Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00997/12.8BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/14/2013
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Pedro Marchão Marques
Descritores:RECLAMAÇÃO; GARANTIA; PEDIDO DE DISPENSA DE PRESTAÇÃO DA GARANTIA; DISSIPAÇÃO DOS BENS; RESPONSABILIDADE DO EXECUTADO; PROVA; IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO;
FACTOS NOTÓRIOS; INTERPRETAÇÃO DA LEI; CIRCULARES DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA; PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA LEI
Sumário:I – De acordo com o disposto no art. 342.º do C.Civil e no art. 74.º, nº. 1, da LGT, é sobre o executado que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois tratam-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.
II – A acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse.
III – São considerados, de acordo com o n.º 1 do artigo 514.º do CPC, factos notórios os que são do conhecimento geral, não carecendo, por isso, nem de alegação, nem de prova.
IV – A responsabilidade jurídica pode ser definida como o dever jurídico resultante da violação de determinado direito, através da prática de um acto contrário ao ordenamento jurídico.
V – O conceito de “responsabilidade do executado” contido no art. 52.º, n.º 4, in fine da LGT, alcança-se considerando um dever de observação de uma regra jurídica – que no caso até poderá conexionar-se com as regras de boa gestão empresariais e deveres dos órgãos de gestão das sociedades comerciais –, a par de um elemento sancionatório associado à conduta por aquele desenvolvida, devendo entender-se em termos de dissipação dos bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores. A intenção do legislador, como se depreende do art. 52.º, n.º 4, da LGT e 13.º do CPPT, foi a de evitar uma situação de benefício do infractor.
VI – Decorrendo dos factos provados, na sequência do inicial e especificadamente alegado pela Reclamante, que esta, através dos seus órgãos de gestão, adoptou medidas de incremento das receitas e de redução de custos, não se poderá concluir que exerceu uma actividade de dissipação de bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores, tanto mais que esta demonstrou que a situação de empobrecimento do seu património e diminuição dos seus resultados líquidos operacionais se ficou também a dever a factores exógenos, extra-empresariais.
VII – Não pode interpretar-se o requisito da falta de responsabilidade do executado na génese da insuficiência ou inexistência de bens do modo como a Administração Tributária fixou no Ofício-Circulado n.º 60.077, de 29.07.2010, na particular referência às pessoas colectivas, sob pena de somente se admitir que a irresponsabilidade daquele apenas poderia ser motivada por situações de “casos fortuitos” ou de “força maior”, externos à empresa e/ou à sua administração, conceitos a que não só o legislador não alude na redacção da norma em causa, como intrinsecamente se encontram em manifesta antinomia com o conceito jurídico de “responsabilidade”, o que deixaria afinal a norma em causa praticamente desprovida de conteúdo útil.
VIII – Atento o primado da lei sobre as orientações administrativas (princípio da legalidade), as regras estatuídas nas circulares da Administração Tributária, têm que respeitar o quadro normativo legislativo de referência – normas jurídicas primárias –, que lhe é prevalente. E quando aquelas estabelecem um sentido normativo que não tem acolhimento na norma legislativa que pretensamente é interpretada, estão afinal a derrogá-la e a criar norma jurídica inovatória inválida. *
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Instituto..., SA
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório


Instituto…, SA., não se conformando com a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a reclamação que apresentou contra o despacho do Director de Finanças do Porto que lhe indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1821201101108565 contra si instaurado, dela veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) O Tribunal a quo olvidou que o ónus de prova que recai sobre o Recorrente se cinge apenas à prova de factos constitutivos do seu direito (i.e. prejuízo irreparável que seria causado pela prestação de garantia e ausência de comportamentos que conduzissem a um depauperamento patrimonial intencional para prejudicar credores).

B) Também olvidou o Tribunal a quo que as dificuldades que o Recorrente tem em provar factos negativos devem ser devidamente relevadas e, em obediência ao princípio da proporcionalidade não podia ser tão exigente na apreciação das provas apresentadas por aquele.

C) Desconsiderou ainda o Tribunal a quo que também assistia à Autoridade Tributária o ónus de prova de factos concretos que fossem impeditivos do direito invocado pelo Recorrente, algo que manifestamente não fez.

D) O Tribunal a quo fez uma incorreta apreciação dos factos e documentos carreados para os autos, já que dos mesmos resulta provado que o Recorrente não adotou comportamentos que dissipassem os seus bens com a finalidade de diminuir as garantias dos seus credores.

E) Antes pelo contrário, os documentos e demais elementos junto aos autos pelo Recorrente demonstram, de forma cabal, que a atuação da sua equipa de gestão conduziu a uma melhoria da sua situação financeira e patrimonial, sendo assim desmentidas as considerações veiculadas pela Administração Tributária e aceites pelo Tribunal a quo.

F) O Tribunal a quo deu como não provados factos essenciais, quando na verdade os mesmos se encontram provados quer pelos documentos juntos aos autos, quer por força das normas legais (vide o que o Código Civil diz sobre a prova de factos públicos e notórios).

G) A doutrina seguida pela Administração Tributária e aceite pelo Tribunal a quo baseia-se num ofício circulado que viola os princípios de interpretação das normas jurídicas e põe em causa os princípios constitucionais da segurança e certeza jurídicas.

H) O Tribunal a quo considerou desprovidos de erro os “pressupostos de facto” invocados pela Administração Tributária, esquecendo que os mesmos:

a. Não têm qualquer ligação com o tema da falta de responsabilidade do Recorrente na insuficiência ou inexistência de bens suscetíveis de serem prestados em garantia; ou

b. Não passam de acusações não concretizadas sobre a atuação do Recorrente.

