Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01466/13.4BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2015
Tribunal:TAF de Braga
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO DE EMPRESAS, ACÇÕES PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS
Sumário:1 - Não devem ser consideradas “acções para cobrança de dívidas”, para efeito de suspensão da instância nos termos do Artigo 17º-E/1 do CIRE, as acções declarativas de condenação em que seja formulado um pedido de condenação em quantia pecuniária quando, de acordo com as pretensões formuladas pelas partes, o conhecimento de tal pedido dependa de prévia declaração judicial sobre a existência e relevância jurídica dos factos geradores da pretensa dívida.
2 - Tal será o caso tipicamente das acções em que se pede uma indemnização por responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, ou se discute a fonte da relação creditícia invocando-se por exemplo a invalidade do contrato, por falta ou vícios da vontade ou outras causas invalidantes.
3 - No caso dos autos o Autor (Hospital de S. J...) intentou acção administrativa comum contra SCFH-Sociedade Central Farmacêutica Hospitalar, S.A., para pagamento da quantia de € 2.628.546,74 e juros, por dívidas provenientes de alegado incumprimento contratual (Contrato de concessão do serviço público criado no Hospital de S. J... E.P.E. para a dispensa de medicamentos ao público).
Em contestação o Réu impugnou a pretensão do A. alegando, entre o mais, que “O A. não é credor das importâncias que reclama”, invocando a “alteração anormal e imprevisível das circunstâncias” e a excepção do não cumprimento do contrato, assim como o direito de retenção relativamente a todos os meios afectos à concessão, nomeadamente o estabelecimento da farmácia hospitalar sito no Hospital de S. J... e, ainda, deduzindo reconvenção em que pede a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de 2.908.277,00€ a título de compensação/indemnização, em sede de responsabilidade civil, por incumprimento contratual.
Neste contexto, só com a decisão judicial relativamente a estas questões ficará esclarecido se o Autor é credor ou devedor relativamente ao Réu.
4 - O que não impede que instância possa ser suspensa nos termos gerais dos Artigos 15º CPTA e/ou 272º do CPC, ou ser até declarada extinta, na hipótese de aprovação e homologação de plano de recuperação, na eventualidade de o Autor ser admitido a participar no PER como credor, mas isto só casuisticamente – e não no modo automático previsto no Artigo 17º-E/1 do CIRE - poderá ser encarado e resolvido.*
*Sumário elaborado pelo Reator.
Recorrente:Centro Hospitalar de S. J.., EPE
Recorrido 1:SCHF
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO

Centro Hospitalar de S. J..., E.P.E. interpôs o presente recurso jurisdicional da decisão proferida em 17/09/2014 no TAF do Porto, no âmbito da acção administrativa comum, sob a forma ordinária, por si proposta contra SCFH - Sociedade Central Farmacêutica Hospitalar, S.A. para pagamento da quantia de € 2.628.546,74 e juros vencidos à data da propositura da acção e vincendos por alegadas dívidas provenientes de incumprimento contratual (Contrato de concessão do serviço público criado no Hospital de S. J... E.P.E. para a dispensa de medicamentos ao público) determinando “… a suspensão dos presentes autos” na sequência do ofício remetido pela 1.ª Secção do Comércio do Tribunal Judicial de Leiria (processo n.º 244/14.8TBFVN, Processo Especial de Revitalização (PER) da sociedade comercial SCFH) e em face do disposto nos artigos 272.º, n.º 1 in fine do CPC conjugado com o disposto no artigo 17.º-E do CIRE.”.

*
O Recorrente pede a procedência do presente recurso e, em consequência, a revogação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões de recurso:
1 - O artigo 17º-E, nº 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que: “1 - A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.” - sublinhado nosso.

2 - Por aplicação desta norma, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, e após a prolação da decisão a que se refere o artigo 17º-C, nº 3 alínea a) do CIRE, suspendem-se as acções para cobrança de dívidas instauradas contra o devedor.

3 - A presente acção administrativa comum configura uma acção declarativa de condenação, pelo que não integra a categoria de “acções para cobrança de dívidas”, pelo que não pode ser abrangida pelo campo de aplicação da referida norma legal.

4 - A acção declarativa de condenação não se acha abrangida pelo campo de aplicação do artigo 17º-E, nº 1 do CIRE, pelo que o efeito da suspensão não lhe é aplicável, sendo que apenas se acham abrangidas pelo campo de aplicação daquele preceito as execuções para pagamento de quantia certa, as quais visam a realização coactiva do direito.

5- O elemento literal diz-nos que o despacho de nomeação do admi­nistrador judicial provisório suspende as acções para cobrança de dívidas contra o devedor, sendo certo que nenhuma referência é feita na letra da lei às acções declarativas.

6 - Atendendo ao elemento sistemático, e considerando o teor do artigo 88º e do artigo 17º- E do CIRE, resulta que na previsão do artigo 17º E, nº 1, o legislador quis prever um campo de aplicação mais restritivo do que o elencado no artigo 88º, pelo que somente as acções executivas para pagamento de quantia certa e os procedimentos cautelares antecipatórios destas se enquadram no referido artigo 17º E, nº 1.

7 - Não há fundamento legal para decretar a suspensão da presente acção administrativa comum.

8 - A suspensão decretada viola o direito constitucionalmente consagrado ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º da CRP).

9 - Foram violados os artigos 17º-E, nº 1 e 88º do Código de Insolvência e de Recuperação da Empresa, o artigo 9º do Código Civil e o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.”.

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A Recorrida, não contra-alegou.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, notificada nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, pronunciou-se sobre o mérito do presente recurso, nos termos que constam do seu parecer de fls. 764 a 765 dos autos, sentido de lhe ser concedido provimento.
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DEFINIÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objecto do presente recurso jurisdicional e, em consequência, o âmbito de intervenção deste tribunal, encontra-se delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente a partir da respectiva motivação – artigos 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 3, 4 e 5 e 639.º do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, caso existam, e do disposto no artigo 149.º do CPTA.

As questões suscitadas resumem-se a saber e decidir se decisão recorrida padece de erro de julgamento por, com fundamento nas disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, alínea d) do CPC e art.º 17.º-E do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE], ter determinado a suspensão dos presentes autos (acção administrativa comum, sob a forma ordinária, para pagamento à ora Recorrente pela Recorrida da quantia de € 2.628.546,74 e respectivos juros vincendos e vencidos, por alegadas dívidas provenientes de alegado incumprimento contratual.

Ou seja, está em discussão a suspensão dos presentes autos declarada ao abrigo do disposto no art.º 17.º-E, n.º 1, do CIRE.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com relevância para o julgamento do presente recurso toma-se em consideração os seguintes elementos do processo:

A - O Centro Hospitalar de S. J..., E.P.E., ora Recorrente intentou no TAF do Porto, em 03/06/2013, acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra SCFH-Sociedade Central Farmacêutica Hospitalar, S.A., ora Recorrida para pagamento da quantia de € 2.628.546,74 (dois milhões seiscentos e vinte e oito mil quinhentos e quarenta e seis euros e setenta e quatro cêntimos) e juros vencidos à data da propositura da acção e vincendos, por alegadas dívidas provenientes de alegado incumprimento contratual (Contrato de concessão do serviço público criado no Hospital de S. J... E.P.E. para a dispensa de medicamentos ao público).
Juntou prova documental e testemunhal.

B – Em contestação o Réu formulou a seguinte pretensão:
«Nestes termos e melhores de direito, deve julgar-se:
a) Improcedente, por não provada, a acção, e, em consequência, absolver-se a R. do pedido, com verificação das demais consequências legais e
b) Procedente, por provada, a reconvenção, e, em consequência, condenar-se o A./Reconvindo a pagar à R./Reconvinte a quantia mínima de 2.908.277,00€ (…) a título de compensação/indemnização devida, em sede de responsabilidade civil (máxime, por incumprimento contratual), por todos os prejuízos emergentes do contrato de concessão “sub iudice”, constituindo tanto danos directos (prejuízos emergentes) como lucros cessantes, imputáveis ao A., incluindo a obrigação de reposição de equilíbrio financeiro da concessão, quantia a que acrescerão os juros de mora vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento, (…) quantia que poderá ser ampliada em liquidação (nomeadamente, de execução de sentença) em face da evolução da exploração deficitária da concessão e do previsível avolumar dos danos, nos termos supra expostos, reconhecendo-se concomitantemente, e sendo causa disso, o invocado direito de retenção da R. sobre todos meios afectos à concessão, em especial o estabelecimento farmacêutico sito ao Hospital de S. J..., no Porto, tudo com as legais consequências.»
Juntou prova documental e requereu prova testemunhal.

