Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03317/19.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/16/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:PROCESSO CAUTELAR; LICENCIAMENTO DE OBRAS; ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO; ALEGAR NÃO É PROVAR
Sumário:1 – Recai sobre o requerente de Providência Cautelar o ónus de fazer prova sumária dos requisitos do periculum in mora, enquanto receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente; e do fumus boni iuris, enquanto sumária avaliação da probabilidade de existência do direito invocado.
Cabe pois ao Requerente da Providência alegar e provar a existência do periculum in mora, não bastando a mera invocação de considerações genéricas e conclusivas, de uma situação de facto consumado ou de produção de prejuízos de difícil reparação.
Impende sobre o Requerente o ónus de alegação de factos concretos que permitam ao Tribunal perspetivar a existência de prejuízos de difícil reparação ou de uma situação de facto consumado.

2 - O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1.ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.

3 – Por maioria de razão, num processo de natureza Cautelar e perante a mera alegação de um facto, tal não determina que o tribunal tenha de o dar por assente, uma vez que alegar não é provar, como decorre do brocardo latino - Allegatio et non probatio quasi non allegatio - Alegar e não provar é quase não alegar.
Recorrente:Clube (...)
Recorrido 1:Município de (...) e Outros
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.
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Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório

Clube (...), com os sinais nos autos, no âmbito da Providência Cautelar que apresentou contra o Município de (...), tendente, em síntese, à suspensão da eficácia do despacho de 22/11/2019 da Chefe de Divisão Municipal de Gestão de Procedimentos Urbanísticos da Câmara Municipal do Porto, que emitiu o Alvará de licenciamento de obras de alteração no prédio sito na Praça (...), e na Rua do (...), n.ºs 3 e 5, permitindo a demolição de uma parede-mestra que separa dois edifícios antigos, inconformado com a decisão proferida no TAF do Porto que em 14 de julho de 2020 indeferiu o requerimento cautelar, não adotando as providências requeridas, veio em 31 de julho de 2020 recorrer da decisão proferida, concluindo:
“a) A decisão do tribunal a quo, cujos fundamentos sinteticamente vêm de se expor, encerra em erro de julgamento, por um lado, sobre a matéria de facto considerada assente, e, por outro, de direito, violando o disposto nos artigos 129.º, 112º e 120.º, todos do CPTA.
Relativamente à matéria de facto,
b) o Tribunal a quo não considerou determinados factos e desconsiderou outros, todos com especial relevo para uma justa decisão final,
b.1) destaca-se o facto de as obras terem sido executadas em momento anterior ao ato de licenciamento e respetiva emissão de alvará, ademais quando o Requerente, aqui Recorrente, como proprietário, não foi sequer notificado daquele licenciamento, ao contrário do subentendido no facto n.º 7 dado como assente;
b.2) pois que, foi alegado no artigo 12.º do requerimento inicial [que não foi impugnado nem refutado nas oposições do Requerido e Contrainteressados] que no decurso do mês de Agosto de 2019, constatou que a Contrainteressada empresa (…) demoliu a parede que separa o prédio (….) e decorre do documento n.º 1 que as obras foram licenciadas e tituladas pelo respetivo alvará posteriormente, isto é, apenas em 22/Novembro/2019,
b.3) assim sendo manifesto que as obras objeto do ato suspendendo já se encontravam executadas antes de 22/11/2019, isto é, antes do seu licenciamento e da emissão do respetivo alvará, devendo, neste sentido, ser o sobredito n.º 7 da matéria de facto dado como assente pelo Tribunal a quo alterado, o que se requer.
No que ao erro de julgamento de direito concerne,
c) não há dúvidas que, conforme foi peticionado e interpretado pelo Requerido e Contrainteressados, o ato cujos efeitos se pretende suspender consubstancia-se no licenciamento das obras em apreço, titulado pelo respetivo alvará, ambos de 22/11/2019 e apenas do conhecimento do Requerente, aqui Recorrente, após solicitação deste para o efeito [cfr. documento n.º 1 junto com requerimento inicial, bem como artigos 53.º, 57.º, 59.º, 60.º, 73.º e ainda pedido, todos daquele articulado inicial].
d) Requereu-se, com a presente providência e em primeira linha, a suspensão dos efeitos daquele licenciamento de obra, titulado pelo respetivo alvará, sendo que, uma vez que as obras já se encontravam executadas, sempre seria aplicável ao caso sub judice o artigo 129.º do CPTA, designadamente a abstenção de comportamentos/atos derivados e em consequência do sobredito licenciamento de obras [de que se destacou a autorização de utilização e emissão do respetivo alvará],
e) e, subsidiariamente, agora com fundamento no artigo 112.º, n.º 2, al. i), do CPTA, precisamente tal: abstenção de comportamentos/atos derivados e em consequência do sobredito licenciamento de obras [de que se destacou a autorização de utilização e emissão do respetivo alvará].
No que toca à suspensão do licenciamento de obras, titulado pelo respetivo alvará,