I) A mera constatação de dados retirados das demonstrações financeiras e contabilísticas não permite, antes pelo contrário, à Administração Tributária e ao Tribunal a quo concluir que Recorrente dissipou os seus bens com o intuito de prejudicar os seus credores.

J) A Administração Tributária não provou nem apresentou qualquer facto positivo que concorresse para que o direito invocado pelo Recorrente pudesse ser negado pelo Tribunal a quo.

K) Com fundamento no disposto no artigo 52.º n.° 4 da LGT, o Recorrente cumpriu com o seu ónus de prova, demonstrando integralmente os requisitos impostos na lei para poder ter direito à isenção de prestação de garantia bancária com o intuito de suspender o processo de execução fiscal.

L) A posição do Recorrente encontra total acolhimento junto da doutrina e jurisprudência conhecidas.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, deve ser alterada a sentença recorrida, sendo de considerar a Reclamação Judicial totalmente procedente, como é de Direito e assim se fazendo a costumada Justiça.

Não foram apresentadas contra-alegações.



Neste Tribunal, o Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer, concluindo pela improcedência do recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Secção do Contencioso Tributário para julgamento do recurso.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:


As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões (art.s 660.º, n.º 2, 664.º e 684.º, n.º s 3 e 4, todos do CPC ex vi art. 2.º, al. e), e art. 281.º do CPPT), traduzem-se em apreciar:

i) Se o Tribunal a quo errou ao não dar como provados factos que demonstram que a Recorrente não adoptou comportamentos que dissipassem os seus bens com a finalidade de diminuir as garantias dos seus credores;
ii) Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao considerar que a Recorrente não deu cumprimento ao ónus de prova que lhe estava cometido de acordo com o disposto no art. 52.º, n.º 4, da LGT, não demonstrando integralmente os requisitos impostos na lei para poder ter direito à isenção de prestação de garantia bancária com o intuito de suspender o processo de execução fiscal.



II. Fundamentação

II.1. De facto


O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

1. Em 27/06/2011 foi instaurado e autuado no Serviço de Finanças de Matosinhos 1, contra a aqui Reclamante, INSTITUTO…, SA, o processo de execução fiscal n.º 1821201101108565, para cobrança de dívidas de IVA (liquidações adicionais), no valor de 2.970.498,53 €, respetivos juros compensatórios para o qual foi a Reclamante citada em 30-06-2011 (cfr. fls. 448 ss. e fls. 1-16 dos autos).

2. Por requerimento de 25/07/2011 (de fls. 17 ss. dos autos, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido) a aqui Reclamante requereu ao Chefe do Serviço de Finanças de Matosinhos 1 que ao abrigo do disposto nos artigos 52º nº 4 da LGT e 170º do CPPT, fosse dispensada de prestar garantia para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal até decisão final da reclamação graciosa ou impugnação judicial a deduzir.

3. Com aquele requerimento a aqui Reclamante juntou 7 documentos (a fls. 86-276 dos autos).

4. A Reclamante deduziu reclamação graciosa das liquidações adicionais de IVA objeto do processo de execução fiscal, que apresentou no Serviço de Finanças em 01/08/2011 (cfr. fls. 329 ss. dos autos).

5. Por despacho de 07/09/2011 do Chefe do Serviço de Finanças de Matosinhos 1 foi fixada em 3.786.060,34 € o valor da garantia a prestar de 3.786.060,34 €.

6. Por despacho de 11/10/2011 do Diretor de Finanças da Direção de Finanças do Porto, aposto sobre a Informação nº 2011 – 261, de 06/10/2011 (de fls. 43 ss. dos autos) foi indeferido o pedido de dispensa de prestação de garantia, do que a Reclamante foi notificada em 07/11/2011.

7. É o seguinte o teor daquela Informação de 06/10/2011 (de fls. 43 ss. dos autos, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido), a que aderiu o identificado despacho de indeferimento:

(...)

8. A Petição Inicial da presente Reclamação (de fls. 276 ss.) foi apresentada em 18/10/2011 no Serviço de Finanças de Matosinhos 1.

9. A Reclamante INSTITUTO…, SA tinha à data de decisão de indeferimento aqui Reclamada (2011) um passivo total de 21.435.745,03 € e um ativo de 10.287.469,26 €, sendo que no ano anterior (2010) o seu ativo havia aumentado cerca de um milhão de euros e o passivo havia aumentado o dobro.

10. A Reclamante teve no ano de 2010 cerca de um milhão de euros de prejuízo, que acresceu a 2,2 milhões no ano anterior, acumulando um total de 12,6 milhões de euros desde que iniciou a sua atividade no ano de 2002, tendo capitais próprios negativos de 11 milhões de euros.

Com relevância para a decisão a proferir considero não provados os factos alegados pela Reclamante nos seguintes artigos da sua Petição Inicial (de fls. 276 ss.):

1) Artigo 63º da Petição Inicial;

2) Artigo 64º da Petição Inicial;

3) Artigo 65º da Petição Inicial;

4) Artigo 66º da Petição Inicial;

5) Artigo 67º da Petição Inicial;

6) Artigo 68º da Petição Inicial;

7) Artigo 71º da Petição Inicial;

8) Artigo 72º da Petição Inicial;

9) Artigo 74º da Petição Inicial;

10) Artigo 75º da Petição Inicial;

11) Artigo 78º da Petição Inicial;

12) Artigo 80º da Petição Inicial;

13) Artigo 81º da Petição Inicial.

O tribunal a quo alicerçou a motivação da matéria de facto nos seguintes termos:

A matéria de facto dada como provada nos presentes autos foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito. A formação da nossa convicção para efeitos da fundamentação dos factos atrás dados como provados teve por base integrantes do processo, supra referenciados, devendo mencionar-se que os factos vertidos em 9. e 10. supra decorrem dos documentos constantes no Processo de Execução Fiscal que integram os presentes autos, os quais foram considerados na decisão Reclamada e que não vêm postos em causa pela aqui Reclamante.