C - Os presentes autos constituem a acção principal do procedimento cautelar especificado de arresto (n.º 770/13.6BEPRT), intentado em 21/03/2013 no TAF do Porto pelo Recorrente contra a Recorrida para arrestar “o crédito já vencido, proveniente da comparticipação no fornecimento de medicamentos que a Requerida tem sobre a ARS Norte- Administração Regional de Saúde do Norte, IP, …. até à quantia de € 2.407.991, 15 (dois milhões quatrocentos e sete mil novecentos e noventa e um euros e quinze cêntimos)”.

D - A referida providência foi deferida por decisão proferida em 21/05/2013 que determinou o arresto ”do crédito já vencido, proveniente da comparticipação no fornecimento de medicamentos que a requerida SCFH, SA tem sobre a ARS Norte- Administração Regional do Norte IP, até à quantia de 2.407,991, 15 €”, confirmada por acórdão deste TCAN, de 11/10/2013, já transitado em julgado.

E - Em 05/08/2014 por despacho proferido no processo n.º 244/14.8TBFVN que corre termos na 1.ª Secção do Comércio do Tribunal Judicial de Leiria foi admitido o Processo Especial de Revitalização da sociedade comercial SCFH, ora Recorrida, nos termos do disposto nos artigos 17.º-A n.º 2 e 17.º -C, n.ºs 1,2 e 3. Alínea b) do CIRE.

F - Em 08/09/2014, o administrador judicial provisório, nomeado no Processo Especial de Revitalização referido veio requerer a suspensão do procedimento cautelar em questão ao abrigo do art.º 17.º-E, n.º do CIRE, o que foi deferido por despacho de 17/09/2014 (rectificado por despacho de 09/10/2014) que ao abrigo do disposto nos artigos 269.º, n.º 1 al. d) do CPC/2013 e 17.º-E do CIRE, determinou a “… a suspensão dos … autos de arresto quanto aos montantes arrestados com vencimentos futuros”.

G - Desta decisão foi pela ora Recorrente interposto recurso para este TCA – com fundamentos idênticos ao do presente recurso – ao qual, por Acórdão n.º 770/13.6BEPRT, datado de 19 de Dezembro de 2014 (ainda não publicado) foi negado provimento.

H - Igualmente, na sequência do ofício remetido aos presentes autos pela 1.ª Secção do Comércio do Tribunal Judicial de Leiria (processo n.º 244/14.8TBFVN, PER da sociedade comercial SCFH) e em face do disposto nos artigos 272.º, n.º 1 in fine do CPC conjugado com o disposto no artigo 17.º-E do CIRE, foi determinada “a suspensão dos presentes autos”.

I – Dão-se por reproduzidos os articulados e os demais documentos dos autos, quando referidos neste acórdão.

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DE DIREITO

O Recorrente critica a decisão de suspensão dos presentes autos, alegando que o artigo 17.º-E, n.º 1, al. a) do CIRE não abrange acções declarativas mas apenas acções executivas para pagamento de quantia certa e os procedimentos cautelares antecipatórios destas ações, argumentando fundamentalmente como segue:

- O elemento literal da norma, ao indicar que o despacho de nomeação do admi­nistrador judicial provisório suspende as ações para cobrança de dívidas contra o devedor, afasta as acções declarativas de condenação, porque a expressão “cobrança de dívida” apela apenas a ações executivas para pagamento de quantia certa. Cita neste sentido, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in PER, O Processo Especial de Revitalização, Comentários aos artigos 17º - A a 17ª – I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Coimbra Editora, 1ª Edição, Março 2014, páginas 97 e ss, segundo os quais:

“II. A segunda questão que se levanta em face do texto legal tem que ver com o tipo de efeitos que, em razão da previsão do artigo 17.°-E, n.° 1, se produzem sobre as acções para cobrança de dívidas.

O elemento literal diz-nos que o despacho de nomeação do admi­nistrador judicial provisório “obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”

A expressão acções para cobrança de dívidas a que se refere o artigo 17.°-E, n.° 1, abrange apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos nos artigos 867.° ou 869.° do Código de Processo Civil) e os procedimentos cautelares antecipatórios de acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal.

Encontram-se excluídas, pois, do âmbito de aplicação do n.°1 do artigo 17.°-E, as acções declarativas, as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares.”

– O elemento sistemático, em confronto com o teor do artigo 88º do mesmo diploma legal, conduz no sentido de que o legislador quis prever no artigo 17º-E nº1 um campo de aplicação mais restritivo, onde somente as acções executivas para pagamento de quantia certa e os procedimentos cautelares antecipatórios destas se enquadram, citando de novo neste sentido Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis:

“Desde logo, porque a expressão utilizada - cobrança de dívidas - remete-nos imediatamente para uma acção destinada a obter o pagamento coercivo de uma quantia pecuniária. Aliás, a expressão cobrança de dívidas é habitualmente utilizada ou encontra-se associada à realização coactiva de uma prestação em dinheiro. Parece, pois, ter sido esse o sentido que o legislador quis dar à expressão acção para cobrança de dívidas.

Por outro lado, cumpre referir que, se o legislador tivesse querido abranger na previsão do artigo 17.°-E, n.°1, todas as acções executivas, certamente que teria optado por uma redacção idêntica àquela que utilizou no artigo 88°. De facto, no referido artigo 88.°, não se deixou margem para dúvidas de que a declaração de insolvência obsta à instauração e ao prosseguimento de quaisquer acções executivas (“A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção execu­tiva intentada pelos credores da insolvência”).

Porém, a verdade é que, quando regulou os efeitos do PER no artigo 17.°-E, n.°1, o legislador optou por não reproduzir a redacção do artigo 88.° De facto, elegeu-se uma redacção diferente e notoria­mente mais restritiva, que abarca apenas as acções para cobrança de dívida. Note-se que o facto de estarmos sempre a falar do mesmo diploma legal - o CIRE - é particularmente importante, pois deve presumir-se que o legislador conhecia a redacção do artigo 88.°, pelo que quando deu uma redacção distinta ao artigo 17.°-E fê-lo intencionalmente, com um sentido normativo (i.e., de diferenciação entre as previsões de ambas as normas) que o intérprete não pode descurar. Assim, o intérprete encontra-se obrigado a concluir que o artigo 17.°-E, n.°1, não abrange todas as acções executivas (como sucede no caso do artigo 88.°) - mas apenas as acções para cobrança de dívida (que, em nosso entender, adianta-se, correspondem essencialmente a ações executivas para pagamento de quantia certa). Se se entendesse doutro modo, estar-se-ia a afirmar que o artigo 17.°, n.° 1, e o artigo 88.° teriam o mesmo âmbito de aplicação, o que se encontra vedado à luz das regras da interpretação. Conforme se explicou, se o legislador quisesse que o artigo 17.°-E, n.° 1, abrangesse todas as acções executivas, certamente teria recorrido à mesma redacção que utilizou, para esse efeito, no artigo 88.° Não o tendo feito, deve o intérprete retirar as devidas ilações dessa constatação, concluindo que o objetivo legal foi limitar o âmbito de aplicação do artigo 17.°-E, n.° 1 apenas às acções de cobrança de dívida.

Ora, apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa podem ser consideradas como verdadeiras acções para cobrança de dívida para os efeitos do artigo 17.°-E, n.º1) – in ob. cit., pp 98 e ss.

Acrescenta o Recorrente que as ações declarativas não devem ser consideradas como ações para cobrança de dívidas, para efeitos disposto no artigo 17º-E, nº 1 do CIRE, uma vez que aquelas visam estabelecer o direito, e não assegurar a realização coactiva do mesmo, implícita na expressão “acção para cobrança de dívida”, apelando, uma vez mais, aos citados autores, e obra supra identificada, segundo os quais:

“(…) as acções declarativas não devem ser con­sideradas como acções para cobrança de dívida para os efeitos do artigo 17.°-E, n.° 1. Com efeito, em qualquer das suas modalidades, as acções declarativas têm sempre o fito de estabelecer o direito e nunca o de assegurar a realização coactiva do mesmo (realização coactiva essa que está ínsita na expressão cobrança de dívida; esta expressão remete imediatamente para a efectiva realização do direito e não para a discussão da existência do direito, pois não se pode cobrarum direito cuja existência ainda é controvertida). As acções de sim­ples apreciação visam obter unicamente a declaração de existência ou de inexistência de um direito; não existe qualquer realização coactiva, pelo que não se poderá falar numa cobrança de dívida. As acções constitutivas destinam-se a autorizar uma mudança na ordem jurídica existente; pelos mesmos motivos também não se poderá falar de cobrança de dívida.

(...) As acções de condenação - como, aliás, todas as demais acções declarativas - representam sempre um momento declarativo do direito. Não existe na acção de condenação realização coativa do direito, pelo que também não se poderá falar de cobrança de dívida. Está-se ainda numa fase prévia, em que se discute e se reconhece judicialmente a existência de um devedor e de uma dívida.

