P. dirigiu ao Réu Município: “vemo-nos na obrigação e necessidade de e por este meio, solicitar a V. Exas. que parte dos pagamentos a efetuar por V. Exas. na presente empreitada sejam feitos diretamente, em função das indicações de valores por nós transmitidas, aos N/fornecedores, instaladores e subempreiteiros nas datas de vencimentos das N/faturas. Nesta operação a faturação da empreitada será sempre feita pela adjudicatária (P. – Construções e Obras Públicas, Lda.) mediante autos de medição com a consequente emissão dos recibos de quitação. Os pedidos de pagamento diretamente às empresas serão efetuados caso a caso, mediante solicitação expressa para o efeito por N/parte – empresa adjudicatária da empreitada – acompanhada de documento comprovativo da titularidade da conta de destino da transferência por parte do seu beneficiário”.
Assim, o pagamento do valor do crédito cedido à Autora - €63.436 – que constituía parte do preço da empreitada “Remodelação e Valorização do Museu da Olaria” - ficava dependente de solicitação expressa para esse efeito por parte da empresa adjudicatária da empreitada.
Ou seja, pese embora o pagamento dever ser efetuado diretamente à Autora (subempreiteira), como havia que realizar operações contabilísticas no momento imediatamente anterior ao pagamento (no caso, a P. teria que, tendo por base as faturas emitidas pela Autora, emitir as suas próprias faturas de harmonia com os correspondentes autos de medição), o Réu Município sempre teria que aguardar indicação da P. para pagamento do valor cedido.
Importa relembrar que, por despacho de 26/3/2011, o Município aceitou a cedência de créditos futuros da P. nos termos propostos, solicitando, todavia, que “aquando da cessão de créditos, deverá ser expressamente indicada a empresa cessionária e o respetivo crédito cedido”. E cumpre destacar que o Município tinha conhecimento dos termos do contrato de cessão de créditos que foi assinado em 10/4/2011.
Os trabalhos foram integralmente realizados pela Autora, aprovados e aceites pela P., dando origem a três faturas, cujo somatório corresponde ao valor máximo cedido €62.470,18. A P. entrou em processo de insolvência.
Em 2/9/2011, representada por Mandatário, a Autora dirige ao Presidente da Câmara Municipal de B... comunicação solicitando o pagamento de €62.470,18, que – por não lograr êxito – deu origem à presente ação, na qual o Município foi citado em 2/12/2011, aproximadamente seis meses antes da data em que o Réu procedeu ao depósito do montante arrestado no âmbito do processo n.º 6823/11.8 TBMAI.
Ora, pelo menos a partir de 2/12/2011, a cessão – previamente admitida por despacho - produziu efeitos em relação ao devedor – Réu Município, o qual tinha pleno conhecimento dos termos do contrato de cessão de créditos antes mesmo da presente ação ter dado entrada em juízo.
Há muito se afastou do nosso sistema a solução segundo a qual a cessão de créditos se decompunha em duas fases, a saber: a primeira integrada pelo acordo de cessão e a segunda pela notificação do devedor.
Pelo contrário, o desenho da figura da cessão de créditos que emerge dos artigos 577.º e ss do CC permite concluir que a cessão e a correspondente modificação subjetiva operada na relação creditícia se consumaram logo com a outorga do acordo causal. Por sua vez, a sua notificação ou a aceitação constitui mera condição de eficácia externa em relação ao devedor.
A partir da notificação da cessão ou da sua aceitação ou do conhecimento da sua existência, o devedor só se desobriga se efetuar ao cessionário a prestação.
Nas palavras de Menezes Leitão, a “ineficácia do contrato em relação ao devedor constitui um mero limite à tutela do direito de crédito, que não prejudica o facto de o cessionário passar logo a ser perante o cedente o efetivo titular do direito transmitido”.
E de Brandão Proença: “(…) o direito de crédito transmite-se imediatamente com o negócio de alienação passando o cessionário a titular do direito”.
O Réu Município sabia que, em 10/4/2011, a Autora, na qualidade de cessionária, passou a ser titular de um crédito futuro no montante de €62.470,18, que se veio a materializar na data de vencimento das três faturas n.º 236/2011, 243/2011 e 279/2011.
O Réu Município não logrou provar que a Autora recebeu qualquer quantia no âmbito de processos executivos intentados por terceiros contra a P., pese embora o crédito correspondente a €62.470,18 – garantido por penhor (cf. Cláusula 4.ª do contrato de cessão de créditos) ter sido reconhecido e graduado.
Por sua vez, não colhe a alegação segundo a qual o Réu Município já se encontra desobrigado da prestação face ao montante arrestado no âmbito do procedimento n.º 6823/11.8 TBMAI e à revogação do contrato de empreitada, operada por acordo assinado em 12/12/2011, porquanto – se alguma dúvida o Réu Município tivesse quanto à sua obrigação de pagamento - a citação para a presente ação tinha a virtualidade de a afastar.
A partir da data em que foi citado na presente ação – 2/12/2011 – o Município encontrava-se totalmente esclarecido sobre a obrigação de pagamento à Autora, não lhe sendo oponível o mencionado arresto ou revogação do contrato de empreitada, ambos com datas ulteriores à do ato de citação para a presente ação – cf. artigo 583.º, n.º 2, do CC.
Pelas razões expostas, o Réu Município vai obrigado a pagar à Autora a quantia de €62.470,18, acrescida de juros de mora contados à taxa legal aplicável, desde o dia 2/12/2011 e até efetivo pagamento.”