Sendo que, para efeitos da fundamentação dos indicados factos dados como não provados (apenas destes, não das considerações ou juízos conclusivos), tal julgamento decorre da circunstância de ser insuficiente a prova documental integrada nos autos, mormente os documentos que foram juntos com a Petição Inicial, não tendo sido oferecida ou requerida pela Reclamante qualquer outra prova.



II.2. De direito

A Recorrente aponta erro de julgamento sobre a matéria de facto e de direito à decisão da Mma. Juiz do TAF do Porto que julgou improcedente a reclamação apresentada contra o despacho do Director de Finanças do Porto que lhe indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1821201101108565 contra si instaurado

Bem visto o teor das alegações e as conclusões do recurso, a Recorrente arrima o erro de julgamento de facto na incorrecta apreciação dos factos e documentos carreados para os autos, pretendendo que dos mesmos resulta que não adoptou comportamentos que dissipassem os seus bens com a finalidade de diminuir as garantias dos seus credores, antes pelo contrário, os elementos disponíveis demonstram sim que a actuação da sua equipa de gestão conduziu a uma melhoria da sua situação financeira e patrimonial (conclusões C), D) e E) do recurso). Por outro lado, conclui a Recorrente que o Tribunal a quo deu como não provados factos essenciais, quando na verdade os mesmos se encontram provados quer pelos documentos juntos aos autos, quer por força das normas legais como decorre do que o Código Civil diz sobre a prova de factos públicos e notórios (conclusão F.) do recurso).

Quanto ao erro de julgamento de direito, este reconduz-se ao alcance do ónus da prova da falta de responsabilidade do executado na génese da insuficiência ou inexistência de bens (52.º, n.º 4, da LGT).

Vejamos então, começando pelo erro de julgamento da matéria de facto.

Para alcançar a conclusão de que a equipa de gestão da Recorrente não desenvolveu uma actuação que conduziu ao depauperamento da sua situação patrimonial, com a consequente diminuição das garantias dos credores, afirma primeiramente a Recorrente que o Tribunal a quo considerou, a contrario, que esta havia provado os factos enunciados nos artigos 17.º a 49.º, 69.º, 70.º, 73.º, 76.º, 77.º, 79.º e 82.º a 85.º da p.i. de reclamação judicial (v. art.s 51.º e s. das alegações de recurso).

Comece por se deixar estabelecido que o Tribunal a quo deu como provada a factualidade vertida no probatório fixado e não outra, pelo que, salvo o devido respeito, apresenta-se desprovido de sentido afirmar-se a existência de factualidade dada como provada a contrario.

Neste ponto, caberia à Recorrente atacar a decisão recorrida ou por via da devida impugnação da matéria de facto (v. infra) ou, maxime, suscitando a existência de omissão de pronúncia pelo Tribunal a quo relativamente aos concretos factos por si alegados na p.i. e que não mereceram pronúncia judicial adequada. Pretender, como pretende a Recorrente, extrair factualidade provada “a contrario”, de modo a acomodar a prova de factos que se afirma terem sido alegados é algo que as regras adjectivas não permitem.

E mesmo lendo as alegações e conclusões de recurso neste ponto no sentido de que a Recorrente pretendia, efectivamente, impugnar a matéria de facto em causa fixada, certo é que o ónus especial de alegação consagrado no art. 685.º-B do CPC não vem cumprido.

Nos termos do referido artigo 685.º-B do CPC, incumbe ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e

c) no “caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”.

Resulta pois do citado artigo 685.º-B do CPC a consagração de um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o qual impende sobre a aqui Recorrente e que a mesma, de forma manifesta, não satisfez.

É sabido que a este tribunal de recurso assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal a quo, desde que ocorram os pressupostos previstos no art. 712.º do CPC, incumbindo-lhe reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.

Porém, considerando que a Recorrente não dá cumprimento aos normativos legais aplicáveis, não indicando os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa da recorrida, está vedado a este tribunal de recurso conhecer do eventual erro de julgamento da matéria de facto nesta parte.

Com efeito, não basta afirmar-se de modo genérico que “o julgamento feito pelo Tribunal a quo sobre esta matéria é desmentido pelos documentos e por todos os demais factos evidenciados pelo Recorrente na p.i. de reclamação judicial” (cfr. art. 37.º das alegações); impunha-se sim que esses “factos” e que esses “documentos” fossem identificados, o que não foi feito.

Mas já o mesmo se não verifica relativamente ao imputado erro do Tribunal a quo na apreciação dos factos invocados pela Recorrente e que foram dados como não provados. Neste ponto, a Recorrente identifica os concretos factos que entende que deviam ter sido dado como provados, bem como quais os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnada (art.s 67.º a 69.º das alegações). Ou seja, nesta parte, mostra-se devidamente cumprido o ónus de alegação consagrado no referido artigo 685.º-B do CPC.

Nesta sede, alega a Recorrente o seguinte:

67.º O Relatório e Contas junto aos autos como documento n.º 5 evidencia uma parte significativa dos factos alegados nos artigos 68.º, 75.º, 78.º e 80.º da p.i., nos moldes que se passam sinteticamente a descrever:

(i) Os gastos operacionais relativos à electricidade e gás (art. 68.º da p.i.) são comprovados nomeadamente pela primeira tabela constante da página 27;

(ii) A redução dos encargos com pessoal, nomeadamente médicos (art. 75.º da p.i.) é comprovada pela demonstração dos resultados por natureza na página 2 e pela tabela da página 25 (e também pela tabela do art. 76.º da p.i.);

(iii) A redução dos encargos com rendas (art. 75.º da p.i.) é comprovada pela primeira tabela constante da página 27;

(iv) O aumento dos encargos com financiamento (art. 80.º da p.i.) é comprovado pela tabela presente na página 29.