(…) Diversamente, já não se levantam quaisquer dificuldades quanto à extinção das acções executivas, pois estas pressupõem a existência do direito e visam assegurar a realização coactiva do mesmo. O que acontece é que, com a aprovação e homologação do plano, a satisfação dos credores passou a dever ser feita nos termos previstos no plano de recuperação. Por isso, o prosseguimento das acções executivas - que visavam obter o pagamento imediato - tomou-se inútil, pois a forma de pagamento aos credores passou a ter de ser realizada de acordo com os termos do plano de recuperação. Nesta medida, faz todo o sentido que as acções executivas - mas apenas estas - se extingam.

Nem se diga que, quando o artigo 17.°-E, n.°1, se refere a dívi­das, fá-lo em sentido amplo, por forma a abranger a prestação de pagamento, a prestação de facto e a prestação de coisa certa.”

Postula ainda ser a interpretação a que chega – que o artigo 17.º-E, n.º 1, al. a) do CIRE não se aplica às ações declarativas - a única que respeita a vontade legislativa de estabelecer âmbitos de aplicação distintos entre o artigo 17.º-E, n.º 1 e o artigo 88.º do CIRE – citando em abono da sua tese o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.07.2013, proferido no processo n.º 1190/12.5TLSB.L1-4, disponível in www.dgsi.pt do qual transcreveu o seguinte:

“E, com respeito por entendimento distinto, não se vislumbra que a supra citada expressão “para cobrança de dívida” abranja as acções declarativas.

Desde logo, porque, a nosso ver, salvo melhor opinião, uma acção para cobrança de dívida não equivale, nem é sinónimo, de uma acção para cumprimento de obrigações pecuniárias.

Na realidade, o Autor de uma acção declarativa em que invoque a verificação de um crédito sobre outrem … só é, efectivamente, declarado credor caso a acção proceda”.


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Em sentido contrário à tese do Recorrente se pronunciou recentemente este TCAN no seu Acórdão referido em G), cuja fundamentação, incluindo uma proveitosa recensão crítica da doutrina e jurisprudência sobre o tema que nos ocupa, deve merecer aqui atenção redobrada, pela sua valia intrínseca mas também pela necessidade de justificar qualquer divergência de entendimento que relativamente a ele se verifique. Assim, lê-se no referido acórdão:

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«Por fim, para o que releva para a economia destes autos estatui o art.º 17.º-E n.º1 do CIRE que “A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.

Resulta do teor do Art.º 17.º-E, n.º3, al. a) do CIRE que o mesmo não refere expressamente a que espécie de ações é que se está a reportar quando alude a “ações para a cobrança de dívidas”, e daí os diferentes entendimentos que têm sido veiculados sobre o sentido a dar a essa expressão.

Na perspetiva do Recorrente, como vimos, a aludida expressão abrange apenas as ações executivas e, dentro destas, apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa, encontrando-se, portanto, excluídas do âmbito de aplicação do preceito, quer as execuções para entrega de coisa certa, quer as execuções para prestação de facto e, excluídas também se encontram as ações declarativas.

Esta tese, conforme se escreve no Acórdão da Relação de Lisboa, de 05/06/2014, prolatado no processo n.º 171805/12.0YI PRT.L1.2, relatado pela senhora Desembargadora Ondina Carmo Alves «encontra o seu fundamento no facto de apenas estar em causa no preceito, a realização coactiva do direito, o que não sucede com as acções declarativas que apenas têm por objectivo estabelecer o direito, e nunca o de assegurar a realização coactiva do mesmo, o que tão pouco se verifica nas acções de condenação, ainda que em causa esteja a condenação do devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, tanto mais que se considera que acção para cobrança de dívida não é equivalente a acção para cumprimento de obrigações pecuniárias.

Aduz-se ainda a favor desta tese, a circunstância de o preceito estabelecer que as acções de cobrança de dívidas se extinguirão logo que seja aprovado e homologado o plano de recuperação, o que apenas fará sentido se se reportar às acções executivas que visam assegurar a realização coactiva do direito, e não às acções declarativas, na medida em que nelas não se discute o pagamento da dívida, mas apenas a existência da mesma, sendo certo que o plano de recuperação apenas dispõe sobre a forma de pagamento da dívida, tornando inútil o prosseguimento das acções executivas, pois a forma de pagamento passou a ter de ser realizada, de acordo com os termos do plano de recuperação».

Ora, em matéria de interpretação de leis prescreve o nº1, do art. 9º do CC que à atividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas. No nº 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal. Finalmente, no nº 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objetividade, que o intérprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. I, 3ª ed., págs. 58 e 59).

(…)

Considerando estes postulados hermenêuticos, é nossa profunda convicção que, não esclarecendo a lei o que se deve entender, para efeitos legais, por cobrança de dívida, a expressão “ações para a cobrança de dívidas”, abrange todas as ações judiciais, declarativas e executivas destinadas a exigir o cumprimento de um direito de crédito e, portanto, suscetíveis de afetar o património do devedor, nesse sentido apontando claramente, quer o elemento literal, quer a ratio do regime legal do processo especial de revitalização (PER).

Conforme se escreveu no citado Ac. da Rel. de Lisboa, de 05/06/2014, este entendimento “encontra fundamento no próprio objetivo do processo de revitalização que se traduz na obtenção de um acordo unânime ou maioritário com todos os credores, com vista à recuperação económica do devedor, só fazendo sentido para obtenção desse desiderato que todas as acções que contendem com o património do devedor sejam suspensas”.

Em dissonância com o que entende o Recorrente, e a doutrina subscrita pelos autores que identifica, da literalidade do preceito legal em causa não extraímos nenhum indicador no sentido de ali se estabelecer uma diferenciação de modo a poder sustentar-se que o preceito em causa não abrange todas as ações, executivas e declarativas. E, sendo assim, impõe-se observar a máxima segundo a qual não deve o intérprete distinguir onde o legislador não distinguiu.

Ademais, reitera-se, aponta também nesse sentido a ratio do regime do PER.

Conforme se escreve no Acórdão da Relação de Lisboa n.º 1290/13.4TBCLP.L1.2, de 21/11/2013 “Para além do legislador não poder ignorar a existência das espécies de ações, consoante o seu fim, também, por outro lado, não pode o intérprete desprezar o efeito na vida do devedor, nomeadamente de uma sociedade comercial, provocado pela negação da suspensão da ação, depois de iniciado o processo especial de revitalização”.

Na verdade, tendo o processo especial de revitalização como finalidade permitir a celebração de um acordo entre o devedor e os seus credores com o fito de viabilizar a sua recuperação económica [do devedor], esse desiderato ficaria gravemente comprometido caso houvesse a possibilidade de um qualquer credor deter ainda o poder de continuar a exigir judicialmente os seus créditos.

Note-se que a intenção declarada do legislador, ao instituir o processo especial de revitalização, foi a de permitir ao devedor, com o acordo total ou maioritário dos credores, a recuperação da sua precária situação económica, marcada pela dificuldade em cumprir pontualmente as suas obrigações, só fazendo sentido para a obtenção desse desiderato que todas as ações que contendam com o património do devedor sejam suspensas.

Em suma, este entendimento é o mais coadunável, quer com a interpretação literal do preceito, quer com a ratio do regime do PER instituído pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, cujo desiderato consiste em garantir a eficácia de qualquer medida de recuperação do devedor.

A este respeito é também reveladora, como se expendeu no mencionado Ac. da R.L. «a diferença de regimes e propósito, do diferente regime consagrado no processo de revitalização (artigo 17º-F, nº 1) e no processo de insolvência (artigo 88º), aqui se prevendo expressamente que: A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes».

E, como também se assinala nesse acórdão é de notar que “mesmo no âmbito do regime da insolvência, o Supremo Tribunal de Justiça, no AUJ nº 1/2014, D.R. de 25.02.2014, veio pôr termo às divergências jurisprudenciais, no que concerne aos efeitos da declaração de insolvência sobre as acções declarativas pendentes, estabelecendo, no seu segmento decisório, que: Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287º do C.P.C. “.

Nesta esteira, a admitir-se a possibilidade de qualquer ação contra o devedor não ser suspensa, então estar-se-ia a privilegiar, sem razão justificativa, um credor, sendo certo que o objetivo do legislador consistiu em proporcionar condições para a recuperação económica da empresa, com um tratamento igualitário dos credores.

(…)

Por isso, não se acompanha o entendimento sufragado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de julho de 2013, acessível em www.dgsi.pt (1190/12.5.TTLSB.L1-4).

(…)

Em nosso entender, todas as ações, quer declarativas, quer executivas, se suspendem nos termos do artigo 17.º, n.º1, al. a) do CIRE (…).