f) importa esclarecer que, com o devido respeito, o Tribunal a quo, ao considerar que o ato em causa – de licenciamento de obras e respetiva emissão do alvará – teria esgotado os seus efeitos com a sua própria prolação e ainda que o artigo 129.º do CPTA não se aplicaria in casu, interpretou e subsumiu de uma forma inadequada os factos e o direito aplicável, porquanto, conforme se deixou referido, as obras foram realizadas de forma ilegal, antes do licenciamento e emissão da respetiva e obrigatória licença de obras [facto que sempre deveria ter ficado assente],
f.1) sendo que, se o entendimento daquele estivesse correto, tal redundaria na absoluta impossibilidade do Recorrente solicitar em juízo de forma atempada o meio cautelar necessário para obstar à concretização das mesmas, violando desse modo, inclusive, entre outros, o princípio da tutela jurisdicional efetiva [compensando assim a ilegalidade… de facto, para fugir ao controlo dos Tribunais, bastaria iniciar, executar e finalizar as obras antes do licenciamento e/ou da sua impugnação contenciosa];
f.2) Não é, pois, a suspensão das obras – já executadas – que se pretende com a providência cautelar requerida, outrossim a suspensão da eficácia do ato administrativo que as autorizou,
f.3) E o artigo 129.º do CPTA visa acautelar precisamente as situações em que o ato já está executado, mas em que a suspensão dos seus efeitos é ainda útil, como é aqui o caso, uma vez que aquele ato não esgotou todos os seus efeitos com a sua própria prolação [desde logo, a autorização de utilização do espaço, pois, conquanto se tratem de atos distintos, aquela utilização jamais poderia ser emitida se o primeiro – licenciamento de obras e respetivo alvará – não o houvesse sido].
f.4) O artigo 62.º do RJUE no seu n.º 1, clarifica que a autorização de utilização depende da conformidade da obra com as condições do respetivo procedimento de controlo prévio, pelo que fica evidente que um ato é decorrência e consequência do outro – atos conexos –, na medida em que se o ato de licenciamento é ilegal, não pode ser emitida a autorização para utilização do espaço objeto daquele licenciamento.
g) Por sua vez, ao contrário do entendimento propalado na sentença ora em crise, não era exigível ao Recorrente que imputasse concretas causas de ilegalidade ao futuro ato de autorização de utilização e respetivo alvará [que, ao que se sabe, nem sequer existe], porquanto não se tratava de impugnar este ato, mas sim de suspender um ato prévio, que dele depende e se conexa, assim bastando imputar vícios a este e lograr demonstrar a probabilidade de a pretensão formulada na ação principal vir a ser julgada procedente (fumus boni iuris), o que, com o devido respeito, se crê que fez.
h) Desde logo, porque a contrainteressada era parte ilegítima (como requerente) no procedimento de licenciamento de obras, uma vez que é arrendatária, não tendo o proprietário dos prédios em causa e senhorio dado qualquer autorização para a realização daquelas, autorização essa que, por um lado, era exigível por força do disposto no contrato de arrendamento, e, por outro, mesmo que se entendesse o n.º 5 da cláusula 4.ª do contrato de arrendamento incluiria essa autorização, a mesma sempre estaria condicionada a um juízo prévio e exclusivo da proprietário [aqui Recorrente, e jamais do Requerido ou de terceiro] sobre se tais obras afetam a linha arquitetónica e a estrutura do prédio.
h.1) E, note-se, tal invocação que, conforme tese do Município e contrainteressados, e que aqui como mera hipótese se coloca, excecionaria uma alegada autorização, consubstancia-se, pois num direito intrínseco somente à Requerente, como proprietária do locado,
h.2) imiscuindo-se aquele Município ilegitimamente na esfera [eminentemente privada] da Requerente, substituindo-a numa verificação de direito exclusivo desta, conferido, aliás, por um contrato de arrendamento de natureza totalmente particular e privada, ademais, decidindo como decidiu, permitiu a união de dois prédios distintos, com artigos prediais e matriciais diferentes e entradas diferentes, mesmo sabendo que o Recorrente se opunha veementemente à realização de tais obras. Sem prescindir,
i) O Recorrente, na qualidade de proprietário e, como tal, titular do direito subjetivo e interesse legalmente protegido no procedimento de licenciamento que culminou com a emissão da licença de obras, deveria ter sido ouvido antes de tomada a decisão final no procedimento, o que não aconteceu, ferindo, uma vez mais, o procedimento de invalidade por violação ao artigo 121.º do CPA. Ainda sem prescindir,
j) O ato suspendendo incorreu em erro nos pressupostos de facto e omissão na análise por parte da Recorrida, uma vez que a parede demolida é essencial para a estrutura do edifício e para a sua segurança e estabilidade e a sua destruição afeta gravemente a configuração e autonomia dos dois espaços [cfr. Relatório Técnico junto aos autos pelo Recorrente com o requerimento inicial, sob o documento n.º 12, e ainda n.º 4 da matéria de facto dada como assente], onde se atesta que a execução das obras em apreço coloca em causa a própria segurança do edifício, uma vez que afeta a sua segurança estrutural].
Com efeito,
k) todos os vícios imputados ao ato suspendendo determinam a mais do que provável invalidade de todo o procedimento, pelo que não poderia o tribunal a quo ter deixado de considerar que está integralmente verificado o requisito do “fumus boni iuris”.
Por sua vez, mas em total sentido convergente,