68.º O Relatório de Gestão (o qual consta das primeiras páginas do Relatório e Contas junto como documento n.º 5) faz prova de diversos factos alegados nos artigos 74°, 75.º, 80.º e 81.º, a saber:

(i) As mudanças na organização e funcionamento do Recorrente (artº 74.º da p.i.) são comprovada pelos 3.º e 4.° parágrafos da primeira página do Relatório de Gestão, bem como ao longo das segunda e terceira páginas do Relatório;

(ii) A redução de custos e contenção nos investimentos (artº 75.º da p.i.) está evidenciada no penúltimo parágrafo da segunda página e na terceira página do Relatório (bem como na tabela da página 4 do Relatório e Contas);

(iii) O aumento do volume das consultas e tratamentos módicos (arts. 80.º e 81.º) é patenteado no segundo parágrafo da primeira página e ao longo da segunda página do Relatório;

(iv) A celebração de acordo com novas entidades é comprovado pelo quinto parágrafo da segunda página do Relatório.

69.º Estranha ainda o Recorrente que o Tribunal a quo não tenha dado, inexplicavelmente, qualquer relevo à tabela apresentada no artigo 81.º da p.i. e que demonstra em detalhe o incremento da atividade do Recorrente em diversas especialidades durante o período de 2008 a 2011.”

E efectivamente, compulsada a documentação referida pela Recorrente (“Relatório e Contas – 2010) – não sujeita a qualquer impugnação por parte da Fazenda –, e considerando a natureza da prova a efectuar neste domínio, mostrando-se procedente o recurso nesta parte, altera-se a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo em conformidade, dando-se como provados os seguintes factos:

11. A ora Recorrente gasta anualmente cerca de EUR 410.500,00 no conjunto das rubricas de gás e electricidade, valor superior ao registado em 2009 (cfr. Doc. 5, a fls. 222 e s.; p. 237).

12. Os encargos com pessoal, nomeadamente médicos, foram reduzidos face ao ano de 2009 (idem, p. 236).

13. A Recorrente reduziu, face a 2009, o valor dos encargos com rendas, em consequência da renegociação do valor da renda a pagar (idem, fls. 223 e doc. 6 a fls. 242 e s.).

14. O montante total dos encargos com financiamento aumentou face a 2009 (idem, fls. 238).

15. No ano de 2010 foi consolidada a reorganização da oferta da Recorrente como descrito no doc. de fls. 222 e s., melhor a fls.2 23 , o que se dá por integralmente reproduzido.

16. Com um aumento das consultas anuais, para uma média de 7 consultas por dia por consultório, face a 6 do ano de 2009 (idem).

17. E com a celebração de novos acordos, designadamente com a ARS Norte e ADSE (idem).

Ainda neste domínio afirma a Recorrente existir um conjunto de outros factos, como os alegados nos artigos 66.º, 67.º, 71.º e 72.º da p.i. que não precisam de ser provados já que são factos notórios e de conhecimento geral (cfr. art.s 70.º e s. das alegações). Tal como identifica no art. 71.º das suas alegações de recurso, é o caso de:

(i) As obras de construção, ampliação ou melhoramento de novos (Hospital da Boa Nova. Hospital Privado da Boavista e Hospital Cuf Porto) ou de já existentes hospitais (Hospital de São João, Hospital de Santa Maria e Hospital da Arrábida) e o consequente aumento da concorrência entre as unidades hospitalares;

(ii) A existência de duas unidades de saúde - o Recorrente e o Hospital Cuf Porto - pertencentes ao Grupo José de Mello Saúde na área do Porto (de qualquer modo, quaisquer dúvidas sempre ficariam desfeitas por uma consulta ao Relatório e Contas junto como documento n.° 5);

(iii) As reduções dos preços praticados pelas entidades estatais (e.g. ARS e hospitais) em resultado das políticas orçamentais de contenção (e.g. vide nomeadamente artigo 22.° da Lei n.° 55–A/2010, de 31 de dezembro, alterada pelas Leis n.° 48/2011, de 26 de agosto, e 60-A/201 1, de 30 de novembro);

(iv) Reduções das listas de espera para cirurgias realizadas em hospitais públicos (e.g. vide as diversas notícias que têm vindo a ser publicadas nos últimos anos sobre o assunto);

(v) A redução generalizada do consumo privado por força da atual conjuntura económica (e que naturalmente afetou também as prestações de cuidados de saúde efetuadas pelos operadores privados);

(vi) Alterações às taxas do IVA aplicáveis ao gás e à eletricidade (por força da Lei n.° 51-A/2011, de 30 de setembro);

(vii) Dificuldades de acesso e agravamento dos custos de financiamento decorrentes das alterações das taxas de juro e dos spreads praticados pelas instituições bancárias.

São considerados, de acordo com o n.º 1 do artigo 514.º do CPC, factos notórios os que são do conhecimento geral, não carecendo, por isso, nem de alegação, nem de prova. Na definição de Lebre de Freitas, são notórios os factos “conhecidos ou facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas de determinado espaço geográfico, de tal modo que não haja razão para duvidar da sua ocorrência.” (Lebre de Freitas e Outros, Código de Processo Civil, anotado, Vol. 2.º, 2.ª ed., p. 428).

E, com efeito, reconhece-se a natureza de factos notórios a alguns dos factos alegados pela Recorrente e identificados no art. 71.º das alegações de recurso, por os mesmos serem do conhecimento do público em geral ou da generalidade das pessoas normalmente informadas. Pelo que, procedendo parcialmente o recurso nesta parte, altera-se o probatório fixado pelo TAF do Porto, passando a constar dos factos provados o seguinte:

18. Em resultado das políticas orçamentais de contenção da despesa pública, verificou-se uma redução dos preços praticados pelas ARS e Hospitais.