No sentido que preconizamos, veja-se o que sustentam autores como Ana Prata, Jorge Morais de Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pag. 64, que em anotação ao art. 17º-E, esclarecem que “cabem neste conceito quer acções declarativas de condenação, quer acções executivas”; em igual sentido veja-se Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob.cit., págs.164-165, os quais sustentam, a respeito do n.º 1 do artigo 17.º-E, que“(…) a paralisação aqui determinada abrange todas as acções para a cobrança de dívidas e não apenas as executivas, incluindo-se, assim, as acções declarativas condenatórias (…e) também acções com processo especial e procedimentos cautelares” e ainda João Aveiro Pereira, in “A revitalização económica dos devedores”, O Direito, ano 145º, 2013, I/II, página 37, para o qual “embora não exista na lei adjectiva nenhuma espécie de acções de cobrança de dívidas, deve entender-se que esta expressão se reporta a acções declarativas para cumprimento de obrigações pecuniárias e a acções executivas para pagamento de quantia certa (…)”.

Para além do exposto, não é desconhecido deste tribunal o sentido da jurisprudência maioritária que a este respeito tem vindo a ser produzida (…) de que são exemplos os seguintes acórdãos:

(i) Da Relação do Porto- Acórdãos de 30/9/2013, processo n.º 516/12.6TTBRG.P1; de 18/12/2013, processo n.º 407/12.0TTBRG.P1);

(ii) Da Relação de Évora - Acórdão de 16/1/2014, processo n.º 358/13.1TTPTM.E1;

(iii) Da Relação de Lisboa - Acórdãos de 21/11/13, processo n.º 1290/13.4BCLD.L1-2; de 18/06/2014, processo n.º 899/12.8TTVFX.L1-4; processo 171805/12.0YIPRT.L1.2.»

*
Acções para cobrança de dívidas
É chegada a altura de proceder à reanálise da questão segundo os traços próprios e específicos do litígio que se debate nestes autos, significativamente diversos, diga-se, dos ilustrados em qualquer dos acórdãos já referidos.

Entende-se, desde logo, que o respeito devido à idoneidade técnica do legislador, inerente ao princípio interpretativo consagrado no artigo 9º/3 do C. Civil, impele a que na fixação do sentido da expressão “acções para cobrança de dívidas” se resista ao conforto de solução “fácil”, nomeadamente por referência à dicotomia de meios processuais típicos ou nominados, pois se tal solução existisse ou fosse desejável o legislador não teria deixado de a consagrar, como de resto fez em sede de processo de insolvência, no Artigo 88º/1 do CIRE.

Mas este argumento serve tanto para refutar a tese restrita do Recorrente, segundo a qual a expressão “cobrança de dívida” contempla apenas as ações executivas para pagamento de quantia certa, como a tese ampla acolhida na decisão recorrida, no sentido de abarcar todas as ações declarativas e executivas destinadas a exigir o cumprimento de um direito de crédito.

Em qualquer das hipóteses seria de questionar o porquê de o legislador ter optado por um conceito aberto, se o seu intuito se satisfizesse com qualquer uma das soluções claras e inequívocas assim propostas.

Note-se que as teses em confronto têm abstractamente viabilidade, visto que os diferentes sentidos que preconizam encontram, ambos, na letra da lei correspondência verbal adequada.

E, igualmente, qualquer delas tem trunfos na mão em termos sistemáticos e dogmáticos.

A noção restrita de “cobrança” proposta pelo Recorrente corresponde de forma imediata e intuitiva ao sentido de recebimento/pagamento de uma quantia em dinheiro (conforme a perspectiva activa ou passiva), que está presente numa multiplicidade de disposições legais (e na linguagem corrente) bastando atentar no “documento único de cobrança” (DUC) para pagamento de custas ou no REGULAMENTO DA COBRANÇA E DOS REEMBOLSOS, DL 492/88, de 30 de Dezembro, cujo Artigo 14º/1, por exemplo, dispõe: «A cobrança das dívidas de impostos considera-se efectuada na data da entrega do respectivo meio de pagamento, sem prejuízo do disposto no número seguinte».

Em contraponto, a cobrança pode ser voluntária ou coerciva (os exemplos dados referem-se a cobrança voluntária) e só a adição do qualificativo “coerciva” comprometeria decisivamente a interpretação da norma no sentido de se confinar às acções executivas.

O pensamento dogmático também não é suficiente para desambiguar a expressão.

Na verdade, como ensina o Prof. Manuel Domingos Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 56-57), se em “termos rigorosos” a distinção entre processo declaratório e processo executivo “equivale a diferença entre o dizer (dictum) e o fazer (factum)”, já em “termos correntes”, “a distinção costuma estabelecer-se apenas quanto às acções em que o Autor se arrogue o direito a uma prestação (acções de condenação) ou em que a sentença imponha ou declare para alguma das partes a obrigação de efectuar uma prestação (…). É principalmente o caso das acções destinadas à cobrança de dívidas. O processo será declaratório até à respectiva sentença; será executivo quando, uma vez proferida sentença condenatória, se trate de efectivar a condenação (…)

E prosseguindo: “Sendo que, em geral, para a realização do direito à prestação (…) se tornam necessários, em regra, os dois processos, eles são usualmente considerados como etapas do mesmo iter processual complexivo. Donde as designações vulgares – fase declaratória e fase executiva do processo”.

O omnipresente argumento “ubi lex non distinguit…” não colhe frutos nesta discussão porque as duas realidades em confronto se situam em planos diferentes, mediato e imediato, sendo certo que só a acção executiva (e não a declarativa) se destina imediatamente à cobrança de dívidas, nada obrigando, nem na teoria nem na prática, que à condenação no pagamento de uma dívida se siga uma execução (pode, por exemplo, sobrevir o pagamento voluntário, a inércia do credor ou o perdão da dívida).

Ou seja, não se descortina uma via “tecnicista” capaz de delimitar de forma indiscutível o sentido da expressão normativa em causa - “acções para cobrança de dívidas” - e, portanto, admite-se que o próprio legislador, avisadamente, não quis comprometer a aplicação justa e equilibrada da lei com uma fórmula demasiado rígida. Atitude que se afigura sensata perante o imprevisível hibridismo das situações da vida real, para mais num processo especial (de revitalização) radicalmente inovatório, e assim optou por ditar apenas uma orientação genérica, deixando ao labor e perspicácia da jurisprudência e da doutrina o desenvolvimento dogmático do conceito em causa, em harmonia com as demais regras e princípios atendíveis, em ordem à prossecução equilibrada de todos os interesses, nem sempre convergentes, envolvidos no PER.

Mas, como é óbvio, os Tribunais não podem permanecer manietados na dúvida metódica nem remeter-se pragmaticamente ao puro domínio da casuística e, portanto, sem aceitar que a discussão se reduza ao corte dicotómico proposto, em sentidos opostos, na decisão recorrida e nas alegações do Recorrente, há que prosseguir esforços na busca de uma solução justa, equilibrada e não arbitrária.

Pelo exposto, sem dar de barato, longe disso, que a solução que tem sido maioritariamente sustentada na jurisprudência e na doutrina seja a mais adequada do ponto de vista técnico-jurídico, redobradamente se justifica intentar a superação dos limites do pensamento formalista sobretudo na perspectiva judiciária, em que a boa solução da demanda não depende necessariamente do sucesso na demanda do santo graal do conceito perfeito, prossegue-se na via metodológica que Mário Júlio Almeida Costa (Direito das Obrigações, 7ª edição, p. 57 e ss) sintetiza nestes termos (a propósito do conceito técnico de obrigação, mas claramente aplicável noutras áreas):

«Sustenta a moderna metodologia que os cultores do direito não devem propor-se uma simples explicação teórica das soluções consagradas na lei, dirigida a uma visão sistemático-formal do ordenamento jurídico, que era o objectivo da chamada jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz). Em vez dessa linha metodológica, considera-se que a ciência do direito, mercê da sua exacta natureza, tem de orientar-se pelo primado da vida e não partindo de um puro logicismo. Deste modo, entende-se que incumbe ao jurista, como tarefa principal, a indagação dos motivos práticos das soluções da lei, dos interesses materiais ou ideais e finalidades que as determinam, como postula a jurisprudência dos interesses (Interessenjurisprudenz); ou melhor, de acordo com a subsequente orientação da jurisprudência das valorações (Wertungsjurisprudenz), (…) é necessário que (…) ao aplicar-se o direito se atenda essencialmente aos princípios ou critérios valorativos em que as formulações legislativas se baseiam e imanentes ao ordenamento jurídico. Acresce que, numa vincada acentuação do momento pragmático da linguagem e dos esquemas institucionais, as próprias correntes analíticas destacam o facto de uma adequada resolução dos problemas jurídicos concretos apenas se tornar possível mediante a ponderação das especificidades destes, em referência a uma certa prática, e nunca por mera via axiomático-dedutiva de subsunção».

Demonstração cabal da insuficiência do quadro “simplista” que inspira a decisão recorrida, segundo a qual na previsão do art. 17º-E, nº1 do CIRE, e quanto à suspensão das acções aí previstas, cabem todas as acções de natureza executiva e declarativas destinadas ao cumprimento de obrigações pecuniárias, pode ver-se no recentíssimo acórdão do TRC, Pr. 1075/13.8TBVIS.C1, de 03-03-2015 (in www.dgsi.pt) que, partindo da mesma ideia/regra é obrigado pela pressão da realidade a matizar e a “excecionar” várias hipóteses (cfr. sumário):

«I - Na previsão do art. 17-E nº1 do CIRE, e quanto à suspensão das acções aí previstas, cabem as de natureza executiva para pagamento de quantia certa e as acções declarativas destinadas ao cumprimento de obrigações pecuniárias.

II - Fora da previsão desse normativo ficam as acções executivas que não tenham por finalidade o pagamento de quantia certa (v.g. as destinadas a entrega de coisa certa ou a prestação de facto); os procedimentos cautelares que não sejam antecipatórios de cobranças de dívida e as acções declarativas em que o pedido não seja o de cumprimento de obrigação pecuniária e, ainda, aquelas outras em que o pedido principal não seja o de cumprimento de obrigação pecuniária, mesmo que, de forma secundária e para o caso de o pedido principal obter procedência, se deduza pedido de indemnização».

Para caracterização do caso, transcreve-se ainda desse acórdão os seguintes passos:

«Na acção declarativa com forma de processo sumário que A… moveu contra L…, Ldª, o autor pediu a condenação da ré a “reparar adequadamente todos os problemas do tractor agrícola em causa (…) de modo a esta viatura poder trabalhar e com segurança;

- Substituir a mesma viatura por outra com o acordo do Autor (…)

- Ainda a pagar ao autor indemnização pela privação do uso do mesmo tractor por danos patrimoniais no valor de € 4.000.00 (quatro mil euros) acrescida de juros legais desde a citação até efectiva e integral reparação ou substituição do tractor e pagamento da mesma indemnização”.

(…)

Na acta de julgamento o tribunal recorrido proferiu decisão da qual consta que

“Foi-me agora presente o Processo Especial de Revitalização da aqui ré. Trata-se do processo nº ...

Compulsados os respetivos autos, verifico que foi proferido a fls. 155 e 156 o despacho a que se refere o artº 17º-C, nº 3, al. a) do CIRE.

Nos termos do disposto no artº 17º-E, nº 1 do referido CIRE, tal despacho suspende, quanto ao devedor, o prosseguimento das ações para cobrança de dívidas.

(…)

A reclamação judicial do cumprimento de uma obrigação pecuniária que pode ser havido com cabimento no preceito em análise, cremos que não é aquele que resulte de forma mediata ou indirecta da definição de uma obrigação prévia que não é pecuniária, como acontece no caso em decisão.

Aqui, o que se discute em primeira linha são os efeitos de uma venda de um bem realizado pela ré ao autor, bem esse que se diz defeituoso, reclamando-se por isso, como contrapartida a reparação dos seus defeitos ou a sua substituição.

É verdadeiramente este o objecto da acção e, perante ele, mesmo na oposição das duas correntes interpretativas afirmadas, julgamos que em ambas se entenderia estar este tipo de acção fora da previsão do art. 17-E nº1. É que sendo a acção definida por este objecto (directo e imediato) a circunstância de se reclamar também uma indemnização relativa à privação do uso do veículo não é bastante, quer para suspender a acção quer para realizar essa suspensão parcialmente e reportando-a apenas ao pedido indemnizatório.

(…)

Assim, considerando que o pedido indemnizatório formulado está dependente dos pedidos de reparação ou substituição da viatura e não pode razoavelmente ser considerado autonomamente para efeitos de determinar se a obrigação discutida é ou não de cobrança de dívida, entende-se que, pelas razões expostas, deve a acção prosseguir os seus termos não lhe sendo aplicável o art. 17-E nº1 do CIRE.»

Como se vê, há uma notória evolução relativamente à ideia pregressa que, para preenchimento do conceito de “acções para cobrança de dívidas” como fundamento de suspensão ao abrigo do Artigo 17º-E nº1 do CIRE, tratando-se de acção declarativa, se bastava com a formulação nessa acção de um pedido de condenação do devedor (“desvitalizado”) ao cumprimento de uma obrigação pecuniária.

Ora, segundo este acórdão do TRC, não basta observar o pedido formulado, tornando-se ainda necessário fazer apelo ao “objecto da acção”, ou seja, a uma realidade muito mais ampla porque engloba também a causa de pedir. Resta saber se isto ainda permanece no campo das hipóteses “excecionais” ou não deveria redundar já na exigência de um novo critério.

A evolução continuará. Na verdade é fácil conceber outras hipóteses de alargamento do campo das acções declarativas de condenação em obrigação pecuniária que devem ficar “fora da previsão” do art. 17-E nº1 do CIRE (para utilizar a expressão do acórdão do TRC, com a qual na realidade não se concorda, por se entender que arranca de um critério/regra inadequado). Sinteticamente, pode assentar-se desde já em que, no domínio das acções declarativas, não é fiável o critério que olhe apenas à formulação de um pedido de condenação em obrigação pecuniária.

A tese adoptada

Em tese geral e encurtando razões, entende-se que escapam à suspensão prevista no Artigo 17º-E/1 do CIRE todas as acções declarativas de condenação, mesmo que nelas sejam formulados pedidos de condenação em obrigações pecuniárias, nas quais, atento o seu objecto e as pretensões formuladas pelas partes, o Tribunal, para fundar a condenação no pagamento de uma obrigação pecuniária, tenha que se pronunciar previamente sobre questões que versam sobre a existência, configuração ou validade de relações jurídicas obrigacionais complexas onde tais obrigações entroncam. Ou seja, acções em que as partes não divergem apenas sobre o montante, modo, subsistência, extinção, etc. de determinado crédito cujo facto genético admitem, mas, num conflito mais profundamente cavado, estendem o desacordo à própria existência e valoração jurídica dos factos pretensamente geradores dos créditos invocados (pelo Autor e até pelo Réu, se existir reconvenção) e correspondentes obrigações.

Por outras palavras, situações em que o próprio estatuto credor/devedor não é consensual, mas antes discutido pelas partes desde a raiz.

São de mencionar, por exemplo, os pedidos de condenação numa obrigação de indemnização, tanto no domínio da responsabilidade civil extracontratual como na contratual, assim como as questões que versam sobre a própria existência e/ou validade do contrato de que promanam os créditos/dívidas invocados.

É óbvio que, não estando estes créditos declarados por decisão judicial e não sendo assumidos/reconhecidos/confessados pelo devedor, não teria sentido útil para o credor invocá-los em sede de PER, onde não disporia de meios minimamente adequados para os fazer prevalecer, perante a mais que provável impugnação a que seriam sujeitos pelo devedor e pelos demais credores.

Como refere o TRC no Proc. 36/14.4TBOLR.C1, Acórdão de 10-03-2015, referindo-se à tramitação do PER:

«O legislador, com o mecanismo processual ora em apreço, atribui ao juiz um papel muito restrito e faz radicar a defesa do interesse público em que se traduz a saúde da economia, ou a preservação do tecido económico, na primazia da autonomia da vontade da maioria qualificada dos credores, ainda que, em detrimento da liberdade contratual individual e da inviolabilidade da esfera jurídica de algum ou alguns dos credores, cujo consentimento, nesse estrito sentido, é dispensado…».

Basta observar, lendo o Artigo 17º-D do CIRE, que na respectiva tramitação não há lugar a resposta às impugnações e não é possível indicar outros meios de prova além da documentação já trazida aos autos, situações que levam Carvalho Fernandes e João Labareda a escrever in ob.cit., pág. 159:

«Sendo assim, não se vê obstáculo a que, não tendo a decisão sobre a impugnação no processo de revitalização sido precedida da observância das garantias próprias da discussão em processo civil, nomeadamente por virtude da limitação da produção e apreciação de provas, a questão possa vir a ser reposta em sede de outro processo que, diferentemente do da revitalização, tenha por objectivo prioritário e fundamental a definição da situação jurídica controvertida».

Ora, posto isto, não se vê que faça sentido suspender este tipo de acções, já instauradas, durante o tempo que perdurarem as negociações.

Na verdade, afigura-se claro da leitura do Artigo 17º-E n.º1 que as “acções para cobrança de dívidas” suscetíveis de serem suspensas durante o tempo das negociações, coincidem com o conjunto das que serão votadas à extinção ou à continuação, no momento e consoante o previsto no plano de recuperação que vier a ser aprovado.

E portanto, não serão suscetíveis de suspensão as acções que não podem ser extintas por vontade das personagens envolvidas no PER.