l) O Recorrente alegou e provou os factos tendentes a preencher o segundo critério que determina o decretamento da providência requerida e elencados no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, isto é a existência de “fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal” (periculum in mora).
l.1) É que, não obstante a obra se encontrar já concluída, o risco de produção de prejuízos de difícil reparação era e continua ainda a ser bem real e atual, continuando a advir consequências económicas graves para o Recorrente pelo facto de este se encontrar impedido de retirar o rendimento máximo das salas do clube que se encontram por cima da parede demolida, atento o risco de derrocada (e que se vão naturalmente agravando a cada dia).
l.2) E é manifesto: se uma determinada obra apresenta riscos ao nível da segurança, não é pelo facto de já estar concluída que os riscos deixam de existir, antes se gravando com o uso contínuo do espaço em causa, pondo em causa a integridade física de todos quantos utilizarem aquele espaço, sendo precisamente estes prejuízos graves que a providência requerida pretendia evitar. Pelo que,
m) Conclui-se assim pelo preenchimento do requisito do “periculum in mora”, n) tal como se verifica que, do cotejo dos interesses em conflito, sempre teria de se considerar que, no caso em apreço, prevalece o interesse privado em causa, tanto que do decretamento da providência não decorre qualquer prejuízo para o interesse público – o que nem sequer foi alegado ou invocado pelo Requerido Município.
o) devendo, em consequência, revogar-se a decisão ora em crise e decretar-se a providência requerida, o que também ora e expressamente se solicita.
Relativamente à providência requerida subsidiariamente, de abstenção de comportamentos/atos derivados e em consequência do sobredito licenciamento de obras [de que se destacou a autorização de utilização e emissão do respetivo alvará]:
p) Caso se entenda que não estavam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência nos termos conjugados dos artigos 112.º, n.º 2 alínea a), e 129.º do CPTA, foi requerida subsidiariamente, agora com fundamento no artigo 112.º, n.º 2, al. i), do CPTA, a abstenção de comportamentos/atos derivados e em consequência do sobredito licenciamento de obras [de que se destacou a autorização de utilização e emissão do respetivo alvará].
q) Ora, entende-se, com o devido respeito, que o Tribunal a quo enquadrou o presente pedido de um modo não admissível legalmente, não se podendo considerar que faltava ao Recorrente o necessário interesse processual pelo facto de o ato estar já executado.
r) Os factos que sustentam a suspensão da eficácia do ato administrativo de licença de obras e emissão do respetivo alvará são exatamente os mesmos que, caso o Tribunal não entendesse ser esta a providência adequada, sempre seriam idóneos a sustentar o decretamento da providência subsidiariamente requerida.
s) É que, se a autorização de utilização de determinado edifício ou fração apenas pode ser concedida depois de verificada a conformidade da obra com as condições do respetivo procedimento de controlo prévio, não havendo ou sendo ilegal aquela licença de obras por enfermar de vícios que determinam a sua invalidade, a licença de utilização não pode ser autorizada e o seu alvará emitido. Assim,
t) Os factos que sustentam o “fumus boni iuris” da providência cautelar subsidiariamente requerida não são, obviamente, vícios próprios e distintos (até porque o ato ainda não havia sido praticado) mas sim precisamente os vícios imputados ao ato que o antecede – a licença de obra.
u) Se a licença de obra é inválida pelos factos aduzidos, então o futuro ato de autorização de utilização também o será pelos mesmíssimos fundamentos, razão pela qual se justifica a condenação da Administração a abster-se de praticar tal ato.
v) Mutatis mutandis, para a existência de “periculum in mora”, nomeadamente dado os factos e argumento serem os mesmos que subjazem ao pedido principal (suspensão do ato), estando, como tal, integralmente verificado este segundo requisito necessário ao decretamento da providência requerida ao abrigo da alínea i) do n.º 2 do artigo 120.º do CPTA, pois que a utilização do sobredito espaço colocará em risco, ainda maior do que o atual, a segurança do edifício e das pessoas que o frequentam.
w) E o interesse provado prevalece sobre o interesse público, uma vez que o decretamento da providência requerida em nada prejudica este último.
x) Estando verificados todos os pressupostos de que a mesma depende, deveria ter sido decretada a providência requerida e, em consequência, a Requerida condenada à abstenção de conduta que se consubstancie na autorização utilização e respetiva emissão, o que, ainda que subsidiariamente, se requer.
Nestes termos e nos mais e melhores de direito que este Tribunal superior proficientemente suprirá, deve o presente Recurso ser provido, sendo revogada a douta sentença Proferida e substituída por outra que:
A) decrete a providência requerida de suspensão da decisão de licença de obras e emissão do respetivo alvará pela Entidade requerida, mantendo-se tal suspensão apesar de o Ato estar já executado, ao abrigo do disposto no artigo 129.º do CPTA, nos termos e com todas as consequências legais. Caso assim não se entenda,
B) se decrete a providência subsidiariamente requerida e Seja a entidade requerida condenada na abstenção de Comportamento/ato de autorização de utilização e emissão do respetivo alvará, igualmente com todas as legais Consequências, assim fazendo, como sempre, inteira e sã Justiça!