19. Por força da actual conjuntura económica, verificou-se uma redução generalizada do consumo privado.

20. Por força da Lei n.º 51-A/2011, de 30 de Setembro, foram alteradas (aumentadas) as taxas do IVA aplicáveis aos gás e à electricidade.

21. Na actual conjuntura existem dificuldades de acesso e agravamento dos custos de financiamento decorrentes das alterações das taxas de juro e dos spreads praticados pelas instituições bancárias.

Os demais factos alegados não assumem o carácter de notoriedade pretendido pela Recorrente, carecendo do pertinente suporte probatório; ónus de prova que não foi por aquela cumprido.

Ao abrigo do disposto no art. 712.º do CPC, uma vez que do processo constam os elementos para o efeito, mostrando-se pertinente para a apreciação do recurso, entende-se ser ainda de aditar à factualidade fixada os seguintes factos:

22. Foi sancionado por despacho de 29.07.2010 do Director-Geral dos Impostos, a divulgação do entendimento relativo aos pressupostos, requerimento e ónus da prova da dispensa de garantia em processo de execução fiscal, como constante do Of. Circulado n.º 60.077 de 29.07.2010 – Doc. de fls. 443 e s., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

23. Do mesmo Of. Circulado consta que: “No caso específico das pessoas colectivas, apenas se deve considerar este pressuposto [irresponsabilidade do executado pela situação de insuficiência/inexistência de bens] nos casos em que a insuficiência ou inexistência de património não possa resultar da actuação empresarial, ou seja, apenas quando a dissipação esteja na absoluta indisponibilidade da empresa ou da administração que a representava ou representa, como seja, por exemplo, o caso de catástrofe natural ou humana imprevisível.”




Estabilizada a matéria de facto provada e não provada, é tempo agora de entrar na análise do erro de julgamento de direito que vem imputado à sentença recorrida e que se reconduz à problemática do ónus da prova da falta de responsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens.

Sobre esta matéria tem a Doutrina e os Tribunais Superiores sido repetidamente chamados a pronunciar-se, existindo jurisprudência firmada do STA sobre a questão decidenda e à qual se adere sem dissensão. A este propósito passaremos a transcrever o discurso fundamentador constante do recente Acórdão do STA de 19.12.2012, no processo n.º 1320/12, e que, na sua parte relevante, passamos a transcrever:

A questão de saber sobre quem recai tal ónus tem-se vindo a colocar nos tribunais tributários. JORGE LOPES DE SOUSA, escalpelizando exaustivamente a questão, dá-lhe a melhor resposta:

«Como se depreende do art. 52.º, n.º 4, da LGT, para ser deferida a dispensa de prestação de garantia é necessário que se satisfaçam três requisitos, cumulativamente, embora dois deles comportem alternativas, pelo que o executado deverá na petição tê-los em conta:

– que haja uma situação de inexistência de bens ou sua insuficiência para pagamento da dívida exequenda e do acrescido; (3) [(3) De harmonia com o disposto no art. 199.º, n.º 5, do CPPT, no âmbito do «acrescido» incluir-se-ão os juros de mora contados até à data do pedido, com o limite de cinco anos, e custas na totalidade, mais 25% da soma daqueles valores e da dívida exequenda]

– que essa inexistência ou insuficiência não seja imputável ao executado;

– que a prestação da garantia cause prejuízo irreparável ao executado ou que seja manifesta a sua falta de meios económicos.

Estando-se num processo de natureza judicial, as regras aplicáveis em matéria de ónus da prova são as previstas no CC, designadamente as que constam dos seus arts. 342.º e 344.º.

As regras básicas em matéria de ónus da prova, que constam do art. 342.º do CC são as de que «àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), que «a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2) e que «em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito» (n.º 3).

O essencial deste critério de repartição do ónus da prova é também adoptado no procedimento tributário, por força do disposto no art. 74.º, n.º 1, da LGT em que se estabelece que «o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque».

No art. 344.º do CC estabelecem-se as situações em que, excepcionalmente, se afastam aquelas regras do art. 342.º que são «quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine» e «quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado».

À face destas regras, é de concluir que é sobre o executado, que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido. Aliás, mesmo que se entenda que se está perante uma situação de dúvida (…) terá de considerar-se todos os factos de que depende a prestação de garantia como constitutivos do direito do executado, por força do disposto no n.º 3 do citado art. 342.º do CC.

Para além disso, o texto do n.º 3 do art. 170.º do CPPT aponta no mesmo sentido, ao estabelecer que o pedido deve ser instruído com a prova documental necessária, o que pressupõe que seja apresentada pelo executado toda a prova relativa a todos os factos que têm de estar comprovados para ser possível dispensar a prestação de garantia. (…)

A eventual dificuldade de prova que possa resultar para o executado em provar o facto negativo que é a sua irresponsabilidade na génese da insuficiência ou inexistência de bens não é obstáculo à atribuição do ónus da prova respectivo, pois essa dificuldade de prova dos factos negativos em relação à dos factos positivos não foi legislativamente considerada relevante para determinar uma inversão do ónus da prova, como se conclui das regras do art. 344.º do CC. (3) [(3) Neste sentido, pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 451, nota (2) (página 467, na 2.ª edição), em que se refere que «já se tem entendido, erroneamente, que a extrema dificuldade de prova do facto pode inverter o critério legal de repartição do ónus da prova»]

É certo que por força do princípio constitucional da proibição da indefesa, que emana do direito de acesso ao direito e aos tribunais reconhecido no art. 20.º, n.º 1, da CRP, não serão constitucionalmente admissíveis situações de imposição de ónus probatório que se reconduzam à impossibilidade prática de prova de um facto necessário para o reconhecimento de um direito.