Refira-se desde já que se acompanha e ratifica o essencial de tudo quanto precedentemente se expendeu na decisão recorrida, sendo que se mostraria redundante e inútil reiterar o aí afirmado ainda que, porventura, com diferente “roupagem” discursiva.

Em qualquer caso, sempre se dirá que, mesmo que se entendesse que a cessão de créditos estaria ferida de alguma irregularidade, em momento algum o município afirma que o contratualizado terá deixado de ter sido adequadamente realizado, em face do que sempre teria de ser remunerado.

Por outro lado, e como se afirmou na decisão recorrida, é incontornável que “A partir da data em que foi citado na presente ação – 2/12/2011 – o Município encontrava-se totalmente esclarecido sobre a obrigação de pagamento à Autora, não lhe sendo oponível o mencionado arresto ou revogação do contrato de empreitada, ambos com datas ulteriores à do ato de citação para a presente ação – cf. artigo 583.º, n.º 2, do CC.”

Já noutra perspetiva, mas ainda assim, no mesmo sentido decisório, afirmou-se no acórdão deste TCAN nº 949/11BEBRG, de 17/04/2015, aqui aplicado mutatis mutandis, que “(…) Tal como relativamente aos serviços prestados ao abrigo de um contrato entretanto declarado nulo, perante a inexistência de um contrato, resultante da sua caducidade, e continuando a ser prestados os serviços anteriormente contratualizados, sem oposição, enquanto “Contrato de facto”, tais serviços terão de ser remunerados. A inexistência de contrato, por caducidade do mesmo, não autoriza “a ilação de que o negócio jurídico seja equivalente a um nada, tal como se pura e simplesmente não tivesse acontecido.”

Efetivamente, não referindo o município em momento algum que a empreitada de “Remodelação e valorização do museu de Olaria” tenha deixado de ser executada, e tendo sido dado como provado que, designadamente o arresto, tinha data ulterior à citação para a presente ação, significa que não poderão deixar de ser pagos pelo município os créditos aqui reclamados.

Não é pois exata a ideia de que, mesmo verificada uma qualquer irregularidade na cessão de créditos, o que está por provar, o que é facto é que o contratualizado no âmbito da empreitada não terá deixado de ter sido executado, sendo esse facto incontornável.

Com efeito, e como se afirmou já, mesmo que se tivesse verificado uma qualquer irregularidade no contrato de cessão, sempre estaríamos perante uma «relação contratual de facto».

Sempre estaríamos pois e em qualquer caso perante um «contrato de facto», ou «contrato imperfeito» noutra terminologia.

Tendo a empreitada continuado a ser executada, mesmo que irregularidades tivessem ocorrido na cessão de créditos, como se disse, sempre estaríamos perante um “Contrato de facto”, cujos serviços sempre teriam de ser remunerados.

Em linha com o Acórdão do Colendo STA nº 047638 de 21-09-2004, o município teria pois de ser condenada no pagamento dos serviços prestados no âmbito da empreitada contratualizada, pois que mesmo que verificadas as imputadas irregularidades à cessão de créditos, tal não autorizaria que se tirasse a ilação de que o negócio jurídico seria equivalente a um nada, como se pura e simplesmente não tivesse acontecido.

Efetivamente, da factualidade provada é possível concluir que as partes mantiveram no âmbito da identificada empreitada, relações contratuais, sendo que o município nunca pôs em causa que a empreitada tenha sido executada.

Em resumo, mesmo que tivessem ocorrido irregularidades na cessão de créditos, o que se não vislumbra, ainda assim sempre o município na qualidade de cessionário teria de dar satisfação às suas obrigação contratuais pois que o contratualizado não poderia ser “equivalente a um nada”, sendo que, se fosse caso disso, sempre estaríamos em presença de “Contrato de facto”.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao Recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente
Porto, 31 de outubro de 2019

Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa