Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02224/10.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/30/2018
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; ÓNUS DA PROVA; PODER DISCRICIONÁRIO; APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL.
Sumário:
I- No processo disciplinar o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção cabe ao titular do poder disciplinar, sendo que nele o arguido assume uma posição de sujeito processual e não dum seu mero objeto.
II. O arguido não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada dado o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção impender sobre o titular do poder disciplinar, na certeza de que um “non liquet” em matéria de prova terá de ser resolvido em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
III. A condenação deve estribar-se em provas que permitam um juízo de certeza, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
IV. No processo sancionador a prova da prática da infracção que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor responsável, não podendo impor-se uma sanção com base em simples indícios, presunções ou conjecturas subjectivas.
V. Na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adoptado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MMSO
Recorrido 1:Município do Porto
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a decisão recorrida
Julgar a acção procedente
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

MMSO veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 14.07.2014, pela qual foi julgada totalmente improcedente a acção administrativa especial intentada pela Recorrente contra o Município do Porto, e absolvido o Réu do pedido de que fosse anulada a deliberação da Câmara Municipal de 4 de Maio de 2010, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão e do pedido de condenação do Réu a pagar-lhe os vencimentos não pagos referentes ao período de demissão executado, acrescidos dos juros legais desde a data da execução da pena até integral pagamento e a reconstituir a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado a concretizar em execução de sentença.
Invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida incorreu em vício de erro nos pressupostos de facto e de Direito, que aquela julgou inexistentes, com erro de julgamento e vício de violação de lei e do princípio in dubio pro reo.
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O Recorrido contra-alegou, defendendo a manutenção integral do decidido.
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O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1- O Recorrido aplicou a pena disciplinar de demissão à Recorrente, com patentes vícios de erro nos pressupostos de facto e de direito, que a decisão recorrida decidiu serem inexistentes, com erro de julgamento e vício de violação de lei e ainda do princípio in dubio pro reo. De facto,
2- Desde logo, o relatório final considerou provados os factos imputados à Recorrente que serviram de pressuposto de aplicação da pena de demissão, sem a mínima indicação em que documentos e depoimentos se fundamentou para chegar a tal conclusão.
3- Os únicos documentos a que a acusação e o relatório final se reportam são os que instruíram o processo-crime, tendo sido proferido acórdão no processo comum colectivo 1993/05.7 PRT, que correu termos na 2ª Vara Criminal do Porto, transitado em julgado em 29.09.2013, por Despacho de 07.10.2013, que rectificou a acusação para crime de burla simples e falsificação de documentos e que absolveu a recorrente dos crimes que lhe eram imputados com base nos factos – nos mesmos factos – pelos quais foi punida com a pena de demissão. É assim que,
4- Inexistindo prova nos autos de processo disciplinar, o recorrido dá como provado ter havido “ combinação entre a arguida e os sócios da Clínica” para a obtenção dos recibos e estes “ lhe terem entregue os recibos (…..)”, com patente erro nos pressupostos de facto para aplicação da pena disciplinar, e com violação quer do artigo 3º do Estatuto Disciplinar.
5- No referido processo-crime aqueles mesmos factos foram dados como não provados (fls. 169, 243 e 267 da certidão junta) e, como se disse, é inexistente prova no processo disciplinar de tais factos. Desta forma,
6- A decisão padece de erro de julgamento ao decidir a inexistência de tal vício e daquele erro grosseiro, considerando que a prova foi efectuada pela análise dos recibos emitidos e toda a documentação apreendida pela Polícia Judiciária e em sede de inquérito criminal, bem como do depoimento dos médicos e assistentes da clínica, porquanto esses mesmos elementos conduziram a que no processo-crime fosse dado como não provado: quer a combinação entre os sócios da clínica e da Recorrente, quer que os recibos lhe tivessem sido entregues. Sempre acrescendo que,
7- A Recorrente foi punida pelo Recorrido com base no facto “não ter recebido qualquer tratamento, nem o seu filho”, e em sequência ter ficado indevidamente com a verba de 3.548,56 euros, com erro grosseiro na apreciação da prova, porquanto das fichas médicas que a decisão considera fidedignas (porque foram elaboradas pelos médicos), consta de facto que a Recorrente e o filho receberam tratamentos e tinham fichas clínicas que deram origem ao Anexo 3 junto com a acusação, e à quantia de 3.548,56 euros tendo sido em processo-crime apurado quais os tratamentos que não tinham sido feitos pelo filho, no que resultava um prejuízo de 652,00 euros, não obstante o Recorrido “sem qualquer prova” considera provado, bem como a douta decisão que a recorrente “não prestou qualquer tratamento”, não valorando o facto de a verba ser também conexa com tratamentos e recibos emitidos do filho. Ora,
8- Como é do conhecimento deste Tribunal (pelos múltiplos processos já julgados) em verbas do montante de 600 euros o Recorrido puniu os trabalhadores com penas de suspensão e não de demissão como é o caso da Recorrente.
9- Face às contradições existentes e na míngua de outros elementos não poderia deixar de funcionar o princípio in dubio pro Reo, atendendo a que como é bem explícito no Acórdão 03188/11.1 PRT “No processo sancionador a prova da prática da infracção que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor subjectivo”, como sucedeu na presente situação, pelo que o acto deveria ter sido anulado,
10- Ainda como causa de pedir da anulação do acto punitivo foi invocado o erro grosseiro na apreciação da prova quer em relação ao empréstimo do cartão, quer em relação à devolução do dinheiro recebido porquanto a recorrente em parte demonstrou e provou que um dos cheques tinha sido depositado pela referida C…, e também que lhe tinha entregado dinheiro (depoimento de HMC do processo disciplinar) e a sentença ao assim não decidir errou de direito com erro de julgamento. Acresce que,
11- A Recorrente foi punida pela deliberação impugnada tendo como pressuposto factual que a verba correspondente aos recibos pertencia aos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, porque constavam da acusação e do relatório final, como pressuposto da aplicação da pena, os seguintes factos: “ com este comportamento recebeu dos SMAS”, “Ficando os serviços, consequentemente desembolsados”, “ de facto, a arguida quis e conseguiu receber aquele montante à custa daquela entidade”, “com o consequentemente empobrecimento dos SMAS”, “ conseguiu a arguida ter vantagens patrimoniais a que não tinha direito, enganando conscientemente os SMAS, a sua entidade empregadora, que sempre cumprira as suas obrigações no contexto do vínculo público que a ligava àquela” (artigos 26, 27, 28,31, 32 do Relatório Final), quando tais verbas pertenciam à Assistência na Doença aos Servidores do Estado, não tendo havido qualquer empobrecimento daqueles serviços, ou qualquer lesão patrimonial daqueles. Contudo,
12- A decisão, com erro de Direito, decidiu a inexistência do erro nos pressupostos de facto, decidindo que a Recorrente compreendeu que o desvalor que encerra a factualidade prende-se com o facto da mesma se ter apropriado de dinheiro público, independentemente dos termos em que cada pessoa colectiva em causa foi concretamente, prejudicada. Ora,
13- Não foi tal a acusação que recebeu para se defender, nem a Recorrente apresentou defesa nesse sentido, nem o recorrido puniu a Recorrente com base em “serem dinheiros públicos”, mas sim com o pressuposto factual concreto dos valores serem do SMAS – entidade a que estava subordinada – e de ter existido empobrecimento daquele serviço e tanto assim é, que o recorrido expressamente refere que no Relatório Final é referido: “32) conseguiu a arguida ter vantagens patrimoniais, enganando conscientemente o SMAS, sua entidade patronal que sempre cumprira as sua obrigações que sobre si impendiam no contexto do vínculo público que a ligava àquele sendo até referido pelo recorrido na análise da personalidade da recorrente refere: “A conduta infractora praticada pela arguida contribuiu para o empobrecimento indevido do SMAS”.
14- A decisão punitiva imputou à Recorrente os factos descritos nos pontos 33) a 43) do Relatório Final como preponderantes para a decisão final de aplicação da pena de demissão, com erro nos pressupostos de facto porque como é evidente e se demonstra pelo documento junto com a petição inicial toda a publicitação da situação ocorrida pelos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento foi levada a cabo pelo Município do Porto através do seu site, sendo a Recorrente completamente alheia a tal divulgação, por outro lado, não pode ser havido como consequência directa ou indirecta de quaisquer seus comportamentos, as infracções cometidas pelos outros 30 trabalhadores, até porque a Recorrente com eles não agiu em associação, nem de tal foi acusada, ora em sede disciplinar a Recorrente não pode ser punida por consequências dos actos de outros, a sentença ao decidir a inexistência de tal vício, errou de direito. Acresce que,
15- O Recorrido puniu a recorrente sem ponderação e valoração dos elementos constantes do artigo 20º do Estatuto Disciplinar, com vício de violação de lei tendo sido decidido pela douta decisão que : “não corresponde à verdade tal afirmação porque dos artigos 47º a 50º do relatório consta um conjunto de circunstâncias que apenas à situação pessoal da A. respeitam: antiguidade, classificações de serviço e o facto de ser uma funcionária zelosa, assídua e pontual ”, sucede que, tais elementos estão elencados mas não foram nem ponderados, nem valorados, quando aquele normativo exige que sejam atendidos a favor ou contra o arguido, a douta sentença ao decidir que a mera elencação de tais factores cumpre o exigido no normativo, erra de Direito com violação do citado dispositivo legal. Acresce que,
16- Ao invés de tal ponderação, da inexistência de qualquer infracção disciplinar sem mácula de 29 anos de serviço com zelo e assiduidade ser favorável à recorrida serviu de ponderação negativa porque o recorrido considerou tais factores como agravantes da sua responsabilidade, porque deveria servir de exemplo aos outros trabalhadores, o que acarreta vício de violação de lei, a douta decisão ao assim não decidir errou de direito, com erro de direito e violação de lei nomeadamente do artigo 20ºdo Estatuto Disciplinar. Sem prescindir de todo o invocado,
17- A prova documental produzida pelo recorrido em sede disciplinar e que se apoiou nas fichas médicas em que resultou o anexo 3 junto à acusação é nula, como é referido no acórdão, cuja certidão se juntou, e cujos fundamentos se dão como reproduzidos pelo que sempre a Recorrente foi punida sem prova factual de ter tido os comportamentos imputados.