Mas, por um lado, nesta matéria não se está perante uma situação de impossibilidade prática de prova, pois a prova do facto negativo que é a irresponsabilidade do executado pode ser efectuada através da prova dos factos positivos, por via da demonstração das reais causas de tal insuficiência ou inexistência de bens.

Por outro lado, a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur». (1) [(1) Essencialmente neste sentido, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 203, cujos ensinamentos são seguidos no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/83, de 11-7-1983, publicado no Diário da República, I Série, de 27-8-1983 e no BMJ n.º 328, página 297, em que se refere « não vale a máxima negativa non sunt probanda; a natural dificuldade da prova de um facto é coeficiente que não altera a repartição do ónus da prova; o mais que esse coeficiente, como outros, “podem é tornar aconselhável [...] a máxima iis difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur”»]

O que, nesta situação, se reconduzirá, no mínimo, a dever-se considerar provada a falta de culpa quando o executado demonstrar a existência de alguma causa da insuficiência ou inexistência de bens que não lhe seja imputável e não se fizer prova positiva da concorrência da sua actuação para a verificação daquele resultado» (JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume III, anotação 4 c) ao art. 170.º, págs. 233 a 235.). [sublinhado nosso]

Foi este o entendimento consagrado no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Dezembro de 2008, proferido no processo com o n.º 327/08 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 27 de Janeiro de 2009 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32440.pdf), págs. 161 a 166, também disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7b3a9814f7dd411980257538005a88dc?OpenDocument.) e que tem vindo a ser seguido neste Tribunal (Vide o acórdão de 2 de Fevereiro de 2011, proferido no processo com o n.º 16/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Agosto de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2011/32210.pdf), págs. 174 a 179, também disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/cd856c5635ba04b180257833004eea34?OpenDocument.).

Este entendimento sobre o ónus da prova da irresponsabilidade do executado na génese da situação de insuficiência ou inexistência de bens foi também reiterado nos acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Julho de 2012, proferido no processo com o n.º 286/12 (Ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c6cfae9ed228b55880257a3d0030c56f?OpenDocument.), e de 17 de Outubro de 2012, proferido no processo com o n.º 414/12 (Ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/86b2a435c02a6f8a80257aa30038c0fc?OpenDocument), ambos com a unanimidade dos Juízes Conselheiros actualmente em exercício de funções.

Em síntese, face ao disposto no art. 342.º do C.Civil, e no art. 74.º, nº. 1, da LGT, é de concluir que: i) é sobre o executado que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respectivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois tratam-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido; e, ii) que a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário somente, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse.

Isto estabelecido, temos que o TAF do Porto julgou improcedente a Reclamação do acto do órgão de execução fiscal apresentada pela ora Recorrente, considerando que a mesma não logrou provar a existência dos pressupostos vertidos no art. 52.º n.º 4, da LGT e no art. 170.º, n.º 3, do CPPT, concretamente a por si invocada irresponsabilidade na situação de insuficiência/inexistência de bens penhoráveis (para além de ter julgado como não verificada a alegada violação do princípio da participação, o que não constitui objecto do presente recurso). Ao que aqui importa, assentou a decisão do TAF no Porto na premissa de que não foi provada factualidade da qual se pudesse concluir que a situação de insuficiência de bens da executada tivesse decorrido exclusivamente de circunstâncias às quais aquela fosse alheia, ou que não tivesse contribuído para a verificação de tal situação. Ao fim e ao cabo, reitera-se na sentença recorrida a directriz interpretativa da Administração Tributária vertida no citado Ofício Circulado n.º 60.077 de 29.07.2010.

Vejamos então se tal entendimento é de manter.

Nos termos do disposto no n.º 4 do art. 52.º a LGT “a administração tributária pode, a requerimento do interessado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que, em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência dos bens não seja da responsabilidade do executado”.

Daqui resulta que os pressupostos, alternativos, da isenção em causa são a existência de prejuízo irreparável que seja causado pela prestação da garantia – o que no caso se verifica, pois que o despacho de 11.10.2011 do Director de Finanças do Porto reconhece o facto da prestação da garantia fixada causar um prejuízo irreparável para a ora Recorrente (v. pontos 9. e 10. da Informação reproduzida em 7. do probatório) – e a manifesta falta de meios económicos para a prestar. Todavia, em relação a ambos os casos, a lei impõe, ainda, que a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado.

Ou seja, da interpretação do n.º 4 do art. 52.° da LGT vemos que aquele impõe que “em qualquer dos casos” (quando a prestação da garantia causar prejuízo irreparável ou quando haja manifesta falta de meios económicos, que pode ser revelada pela insuficiência de bens penhoráveis, para pagamento da dívida exequenda e acrescido) a insuficiência ou inexistência de bens não pode ser da responsabilidade do executado.

E citando Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa (in Lei Geral Tributária, Comentada e anotada, 3.ª ed., 2003, p. 226): “A responsabilidade do executado, prevista na parte final do número 4, deve entender-se em termos de dissipação dos bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores. E não mero nexo de casualidade desprovido de carga de censura ou simples má gestão dos seus bens.” (neste exacto sentido, também o Acórdão do TCA Sul de 9.12.2009, processo n.º 3621/09).

Estas regras, nesta situação, conduzirão, no mínimo, a dever-se considerar provada a falta de culpa quando o executado demonstrar a existência de alguma causa da insuficiência ou inexistência de bens que não lhe seja imputável e não se fizer prova positiva da concorrência da sua actuação para a verificação daquele resultado.