É certo que na hipótese de vir a ocorrer a eventual execução da eventual condenação da Ré na acção declarativa em curso, isso obviamente contenderá com o património do devedor (posto que dele algo reste, segundo os ventos da fortuna), mas como é óbvio isto mais não representa do que o normal funcionamento da garantia do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (Artigo 20º CRP), estruturante do ordenamento jurídico, ao qual não se pode opor o desiderato economicista, conjuntural, de garantir a eficácia de qualquer medida de recuperação do devedor, que inspira o regime do PER instituído pela Lei 16/2012, de 20 de Abril.

Também não impressiona a objecção constante do Acórdão de 19-12-2014 deste TCAN, Proc. 770/13.6BEPRT, supra transcrita, segundo a qual «a admitir-se a possibilidade de qualquer ação contra o devedor não ser suspensa, então estar-se-ia a privilegiar, sem razão justificativa, um credor, sendo certo que o objetivo do legislador consistiu em proporcionar condições para a recuperação económica da empresa, com um tratamento igualitário dos credores».

Pelo contrário, seria claramente uma discriminação negativa do credor/autor suspender o único meio de que dispõe para realizar o seu direito, para benefício dos demais credores cujos créditos são acautelados pela via do PER, tão interessados como o devedor na revitalização da empresa.

A acção em causa

O Autor, ora Recorrente, intentou no TAF do Porto, em 03/06/2013, acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra SCFH-Sociedade Central Farmacêutica Hospitalar, S.A., ora Recorrida, para pagamento da quantia de € 2.628.546,74 (dois milhões seiscentos e vinte e oito mil quinhentos e quarenta e seis euros e setenta e quatro cêntimos) e juros vencidos à data da propositura da acção e vincendos, por alegadas dívidas provenientes de alegado incumprimento contratual (Contrato de concessão do serviço público criado no Hospital de S. J... E.P.E. para a dispensa de medicamentos ao público).

Em contestação o Réu impugnou a pretensão do A. alegando, entre o mais, que “O A. não é credor das importâncias que reclama”, e invocou a “alteração anormal e imprevisível das circunstâncias”, ou seja, a insurgência na área da saúde de radicais alterações legislativas, produtoras de um súbito “twist” nos pressupostos em que assentou o contrato de concessão em causa (Concessão da Exploração do Serviço Público criado no Hospital de S. J..., EPE, para a dispensa de medicamentos ao público), pelo que “A renda inicialmente contratada tornou-se iníqua e desajustada logo nos primeiros meses da concessão, comprometendo o equilíbrio económico-financeiro da concessão”. Sendo certo que o Estado, autor dessa alteração legislativa é o “único detentor do capital do A”, pelo que o factor indutor do necessário reequilíbrio financeiro é o chamado “facto do príncipe”.

Invocou a excepção do não cumprimento do contrato.

E invocou ainda o direito de retenção relativamente a todos os meios afectos à concessão, nomeadamente o estabelecimento da farmácia hospitalar sito no Hospital de S. J....

Finalmente, o Réu deduziu reconvenção, em face da “obrigação de reposição do equilíbrio financeiro” que imputou ao A., pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 2.908.277,00€, a título de compensação/indemnização, em sede de responsabilidade civil, por incumprimento contratual.

Realça-se o facto de o Réu negar ao Autor a qualidade de credor e deduzir contra ele acção cruzada (reconvenção), o que significa que na eventualidade de o desfecho da causa lhe ser favorável verá reforçado o seu património.

De todo o modo, verifica-se que as pretensões formuladas na acção, incluindo o reconvencional, entroncam numa relação contratual complexa e que as dívidas invocadas não estão pacificamente documentadas nem têm expressão contabilística inquestionável, o que significa que não têm características favoráveis à sua inclusão no processo de revitalização e, desse modo, não configuram “acções para cobrança de dívidas” para efeito de serem obrigatoriamente suspensas nos termos do Artigo 17º-E nº1 do CIRE.

O que não significa que a instância não possa ser suspensa nos termos gerais dos Artigos 15º CPTA e/ou 272º do CPC, na eventualidade de o Autor ter sido efectivamente admitido a participar no PER e, consequentemente, ter aberta a possibilidade participar das negociações para aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização no âmbito do PER.

Assim, o recurso merece provimento e a decisão recorrida não pode manter-se.


*

DECISÃO

Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

Sem custas, por falta de oposição da Recorrida.

Porto, 17 de Abril de 2015
João Beato Sousa (por vencimento)
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro (vencida), com o seguinte voto de vencido:

O erro de julgamento imputado à decisão recorrida – de suspensão da instância da acção administrativa comum, sob a forma ordinária, para pagamento à Recorrente pela Recorrida da quantia de € 2.628.546,74 e respectivos juros vincendos e vencidos, por alegadas dívidas provenientes de alegado incumprimento contratual, com base no disposto no artigo 17.º-E n.º 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE] – fundamenta-se, no essencial, na leitura interpretativa que o Recorrente faz da norma em causa, no sentido de a mesma apenas abranger tão-somente as acções executivas para pagamento de quantias certas (e procedimentos cautelares com efeitos antecipatórios das referidas acções).

Razão pela qual, ao assim não proceder, violou os artigos 17º-E e 88º do CIRE, 9.º do Código Civil (CC) e o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Considerando o texto do artigo 17.º-E n.º 1 do CIRE, inserido no capítulo relativo ao Processo Especial de Revitalização (PER), sob a epígrafe “efeitos” – “A decisão a que se refere a alínea a) do nº 3 do artigo 17º-C [ou seja, a decisão judicial nomeando o administrador provisório] obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.” – impõe-se questionar se os efeitos inibitórios e suspensivos que ocorrerem por força do despacho de nomeação do administrador provisório – com reporte a acções de “cobrança de dívidas” e “a acções em curso com idêntica finalidade” dirigem-se apenas às acções executivas para pagamento de quantia certa (e aos procedimentos cautelares antecipatórios inerentes a estas acções) ou também às acções declarativas que tenham por objecto a condenação da empresa devedora (“a recuperar”) no pagamento de dívidas/créditos (sejam de natureza garantida, privilegiada, comum, subordinada, condicional, sob condição (suspensiva ou resolutiva) – cfr. artigos 50.º e 129.º do CIRE.

A lei alude a “acções para cobrança de dívidas” sem referir, no que a este processo interessa, que “espécie” de acções judiciais se suspendem após a decisão judicial referenciada “durante o período de negociações” que, afinal, constitui a base e a essência do PER, e daí a discussão que a interpretação desta norma tem suscitado na doutrina e na jurisprudência sendo maioritária a posição/entendimento que sustenta que o normativo citado abrange igualmente as acções declarativas condenatórias (de condenação ao pagamento de dívidas) ou, noutra expressão, as “acções declarativas para cumprimento de obrigações pecuniárias” – assim, Ana Prata, Jorge Morais de Carvalho e Rui Simões, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 64; João Aveiro Pereira, in “A revitalização económica dos devedores”, O Direito, ano 145º, 2013, I/II, página 37; Carvalho Fernandes e João labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 2ª edição, 2014, pg. 164, nota 3; Fátima Reis Silva, Processo Especial de Revitalização, Porto Editora, 2014, pg. 53, e, na jurisprudência, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação do Porto, de 30/9/13, de 18/12/13; de 30/06/14 e 04/07/14, 05/01/2015, da Relação de Évora, de 16/1/14, da Relação de Lisboa, de 21/11/13, 28 de Abril de 2014, de 18/06/14, do TRC, 27 de Fevereiro de 2014, de 03-03-2015, do TRG (in www.dgsi.pt); - Em sentido contrário, restringindo a aplicabilidade de tal norma somente às acções executivas: - Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, O processo especial de Revitalização, Coimbra Editora, 2014, pg. 97; e - Maria do Rosário Epifânio, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, 2015, pg. 33, na jurisprudência, o Ac. TRL de 11/07/13.

Ora, independentemente das teses/interpretações em confronto, e da sempre possível identificação de outras – intermédias, eclécticas, evolutivas, mais ou menos casuísticas – perante a norma em causa, e face à questão decidenda, teria negado provimento ao presente recurso por interpretar “a norma” fundamento da decisão recorrida, no sentido de a mesma abranger a situação dos autos.

De acordo com os cânones de interpretação de leis ínsitos no artigo 9.º n.ºs 1e 2 e 3 do CC – o qual expressa os princípios que a doutrina e a jurisprudência foi desenvolvendo, designadamente os elementos auxiliares do intérprete na tarefa interpretativa: literal, sistemático, racional (mens legis) teleológico (finalidade da lei) histórico – a actividade interpretativa, na determinação da sentido prevalente da lei não se basta com o teor literal das normas (sem prejuízo de não poder afastar-se do significado da sua expressão verbal) devendo apelar às condições históricas do tempo da formulação das normas a interpretar, inserida na ordem jurídica (vontade do legislador histórico) e, numa perspectiva actualista, à especificidade do tempo em que são aplicadas (n.ºs 1e 2), presumindo o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada segundo critérios de objectividade (n.º 2) – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pp. 58 e 59.

