Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00939/21.0BEBRG
Secção:
Data do Acordão:12/21/2021
Relator:Fernanda Esteves
Descritores:CONFLITO NEGATIVO, INCOMPETÊNCIA MATERIAL, JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM, JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
Decisão:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:A….., devidamente identificado nos autos, instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga acção administrativa contra o Instituto da Segurança Social, I.P, pedindo a anulação do acto do Núcleo de Prestações Familiares e Solidariedade do Centro Distrital de Braga, datado de 8/3/2021, que indeferiu o pedido de atribuição do subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial (SEE), previsto no DL nº 133-B/97, de 30/5, para o ano lectivo 2019/2020, e a condenação do Réu a proferir decisão de deferimento total do pedido formulado.

Por decisão de 26/5/2021, no Juízo administrativo social do TAF de Braga foi declarada a incompetência para conhecer a acção, considerando competente para o efeito o Juízo administrativo comum daquele TAF.

Por decisão de 9/7/2021, o Juízo administrativo comum do TAF de Braga também se julgou oficiosamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer do mérito da acção, por considerar competente para tal o Juízo administrativo social do mesmo TAF e, por via disso, foi suscitada a resolução do conflito negativo de competência.

As duas decisões transitaram em julgado.

Cumprido o disposto no artigo 112.º do CPC, as partes nada disseram.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer, concluindo pela competência do Juízo administrativo comum do TAF de Braga para o conhecimento da acção.

Nada obstando, cumpre decidir sumariamente o presente conflito.

A questão que aqui se coloca é a de saber qual o Juízo materialmente competente para apreciar e decidir a acção administrativa que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga: se o Juízo administrativo comum ou se o Juízo administrativo social.
Tal questão surge por força da alteração ao artigo 9.º e do aditamento do artigo 44.º-A, ambos do ETAF, introduzidos pela Lei n.º 114/2019, de 12/9, do Decreto - Lei n.º 174/2019, de 13/12, que, na sequência dessa revisão ao ETAF, procedeu à criação de juízos de competência especializada - criando juízos de competência especializada designadamente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga - e da Portaria n.º 121/2020, de 22/5, que estabeleceu o dia 1/9/2020 como a data de entrada em funcionamento dos respectivos juízos de competência especializada [artigo 1.º, alíneas s) e c)].
Ora, sob a epígrafe “[c]ompetência dos juízos administrativos especializados” dispõe o artigo 44.º - A do ETAF:
“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:
a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;
b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;
c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;
d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.
(…).”

Daqui resulta que o Juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, ou seja, tratando-se de matérias que não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as mesmas cabe ao Juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece sob a competência material comum precisamente porque esta é residual.

Na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social ao direito especial da função pública e ao denominado direito da segurança social.

Com efeito, decorre da norma da alínea b) do n. º1 do artigo 44.º-A, do ETAF, que ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social (incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial).
No caso em apreço, a questão da competência passa pela interpretação da norma no segmento em que alude a (processos relativos a litígios) “relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social”.
A protecção social insere-se na temática dos direitos sociais e nem sempre corresponde a um mesmo conceito(cf. Tatana Pereira Nunes, A protecção social dos trabalhadores em funções públicas.). É hoje, todavia, pacífico que a interpretação jurídica não se esgota no chamado elemento literal, o qual não constitui senão um entre outros elementos a considerar no processo hermenêutico - apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica -, pelo que, com vista a apurar o sentido da referida norma importará levar em conta todos esses outros subsídios interpretativos.

Dos trabalhos que antecederam a Lei n.º 114/2019, de 12/9, designadamente a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, bem como o Preâmbulo do Decreto-Lei nº 174/2019, de 13/12, que procedeu à criação dos juízos especializados na jurisdição administrativa e fiscal, resulta que a especialização foi preconizada pelo legislador como meio de gestão e de agilização dos tribunais, visando obter ganhos de eficiência no funcionamento da jurisdição.
Por isso é que a distribuição das competências de acordo com as especificidades das matérias só se justifica quando constituir um factor de racionalização e de agilização no funcionamento da jurisdição; assim como é por isso que, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 174/2019 se diz que “a concretização da especialização surge principalmente da análise dos dados estatísticos e empíricos disponíveis, i.e., da constatação do elevado volume de processos nas áreas identificadas nos artigos 9.º e 9.º- A do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, na sua redação atual. A expressão total dos dados absolutos não deixa margem para equívocos, tendo-se baseado as opções tomadas na apreciação crítica e ponderada daqueles dados estatísticos e num estudo de extrapolação do Observatório da Justiça (…)” e que, além do mais, se decidiu pela agregação de diversas especialidades e pela atribuição de jurisdição alargada aos juízos dos contratos públicos.
Com efeito, a especialização dos tribunais administrativos prevista na revisão do ETAF, e concretizada no citado DL 174/2019, está integrada num processo legislativo de reforma da jurisdição administrativa e fiscal suportado no referido estudo científico levado a cabo pelo Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, cujo relatório foi amplamente divulgado e é do conhecimento público.
Ora, nas recomendações/conclusões do referido relatório consta, a propósito da especialização na área administrativa, o seguinte: “(…) Como resulta dos indicadores apresentados, com exceção do contencioso de nacionalidade em Lisboa e, em bastante menor grau, das questões relacionadas com o trabalho em funções públicas, o objeto de litígio nas ações em matéria administrativa é muito disperso, o que, em si, é fator de complexidade. Como se detalha na parte II do relatório e se evidencia no quadro que representa o peso relativo dos objetos de ação por tribunal, apenas as questões relacionadas com o trabalho em funções públicas têm um peso mais relevante.
A distribuição desses processos, em tribunais de maior volume processual, como o Tribunal do Porto, juntamente com as questões relacionadas com previdência e aposentação, à semelhança do que ocorre em outros países, poderão ser concentradas em 2 juízes dos aí colocados (…).” [p. 362/363 - (sublinhado nosso)].
Acolhendo as recomendações/conclusões do referido relatório, o legislador pretendeu, se bem vemos, associar a competência do juízo administrativo social ao direito especial da função pública e ao denominado direito da segurança social/sistema previdencial.
Essa intenção do legislador resulta, aliás, também evidenciada pela evolução da redacção da própria norma. Enquanto que na redacção inicial da referida alínea b) constante do anteprojecto do ETAF competia ao juízo administrativo social conhecer de todos os processos relativos a litígios de emprego público ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, excepto os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, o legislador acabou, na versão final da norma, por incluir aí (expressamente) os litígios relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial. Estando em causa nestes litígios uma prestação da Segurança Social sucedânea de um rendimento de trabalho e, como tal, ainda dentro do referido critério material que presidiu à criação do juízo administrativo social, compreende-se que o legislador tenha concluído não se justificar a sua exclusão da competência do juízo especializado.
Adicionalmente, importa referir que a expressão em causa já constava da norma do n.º2 do artigo 151.º do CPTA, segundo a qual o disposto no n.º1 [em que estão previstos os pressupostos de admissão do recurso per saltum para o STA] não se aplica “a processos respeitantes a atos administrativos em matéria de emprego público ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social”.