Ora, no caso concreto a factualidade alegada e provada indicia que a ora Recorrente, através dos seus órgãos gestionários, não desenvolveu actividade específica que conduzisse ao depauperamento da sua situação patrimonial com intenção de provocar uma diminuição das garantias dos credores. Dos factos provados pode inclusive retirar-se o inverso, ou seja que foram implementadas medidas que visaram precisamente reforçar as garantias dos credores, com a racionalização e a optimização dos recursos disponíveis.

Com efeito, a ora Recorrente procurou demonstrar na reclamação apresentada – e de modo sustentado – que a situação de empobrecimento do seu património e diminuição dos seus resultados líquidos operacionais se ficou a dever a factores exógenos, relacionados de modo directo e grave com a conjuntura económica e financeira actual e não por práticas de má gestão e muito menos com uma gestão temerária ou dolosamente vocacionada para a dissipação do património. A Recorrente provou, pois, factos que atestam que desenvolveu actividade de gestão dos seus recursos no sentido de obter a inversão da situação de fragilidade económica e financeira e de melhoria dos resultados operacionais.

Isso é demonstrado, i.a., pelo facto de os encargos com pessoal, nomeadamente médicos, terem sido reduzidos, bem como ter sido reduzido o valor dos encargos com rendas, em consequência da renegociação do valor da renda a pagar. De igual modo, no ano de 2010 foi consolidada a reorganização da oferta da Recorrente, com um aumento das consultas anuais, ocorrendo também a celebração de novos acordos, designadamente com a ARS Norte e a ADSE.

Aliás, importa referir que, inclusivamente como constante de 10. do probatório, apesar de daí não ter o Tribunal a quo extraído as consequências possíveis, resulta provado que a ora Recorrente reduziu significativamente no ano de 2010 o montante do seu prejuízo (1 milhão de euros de prejuízo em 2010, face a 2,2 milhões no ano anterior). E isso é precisamente reflectido no Relatório de Gestão do exercício de 2010 quando nele se assinala não só a melhoria de actividade face a 2009, como a forte melhoria da margem líquida face àquele ano.

Ou seja, decorre dos factos provados, na sequência do oportunamente alegado pela Reclamante e ora Recorrente, que esta, através dos seus órgãos de gestão, adoptou medidas de incremento das receitas e de redução de custos. O que não se mostra desde logo compatível com uma actividade de dissipação de bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores.

Por outro lado, a prova do facto negativo que é a irresponsabilidade do executado pode ser efectuada através da prova dos factos positivos, por via da demonstração das reais causas de tal insuficiência ou inexistência de bens.

E neste domínio, como já se teve oportunidade de referir, a Recorrente demonstrou que a situação de empobrecimento do seu património e diminuição dos seus resultados líquidos operacionais se ficou também a dever a factores exógenos: verificou-se uma redução dos preços praticados pelas ARS e Hospitais em resultado das políticas orçamentais de contenção da despesa pública; uma redução generalizada do consumo privado por força da actual conjuntura económica, aceitando-se que daí tenha sido afectada a prestação de cuidados de saúde efectuadas pelos operadores privados; o aumento das taxas do IVA aplicáveis aos gás e à electricidade; e maiores dificuldades de acesso e agravamento dos custos de financiamento decorrentes das alterações das taxas de juro e dos spreads praticados pelas instituições bancárias.

Assim, tal como por si alegado, terá que concluir-se, somados todos estes factos, pela inexistência de qualquer comportamento por parte da Recorrente que tenha conduzido a uma dissipação dos seus bens com o intuito de diminuir as garantias dos credores.

Por outro lado ainda, o entendimento sufragado pelo TAF do Porto e que faz eco da directriz interpretativa fixada no referido Ofício Circular n.º 60.077, de 29.07.2010, não tem acolhimento no tatbestand da norma contida na parte final do art. 52.º, n.º 4, da LGT.

Em momento algum do n.º 4 do artigo 52.º da LGT se refere que o pressuposto da falta de “responsabilidade do executado” terá de resultar de fenómenos extra-empresarias ou de casos de catástrofes naturais ou humanas (relembre-se que no dito Ofício Circular se diz que “no caso específico das pessoas colectivas, apenas se deve considerar este pressuposto a dissipação esteja na absoluta indisponibilidade da empresa ou da administração que a representava ou representa, como seja, por exemplo, o caso de catástrofe natural ou humana imprevisível).

Ora, sabido é que o texto ou a letra da lei é o ponto de partida da interpretação, que esta parte de um elemento determinado que é a sua fonte e procura exprimir a regra que é o seu conteúdo (cfr. Baptista Machado in Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1987, p. 182 e 189; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 4.ª ed. 1987, p. 322 e 325-326). A interpretação do texto não pode deixar de assentar nas palavras desse texto, as quais têm um determinado significado.

Mas a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível da interpretação jurídica. É nessa medida que o art. 9.º, n.º 2, do C. Civil consagra que: “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. E, como recentemente afirmado pelo STA no Acórdão de 5.09.2012, processo n.º 314/12: “No direito fiscal o preceito fundamental de hermenêutica jurídica radica no art. 9º do Código Civil, por força do art. 11º da LGT, devendo ser usadas as demais técnicas ou cânones utilizados no direito civil”.

A responsabilidade jurídica pode ser definida como o dever jurídico resultante da violação de determinado direito, através da prática de um acto contrário ao ordenamento jurídico.

No domínio da lei tributária, ensaiando agora uma busca do sentido do conceito por via da interpretação analógica e sistemática, o legislador no artigo 24.° da LGT veio dispor que: "1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si: a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação; b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento. " – é a parte final do preceito que importa aqui evidenciar atenta a similitude da expressão utilizada (na parte final do art. 52.º, n.º 4, da LGT a expressão é: “desde que, em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência dos bens não seja da responsabilidade do executado”).