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II – Matéria de facto.
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1) A Autora, com o número mecanográfico 8…4, entre Janeiro de 2001 e 24 de Outubro de 2006, foi funcionária dos então SMAS, que depois deram origem à Águas do Porto, E.M., ali exercendo funções de auxiliar.
2) A partir de 26.10.2006, por deliberação camarária de 30.05. 2006, foi integrada nos quadros de pessoal do Município.
3) A Autora era beneficiária da Assistência na Doença aos Servidores do Estado.
4) Por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento tomou conhecimento que nos meses imediatamente anteriores surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da Assistência na Doença aos Servidores do Estado.
5) A referida chefe de Divisão, no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares.
6) Como resultado dessa consulta, constatou de imediato que, das centenas de recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela CDSI.
7) Mais constatou que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta correctora.
8) A referida chefe de Divisão dos Recursos Humanos comunicou à sua superior hierárquica, Directora do Departamento dos Serviços Centrais e Jurídicos dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento do Porto, os factos constatados.
9) Esta, por sua vez, deu conhecimento ao Director Delegado de então dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento das suspeitas que se haviam levantado.
10) Em 02.12.2005 o Director Delegado dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento efectuou a seguinte participação à Polícia Judiciária do Porto:
“... Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento do Município do Porto, contribuinte n.º 6…47, com sede na Rua B… (...) vêm participar os seguintes factos: 1.º Em sede de análise das comparticipações pagas em matéria de despesas de saúde aos funcionários destes Serviços abrangidos pelo sistema de protecção social da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, verificámos a existência de factos que indiciam a prática de ilícitos criminais, designadamente, de falsificação de documentos e burla. 2.º Analisando todas as comparticipações pagas aos funcionários em despesas de saúde na especialidade de Estomatologia, por actos médicos efectuados no ano de 2004, até esta data, na CDSI, Lda, contribuinte n.º5…77, com sede na Rua S…, 4000-468 Porto, detectámos: existência de rasuras grosseiras em alguns recibos; Omissão de data em alguns recibos; Discrepância entre o número sequencial dos recibos e as datas constantes dos mesmos; Existência de número anormal de actos médicos, por sessão e por funcionário; Actos médicos temporalmente próximos e que, julgamos, de natureza incompatível; Processamento de comparticipações para além dos limites legalmente estabelecidos para cada tipo de intervenção; Aceitação e processamento de comparticipações com base em recibos que não cumprem os requisitos legais; Em inúmeras situações, verifica-se que os valores lançados no sistema informático relativos aos pagos pelos funcionários, são superiores aos constantes dos recibos apresentados. Esclarecemos que esta participação se baseou na análise apenas no período acima indicado e exclusivamente no tocante àquele prestador de serviços de saúde, pelo que desconhecemos a extensão e os contornos exactos do problema, designadamente, anos anteriores, outras especialidades médicas, ou a mesma especialidade (estomatologia) noutros prestadores de serviços. Igualmente, não temos meios para avaliar outros benefícios obtidos pelos funcionários relativamente aos valores não comparticipados, nomeadamente em sede de IRS e complementos de comparticipação efectuados pela Casa do Trabalhador existente nos SMAS do Porto. Anexamos cópias dos recibos em causa e listagens que sistematizam informação por nós recolhida. Destes factos e nesta data será dado conhecimento à Direcção Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE) (...)”, conforme emerge da análise de fls. 484 a 485 do processo administrativo (Processo nº. 1/09,Vol.VII), cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
11) Na mesma data, o Director Delegado dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento participou os factos supra relatados à Direcção-Geral de Protecção Social aos Funcionários e Agentes da Administração Pública essas ocorrências, conforme emerge da análise de fls. 470 a 472 do processo administrativo [Processo nº. 1/09, volume VII], cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12) Com data de 28/6/2006, lia-se no site da Câmara Municipal do Porto, o seguinte:
“A prioridade geral definida por Rui Rio de combate à fraude e à corrupção, designadamente no que concerne à articulação com o Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento nomeado após as eleições de Outubro e presidido por SC, tem já um primeiro resultado em condições de divulgação pública. (...) Em face da gravidade do que foi descoberto e da prioridade definida de permanente e redobrada atenção no que toca ao combate à fraude e à corrupção, o Presidente da Câmara solicitou ao Conselho de Administração dos SMAS a participação detalhada de todos os factos apurados. (...) nesse sentido foi, em 2 de Dezembro de 2005, feita participação oficial à Polícia Judiciária”, conforme emerge da análise de fls. 96 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13) O “Jornal de Notícias”, nas suas edições on line de 2006.06.29 e 2009.03.24, noticiava um comunicado da Câmara do Porto, onde referia a acção policial surgida na sequência da referida participação, elaborada com base num levantamento das situações iniciado em Novembro de 2005, e que teria levado à constituição de mais de 30 arguidos.
14) Em 30.09.2008, pelo Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, no processo de Inquérito n.º 1993/05.7JAPRT, foi deduzida a acusação criminal contra, entre outros, a Autora, de fls. 1880 a 2110 do processo administrativo [Anexo B, Volume 8].
15) Por despacho de 11.12.2008, o Presidente da Câmara Municipal do Porto determinou a abertura de um processo disciplinar contra, de entre outros, a aqui Autora, conforme emerge da análise de fls. 46 e seguintes [relatório final] dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
16) Por despacho de 06.01.2009 da autoria da Directora de Departamento de Contencioso e Serviços Jurídicos da Câmara Municipal do Porto, foi nomeado o Dr. Costa Pinto como instrutor do processo disciplinar, conforme emerge da análise de fls. 1 verso do processo administrativo [Processo nº. 1/09, volume I].
17) No referido processo disciplinar foi elaborada a nota de culpa que faz fls. 14 a 23 dos autos e 1335 a 1345 do processo administrativo (vol. VII) cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido.
18) No âmbito do referido processo disciplinar foi imputado à Autora “(...) a prática de um ilícito disciplinar, consubstanciado alegadamente no facto de “A arguida e o seu filho nunca (...) [terem] recebido tratamentos ou serviços na CDSI, constantes do Anexo 3 (…) No entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da Clínica, (…) foram–lhe emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores do Anexo 3 (…), [que posteriormente entregou] (…) nos serviços da secção salários dos SMAS (…), [tendo recebido, por via disso] (…) a título de comparticipações da ADSE, (...) o valor de 3.458,56 €”, sabendo que não lhe eram devidos (...)”, conforme emerge da análise de fls. 14 a 23 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19) A Autora apresentou defesa escrita, negando a prática dos factos e invocando a seu favor a prescrição do procedimento disciplinar, ao mesmo tempo que requereu diligências de prova, que foram realizadas (fls. 28 a 44 dos autos e fls. 2059 a 2075 do processo administrativo – vol. X, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido).