Interpretar uma lei significa clarificar o sentido e o alcance com que ela deve valer, fixando-o (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26), cabendo pois o intérprete descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que por ela estão cobertas, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145).

Determinante será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, determinada à luz do fim querido pela norma e, por outro, que funcionalmente justificada no sentido de adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema. Espera-se afinal do intérprete que o mesmo, movendo-se no âmbito das possíveis significações linguísticas do texto legal, respeite o sistema da lei, não quebrando a sua harmonia ou coerência interna, procurando, de entre as várias acepções que a letra da lei comporte, – não excluídas pelo sistema – a que se regule pelos critérios da justiça e da utilidade prática (adequação às exigências da vida).

A tarefa interpretativa tem único limite a impossibilidade de ultrapassar o teor literal da lei e o seu leque de acepções possíveis e adequadas ao entendimento normal das palavras constantes da norma a interpretar. Por isso se diz que a letra da norma é o ponto de partida e de chegada do intérprete.

Feitas as asserções interpretativas que se deixam enunciadas, e aplicando-as ao caso dos autos, não esclarecendo a lei o que se deve entender por “acções para a cobrança de dívidas” com vista à concretização dos efeitos inibitório e suspensivo resultantes da norma interpretanda, tal expressão abrange todas (mas apenas e tão só) as acções judiciais executivas e declarativas (condenatórias) destinadas a exigir o cumprimento de um direito de crédito por alegado incumprimento de obrigações pecuniárias e, assim, susceptíveis de afectar (ou vir a afectar) o património do devedor.

Naturalmente que tratando-se de acção declarativa se pressupõe que o pedido principal e imediato seja o de cumprimento pelo devedor (“a revitalizar”) de uma obrigação pecuniária.

Nesse sentido apontando os elementos literal, sistemático e, decisivamente, o racional e teleológico (a ratio e finalidade do regime legal do PER cuja vocação consiste em garantir a eficácia de qualquer medida de recuperação do devedor.

Literalmente, apesar de não existir na lei processual espécie ou tipo de “acções de cobrança de dívidas”, tratando-se pois de uma expressão infeliz usada pelo legislador, a verdade é a de que tal expressão comporta igualmente as acções declarativas de condenação (para recebimento/pagamento de uma quantia em dinheiro). Cobrar (dívidas) significa afinal exigir de outrem uma prestação em dinheiro, o que sucederá em qualquer dos casos.

Com efeito, as ações declarativas de condenação no pagamento de uma dívida não deixam de ter por finalidade a cobrança dessa dívida, a qual será voluntária – se o réu jurisdicionalmente condenado a pagar espontaneamente – ou coerciva se o autor tiver de instaurar a correspondente execução para obter aquele pagamento.

Aliás, o normativo em causa refere-se a “quaisquer …acções” de cobrança (de dívidas), sem qualquer acrescento da palavra “coerciva” bem como às de “idêntica finalidade” às de “cobrança de dívidas”, o que reforça a interpretação abrangente que se adopta.

Esta interpretação adequa-se ainda ao disposto noutras normas do CIRE e em diplomas paralelos e de outros ordenamentos jurídicos (argumento sistemático ou da unidade do sistema jurídico). Referimo-nos, por exemplo, ao artigo 817.º do Código Civil que inclui nos instrumentos de realização coactiva da prestação quer a acção de cumprimento quer a execução, bem como aos artigos 88.º do CIRE e 13.º, n.º 1, do SIREVE nos quais, o legislador ao delimitar os efeitos do prosseguimento do processo de insolvência, especificou expressamente, sem qualquer margem para dúvidas, que estavam em causa acções executivas – especificação que historicamente também era feita (artigo 29.º, n.º 1, do CPEFEF). E ainda ao DL n.º 178/2012 de 03.08 – diploma que criou o Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) – o qual no artigo 11.º submete aos efeitos inibitório e suspensivo – aqui por força do despacho de aceitação do requerimento de utilização do SIREVE – as acções executivas para pagamento de quantia certa e as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias instauradas contra a empresa.

Perante a disciplina legal a que obedece a acção/processo de revitalização de empesas em situação económica difícil – no caso, a Recorrida – , a interpretação que sustento harmoniza-se intrinsecamente com a razão de ser e finalidade do PER.

Em traços gerais, a Lei n.º 16/2012, de 20/04, em concretização do compromisso assumido em memorando de entendimento no sentido de “definir princípios gerais de reestruturação voluntária extra-judicial em conformidade com as boas práticas internacionais” veio introduzir alterações ao CIRE, aditando àquele Código os artigos 17.º-A a 17.º-I, instituindo o Processo Especial de Revitalização [PER].

O PER destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordos conducentes à sua revitalização (n.º 1 do art. 17º-A).

Este processo alterou a filosofia imanente do Cire, uma vez que passou a insistir-se na revitalização da empresa devedora – em detrimento da liquidação do património do devedor insolvente e repartição do produto obtido pelos credores – e nessa medida, na satisfação dos seus credores, e em última análise, na vivificação da economia.

Assim, enquanto o processo de insolvência “se constitui como uma resposta para a superação de uma situação de insolvência já verificada, a que a ordem jurídica pretende pôr cobro, o processo de revitalização dirige-se a evitá-la, assegurando a recuperação do devedor e, nessa medida, a satisfação, também, dos seus credores” – cfr Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª ed., p. 141.

Visa-se afinal “permitir a intervenção do mecanismo de revitalização num momento anterior ao da situação da insolvência”, criando condições para que se alcance um acordo conducente à revitalização do devedor, isto é, torná-lo saudável, o que no caso de uma empresa, implica a prossecução de uma actividade previsivelmente lucrativa” – cfr. Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis in “ PER”, Coimbra Editora, pág. 12.

O PER inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele por meio da aprovação de um plano de recuperação assinada por todos os declarantes – cfr. art.º 17.º-C, n.º 1.

Munido da referida declaração, o devedor deve, de imediato, comunicar que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência, devendo remeter cópia de diversos documentos, entre os quais, para o que agora interessa: (i) “Relação, ordenada por ordem alfabética, de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem…”; (ii) “Relação e identificação de todas as ações e execuções que contra si estejam pendentes”

Recebida a mencionada comunicação, o juiz deve nomear, de imediato, por despacho, um administrador judicial provisório – cfr. art.º 17.º-C, n.º3, al. a) do CIRE –, e, na tramitação subsequente, o Devedor deverá comunicar, por meio de carta registada, a todos os seus credores que não tenham subscrito o pedido de revitalização que deu início às negociações com vista à referida revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando-os que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º se encontra patente na secretaria do tribunal, para consulta – cfr. n.º 1 do aludido art.º 17.º-D.

Qualquer credor dispõe de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho indicado na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos que é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.

Não sendo impugnada, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em lista definitiva.

Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e o devedor, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius.

Tudo é amplamente publicitado no CITIUS.

O devedor tem pois o dever de identificar todos os credores (normais, condicionados ou potenciais (v.g. sob condição)) na relação de identificação dos mesmos, montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem e na relação e identificação de todas as ações e execuções que contra si estejam pendentes, acima referidas.

O administrador deve informar todas as acções e execuções que estejam pendentes contra o devedor de que se iniciou o PER, para os efeitos previstos na lei, mormente para reclamação em sede do PER dos respectivo crédito – o que sucedeu in casu, como o comprova a matéria assente no que se reporta à comunicação aos autos pelo administrador do PER de que, por despacho proferido no processo n.º 244/14.8TBFVN – 1.ª Secção do Comércio do Tribunal Judicial de Leiria – foi admitido o Processo Especial de Revitalização da Recorrida sociedade comercial SCFH, nos termos do disposto nos artigos 17.º-A n.º 2 e 17.º -C, n.ºs 1, 2 e 3, alínea b) do CIRE e para os efeitos inerentes à tramitação do PER.

Do que se conclui, para já, o seguinte: se foi o administrador que remeteu à acção declarativa a informação de que se iniciou o PER (ainda que com base na relação e identificação de todas as ações e execuções pendentes contra a recorrida) é porque o Recorrente está identificado no PER enquanto credor (ainda que porventura como “potencial” ou “sob condição”).

No PER o reconhecimento dos créditos não está apenas dependente do administrador da insolvência, detendo o juiz poderes para, em sede de impugnações dos mesmos os reconhecer, podendo inclusive suceder que em sede de obtenção do quórum necessário para a aprovação do plano de recuperação, compute os créditos que tenham sido impugnados, se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida.