Aparece também aqui consagrada uma presunção, que é de culpa dos gerentes ou administradores, incidindo sobre eles o ónus de provar que tal insuficiência, do património societário para satisfação dos créditos tributários, não se deveu a culpa sua. Presunção que naturalmente pode ser elidida pelos interessados, demonstrando a inexistência de culpa ou inexistência de nexo causalidade entre a actuação culposa e a insuficiência do património da sociedade para o cumprimento das dívidas tributárias (cfr. Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, Comentada e Anotada, 3.ª ed., 2003, p. 141).

Assim, o conceito de “responsabilidade do executado” contido no art. 52.º, n.º 4, in fine da LGT, deverá ser alcançado considerando o assinalado dever de observação de uma regra jurídica – que no caso até poderá conexionar-se com as regras de boa gestão empresariais e deveres dos órgãos de gestão das sociedades comerciais –, a par de um elemento sancionatório associado à conduta por aquele desenvolvida. Nesta medida, a intenção do legislador, como se depreende dos normativos citados e se entende, foi a de evitar uma situação de benefício do infractor.

Como se afirmou a este propósito no recentíssimo Acórdão do STA de 14.02.2013, proc. n.º 04/13: “Ora, se a execução do crédito fiscal vai ficar suspensa sem qualquer garantia, é razoável que o executado demonstre que as dificuldades que tem em a prestar não lhe são imputáveis, provando que essa situação não adveio de uma conduta culposa praticada com intuito de diminuir a garantia dos credores.

Com efeito, não se justifica conceder a isenção da prestação de garantia a um executado que invoque prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos e que, por outro lado, tenha procedido, ele próprio, a uma prévia sonegação ou dissipação de bens com o intuito de diminuir as garantias dos credores. Ou, no limite, que se tenha colocado culposamente em situação de manifesta insuficiência económica para a prestação da garantia, caso em que ficará de igual modo afastada a dispensa (v. neste sentido Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, ed. 2001, p. 243; Ac. do STA de 23.01.2013, proc. n.º 1499/12).

Donde, como já anteriormente se referiu, a responsabilidade do executado, prevista na parte final do número 4 do artigo 52.º da LGT, deve entender-se em termos de dissipação dos bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores (cfr. Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., p. 226, posição retomada na edição de 2012 em anotação ao mesmo artigo; e jurisprudência que temos vindo a citar) ou em termos da prática de uma acção culposa de que resulte directamente a situação de insuficiência económica (cfr. Lima Guerreiro, ob. cit.). O que a Reclamante e ora Recorrente logrou demonstrar que não sucedeu.

Diga-se, por fim, que a interpretar-se este requisito do modo como a Administração Tributária fixou no citado Ofício Circulado, então apenas se admitiria que a irresponsabilidade do executado fosse motivada por situações de “casos fortuitos” ou de “força maior”, externos à empresa e/ou à sua administração, conceitos a que não só o legislador não alude na redacção da norma em causa, como intrinsecamente se encontram em manifesta antinomia com o conceito jurídico de “responsabilidade”, o que deixaria afinal a norma em causa praticamente desprovida de conteúdo útil. Sendo que as regras estatuídas nas circulares da Administração Tributária, sempre terão que respeitar o quadro normativo legislativo de referência – normas jurídicas primárias –, que é prevalente atento o primado da lei sobre as orientações administrativas – princípio da legalidade. Pelo que estas últimas ao estabelecer um sentido normativo que não tem acolhimento na norma legislativa que pretensamente (aparentemente) é interpretada, está afinal a derrogá-la e a criar norma jurídica inovatória inválida.

Deste modo, o Tribunal a quo ao aderir à tese da Administração Tributária incorreu em erro de direito, aplicando a parte final do art. 52.º n.º 4 da LGT com um sentido interpretativo que a norma jurídica em causa não consente.

Pelo que, também neste ponto, tem o recurso que proceder, com a consequente revogação da sentença recorrida que julgou a reclamação improcedente.

Perante o que vem sendo dito, verifica-se então que, por um lado, estamos perante uma situação de prejuízo irreparável para a Reclamante – é a própria Administração Tributária que o reconhece no despacho de indeferimento reclamado (cfr. o provado em 7. e reiterado em 20. a 27. da contestação) –, e que, por outro lado, em função dos elementos disponíveis nos autos, tem de considerar-se também verificado o outro requisito relacionado com a demonstração de que não houve dissipação de bens com intuito de diminuir a garantia dos credores.

Com efeito, e como se afirmou no Acórdão do TCA Sul de 13.09.2011, proc. n.º 4995/11, em situação aliás semelhante à presente (naquele processo a recorrente era o Fundo de Investimento Imobiliário Fechado IMOSAÚDE, que é o proprietário do mesmo Hospital cujo locatário é a aqui Recorrente): “atenta a natureza da Recorrente, o enquadramento da sua actividade, os activos envolvidos, as garantias constituídas, o facto de estar evidenciada a influência da conjuntura económica sobre a redução de receita e aumento dos encargos, é manifesto que a Recorrente deu satisfação ao ónus que sobre ela impendia neste domínio”.

Do que se conclui que o acto reclamado errou na aplicação ao caso concreto do disposto no n.º 4º do art.º 52º da LGT, pelo que padece do apontado vício de violação de lei.

Termos em que se impõe, na procedência da reclamação, anular o acto reclamado.


III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:

- Conceder provimento ao recurso;

- Revogar a decisão recorrida;

- Julgar a reclamação procedente; e, em consequência,

- Anular o acto reclamado nos autos.

Custas pela Recorrida, apenas na 1.ª Instância.

Porto, 14 de Março de 2013



Ass. Pedro Marques

Ass. Paula Ribeiro

Ass. Fernanda Esteves