20) A Directora dos Serviços Centrais e Jurídicos, PC prestou o depoimento de fls. 554 a 556 do processo administrativo [Processo D/01/9, Vol. III], apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, do qual consta, designadamente, que:
“Em finais de 2005 exercia nos então SMAS do Porto o cargo de Directora dos Serviços Centrais e Jurídicos, tendo a seu cargo a gestão dos Recursos Humanos; *Nessa altura detectou, através das contas, que os valores das comparticipações da ADSE abonadas pelos SMAS aos seus funcionários eram muito elevados face ao número de funcionários; *(...) *Os recibos eram entregues na Divisão de Recursos Humanos, eram processados por esses serviços (...); *(...) *Dirigiu-se aos Serviços dos Recursos Humanos e foi buscar os recibos de 2005 que estavam arquivados por meses; *Face aos recibos detectou a existência de recibos rasurados, de recibos com números não compatíveis com as datas apostas nos mesmos, actos médicos incompatíveis e praticados relativamente aos mesmos dentes, bem como às próteses; *...a referida discrepância era entre as datas e os números de série dos recibos o que levava à existência de recibos com números posteriores relativos a actos médicos praticados em datas anteriores, constantes de outros passados em datas posteriores e vice-versa; *(...) *Face à constatação dos factos atrás mencionados, comunicou ao Senhor Director Delegado de então (...); *Comunicou, também, que face aos indícios era necessário proceder à verificação dos recibos da ADSE relativos a anos anteriores, tendo ficado decidido que o trabalho de investigação seria sobre os anos de 2001 a 2005; *Começou a investigar com a colaboração da Chefe de Divisão e com os apoios dos funcionários MMG e JN; *(...) *Concluída a investigação, e face à constatação de indícios da prática de ilícitos disciplinares, compilou todos os dados que anexou a uma participação, por si elaborada, à Polícia Judiciária; * Seguidamente, apresentou este documento ao Director Delegado e ao Presidente do Conselho de Administração (...) tendo o mesmo sido assinado e por si entregue à Directoria Geral da Polícia Judiciária do Porto; *(...) *Quando a existência do Inquérito se tornou pública, o impacto da notícia foi brutal nos Serviços, tendo havido consequências, mesmo através da prática de ilícitos criminais, contra a sua pessoa; *(...) *Esclarece ainda que o esquema existente era do conhecimento de grande parte dos funcionários dos SMAS; *(...) *À data, os SMAS tinham cerca de 600 trabalhadores, e os 90% que não beneficiavam do esquema montado consideraram a actuação da declarante da mais elementar…”
21) A Chefe de Divisão de Recursos Humanos dos ex Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, CMLCT prestou o depoimento que consta de fls. 571 a 576 do processo administrativo [Processo D/01/9, Vol. III], cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, do qual consta que:
“(…) juntamente com a Dra. PC passaram uma semana a analisar todas as pastas de recibos do ano de 2005 passando toda a informação para uma base de Excel donde constava o nome dos funcionários, os números e os valores dos recibos que diziam respeito aos mesmos e a familiares; um dos objectivos...era ter uma ideia do número de funcionários em questão bem como os respectivos valores que cada funcionário alegadamente teria pago à CDSI... resumidamente o movimento do processamento das remunerações e abonos processava-se da seguinte forma: a informação era transmitida em papel e portanto sujeita a controlo da depoente à divisão de informática pela Divisão de Recursos Humanos...e outras informações respeitantes a despesas médicas eram transmitidas por via de ficheiros informáticos sem que a depoente tivesse qualquer controlo sobre esta informação, carregado na secção de salários e transferido para a divisão de informática...”
22) Em Março de 2010, foi elaborado o relatório final de procedimento disciplinar, do qual consta quanto à A. o seguinte:
A“4.40 MMSO
4.40.1 Factos Provados
1) A arguida, com o n.° mecanográfico 8…4, entre Janeiro de 2001 e 24 de Outubro de 2006 foi funcionária dos então Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, que depois deram origem à AdP, ai exercendo as funções de auxiliar técnico;
2) A arguida, ao ser funcionária dos SNLA.S deste Município, era funcionária pública (artigo 237.° e seguintes, 243.° n.° 2 da Constituição da República Portuguesa, artigo 5.° do D.L. n.° 116/84, de 6 de Abril., artigos 1.0, 3.° e 4.°, n,° 5 do D.L. n.° 427/89, de 7 de Dezembro e artigos 1.°, 5.°-A e seguintes e 8.0 do D.L. n.° 409/91, de 17 de Outubro, então em vigor);
3) Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, não tendo personalidade jurídica, mas apenas autonomia administrativa e financeira, estavam integrados na pessoa colectiva ¬Município do Porto (alínea l) do n.° 2 do artigo 53° e alínea i) do n.° 1 do artigo 64.° da Lei n.° 169/99, de 18 de Setembro, deliberações, da Assembleia Municipal, da macroestrutura dos referidos Serviços — Avisos n.° 4634/99 e n.° 1952/2004, Diário da República, II Série, respectivamente de 3 de Julho de 1999 e 19 de Março de 2004);
4) A partir de 26 de Outubro de 2006, por deliberação camarária de 30 de Maio de 2006, nos termos do protocolo celebrado entre o Município do Porto e a AdP, ao abrigo do n.° 6 do artigo 37.° da Lei n.° 58/98, de 18 de Agosto, a arguida foi integrada nos quadros deste Município, pelo que ficou sua funcionária;
5) Por ser funcionária, a arguida e o seu filho GFSO eram beneficiários da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, gozando dos benefícios por esta concedidos, nos termos da alínea b) do artigo 3.° e do artigo 5.°, do D.L. n° 118/83, de 25 de Fevereiro;
6) A Assistência na Doença aos Servidores do Estado é um organismo público, tutelado por lei, que tem por objectivo a protecção social, entre outros, em cuidados de saúde aos funcionários públicos, inclusive os das autarquias locais;
7) Através da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, a arguida podia receber comparticipação em despesas com a saúde, no que aqui interessa, com cuidados de medicina dentária, ou com meios de correcção estomatológicos;
8) Nos termos da lei, a arguida podia deslocar-se a um médico ou Clínica para se tratar;
9) Relativamente às despesas incorridas, vários cenários eram possíveis, sendo que entre os mais habituais deve destacar-se, desde logo, aquele em que, no caso de assistência em médico ou Clínica ao funcionário era logo descontada a comparticipação legal, pagando este apenas a parte não comparticipada, bem como aquele em que o funcionário pagava a totalidade do preço e apresentava o respectivo recibo, emitido por médico ou Clínica na Secção de Salários da Divisão dos Recursos Humanos dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, deixando-os numa caixa, lá colocada para o efeito;
10) Nesta última hipótese, — apresentação do recibo nos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento — estes Serviços suportando a parte comparticipada pela Assistência na Doença aos Servidores do Estado, creditavam tal quantia ao funcionário num dos meses seguintes, da mesma forma em que se creditava o respectivo vencimento, ou seja, na conta bancária do funcionário/beneficiário titular;
11) A funcionária da Secção de salários, encarregada do movimento dos recibos deixados pelos trabalhadores para posterior processamento, verificava se o nome do beneficiário ou do familiar estava correcto, bem como se os mesmos correspondiam aos respectivos números de beneficiários;
12) Por volta de Setembro de 2005, a então Chefe de Divisão dos Recursos Humanos dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento tomou conhecimento que, nos meses imediatamente anteriores, surgiu um excessivo volume de despesas com dentistas, para comparticipação da Assistência na Doença aos Servidores do Estado.
13) Nesse sentido e no exercício das suas funções, consultou as pastas mensais, as quais continham recibos de despesas médicas dos trabalhadores e seus familiares.
14) A referida Chefe de Divisão constatou de imediato que, das centenas de recibos que a pasta continha, uma percentagem muito significativa era de serviços prestados pela CDSI, sita na rua de S…, na cidade do Porto, cujo objecto social consistia na prestação de serviços clínicos de boca e dentes e próteses dentárias;
15) Mais constatou a Chefe de Divisão que tais recibos, na sua maior parte, se encontravam rasurados com tinta correctora;
16) Na Clínica, a cada um dos actos médicos praticados, correspondia um determinado código, para fins de comparticipação (o Código das Tabelas da Assistência na Doença aos Servidores do Estado) e, mediante o tratamento efectuado, a Clínica cobrava um determinado preço;
17) Entre 2001 e 2005, os Códigos ali existentes, constam do Anexo 1 da acusação proferida contra a arguida;
18) Na sequência desses tratamentos e serviços, cada um dos funcionários dos SMAS tinha direito às respectivas comparticipações da Assistência na Doença aos Servidores do Estado que, entre 2001 e 2005, vigoraram através das Tabelas de Comparticipação da de cuidados de saúde, regime livre, que resultaram da publicação dos Avisos números:
 12433/2000 (de 1 de Setembro de 2000 a 1 de Outubro de 2001);
 11730/2001 (de 1 de Outubro de 2001 a 31 de Dezembro de 2002);
 12737/2002 (de 1 de Janeiro de 2003 a 31 de Maio de 2004); e
 Despacho n.° 8738/2004 (a partir de 1 de Junho de 2004),
publicados no Diário da República, II Série, respectivamente n.° 187, de 14 de Agosto de 2000, n.° 224, de 26 de Setembro de 2001, n.° 279, de 3 de Dezembro de 2002 e n.° 103, de 3 de Maio de 2004;
19) Para utilização das referidas Tabelas, os cuidados, actos e apoios em relação aos quais os funcionários beneficiam de comparticipação da Assistência na Doença aos Servidores do Estado são identificados através de um código a que, por seu turno, corresponde uma designação;
20) A Clínica possuía, para fins de gestão, uma "Tabela" de Honorários (média de preços) à qual correspondiam determinados códigos, consoante os tratamentos efectuados, sendo que a cada tratamento correspondia um código que, uma vez finalizada a consulta - existindo esta - era inscrito na ficha individual de cada paciente;
21) Todos os tratamentos e actos médicos eram inscritos nas fichas individuais dos clientes, mediante a menção dos códigos, e, quando a ficha se mostrasse completa, era agrafada à mesma uma nova ficha para prosseguimento das anotações;