Ora, em anotação a esse n.º2, considera a boa doutrina que “(…) o preceito consagra um outro pressuposto de admissão do recurso (…), evidenciando que o recurso per saltum se deve circunscrever às decisões qualitativamente mais importantes, com a consequente exclusão de questões laborais dos trabalhadores em exercício de funções públicas (…) e das questões que se suscitem no âmbito da relação jurídica de previdência (sublinhado nosso) - cf. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilhe, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, 2021, p. 1220.
Em suma, conjugando a letra da lei com os demais elementos interpretativos resulta, a nosso ver, que o legislador pretendeu que o juízo administrativo social fosse o juízo dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação (relação de trabalho pública) ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social (relação jurídica de previdência pública e privada), com uma delimitação de competências correspondente, em grande parte, à competência dos tribunais do trabalho (no seio dos tribunais judiciais).
E como já dissemos em anteriores decisões, esta interpretação (restritiva) parece-nos ser aquela que melhor se coaduna com os objectivos de agilização e eficiência preconizados pelo legislador com a especialização do juízo administrativo social, os quais seriam certamente mais difíceis de alcançar se à área de trabalho em funções públicas fosse associada a multiplicidade de questões relacionadas com a protecção social que cabem no âmbito da competência dos tribunais administrativos.
Isto dito, retomando ao caso dos autos, importa então apurar a natureza do litígio em causa na acção a fim de determinar a quem cabe a competência para o conhecimento da mesma.
Com efeito, constitui entendimento jurisprudencial pacífico que a competência dos tribunais em razão da matéria se afere em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão pelo autor na sua petição inicial - objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes - cf., por todos, acórdãos do Tribunal de Conflitos de 28/9/2010, Processo 023/09; de 20/9/2011, Processo 03/10; de 10/7/2012, Processo 3/12; de 23/5/2013, Processo 021/12; de 21/1/2014, Processo 44/13; de 1/10/2015, Processo 08/14.
Também Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha referem que: “a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado” (in ob. cit., , p. 151).
No caso concreto, o que o Autor pretende com a presente acção é que seja anulado o acto administrativo que recusou a atribuição de subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial, previsto no DL. n.º 133-B/97, de 30/5, Decreto Regulamentar n.º 3/2016, de 23/8, para o ano lectivo 2019/2020, e o Réu seja condenado a deferir totalmente o pedido apresentado.
Este subsídio destina-se a assegurar a compensação de encargos resultantes da aplicação de formas específicas de apoio a crianças e jovens com deficiência, designadamente a frequência de estabelecimentos adequados (cf. artigo 1.º do referido Decreto Regulamentar).
Não está, portanto, aqui em causa qualquer questão relacionada com o direito especial da função pública ou com uma prestação social abrangida pelo denominado direito da segurança social/sistema previdencial.
Pelo que vimos de dizer se conclui, pois, que o Juízo administrativo social é materialmente incompetente para conhecer da acção, cabendo essa competência ao Juízo administrativo comum, por ser o juízo de competência residual em matéria administrativa no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei no 174/2019, e do artigo 44º-A, n.º1, alínea a), do ETAF.

Nestes termos, resolvo o presente conflito negativo de competência por forma a atribuir ao Juízo administrativo comum do TAF de Braga a competência material para conhecer da acção administrativa a que se referem os autos, declarando inválida a decisão desse Juízo de 9/7/2021.
Sem custas.
Cumpra - se o disposto no artigo 113.º, n.º3 do CPC.

_____________________________________________________

i) cf. Tatana Pereira Nunes, A protecção social dos trabalhadores em funções públicas.