O Recorrido/Município veio a apresentar contra-alegações de Recurso em 14 de agosto de 2020, nas quais concluiu:
“I. OBJECTO DO RECURSO
A) O recurso a que ora se responde vem interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que indeferiu o requerimento cautelar, não adotando as providências requeridas nos presentes autos.
B) Para essa decisão, foi relevante para julgar improcedente o primeiro dos dois requerimentos formulados o facto de faltar à Recorrente o necessário interesse processual, e, por outro lado, e no que respeitava à segunda providência ali requerida, o facto de ser evidente a inexistência de fumus bonus iuris, dado que os argumentos lançados pela Recorrente para sustentar essa nova medida cautelar estavam todos indexados ao ato de emissão do alvará, não se perscrutando fundamentos de direito que diretamente tivessem a ver com a eventual contaminação desse futuro ato administrativo.
C) Não obstante a irrepreensibilidade da sentença recorrida, a Recorrente veio interpor recurso, imputando-lhe, essencialmente, duas falhas.
D) Em primeiro lugar, alegou que o douto Tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento sobre a matéria de facto ao não ter considerado determinados factos e ter desconsiderado outros com especial relevo para uma justa decisão final.
E) Posteriormente, imputa ao Tribunal a quo um erro de julgamento da matéria de direito, por ter considerado que o ato em causa tinha esgotado os seus efeitos com a sua própria prolação, por considerar que o artigo 129.º do CPTA não se aplica no caso em apreço; e por negar a adoção a providencia cautelar antecipatória de abstenção do Requerido em emitir a autorização de utilização.
F) Ora, este recurso é manifestamente improcedente, porque, por um lado, não se verifica o erro na apreciação da matéria de facto dada como assente pela douta sentença recorrida, como alega a Recorrente, e, por outro lado, porque são totalmente desprovidas de fundamentos as diversas considerações respeitantes aos alegados erros de julgamento de direito da douta sentença recorrida.
G) A isso acresce que, ainda que as críticas apontadas fossem procedentes, sempre as providências requeridas teriam de ser recusadas, uma vez que não se encontram reunidos os requisitos necessários ao seu decretamento.
II. DA IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO
A. DO ERRO DE JULGAMENTO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
H) Alega a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto, por considerar que deveria ter dado como assente a circunstância de, alegadamente, ter constatado no decurso do mês de Agosto de 2019 que a Contrainteressada havia demolido a parede.
I) Acontece que, este alegado “facto” é totalmente irrelevante para decidir a presente providência.
J) Na verdade, ainda que o mesmo correspondesse à verdade, tal circunstância não seria relevante para a decisão, pois que, o “facto” evidenciado em nada contende com nenhum dos juízos formulados pela douta sentença recorrida.
K) Por outro lado, acresce referir que, contrariamente ao alegado pela Recorrente, a Entidade Requerida não deixou de impugnar ou refutar o “facto” ora alegado, como, de resto, resulta do artigo 58.º da sua oposição.
L) Por essa razão, por ser manifestamente irrelevante o “facto” identificado pela Recorrente, o erro de julgamento sobre a matéria de facto deve ser julgado improcedente.
B. DOS ALEGADOS ERROS DE JULGAMENTO DA DOUTA SENTENÇA RECORRIDA.
M) A douta sentença recorrida julgou improcedente o requerimento cautelar, não adotando a primeira providência requerida por se verificar a inexistência de um pressuposto processual imprescindível, designadamente, o interesse processual.
N) De facto, o Tribunal a quo decidiu indeferir esta providência dado que o ato emissor do alvará esgotou todos os seus efeitos com a própria prolação, ao que acresce que as obras se encontram já integralmente executadas, pelo que nenhum efeito útil resultaria daquela decisão.
O) Com efeito, o Tribunal a quo não poderia ter deixado de concluir que inexistia interesse processual da Requerente no decretamento da providência, atento o facto de não resultar nenhum efeito útil e atual para a Recorrente.
P) Ora, para concluir pela inexistência do interesse processual, a douta sentença recorrida procurou, em primeiro lugar, clarificar que da adoção da providência cautelar requerida já não seria possível emergir nenhum efeito útil para salvaguardar os interesses da Recorrente.
Q) Assim, tendo concluído que o ato suspendendo já havia sido realizado, a suspensão do ato já executado já não se justificava pela manifesta falta de interesse processual da Recorrente.
R) Por outro lado, acresce referir que, não obstante a Recorrente tentar demonstrar que o objeto da providência era o despacho de licenciamento das obras, proferido pelo Vereador competente, ao invés do Despacho que ordenou a emissão do alvará, o certo é que, mesmo nesse caso, sempre teria que se concluir pela inexistência de interesse processual da Requerente, dado que aquele ato já se encontrava integralmente executado e todas as obras estavam integralmente concluídas.
S) Por sua vez, a douta sentença recorrida rejeitou a segunda providência pelo facto de ser evidente a inexistência de fumus bonus iuris, uma vez que a Requerente nada alegou no seu requerimento inicial que se prendesse com a licitude da emissão do ato em causa.
T) Na verdade, cabia à Requerente alegar e provar factos que permitissem construir um juízo de probabilidade quanto à procedência da segunda providência requerida, porquanto, os dois atos são manifestamente distintos, dotados de finalidades, pressupostos e procedimentos diversos.
U) Ora, a Recorrente não alegou nem provou factos que pudessem justificar a inibição da emissão da autorização de utilização, pelo que é evidente que o requisito do fumus bonus iuris não se encontrava preenchido.
V) Com efeito, também esta segunda decisão constante da douta sentença recorrida é totalmente irrepreensível.
W) Assim sendo, o recurso agora interposto terá de ser julgado totalmente improcedente. Sem prejuízo,
III. DA IMPROCEDÊNCIA DAS PROVIDÊNCIAS REQUERIDAS
A. DO NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À ADOPÇÃO DA PRESENTE PROVIDÊNCIA
X) Por regra, o decretamento de uma providência envolve, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA, que sejam tomados em consideração três questões: i) o fumus bonus iuris, ii) o periculum in mora, e iii) uma ponderação entre todos os interesses em presença.
Y) E para que seja decretada a providência afigura-se necessário demonstrar a verificação daqueles dois primeiros requisitos para que, posteriormente, seja possível ponderar todos os interesses.
Z) Acontece que, não obstante a Recorrente alegar o preenchimento dos requisitos tendentes ao decretamento das duas providências por si requeridas, certo é que nenhum dos requisitos aqui em causa se poderão considerar preenchidos, como o Recorrido abundantemente já evidenciou na sua oposição.
A - DO NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS AO DECRETAMENTO DA PRIMEIRA PROVIDÊNCIA
i) Da inexistência do fumus bonus iuris
AA) No que respeita ao primeiro pressuposto, cuja verificação é necessária para o decretamento da providência requerida – o fumus bonis iuris – resultou evidente que o mesmo não se encontrava verificado.