22) De acordo com os preços médios facturados pela Clínica, entre 2001 e 2005, os serviços e tratamentos médicos aos funcionários/beneficiários dos SMAS deveriam ter sido cobrados nos termos, constantes do Anexo 2 da acusação proferida contra a arguida;
23) A arguida e o seu filho nunca receberam tratamentos e serviços, médicos, na Clínica;
24) No entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da Clínica - FHMM, odontologista e sua mulher JMMSM, gerente, foram-lhe emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores, constantes do Anexo 3 da sua acusação;
25) Entretanto, na sequência da entrega desses recibos pelos alegados tratamentos estomatológicos nos serviços da secção de salários dos SMAS, a arguida recebeu, a título de comparticipações da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, em Novembro de 2003 e em Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Junho e Novembro de 2004, os valores respectivamente de €476,46, €141,50, €476,24, €147,60, €476,46, €480,00 e €1.260,30, no total de €3.548,56, sabendo que não lhe eram devidos;
26) Com este comportamento, a arguida recebeu dos SMAS, indevidamente, a título de comparticipação da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, o montante total de €3.548,56 que não lhe eram devidos;
27) Ficando os serviços, consequentemente, desembolsados de tal quantia, a qual se considera dinheiro público;
28) De facto, a arguida quis e conseguiu receber aquele montante à custa daquela entidade, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia, era dinheiro público;
29) Mais sabendo que estava a prejudicar, dessa maneira o erário público, pois que recebeu quantias que não lhe pertenciam e que sabia não lhe pertencerem através do estratagema, ora descrito e dado como provado;
30) Sabia a arguida que, com o seu comportamento, ao ter recebido o aludido montante, se aproveitava ilícita e abusivamente do facto de ser funcionária dos SMAS, e dos direitos que a Assistência na Doença aos Servidores do Estado legalmente lhe concedeu, tal como ao seu filho, para à custa da qualidade de funcionária e daqueles direitos se enriquecer;
31) Com o consequente empobrecimento dos SMAS e do erário público;
32) Conseguiu a arguida ter vantagens patrimoniais a que não tinha direito, enganando conscientemente os SMAS, a sua entidade patronal que sempre cumprira as suas obrigações que sobre si impendiam no contexto do vínculo público que a ligava àquela;
33) Com o seu comportamento, a arguida contribuiu para envergonhar os SMAS e o Município do Porto, porquanto a sua conduta foi idêntica à de muitos colegas, co-arguidos no presente processo;
34) Aquando da denúncia criminal, e da dedução da acusação em processo-crime, em Outubro de 2008, tais factos vieram amplamente noticiados na comunicação social, aparecendo os SMAS e a edilidade no papel de entes enganados anos a fio por dezenas e dezenas de funcionários e entidades e pessoas terceiras, o que em muito manchou em especial a imagem dos SMAS que se viu "nas bocas" do mundo pelos piores motivos;
35) E com grave ameaça do bom-nome dos funcionários não envolvidos no esquema em causa nos autos;
36) O vergonhoso esquema subjacente aos autos levou a que a comunidade tomasse naturalmente "a parte pelo todo", no que concerne à seriedade dos trabalhadores dos SMAS, que entre 2001 e 2005 rondavam os 600 funcionários;
37) Com o comportamento da arguida, os trabalhadores dos ex-SMAS, não arguidos, ficaram envergonhados e consternados pela sua ligação àquela entidade, situação agravada quando começaram a ser publicadas notícias do caso na comunicação social;
38) A arguida praticou os factos aqui descritos e dados como provados sempre voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
39) A arguida tem instrução, formação e experiência profissional mais do que bastantes para configurar e representar tudo o que fez, bem como o esquema de que foi peça integrante;
40) O qual abrangeu, quase sem excepção, quadros administrativos, superiores e/ou funções de responsabilidade da AdP, antes SMAS;
41) O próprio ambiente de trabalho dos SMAS foi gravemente comprometido, pois que os trabalhadores com menor categoria profissional ficaram com a inaceitável sensação que os serviços administrativos e alguns dos seus dirigentes estavam envolvidos em actos ilícitos;
42) Com o comportamento ora descrito e dado como provado, a arguida, como funcionária, faltou ao respeito aos SMAS, ao serviço público, ao Município e aos colegas, sendo desleal para com os mesmos;
43) A arguida atentou contra os deveres funcionais, que lhe são exigidos como trabalhadora da administração pública;
44) A arguida sabia que estava ao serviço público e com o seu comportamento prestou-lhe um péssimo serviço, degradando a confiança do público — que ao invés deveria sempre salvaguardar e promover;
45) Ofendendo e violando, desse modo, a imparcialidade, a legalidade e a transparência da administração pública e, consequentemente, o bom andamento da administração dos ex-SMAS e do Município do Porto e os fins de ordem pública que este deve satisfazer;
46) Perante o descrito, quebrou-se a confiança e as bases de uma relação funcional e profissional entre a arguida e a AdP e o Município do Porto, tornando-se insuportável e inviável a manutenção da sua relação profissional perante esta Câmara e a administração pública;
47) A arguida tem 29 anos de serviço;
48) Nos anos de 1984 a 1988 e 2007 a arguida obteve a classificação de serviço de "Bom";
49) Nos anos de 1989 a 2005 a arguida obteve a classificação de serviço de "Muito Bom";
50) A arguida é uma funcionária zelosa, assídua e pontual.
4.40.2 Tipificação da Infracção Disciplinar e Eventuais Circunstâncias Agravantes e Atenuantes
Os factos descritos constituem a prática, pela arguida, de uma infracção disciplinar pois violou alguns dos deveres gerais inerentes à função que exercia e exerce (artigo 3.°, n.° 1 do E.D.).
Com efeito, a arguida, com o comportamento descrito, incorreu na violação dos deveres de isenção e zelo, previstos nas alíneas b) e e), do n.° 2, n.° 4 e n.° 7 do citado artigo 3.° do E.D.
Face à factologia dada como provada, a violação:
a) Do dever de isenção está sancionada com a pena de demissão, como previsto no artigo 9.°, n.° 1, alínea d) e 18.°, n.° 1, alínea m);
b) Do dever de zelo está sancionada com a pena de suspensão, nos termos do artigo 9.°, n.° 1, alínea c) e do artigo 17.° (corpo da norma: "trabalhadores que actuem com grave negligência ou com grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais e àqueles cujos comportamentos atentem gravemente contra a dignidade e o prestígio da função"),
mas a censurar numa única medida disciplinar, nos termos do n.° 3 do artigo 9.°, tudo do E.D.
As referidas penas estão previstas nas alíneas c) e d) do artigo 9.°, a sua caracterização e efeitos estão estatuídos nos artigos 10.° e 11.° do E.D.
A responsabilidade disciplinar da arguida é agravada pela circunstância prevista na alínea d) do artigo 24.° do E.D., nomeadamente por haver "comparticipação com outros indivíduos para a sua prática".
A arguida tem mais de 10 anos de serviço como funcionária pública, no entanto, não ficou provado que tenha desempenhado as suas funções, ao longo desses anos, "com exemplar comportamento e zelo".
Veja-se, a este propósito, o acórdão do STA de 14 de Março de 2001 (processo n.° 38664), onde se pode ler que "Para que exista atenuante especial derivada de exemplar comportamento e zelo, prevista na alinea d) do art. 29.°, do E.D. [que corresponde, ipsis verbis, à actual alínea a) do artigo 22.º do novo E.D.] é necessário não só que esse comportamento e zelo se prolonguem por mais de 10 anos, mas também que possam ser considerados um modelo para os restantes funcionários, o que supõe que sejam qualitativamente superiores aos deveres gerais destes" (sublinhado nosso).
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA de 9 de Dezembro de 1998 (processo n.° 38100), o qual nos indica que "a circunstância atenuante especial prevista no artigo 29.°, alínea a), do citado diploma (...) exige mais do que a simples ausência de anteriores punições disciplinares, postula antes que o currículo anterior do arguido denote elementos que permitam qualificá-lo como modelar" (sublinhado nosso).
Por tal facto, não se aplica ao caso a circunstância atenuante prevista na alínea a) do artigo 22.º, bem como qualquer outra.

4.40.3 Gravidade, Culpa e Personalidade da Arguida
A conduta infractora praticada pela arguida contribuiu para um empobrecimento indevido dos SMAS de €3.548,30, o qual se considera dinheiro público.
Com efeito, no presente caso a arguida nunca se deslocou à clínica para realizar qualquer tratamento. No entanto, em conluio com os gerentes daquele estabelecimento, conseguiu que lhe fossem emitidos recibos de tratamentos médicos nunca realizados.
Ora, com a entrega desses recibos nos serviços dos SMAS, tal implicou que a arguida viesse a receber comparticipações por tratamentos que, em bom rigor, nunca ocorreram, comparticipações essas no valor total de €3.458,56.
Assim, a arguida fez um uso abusivo e fraudulento dos direitos que tinha enquanto beneficiária da Assistência na Doença aos Servidores do Estado, manipulando-os de forma a se enriquecer — com o necessário empobrecimento dos SMAS, sua entidade empregadora e um ente público.
Milita ainda contra a arguida o facto de este seu comportamento não se ter circunscrito a um caso isolado, antes tendo a mesma reincidido na infracção, totalizando um prejuízo para os SMAS e para o erário público de €3.458,56, e sem que, ao longo dos anos em que contribuiu para o empobrecimento indevido dos SMAS, mostrasse qualquer sinal de arrependimento ou de inversão do seu comportamento.
Desta feita, e face ao exposto, a conduta da arguida assume alta gravidade, não só pelo valor envolvido, mas também pelo facto de, na origem das comparticipações atribuídas, não estar qualquer tratamento realizado, mas somente um intuito puro de se enriquecer à custa dos SMAS e do erário público, através de meios ilícitos, como os que se deram como provados.
Todos estes factos, sublinhe-se, são absolutamente contrários às normas legais vigentes, bem como às regras internas dos SMAS e aos próprios objectivos daquela entidade — regras essas conhecidas da arguida mas que, mesmo assim, aquela aplicou de forma fraudulenta, para se enriquecer.