Casos os credores acordem – por maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º do CIRE (n.º 3 do artigo 17.º F), e quanto ao direito de voto nos termos do artigo 73.º, prevendo-se no n.º 2 que o número de votos conferidos por crédito sob condição suspensiva é fixado pelo juiz, em atenção à probabilidade da verificação da condição na aprovação do plano de recuperação, a decisão do juiz de homologação do plano de recuperação ou de recusa de homologação vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal, nos termos dos artigos 37.º e 38.º, que emite nota com as custas do processo de homologação (eficácia geral) – n.º 6 do art. 17.º-F.

O PER é assim um procedimento simplificado, célere e urgente, razão pela qual a suspensão da instância – no caso – da presente acção declarativa (condenatória de dívidas) ocorre num período muito curto (segundo a lei, cerca de 3 a 4 meses).

Ora, as notas que se deixaram traçadas, em especial, sobre a natureza, início, tramitação e fim do PER reforçam e baseiam, em especial e essencialmente, a interpretação abrangente sustentada (argumento racional e teleológico).

Na verdade, a razão de ser do PER, a sua finalidade e intrínseca natureza negocial, pressupõem a confluência ou envolvência de todos os credores (executivos e declarativos (condicionais ou não, potenciais ou não)) que assim se encontram sujeitos à suspensão das respectivas acções judiciais propostas contra o devedor durante um período curto “breathing space”, durante o qual os credores não possam reclamar judicialmente os seus créditos, para que as tentativas de aprovação de um plano de recuperação sejam bem-sucedidas, obstando-se, assim, com maior abrangência, a quaisquer diligências de cobrança ou outras que pudessem perturbar a realização do acordo. No sentido da vontade do legislador de participação mais abrangente possível dos credores no processo de revitalização e consequente reconhecimento de todos os créditos veja-se a expressão usada o n.º 2 do artigo 17.-D - «Qualquer credor…». Aliás, e como já se viu, os efeitos de eventual plano de recuperação estendem-se mesmo a credores que nele não tivessem participado (cfr. n.º 6 do artigo 17.º).

Em suma, o objectivo do legislador quanto ao PER consistiu em proporcionar condições reais e efectivas ao devedor “desvitalizado” para a recuperação económica da sua empresa devedora, num processo que se pretende simples, célere e com a participação concertada de todos os credores, os quais, face à publicidade e transparência do mesmo (artigos 17.º-D e ss do CIRE), têm a faculdade de, se assim o entenderem, reclamar créditos e participar nas negociações. Participação que se mostra desejável para obtenção de maior sucesso do PER e, em consequência, do sucesso no recebimento das dívidas (ou parte delas, com moratória ou outros requisitos).

Trata-se afinal de um período de mora (“stand still”) previsto para efeitos negociais benéficos ao devedor (e consequentemente aos credores) justificativo de que, durante esse período, devedor e credores (todos) se concentrem exclusivamente na recuperação da empresa, não sendo razoável e normal neste contexto negocial que os credores (litigiosos ou não) estivessem em tal período, por um lado, a negociar com o Devedor a vitalizar, e por outro, a litigar nas respectivas acções.

Sendo que tais acções (no caso, as declarativas/condenatórias para pagamento de dívidas) não se extinguirão (não poderão se extinguir) automaticamente com o fim das negociações, dependendo do que for acordado no PER, e sem prejuízo de nada no CIRE – o que seria certamente inconstitucional por violação do acesso ao direito – impedir que acções suspensas (mormente, aquelas que não conseguiram ver reconhecidos os seus créditos pelo administrador de insolvência e/ou pelo juiz que decida eventual reclamação, nem a previsão da sua continuação no plano de recuperação, possam voltar a ser debatidas em Tribunal, mediante o seu prosseguimento.

Assim se devendo interpretar a última parte do normativo em questão, no segmento em que refere ”…extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”: na verdade, caso exista plano de recuperação da empresa e o mesmo não preveja a continuação destas acções (litigiosas ou sob condição) devem as mesmas prosseguir, até porque o plano de recuperação lhes é aplicável, havendo assim interesse destes credores – tal como o dos autos – em obter a definição do seu direito pecuniário face ao devedor.

Como escreve Fátima Reis Silva, ob. cit. p. 53 “Não vemos exactamente qual o sentido útil de fazer extinguir todas as acções de cobrança de dívida com a aprovação e homologação do plano.

A suspensão serve o propósito de retirar a pressão ao devedor e dar-lhe uma folga para negociar. No entanto, nada obstaria que os processos prosseguissem (pode haver créditos litigiosos e se tal não estiver previsto no plano os credores pura e simplesmente terão de intentar novas acções) já que o plano aprovado tem efeito sobres tais créditos – cfr. artigo17.º F, n.º 6.”.

Pelo que a suspensão da instância das acções declarativas (condenatórias de dívidas) como a dos autos, por um período bastante curto, não prejudica o “eventual credor” pois caso não tenha reclamado créditos (hipótese a colocar, mas improvável) ou não veja o seu crédito reconhecido no PER (não obstante haver a possibilidade de o mesmo constar na lista provisória como “crédito sob condição” e de obter percentagem do direito a voto em conformidade), tal não obsta ao prosseguimento da acção (entendimento que sustentamos) ou à instauração de nova acção, até para, caso obtenha ganho de causa, beneficiar dos efeitos do plano do acordo homologado por Decisão judicial (naturalmente, nos moldes e na proporção que nele estiver, em geral, estabelecido), os quais não se limitam aos assinantes antes “vinculam os credores [todos], mesmo que não hajam participado nas negociações.

Acresce que se a acção em causa prosseguisse os seus trâmites e o “devedor” fosse condenado ainda na pendência do processo de revitalização, nenhuma execução poderia ser instaurada contra o seu património durante as negociações (artigo 17.º- E, n.º 1).

Balanceando de um lado os interesses em presença: suspensão da instância, num período de cerca de 3 a 4 meses, de processo tendente a condenação do “Devedor” – no caso a Recorrida –, e o interesse no sucesso rápido, eficaz, participado e concertado do PER, o qual se reflecte concomitantemente nos credores que têm, em geral, interesse na recuperação da empresa devedora e não na sua insolvência, bem como na economia do país –, a solução da lei que sustentamos de suspensão de todas as acções executivas e condenatórias, para o pagamento directo e imediato de dívidas, mostra-se racional e ajustada aos interesses privados e públicos em presença.

A decisão recorrida não padece das causas de invalidade que lhe foram assacadas, não afectando, em si mesma, o direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, na vertente da discriminação negativa do Recorrente em relação aos demais credores, pelas razões já invocadas, entre outras pensáveis: para além de a suspensão em causa ser de curta duração, o credor em causa poder ter igualmente interesse em se concentrar na reclamação de créditos e negociações com o fito comum de recuperação económica do “devedor”, não sendo inequívoco que não possa ver os seus créditos reconhecidos e pagos à semelhança dos créditos executivos e declarativos não litigiosos, sem prejuízo, da extinção da respectiva acção não ocorrer ou por força do previsto no Plano de recuperação ou por força da interpretação restritiva, racional e teleológica que deve fazer-se da última parte da norma interpretada, prosseguindo na acção para reconhecimento do crédito eventualmente não reconhecido; sendo que o prosseguimento da acção e ganho de causa mediante sentença de condenação do “devedor” não lhe permitiria instaurar acção executiva contra aquele no decurso do PER.

Ao invés, a interpretação adoptada pressupõe um tratamento igualitário dos credores no sentido de, mediante a suspensão de “quaisquer acções”, todos os credores (com título executivo ou ainda sem ele) se poderem concentrar juntamente com o Devedor na recuperação económica da empresa (evitando expedientes dilatórios ou outros, ainda que legais) – o que a todos beneficia.

Admitir-se a possibilidade de as acções declarativas para cumprimento de obrigações pecuniárias contra o “Devedor” não serem suspensas durante as negociações do PER – mesmo que assaz litigiosas – equivaleria a obtenção de privilégios para os autores das mesmas, sem razão ponderosa justificativa,

Em suma, o entendimento sustentado compatibiliza-se quer com a interpretação literal e sistemática do preceito em causa, quer com a ratio do regime do PER cujo desiderato consiste, em primeira linha, permitir ao devedor, com o acordo total ou maioritário dos credores, a recuperação da sua precária situação económica, marcada pela dificuldade em cumprir pontualmente as suas obrigações, só fazendo sentido para a obtenção desse objectivo que todas as acções que contendam (ou venham a contender) com o património do devedor sejam suspensas.

Conforme se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa n.º 1290/13.4TBCLP.L1.2, de 21/11/2013 “Para além do legislador não poder ignorar a existência das espécies de ações, consoante o seu fim, também, por outro lado, não pode o intérprete desprezar o efeito na vida do devedor, nomeadamente de uma sociedade comercial, provocado pela negação da suspensão da acção, depois de iniciado o processo especial de revitalização”.

Assim, pelas razões que se expuseram negaria provimento ao recurso e confirmaria a decisão recorrida.