BB) Desde logo, e em termos sumários, no que respeita à alegada falta de legitimidade dos Contrainteressados em requerer a operação urbanística objeto dos presentes autos, sublinhe-se que o Recorrido Município apreciou, mais do que uma vez, tendo concluído, com base no documento comprovativo de legitimidade que lhe foi apresentado, do qual resultava a autorização para realizar a operação urbanística objeto dos presentes autos, que os Contrainteressados tinham legitimidade para realizar aquela operação urbanística.
CC) Quanto ao segundo argumento apresentado para tentar demonstrar a verificação do requisito fumus bonus iuris, a alegada falta de audiência prévia da Recorrente, não podei deixar de se referir que não era exigível ao aqui Recorrido que notificasse a Recorrente em sede de audiência prévia no âmbito da operação urbanística, pois que, como ficou demonstrado, a mesma não era interessada naquele procedimento.
DD) Veio ainda a Recorrente referir o alegado erro nos pressupostos de facto e omissão na análise por parte do Recorrido quanto à parede alvo da operação urbanística, argumentando que a mesma é uma parede essencial para a estrutura do edifício e para a sua segurança e estabilidade, com base num “relatório técnico”, cuja parcialidade é manifesta, por não ter sido elaborado em sede de prova pericial.
EE) Em todo o caso, não pode deixar de se referir que o Recorrido validou todas as condições urbanísticas, incluindo esta questão, tendo, aliás, sublinhado que todas condições técnicas sempre poderiam ser verificadas na fase de fiscalização posterior e após a realização das obras de adaptação alvo do licenciamento, como de resto resulta do processo administrativo.
FF) Por último, alega a Recorrente que suscitou a questão da falta de competência de quem proferiu “a decisão em causa”, por considerar que não foi junto com a decisão de emissão de alvará o despacho que delega as competências para emitir o alvará, e que tal ausência implicaria a falta fundamentação do mesmo.
GG) Quanto a este aspeto nenhuma consideração haverá a tecer além daquela que resulta da lei, designadamente do n.º 1 do artigo 48.º do CPA, do qual resulta que o despacho de delegação de competências não tinha que ser junto à decisão tomada pela Exma. Chefe de Divisão, sendo apenas exigível que o mesmo fosse indicado, como de resto, sucedeu.
HH) Em face de todas estas considerações, não podemos deixar de estar perante a falta de preenchimento do requisito fumus bonus iuris, pelo que, sendo cumulativos os requisitos para a concessão da providência, é suficiente para concluir que a providência sempre deveria ser indeferida, como decidiu o Tribunal a quo.
ii) Da inexistência do Periculum in Mora
II) No que respeita ao periculum in mora, diga-se, tão-somente, que este requisito não se encontra preenchido uma vez que as obras já se foram concluídas pelo que já não era possível evitar quer a urgência do facto realizado quer a eventual produção dos prejuízos de difícil recuperação. Ou seja, o decretamento da providência em nada contribuiria para afastar o alegado “periculum” invocado pelo Autor – o que só vem confirmar a total inutilidade desta providência…
JJ) A isso acresce que, não obstante a Recorrente afirmar que a estabilidade do edifício ainda continua em crise, o que, segundo aquela, é suscetível de produzir prejuízos, certo é que não logrou provar que as obras de alteração foram defeituosamente efetuadas, de tal modo que põem em causa a estrutura ou a estabilidade do edifício, como pretende fazer crer, tendo apenas afirmado que a execução do ato suspendendo tem consequências graves.
KK) Acresce referir que o decretamento da providência requerida não evitaria o alegado “perigo” referida pela Recorrente, dado que a suspensão de eficácia daquele ato não repõe a situação anterior.
LL) Assim, é inequívoco que não se pode considerar demonstrado o requisito do periculum in mora.
iii) Da ponderação de interesses
MM) Por fim, no que respeita à ponderação de interesses, constata-se que a Recorrente não logrou sequer descortinar um qualquer interesse minimamente razoável ou atendível ou remotamente comparável ao interesse público, o qual sempre seria prejudicado caso fosse concedida a presente providência, pois, dessa forma, estar-se-ia implicitamente a permitir que o Recorrido Município interviesse numa disputa entre privados e a permitir a usurpação de poderes da Administração.
NN) Em face do que se deixou exposto, é por demais evidente que se não se encontram preenchidos todos os pressupostos legais de que depende o decretamento da providência, não tendo a Recorrente logrado abalar a irrepreensível decisão do Tribunal a quo.
B - DO NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS AO DECRETAMENTO DA SEGUNDA PROVIDÊNCIA
OO) O Tribunal a quo indeferiu ainda a providência cautelar requerida por considerar que os argumentos lançados pela Recorrente para sustentar o requisito do fumus bonus iuris dessa nova medida cautelar estavam todos indexados ao ato de licenciamento, não existindo fundamentos de direito que diretamente tivesse a ver com a eventual contaminação desse futuro ato administrativo.
PP) E outra não poderia ter sido a sua decisão, sendo evidente que o requisito do fumus bonus iuris relativo a esta providência não se encontra demonstrado. De facto, a Recorrente não logrou demonstrar que tinha alegado fundamentos que sustentassem o provimento do pedido de abstenção da emissão de autorização de utilização.
QQ) A Recorrente limitou-se, na verdade, a reiterar que os factos alegados são comuns a ambos os pedidos, não descortinando que um e outro ato – o ato pelo qual foi determinada a emissão do alvará e o ato de emissão de autorização de utilização – são atos juridicamente distintos, inexistindo entre eles uma qualquer relação de causa-efeito. E esquecendo-se que, não tendo sido impugnado o ato de licenciamento das obras – que entretanto se consolidou no ordenamento jurídico –, só seria possível pôr em causa as obras executadas caso se evidenciasse que as mesmas eram desconformes com aquele ato de licenciamento.
RR) Ora, o Recorrente em momento algum pôs em causa a correção das obras executadas, pelo que nenhum “ciclo” autónomo alega que pudesse justificar a não emissão da licença de utilização. Por essa razão, é evidente que não se encontra demonstrado o requisito do fumus bonus iuris (como bem tinha evidenciado a douta sentença recorrida).
SS) Por sua vez, também o requisito do periculum in mora não se poderá considerar preenchido quer pelo facto de a Recorrente não procurou demonstrar quais os benefícios que para si poderão resultar da não emissão da autorização de utilização, que porque a emissão da referida licença não ser passível de causar qualquer risco ou prejuízo à Recorrente.
TT) O que evidencia também que nunca poderia ser ultrapassado o último teste da ponderação de interesses, dado que inexiste qualquer interesse provado que pudesse reclamar o decretamento desta segunda providência.
UU) Em suma, é por demais evidente que, ainda que se considerasse que a sentença padecia de qualquer falha que poderia justificar a reapreciação dos juízos ali formulados – o que aqui se admite por dever de patrocínio –, sempre se teria de concluir pela total improcedência das providências requeridas.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverão negar provimento ao recurso interposto pela Recorrente, com o que farão a sã e costumeira Justiça!”