A arguida alegou e demonstrou ter emitido os cheques referidos no facto provado n.° 48. Todavia, tais cheques nada de relevo trazem para a decisão, porquanto os mesmos foram emitidos ao portador, desconhecendo-se qual o seu destino.
Por outro lado, é ainda de sublinhar que existe dolo directo por parte da arguida, seja no plano da culpa, seja no plano do ilícito, uma vez que a arguida tinha plena consciência da ilicitude do seu comportamento, bem como das consequências do mesmo e, ainda assim, projectou e consumou a infracção disciplinar.
A arguida entrou para a administração pública em 1980, o que lhe acarreta uma exigência comportamental a que não soube ou não conseguiu corresponder, já que na esteira de Marcelo Caetano é "um veterano da função pública", o que se devia tornar num exemplo para os seus restantes colegas.
Com efeito, face à sua antiguidade, a arguida deveria de constituir um exemplo para os seus restantes colegas de trabalhe, pautando-se por uma postura de respeito e isenção que a arguida, manifestamente, não revelou.
Por outro lado, a antiguidade da arguida implicava ainda um maior grau de responsabilidade e confiança que os serviços vinham em si depositando ¬responsabilidade e confiança essa que a arguida, com a sua conduta, tudo fez para, definitivamente, derrubar.
A arguida na sua defesa em nada desmontou a acusação contra si formulada, quer em termos aleatórios, muito menos no âmbito probatório.
Fazendo retroagir a missão dos SMAS à data da prática dos factos, como consta dos factos provados, tal entidade visava prestar serviços de águas e saneamento aos cidadãos, pelo que a sua missão se relacionava com a defesa e prossecução do interesse público.
Por tal facto, a arguida estava vinculado a deveres profissionais, não só para com a sua dignidade pessoal e profissional, mas também para com um ente público e para com os cidadãos.

4.40.4 Pena Proposta
Verifica-se que toda a matéria fáctica provada constitui violação dos deveres de isenção e de zelo a que a arguida estava obrigada ao respectivo cumprimento, como funcionária do Município do Porto, violação essa que, pela sua gravidade objectiva, as circunstâncias agravantes, grau de culpa, a sua personalidade, tudo nos termos em que supra ficaram expostos, espelha bem a sua conduta, que a lei obriga a sancionar com as penas de demissão e suspensão.
Orientado pelos princípios da justiça e da proporcionalidade, conforme exige o n.° 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa, tendo em conta a gravidade objectiva, grau de culpa, a personalidade da arguida e a sua categoria profissional, e bem assim, os acima especificados contornos concretos da infracção e sua expressão, há que ponderar a pena adequada e justa, tendo sempre em conta a finalidade característica das medidas disciplinares.
Assim, avaliado na sua globalidade, no seu contexto, o seu comportamento atingiu tal desvalor, que pós em causa a eficiência, a confiança, o prestígio e a idoneidade que deve merecer a administração pública, revelando uma personalidade inadequada ao exercício das funções públicas.
O comportamento da arguida "quebrou, definitiva e irreversivelmente, a confiança que deve existir entre o serviço e o agente" (vd. os acórdãos do STA de 1/04/03 — processo n.° 1 228/02 —, de 6/10/93 — processo n.° 30463 —, de 30/11/94 processo n.° 32 500-, Marcelo Caetano, ob. citada, V:II., p. 821).
Ou seja, por tudo quanto se disse e provou, e nos termos do n.° 1 do artigo 18.° do ED, está inviabilizada a manutenção da relação funcional entre esta Câmara e a arguida, pelo que se propõe a aplicação da pena de demissão à arguida MMO”.
23) Por deliberação proferida em 04.05.2010, pela Câmara Municipal do Porto, em escrutínio secreto, foi decidido aplicar à Autora a sanção disciplinar de demissão, conforme emerge da análise de fls. 45 e seguintes dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
24) No âmbito do processo-crime n.º 1993/05.7 que correu termos na 2.ª Vara Criminal do Porto foi a Autora – aí arguida – absolvida da prática de um crime de burla qualificada e de um crime de falsificação de documento, nos termos constantes de fls. 456 a 752 dos autos.
*
III - Enquadramento Jurídico
1. O erro nos pressupostos de facto.
A Recorrente suscita o erro no julgamento da matéria de facto dada como provada em 1ª instância, com os seguintes fundamentos:
“Consta da Nota de Culpa:
“ Artigo 1º
“ Os Anexos à frente identificados retirados do processo-crime – dão-se desde já como integralmente reproduzidos nesta acusação”.
“ Artigo 27º
A arguida e seu filho nunca receberam tratamento e serviços médicos na Clínica”
“Artigo 28º
No entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da clínica – FHMM, odontologista e sua mulher JMMSM, gerente.
“ Artigo 29º
Foram emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores constantes do Anexo 3” (retirados do processo crime).
“ Artigo 30º
Entretanto, na sequência da entrega desses recibos pelo alegado tratamento estomatológicos nos serviços da secção de salários do SMAS a arguida recebeu, a título de comparticipações da ADSE (…..), sabendo que lhe não eram devidos”.
E no Relatório Final de que a decisão, como pressuposto da aplicação da pena, se apropriou foram dados como provados:
“24) No entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da clínica – FHMM, odontologista e sua mulher JMMSM, gerente.
“25) Foram-lhe emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores constantes do Anexo 3” .
Sucede que,
No processo disciplinar é inexistente prova sobre aqueles dois factos, e assentando toda acusação e relatório final no processo de instrução-criminal, também neste era inexistente prova documental ou testemunhal sobre aqueles factos, pelo que existiu erro grosseiro na apreciação da prova, que conduziu à decisão da pena disciplinar aplicada. “
Vejamos:
Cabe dentro da competência do Tribunal analisar a existência material dos factos e averiguar se eles constituem infracções disciplinares.
Conforme decidido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, no processo nº 03188/11.1 PRT, datado de 28.0.2014, cujo sumário se transcreve:
“I- No processo disciplinar o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção cabe ao titular do poder disciplinar, sendo que nele o arguido assume uma posição de sujeito processual e não dum seu mero objeto.
II. O arguido não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada dado o ónus da prova dos factos constitutivos da infracção impender sobre o titular do poder disciplinar, na certeza de que um “non liquet” em matéria de prova terá de ser resolvido em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
III. A condenação deve estribar-se em provas que permitam um juízo de certeza, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
IV. No processo sancionador a prova da prática da infracção que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor responsável, não podendo impor-se uma sanção com base em simples indícios, presunções ou conjecturas subjectivas.
V. Na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adoptado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória.
Concordando-se com o sustentado nesse acórdão, afigura-se-nos que o Réu, a quem competia o ónus da prova dos factos constantes da nota de culpa, não logrou, no caso da Autora, provar os factos dela constantes e supra elencados, com um juízo de certeza que permita uma convicção segura, para além de toda a dúvida razoável, de forma inequívoca, da sua verificação.
Com efeito, tais factos resultam de indícios, presunções, conjecturas subjectivas, formuladas no processo disciplinar, relativamente passíveis de estarem errados.
A Autora alegou na defesa escrita que apresentou no processo disciplinar que:
“10º - Não é verdade a matéria de facto constante do artigo 28° da Acusação. A arguida não conhece, nem nunca falou ou contactou as pessoas referidas naquele artigo, nem teve quaisquer contactos ou tratamentos na CSI.
11º - Sem consciência da ilicitude do acto, a arguida emprestou o seu cartão da ADSE à Colega MCBFR, e uma única vez, em 2003, sempre convicta que esta utilizaria, de facto, o cartão da ADSE de forma correcta e em conformidade com a lei da ADSE e de forma lícita.
12° - Daquele montante total referido no artigo 30° da Acusação, emitiu e entregou à referida C…, os cheques sobre a Caixa Geral de Depósitos n.°s 9…81; 6…84; 0…82; 8…84; 2…91 no montante global de €2.483,00 (dois mil quatrocentos e oitenta e três), que aquela levantou fazendo somente sua a quantia levantada — Doc.s 1 a 5. E,
13° - A quantia remanescente foi entregue em dinheiro e em mão à referida C… pelo Colega HMSC, por se encontrar ausente do serviço. Assim,
14° - Todas as quantias constantes do artigo 30° da Acusação e pagas pelo SMAS, foram entregues a referida C….
15º - A Arguida ainda que tivesse recebido as quantias referidas no artigo 30º da Acusação, não ficou com elas na sua posse, nem as fez suas, antes as entregou na totalidade àquela colega C….
16° - A C…, na altura em que a arguida recebia o vencimento com as comparticipações, vinha pedir-lhe as respectivas quantias, e nesses momentos a arguida, instava com ela, pedindo-lhe para não mais utilizar o número do seu cartão, zangando-se.
17º - Por diversas vezes, naquelas alturas, telefonava para a secção de salários a alertar para não receberem quaisquer recibos entregues pela C… que viessem em nome da arguida. E, certo é que,
18° - A arguida nunca entregou qualquer recibo ou documento emitido pela CSI para comparticipação de despesas da ADSE.
Sempre sem prescindir
19° - Não se pode deixar de frisar que NUNCA a arguida viu a caixa a que se refere o art.° 11° da Acusação, e sempre que entregou recibos para comparticipação procedeu à sua entrega em mão na Secção de Salários e Contabilidade.
20° - E, assim, procediam os demais funcionários do SMAS, que também não têm conhecimento da existência de tal Caixa, antes sempre entregaram em mão os respectivos recibos naquela secção, não correspondendo à verdade a parte da matéria constante do artigo 13° da Acusação no que se refere a recibos” deixados”.
21°- A Arguida não conhecia, nem tinha obrigação de conhecer, quer a tabela a que se referem os artigos 18° a 26° da Acusação, quer os preços constantes da tabela fossem, de facto, os praticados e toda a demais matéria referente à CSI, porque nunca teve qualquer contacto com a mesma, nem se socorreu dos seus Serviços.
22° - Não corresponde à verdade a matéria constante dos artigos 32° a 40° da Acusação, porque não ficou com as verbas referidas no artigo 30° da Acusação, não tendo tido qualquer proveito económico. Sendo certo que,
23° - Nunca teve consciência ou conhecimento que a referida C…, tivesse utilizado, ou pretendesse utilizar o referido cartão da ADSE para fins de obter comparticipações superiores às legais, e o usasse mais do que uma vez.
24° - A arguida NUNCA APRESENTOU OU ENTREGOU nos SMAS recibos ou FACTURAS emitidos pela CSI e referentes a tratamentos estomatológicos e referidos no artigo 30° da Acusação, não correspondendo à verdade a matéria ai constante no que diz respeito à sua pessoa. E,
25° - Não corresponde à verdade que lhe tivessem sido emitidos e entregues os recibos com as descrições e datas e valores constantes do Anexo 3., impugnando-se a veracidade da matéria referida no artigo 29°.
26° - Não é, por isso, verdade que a Arguida tenha agido com conhecimento e consciência de prejudicar ilicitamente os então SMAS do Porto.
27° - A arguida é de todo alheia aos eventuais comportamentos de outros trabalhadores que ocorreram entre 2001 a 2005.
28° - Não corresponde à verdade e no que diz respeito à arguida toda a matéria constante dos artigos 43° a 59° sendo meras especulações sem qualquer suporte factual ou de prova.
Neste relatório final tudo quanto se alega para não aceitar a prova indicada nessa defesa da arguida cinge-se ao seguinte:
“A arguida alegou e demonstrou ter emitido os cheques referidos no facto provado n.° 48. Todavia, tais cheques nada de relevo trazem para a decisão, porquanto os mesmos foram emitidos ao portador, desconhecendo-se qual o seu destino.”
Ora, discordamos desta conclusão porquanto os cheques têm relevo para a decisão já que têm inscritos valores muito semelhantes aos valores depositados na conta da arguida pelo SMAS e datas muito próximas das dos depósitos nessa conta, tudo indiciando que a versão dos factos elencada pela arguida na sua defesa tem alguma possibilidade de ser verdadeira.
1º cheque – valor de 476,00€, emitido em 20.11.2003 - depósito de 476,46€, data do depósito – Novembro de 2003 (facto 25 do relatório final).
2º cheque – valor de 140,00€, emitido em 21.01.2004, depósito 141,50€, data do depósito – Janeiro de 2004 (facto 25 do relatório final)
3º cheque – valor de 147,00€, emitido em 22.03.2004, depósito de 147,60€, data do depósito – Março de 2004 (facto 25 do relatório final)
4º cheque – valor de 470,00€, emitido em 20.04.2004, depósito de 476,40€, data do depósito – Abril de 2004 (facto 25 do relatório final).
5º cheque – valor de 1.250,00€, emitido em 22.11.2004, depósito de 1.260,30€ , data do depósito – Novembro de 2004 (facto 25 do relatório final).
É certo que todos eles foram passados ao portador, mas isso não exclui que tenham sido entregues à referida C…, como o alega a arguida.
A possibilidade de veracidade dessa versão é ainda corroborada pelo depoimento da testemunha de defesa, HMSC que se transcreve parcialmente:
“(…) De uma das vezes em que a arguida MM estava doente, crê que por volta de 2004, esta pediu-lhe que entregasse dinheiro à funcionária C…;
Disse-lhe que esse dinheiro era da C…, porque este tinha utilizado o seu cartão.
(…) Apesar de ter entregue o dinheiro à C…, esta não lhe disse nada;
O dinheiro vinha em notas, não vinha dentro de nenhum envelope;
A arguida MO queixou-se que a C… andava a abusar do seu cartão da ADSE;
Não se lembra do montante em questão;
Entregou esse dinheiro à C….”
Bem como pelo depoimento da testemunha MMSDCCB, que se transcreve parcialmente:
“(…)Nunca lhe disse ter ido à CSI;
Viu a C… pedir o cartão de beneficiário da ADSE à arguida MO, por volta de 2004.
Viu a arguida emprestar esse cartão por uma só vez;
Passado cerca um mês, a C… passou pelo posto médico a pedir para a arguida MM passar-lhe um cheque;
A arguida MM da primeira vez anuiu, mas depois ficou chateada;
Viu, pelo menos duas vezes a arguida MM a ligar para a secção de salários a pedir para não aceitarem mais recibos emitidos pelo seu cartão da ADSE a não ser que fosse ela a entregar esses recibos em mãos;
Nessa altura referiu o nome da C… e contou a história.
Desconhece o que fizeram na secção de salários;
No entanto, a arguida continuou a passar cheques à C… pelas vezes posteriores em que ela alegadamente usava o seu cartão;
Viu sempre entregar os cheques, umas 4 ou 5 vezes;
Não sabe qual o montante dos cheques, pelo que não sabe se a arguida MM terá ficado com parte do dinheiro.”
E ainda pelo depoimento da testemunha DFPMOC, que se transcreve parcialmente:
“(…) Uma vez, quando tinha ido entregar a roupa, ouviu a C… a dizer à arguida MO: «Chuta, chuta para cá;”
Esta prova não é contrariada por nenhuma prova produzida no processo disciplinar, pelo que se admite a possibilidade de ser verdadeira, ou, pelo menos, está suscitada a dúvida sobre como ocorreram os factos relatados na acusação disciplinar e no relatório final.
Suscitada essa dúvida, quid iuris?
Como se defende no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.11.2014, no processo nº 1540/12 PRT, por forma que sufragamos na íntegra:
“Lê-se no Acórdão nº 12868/03 do TCA-Sul de 09/06/2004: Diz-nos Eduardo Correia: “(...) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, (...) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se-ão os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (...)” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.).
Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta: “(…) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (...) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua actuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho actual ou futuro (...). No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respectivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (...)” ( José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs.113 e 116.).”
Assim, forçoso é concluir-se que se aplica ao processo disciplinar o princípio “in dubio pro reo”.
A acusação e o relatório final não alude a meios de prova que confirmem os factos supra elencados, negados pela Autora.
Mas resulta de todo o acervo documental junto ao processo disciplinar, transposto do processo-crime supra aludido que toda a prova da acusação assenta nas fichas clínicas em que resultou o anexo 3 junto à acusação.
A arguida alega a nulidade dessa prova, por resultar de busca e apreensão sem os requisitos exigidos pelo artigo 180º, nº 2, do Código de Processo Penal, o que não releva, porquanto, tal nulidade, a verificar-se, teria que ser arguida em sede de processo disciplinar e até ao término da produção de prova invocada pela defesa da arguida, fase do processo disciplinar equiparada ao encerramento do debate instrutório de arguido em processo criminal, por se tratar de acto a que a arguida não assistiu.
Concorda-se, assim, com a posição sustentada no acórdão do processo-crime aludido nos factos provados – fls 257 e 258 desse acórdão junto aos presentes autos.
A arguida não invocou tal nulidade em nenhuma fase do processo disciplinar. Está, pois, precludido o direito de a invocar.
Extrai o Recorrido, da possibilidade de valorar como meio de prova as referidas fichas clínicas, no caso concreto, a ausência delas no que respeita à aqui Autora, considerandos que nem vale a pena reproduzir, já que a arguida na defesa escrita apresentada no processo disciplinar confessa não ter recorrido aos serviços médicos da CSI e, por isso, nenhum relevo assume a sua alegação neste processo de que o seu filho beneficiou dos referidos serviços.
Com efeito, no decurso do processo disciplinar jamais a Recorrente alguma vez invocou que o seu filho recebeu os tratamentos constantes dos recibos que entregou nos Serviços Municipais de Águas e Saneamento do Porto.
Discordamos, sim, da conclusão do Recorrido de que não estamos perante um caso de dúvida razoável e de que a prova seja, não só extensa, como inequívoca no sentido de a Recorrente ter efectivamente praticado as infracções pelas quais foi punida.
Invoca o Recorrido, em abono, do que defende que a conjugação entre a livre apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo foi já tratada pelos nossos tribunais superiores, mas apenas invoca e transcreve os pontos III e IV do sumário do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 11.03.2010 (processo 02666/07):
«(…)
III - O princípio in dubio pro reo não tem como fundamento o princípio da “presunção de inocência”, nem constitui regra de “ónus da prova”, mas tão só o princípio de que é inadmissível a condenação por infracção não provada».
IV - Tendo o tribunal recorrido aferido da regularidade e suficiência do juízo probatório da decisão disciplinar e perfilhado um juízo coincidente com o que foi formulado pela autoridade administrativa, sendo certo que a convicção probatória é formada livremente, com base na prova disponível, no mérito da instrução produzida, não foi violado o disposto no art. 32º, nº 2 da CRP.”