Em 17 de agosto de 2020 vieram os contrainteressados M., Lda., e C., apresentar as suas contra-alegações de Recurso, nas quais concluíram:
“I – Os recursos destinam-se ao reexame, ou revisão, de matérias que foram colocadas como objeto de apreciação perante uma instância inferior; sendo vedado ao Tribunal superior apreciar questões novas, introduzidas pelas Partes apenas em sede de recurso.
II – Impugnado o despacho de emissão do alvará de obras particulares requeridas por um interessado, e tendo sido recusada pelo Tribunal a providência cautelar de suspensão desse alvará, não pode em sede de recurso o Requerente da providência – e ora Recorrente – converter essa impugnação realizada em 1ª Instância numa impugnação de um ato administrativo distinto desse alvará: o despacho de licenciamento das obras requeridas.
III – O alvará impugnado não constitui um ato judicialmente impugnável, na medida em que não produz efeitos conformadores de relações jurídicas administrativas.
IV – Constitui um mero título formal, documental, da autorização das obras requeridas e requisito da eficácia e executoriedade dessa obras.
“1 - As operações urbanísticas objeto de licenciamento são tituladas por alvará, cuja emissão é condição de eficácia da licença.”, como estatui o artº 74º, 1 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro.
V – Improcedem, pois, as Conclusões c) a f) das Alegações de recurso do recorrente, tendo o Tribunal recorrido aplicado com pertinência o regime legal atinente.
VI – Constando dos contratos de arrendamento entre o Recorrente e os Contrainteressados a autorização expressa para estes, “desde já (datas dos contratos de arrendamento, 15.10.2015 e 23.5.2018) … realizar(em) no arrendado as obras necessárias à respetiva adaptação para o fim a que se destina(m) …” … ”incumbindo-lhe(s) … a obtenção de todas as licenças necessárias, junto de quaisquer entidades … quer tais licenças digam respeito ao prédio …” …
VII – Mais constando a autorização expressa no contrato de arrendamento com o Contrainteressado C. para este “… abrir a passagem existente entre as lojas situadas na Praça (...), (…) e a da Rua (...), (…), suportando todas as despesas e demais encargos decorrentes desta mesma obra …” …
VIII – E constando do processo administrativo de licenciamento das obras de alteração a autorização, conferida por este Contrainteressado C. à Contrainteressada M., Lda. – de que o mesmo C. é sócio-gerente - para realizar a sobredita intervenção urbanística …
IX – Encontra-se assim assegurada a legitimidade dos Contrainteressados para requererem o licenciamento das obras em causa junto do Município Requerido.
X – Deste modo, devem sucumbir as Conclusões g) a k) das Alegações de recurso apresentado pelo Recorrente.
XI – Para além de que a alegação, feita pelo Recorrente, de falta de autorização sua para os Contrainteressados levarem a efeito as obras licenciadas configuraria um óbvio abuso do direito, na modalidade de ”venire contra factum proprium”, igualmente conducente ao soçobrar da providência requerida.
XII – O facto de um particular interessado realizar uma obra sujeita a licença municipal – se se tratar de uma obra sujeita a licença, o que é questionável -, antes de essa licença ser concedida, e tal obra ser posteriormente legalizada, por não haver para tanto impedimento urbanístico, não confere a um terceiro, estranho à relação procedimental entre requerente do licenciamento e município, a condição de interessado nesse procedimento.
XIII – Assim, o Recorrente não era parte interessada nesse procedimento, cujas partes eram exclusivamente os Contrainteressados e a Município Requerido.
Para o Recorrente, trata-se de “acta inter alios”.
XIV – Não tem cabimento, pois, a Conclusão b) das Alegações de recurso apresentado pelo Recorrente.
XV – Totalmente executado um ato administrativo, não há, em princípio, lugar à providência de suspensão de eficácia.
Não se suspende a execução de um ato já executado.
XVI – Não pode olvidar-se, por outro lado, que o ato cuja suspensão foi requerida foi o alvará de obras – não o licenciamento de tais obras.
XVII – Ora, um alvará é um ato instrumental, cuja eficácia se esgota pela respetiva emissão.
XVIII – Não tendo o Recorrente impugnado o licenciamento das obras, não pode pretender atacar os efeitos desse ato, a montante, não impugnado.
XIX – Assiste, pois, razão ao Tribunal no indeferimento da providência, não tendo qualquer pertinência as Conclusões l) a x) das Alegações apresentadas pelo Recorrente.
XX – Concluindo, como o Tribunal: “não se permite a adoção da providência cautelar antecipatória de inibição do Requerido em praticar o ato de emissão da autorização de utilização do espaço objeto das obras, porquanto, os argumentos lançados pelo Requerente para sustentar o “fumus boni juris” dessa nova medida cautelar estão todos indexados ao ato de emissão do Alvará, não se perscrutando fundamentos de direito que diretamente tenham a ver com a eventual contaminação desse futuro ato administrativo.
Termos em que deve o recurso improceder, mantendo-se integralmente o douto despacho/sentença recorrido, como é de JUSTIÇA!”