Para aferirmos como deve ser interpretado tal sumário, importa transcrever a conclusão final dessas matérias tratadas no acórdão:
“Aliás, a verdade dos factos a atingir na decisão, não é a verdade absoluta, mas a verdade prática, baseada na convicção objectivável do decisor, para além de toda a dúvida razoável (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.11.1997, Rec 40050).
Se cotejarmos o sustentado nestes dois acórdãos com o defendido no acórdão supra citado proferido no processo nº 03188/11.1 PRT, parece-nos inabalável que os factos essenciais à condenação da arguida na pena disciplinar que lhe foi aplicada – demissão – não resultam provados com a escassa prova produzida em sede de processo disciplinar.
Com efeito não resultam para além de toda a dúvida razoável provados por quem tem esse ónus de prova – o Recorrido.
Assim, segundo o princípio in dubio pro reo, a arguida não pode sofrer sanção disciplinar, pois que tais factos eram consubstanciadores das infracções imputadas no relatório final à Autora.
O Réu contrapõe nas suas alegações de recurso o seguinte:
“Da inexistência de reclamação quanto à matéria de facto ou de não preenchimento dos seus pressupostos.
Nos termos do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil (aplicável ex vi artigo 140.º do CPTA), quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos da matéria de facto incorrectamente julgados e, bem assim, os concretos meios probatórios (constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada) que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa.
Após uma atenta análise das alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, não se identifica qualquer reclamação da mesma quanto à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.
Aliás, tal retira-se não só do corpo das alegações, e das respetivas conclusões, como ainda do pedido formulado pela Recorrente a final, em que nenhuma referência é feita quanto ao julgamento da matéria de facto pelo Tribunal a quo.
Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, o certo é que a Recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC (aplicável ex vi artigo 140.º do CPTA), o que daria imediatamente lugar à rejeição de qualquer reclamação da matéria de facto que pudesse ter sido realizada – o que, cautelarmente, desde já se invoca.
Face ao exposto, deverá ser de manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo relativamente à matéria de facto”.
Não tem razão o Réu porque ao caso concreto não se aplica o artigo 640º do Código de Processo Civil, aplicável em situações em que houve julgamento, seguido de sentença, quando, no caso em apreciação, foi proferido saneador-sentença, que, na sua elaboração, obedece às regras do artigo 83º, nº 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002.
Como decidido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.09.2013, processo nº 2525/10.0 PRT, com o mesmo relator:
“Existe, é certo, uma norma específica no Código de Processo nos Tribunais Administrativos sobre o ónus da impugnação, a que consta do n.º4 do seu artigo 83º: “a falta de contestação ou a falta nela de impugnação especificada não importa confissão dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia livremente essa conduta para efeitos probatórios.”
Deste preceito não resulta em que se deve traduzir a impugnação especificada mas apenas qual a consequência da sua falta.
Daí que não se veja obstáculo à aplicação subsidiária da regra consignada no n.º3 do artigo 490º, do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 1º do Código de Processo Civil, a propósito do ónus da impugnação especificada:
“Se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.”
Neste sentido ver o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 14.12.2012, no processo 356/12.2. BECBR.
É, assim, segundo estas regras que se dão como provados ou não provados os factos no saneador-sentença.
Como se decidiu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 15.07.2016, no processo nº 331/07.9 VIS, com o mesmo relator:
“No caso, como o presente, em que está em causa um acto administrativo, punitivo, a acção tem necessariamente como objecto imediato esse acto e não os factos que lhe estão subjacentes que apenas são objecto mediato.
Assim, a prova a ter em conta, testemunhal ou não, é a que foi produzida no procedimento administrativo, e saber se a mesma é ou não suficiente para a prova dos factos assentes na decisão administrativa e se nesse acto foi feita a devida avaliação e enquadramento jurídico desses factos.
Ora na parte em que o recorrente pretende a “descoberta da verdade material”, desgarrada do conteúdo do próprio acto administrativo e da prova produzida em sede administrativa, não tem suporte legal para a sua pretensão, designadamente o artigo 90º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que não pode ser interpretado nesse sentido, sob pena de violação do princípio, constitucionalmente estruturante, da separação de poderes e de se transformar a impugnação judicial numa espécie de reexame administrativo.
Apenas se poderá, portanto, considerar relevante a prova testemunhal produzida no procedimento administrativo, sendo, portanto, irrelevante a prova testemunhal a produzir no processo judicial, requerida pelo autor, para efeitos de avaliar a validade do acto impugnado.”
Cingindo-nos à prova produzida no processo disciplinar, termos que concluir que confrontando a prova produzida pela acusação e a prova produzida pela defesa, não nos é possível concluir de forma irrefutável como os factos ocorreram.
Cumpre ainda ponderar o argumento da Autora de que:
“O douto Acórdão transitado em julgado em 29.09.2013 por despacho de 7.10.2013 no âmbito do processo-crime n.° 1993/05.7 que correu termos na 2.a Vara Criminal do Porto, deu como não provado que tivesse havido conluio ou combinação entre o identificado H… e J… e cada um dos arguidos (neles se incluindo a recorrente), dando ainda em relação à recorrente como não provado que os mencionados recibos tivessem sido emitidos com conhecimento ou concordância da arguida ( ora, recorrente), tendo, também, por base a documentação que foi instrução do procedimento disciplinar.(como é referido na douta decisão em recurso: fichas médicas, depoimento dos médicos e assistente, recibos emitidos pela referida clínica).
Lê – se na certidão do douto Acórdão que não se encontra provado que:
“F) Os factos referidos em 22) tivessem a anuência ou consentimento dos destinatários”, e do ponto 22) é provado que “ Para tanto os arguidos FH e JM predispuseram-se a descrever tratamentos que não tinham sido, efectivamente realizados, o qual seria aposto nos recibos que posteriormente seriam entregues no SMAS para fins de comparticipações da ADSE”.- fls. 169 da certidão junta.
E lê- se, ainda, que não se encontra provado que:
“SSSSS- Os recibos foram emitidos com conhecimento e concordância da arguida” ( fls. 243 da certidão).
Consta, ainda, do douto Acórdão:
“Nenhuma prova foi produzida de que cada um dos arguidos actuou em conluio com os arguidos FM e JM como já se referiu supra. Nem que os mesmos soubessem que os recibos não correspondiam à verdade”. ( fls. 267 da certidão junta).
Isto é,
6 – Não existe qualquer prova, quer em relação a que a recorrente tivesse combinado ou conluiado com o FHMM, odontologista e sua Mulher para a emissão dos recibos, quer que os recibos com as descrições, datas e valores lhe tivessem sido entregues (nem no processo disciplinar, nem no processo de inquérito) e no processo-crime tais factos foram dados como não provados.
Vejamos:
Concorda-se com o sustentado no saneador-sentença recorrido na parte em que afirma que:
“ … o processo disciplinar é autónomo do processo criminal sendo que “o grau de certeza jurídica necessária para fundamentar a condenação terá, no processo crime, que ser mais seguro e consistente que no processo disciplinar na medida em que se trata normalmente de sanções mais graves e em que está em causa a liberdade do cidadão (cfr. v.g. o acórdão do TCA Sul de 6 de Maio de 1998 – processo 01434/98 ou o acórdão do TCA Norte de 31 de Maio de 2013 – processo 01513/06, ambos publicados em www.dgsi.pt).
Como se evidencia em acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de Dezembro de 2005 (processo 042203:
“ … o processo disciplinar não está subordinado ao processo crime. Trata-se de processos distintos e autónomos, cuja independência assenta fundamentalmente na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar, bem como na diferente natureza e finalidade das penas nesses processos aplicáveis. Pelo que, em princípio torna-se irrelevante em processo disciplinar a invocação do facto de o processo crime ter sido arquivado. O invocado arquivamento ou uma eventual absolvição em processo criminal, não é factor impeditivo de a mesma conduta vir posteriormente a ser dada como demonstrada em procedimento disciplinar e se apresente como violadora de determinados deveres gerais ou especiais decorrentes do exercício da actividade profissional exercida e por isso susceptível de integrar um comportamento disciplinarmente punível.”
Idêntico entendimento foi veiculado no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 13.09.2013, processo nº 2525/10.0 PRT, com o mesmo relator:
“Conforme é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico, o processo disciplinar é independente e autónomo do processo criminal, sendo diversos os respectivos fundamentos e os fins das respectivas penas, assim como os pressupostos da responsabilidade disciplinar e criminal.
Esta autonomia caracteriza-se, no essencial, pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios, tendo em conta a diversidade dos interesses específicos a que se dirige cada um daqueles procedimentos sancionatórios (entre muitos outros ver os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 08.07.2009, processo 0635/08, do Tribunal Central Administrativo de 17.06.2010, processo 05896/10, 22-03-2012, processo 07013/10; na doutrina, Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, I, pág. 4).
Assim, o argumento de que se a Autora foi absolvida em processo criminal, por não se ter provado a autoria dos factos essenciais previstos na acusação criminal, que coincidem com os factos essenciais previstos na acusação disciplinar, conduziria à impossibilidade de ser condenada disciplinarmente, não colhe.
Alega ainda a Autora que:
“Acresce que,
7 – Como pressuposto factual da punição foi dado como provado no artº 27º:
“A arguida e seu filho nunca receberam tratamento e serviços médicos na Clínica”,
No entanto não se encontra provado nos autos que o filho da recorrente não tivesse recebido os tratamentos, ou parte dos tratamentos constantes dos recibos referidos no anexo 3 da acusação, pois constam as referidas fichas clínicas, quer no processo disciplinar, quer no processo crime instrutório, o que conduziria a que, como foi dado como provado no processo crime, a recorrente tivesse beneficiado da verba de €665,00 e não os imputados, €3.548,56 – fls. 142, 143 e 144 da certidão junta.”
A Autora introduz aqui uma questão nova em sede de alegações de recurso, uma vez que na 1ª instância, nunca alegou que não se tivesse provado nos autos, e já vimos que é nos autos de processo disciplinar que tal prova tinha de fazer-se, que o seu filho não tivesse recebido os tratamentos a que se reportam as fichas clínicas a ele referentes.
Nunca antes e concretamente na defesa do processo disciplinar a Autora alegou que tal tivesse acontecido, pelo que tal questão não pode ser apreciada em sede de recurso, conforme se decidiu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 14.12.2012, no processo nº 00356/12.2BCBR, com o mesmo Relator em cujo ponto I do sumário se escreve:
“Depois de proferida a decisão em primeira instância não pode ser apreciada, designadamente em sede de recurso jurisdicional, qualquer questão nova e, mesmo as de conhecimento oficioso, não podem aqui ser conhecidas se obstarem ao conhecimento de mérito, face ao disposto no artigo 87.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
No texto do mesmo acórdão refere-se:
“Vem-se entendendo, de modo uniforme, que em sede de recurso jurisdicional apenas podem ser tratadas questões que tenham sido invocadas ou suscitadas em primeira instância, salvo as de conhecimento oficioso – neste sentido ver a título de exemplo os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 29.03.2012, processo 00254709.7 BEMDL, e de 08-07-2012, no processo 00215/98 – Porto.
Mas basta para a procedência do recurso e da acção a verificação do apontado erro nos pressupostos de facto do acto administrativo sancionatório impugnado, porque não existe prova irrefutável da prática pela arguida dos factos que fundamentam a sanção de demissão:
Desde logo não existe prova de que a arguida tenha:
“- 18º facto dado como provado na 1ª instância – “no entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da Clínica, (…) foram–lhe emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores do Anexo 3 (…), [que posteriormente entregou] (…) nos serviços da secção salários dos SMAS (…), [tendo recebido, por via disso] (…) a título de comparticipações da ADSE, (...) o valor de 3.458,56 €”, sabendo que não lhe eram devidos.
- 22º facto dado como provado na 1ª instância:
24) No entanto, na sequência de combinação entre a arguida e os sócios e gerentes da Clínica - FHMM, odontologista e sua mulher JMMSM, gerente, foram-lhe emitidos e entregues os recibos com as descrições, datas e valores, constantes do Anexo 3 da sua acusação;
31) Com este comportamento, a arguida recebeu dos SMAS, indevidamente, a título de comparticipação da ADSE, o montante total de €3.548,56 que não lhe eram devidos;
32) Ficando os serviços, consequentemente, desembolsados de tal quantia, a qual se considera dinheiro público;
33) De facto, a arguida quis e conseguiu receber aquele montante à custa daquela entidade, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia, era dinheiro público;
34) Mais sabendo que estava a prejudicar, dessa maneira o erário público, pois que recebeu quantias que não lhe pertenciam e que sabia não lhe pertencerem através do estratagema, ora descrito e dado como provado;
35) Sabia a arguida que, com o seu comportamento, ao ter recebido o aludido montante, se aproveitava ilícita e abusivamente do facto de ser funcionária dos SMAS, e dos direitos que a ADSE legalmente lhe concedeu, tal como ao seu filho, para à custa da qualidade de funcionária e daqueles direitos se enriquecer;
36) Com o consequente empobrecimento dos SMAS e do erário público;
37) Conseguiu a arguida ter vantagens patrimoniais a que não tinha direito, enganando conscientemente os SMAS, a sua entidade patronal que sempre cumprira as suas obrigações que sobre si impendiam no contexto do vínculo público que a ligava àquela;
38) A arguida praticou os factos aqui descritos e dados como provados sempre voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
39) Com o comportamento ora descrito e dado como provado, a arguida, como funcionária, faltou ao respeito aos SMAS, ao serviço público, ao Município e aos colegas, sendo desleal para com os mesmos;
40) A arguida atentou contra os deveres funcionais, que lhe são exigidos como trabalhadora da administração pública;
41) A arguida sabia que estava ao serviço público e com o seu comportamento prestou-lhe um péssimo serviço, degradando a confiança do público — que ao invés deveria sempre salvaguardar e promover;
42) Ofendendo e violando, desse modo, a imparcialidade, a legalidade e a transparência da administração pública e, consequentemente, o bom andamento da administração dos ex-SMAS e do Município do Porto e os fins de ordem pública que este deve satisfazer;
43) Perante o descrito, quebrou-se a confiança e as bases de uma relação funcional e profissional entre a arguida e a AdP e o Município do Porto, tornando-se insuportável e inviável a manutenção da sua relação profissional perante esta Câmara e a administração pública.”
Segundo a defesa os factos supra descritos não ocorreram e da prova produzida pela acusação ninguém os confirmou.
Estamos, pois, no tocante a esses factos, perante erro nos essenciais pressupostos de facto do acto administrativo impugnado, ao contrário do decidido, nos termos do artigo 135º do Código de Procedimento Administrativo (de 1991), devendo, pois a acção julgar-se procedente, devendo o Réu ser condenado nos termos peticionados.
2. O erro nos pressupostos de direito.
Verificando-se erro nos pressupostos de facto forçoso se torna concluir também pela verificação de erro nos pressupostos de Direito pois a conduta da arguida não é susceptível de integrar o ilícito disciplinar que lhe foi imputado.
Deve, pois, julgar-se acção procedente, com a condenação do Réu nos termos peticionados, e, logo, procedente também o recurso jurisdicional.
***
IV- Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional, pelo que:
A) Revogam a decisão recorrida.
C) Julgam a acção administrativa especial procedente, por provada, e em consequência anulam o acto administrativo impugnado, por vício de violação de lei, com fundamento em erro nos pressupostos de facto e de Direito, condenando-se o Réu a pagar à Autora os vencimentos não pagos referentes aos período de demissão executado, acrescidos dos juros legais desde a data da execução da pena até integral pagamento e a reconstituir a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado a concretizar em execução de sentença.
Custas em ambas as instâncias pelo Recorrido.
Porto, 30.05.2018
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia
Ass. Alexandra Alendouro
_*_
VOTO DE VENCIDO:
Voto vencido este acórdão, num dos seus fundamentos, apesar de concordar com o sentido da decisão face ao outro fundamento, pelas razões que passo a expor:
Na hipótese – que aqui se verifica -, de demolição do locado, não caduca o direito à ocupação, resultante do regime do arrendamento social, regulado pela Lei nº 21/2009, de 20.05, na sua versão original, aplicável ao caso, dado não se aplicarem as regras da locação constantes do Código Civil, ao contrário do que consta do acto impugnado.
O arrendamento privado e arrendamento social são realidades completamente distintas, com regras e finalidades distintas e muitas vezes opostas.
No arrendamento civil há um acordo de partes, uma composição de interesses privados.
No arrendamento social há uma decisão unilateral da Administração de reconhecer - ou não - a existência dos pressupostos legais para atribuição de um fogo habitacional na realização de um interesse público, a concessão de habitação às pessoas mais carenciadas e dentro das possibilidades do erário público. Este direito, ao arrendamento social, não depende da existência do locado em si mesmo, mas da verificação de condições, próprias do candidato à ocupação, relativamente ao conjunto de locados disponíveis. Tanto assim que se coloca de imediato a hipótese de realojamento no caso de demolição do locado. E, pela banda do locador, não existe um direito, mas um dever a garantir o arrendamento social dentro dos condicionalismos legais.
Trata-se, por isso, de um contrato público e daí a atribuição de competência aos tribunais administrativos para dirimir estes litígios – n.º8 do artigo 3º da Lei nº 21/2009, de 20.05. E definido expressamente como tal pela Lei n.º 81/2014, de 19.12, actual regime de arrendamento social, designado agora “arrendamento apoiado para habitação”.
Por outro lado, a aplicação subsidiária da lei do arrendamento civil, expressamente prevista apenas no n.º 1 do artigo 17º Lei n.º 81/2014, de 19.12, inaplicável ao caso concreto, pressupõe a compatibilidade destas normas com a natureza pública do contrato, pois só assim se garante a coerência das soluções legislativas – n.º1 do artigo 9º do Código Civil.
Em concreto em relação à demolição, dado que a autarquia não está sujeita a um pedido de licenciamento em qualquer situação pela simples razão de que é a entidade competente para as conceder, poderíamos facilmente chegar à situação de a entidade obrigada a conceder o arrendamento social se eximir a esse dever pela demolição do locado. Eventualmente para erigir, em substituição, um locado a colocar no mercado lucrativo de imóveis.
O fundamento, no caso concreto, para negar o direito ao requerente não poderia ser a demolição do prédio mas apenas a não ocupação do locado por mais de dois anos e não ter fornecido à entidade proprietária as informações relativas à composição e aos rendimentos do agregado familiar, por motivo que lhe é imputável, fundamento que também é invocado no acto impugnado e que basta para o manter na ordem jurídica.
Julgaria, portanto, a acção improcedente e procedente o recurso, apenas por este fundamento.
Porto, 30.05.2018
Ass. Rogério Martins