Em 20 de agosto de 2020 foi proferido Despacho de Admissão do Recurso.

O Magistrado do Ministério Público junto deste tribunal, devidamente notificado, veio a emitir Parecer em 23 de setembro de 2020, pronunciando-se no sentido do Recurso merecer provimento.

Correspondentemente, veio o Município de (...), em 1 de Outubro de 2020, reafirmar a sua posição já manifestada nos Autos, referindo que “(...) deve o parecer em apreço ser desatendido e ser o presente recurso julgado improcedente, em conformidade com as alegações do recorrido oportunamente apresentadas.”

Do mesmo modo, em 2 de outubro de 2020, vieram os Contrainteressados M., Lda., e C., pronunciar-se face ao referido Parecer do MP, referindo que “(...) deverá ser desatendido o parecer do MP, decidindo-se, a final, pela improcedência do recurso jurisdicional”.

Em 6 de outubro de 2020 veio o Requerente Clube (...), pronunciar-se igualmente face ao Parecer do MP, concluindo “(...) como nas Alegações de recurso apresentadas e do parecer ora em Apreço, requerendo a procedência do recurso e revogação da sentença proferida.”

Com dispensa de vistos prévios (art.º 36º, nº 2, do CPTA), mas com apresentação antecipada do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, designadamente os invocados os erros de julgamento, de facto e de direito, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA,

III – Fundamentação de Facto
Foi pelo tribunal a quo fixada a seguinte factualidade provada:
“1.º - O Requerente é dono dos seguintes prédios urbanos:
a) prédio urbano com uma área de 440 metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana do (...), sob o n.º 475 e descrito na Conservatória do Registo Predial (...) sob n.º 2956/20091020, sito na Rua (...), (...), conforme decorre dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos com o requerimento inicial;
b) prédio urbano com uma área de 440 metros quadrados, inscrito na matriz predial urbana do (...), sob o n.º 478 e descrito na Conservatória do Registo Predial (...) sob o n.º 2956/20091020, sito na Rua (...), (...), conforme decorre dos documentos n.ºs 3 e 4 juntos com o requerimento inicial;
2.º - No dia 15 de Outubro de 2015, o Requerente e a Contrainteressada M., LDA., celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais da divisão com utilização independente L105F do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana do (...), sob o n.º 475, afeta a comércio, na Rua (...), (…) - cfr. documento n.º 5 junto com o requerimento inicial;
3.º - No dia 25 de Setembro de 2017, o Requerente e o Contrainteressado C. celebraram um contrato de arrendamento para fins não habitacionais da divisão com utilização independente, inscrito na matriz predial urbana do (...), sob o n.º 478, correspondente a uma loja situada na (...), (…), – cfr. documento n.º 6 junto com o requerimento inicial;
4.º - Em 20/08/2019, relativamente à obra nos prédios do Requerente, foi elaborado um “RELATÓRIO TÉCNICO” por Engenheiro Civil – cf. doc. n.º 12 junto com o requerimento inicial;
5.º - Por despacho de 22/11/2019 da Chefe de Divisão Municipal de Gestão de Procedimentos Urbanísticos, foi deferido o pedido da ora sociedade Contrainteressada para a emissão do Alvará de licença de obras de edificação para o prédio sito na Praça (...), e na Rua do (...), n.ºs 3 e 5, na cidade (...) – cf. doc. n.º 1 junto com o requerimento inicial;
6.º - A Requerente, em 2018, por duas vezes, cedeu a terceiros a utilização do espaço do Salão Nobre do seu edifício para eventos, faturando por essa cedência os valores de €430,50 e de €615,00, respetivamente – cf. docs. n.ºs 1 e 3 juntos com o req. de 15/06/2020;
7.º - As obras de alteração previstas no ato suspendendo já se encontravam totalmente executadas aquando da apresentação do requerimento inicial em juízo - cf. artigo 37.º do requerimento inicial, artigo 59.º da oposição do Requerido e artigo 31.º da oposição dos Contrainteressados - facto admitido por acordo das partes.”

IV – Do Direito
No que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se na decisão recorrida:
“O artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, preceitua o seguinte: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”.
O processo cautelar visa impedir que, no campo material dos factos e enquanto perdurar a ação principal, ocorra um facto consumado ou se verifiquem prejuízos de difícil reparação, de tal forma que, mesmo com a procedência da citada ação, de nada servirá esse vencimento, que se tornará inútil, pois já não virá a tempo de impedir os efeitos nefastos da imediata eficácia do ato suspendendo. A providência cautelar de natureza conservatória tem por finalidade a manutenção de uma situação fáctica, do “status quo” existente, inalterado, até que a legalidade do ato administrativo acabe por ser definitivamente sindicada pelo Tribunal. Portanto, a utilidade, a atualidade e a instrumentalidade que caracterizam o processo cautelar dependem de, no aspeto material, ainda ser possível evitar a emergência do facto consumado ou a produção dos prejuízos de difícil reparação. Aquelas mesmas características deixam de se verificar se, entretanto, as operações materiais, ou parte delas, em que se consubstancia a execução do ato suspendendo já se concretizaram na ordem prática das coisas. É o que se constata no caso vertente, em que as obras tituladas pelo Alvará emitido pelo ato suspendendo já se mostram edificadas, senão na totalidade, pelo menos, na parte enfatizada pelo Requerente, ou seja, as obras tendentes à demolição da parede e o surgimento da abertura entre as duas frações já se mostram concluídas. Isto mostra, na prática, a efetiva execução do ato administrativo suspendendo, evidenciando também que o Requerente não solicitou em juízo e de forma atempada o meio cautelar necessário com vista a obstar à concretização das obras com as quais não concorda. Ainda assim, o Requerente clama pela aplicação do regime instituído pelo artigo 129.º do CPTA, que permite a suspensão da eficácia de um ato administrativo já executado, nos seguintes moldes:
“A execução de um ato não obsta à suspensão da sua eficácia quando desta possa advir, para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender, no processo principal, utilidade relevante no que toca aos efeitos que o ato ainda produza ou venha a produzir”.
Ora bem, o Requerente já não extrai qualquer utilidade relevante da suspensão da eficácia do ato suspendendo, porquanto, o ato emissor do Alvará esgotou os seus efeitos com a própria prolação, sobretudo, através da realização das obras que já se verificaram no campo material dos factos (demolição da parede e surgimento de uma abertura entre os prédios), que o Requerente não foi a tempo de evitar, não havendo, com efeito, quaisquer efeitos posteriores a retirar do mesmo ato. Deste modo, conclui-se que o ato suspendendo já foi executado, não restando qualquer utilidade no decretamento da providência conservatória requerida, pois ao Requerente passou a faltar o necessário interesse processual. Neste sentido, vide o douto acórdão do TCAS, de 30/04/2020, proferido no processo n.º 576/19.9BELSB, “in” www.dgsi.pt, destacando-se o ponto I do seu sumário, como segue: “Decorre do disposto no artigo 129.º do CPTA, que a suspensão de eficácia do ato apenas pode impedir que este produza efeitos que ainda não se produziram, não resultando da mesma a eliminação dos efeitos já produzidos” Por outro lado, não se permite a adoção da providência cautelar antecipatória de inibição do Requerido em praticar o ato de emissão da autorização de utilização do espaço objeto das obras, porquanto, os argumentos lançados pelo Requerente para sustentar o “fumus boni juris” dessa nova medida cautelar estão todos indexados ao ato de emissão do Alvará, não se perscrutando fundamentos de direito que diretamente tenham a ver com a eventual contaminação desse futuro ato administrativo.
Aliás, o ato que emite o Alvará de obras é distinto e autónomo do ato que, posteriormente, autoriza a utilização do local objeto de intervenção, visto que, diversas são as finalidades, os pressupostos e os procedimentos que aos mesmos subjazem. Ademais, se o ato de autorização da utilização está a jusante do ato emissor do Alvará, também este é distinto e autónomo do ato que, a montante de todos eles, aprova o licenciamento das obras, e que se consolidou na ordem jurídica, pois nem sequer foi objeto do presente processo cautelar. Chama-se à colação o entendimento vertido no douto acórdão do STA, de 14/02/2013, proferido no processo n.º 01323/12, “in” www.dgsi.pt, convocando-se o ponto I do seu sumário, nos seguintes termos: “Os procedimentos administrativos de licenciamento da edificação e de autorização de utilização são autónomos, embora conexos, têm tramitações próprias e extinguem-se, cada um deles, com a prolação de um distinto ato administrativo”.
Tudo visto, em síntese, não se aplica ao caso em apreço o disposto no artigo 129.º do CPTA e não se pode utilizar tal comando legal com vista a obstar à prolação de um futuro ato administrativo, que contra o mesmo não foram ainda imputadas concretas causas de ilegalidade e que é distinto e autónomo do ato suspendendo já executado, cuja tramitação já se extinguiu (a do ato suspendendo), conforme o entendimento doutamente formulado pelo STA.”

Vejamos:
O Recorrente vem com um sofisma, afirmando em sede recursiva que “não é, pois, a suspensão das obras – já executadas – que se pretende com a providência cautelar requerida, outrossim a suspensão da eficácia do ato administrativo que as autorizou, o que, em bom rigor, se reconduz ao mesmo objeto e objetivo.

Com efeito, peticionou-se no Requerimento inicial a suspensão, nomeadamente da licença de obras emitida pela entidade requerida à contrainteressada empresa, mais se requerendo, nos termos do artigo 129.º do CPTA, que a suspensão requerida se mantenha apesar do ato se encontrar já executado, nomeadamente com a condenação da entidade requerida à abstenção de qualquer comportamento ou ato, que se destaca a não emissão da respetiva autorização de utilização, dada a ilegalidade e os prejuízos graves que dela podem ainda advir, ainda que subsidiariamente, ao abrigo da alínea i) do n.º 2 do artigo 112.º do CPTA.

Entendeu o Tribunal a quo que, “em síntese, não se aplica ao caso em apreço o disposto no artigo 129.º do CPTA e não se pode utilizar tal comando legal com vista a obstar à prolação de um futuro ato administrativo, que contra o mesmo não foram ainda imputadas concretas causas de ilegalidade e que é distinto e autónomo do ato suspendendo já executado, cuja tramitação já se extinguiu (a do ato suspendendo), conforme o entendimento doutamente formulado pelo STA”.

Mais entendeu o Tribunal a quo que “o ato suspendendo já foi executado, não restando qualquer utilidade no decretamento da providência conservatória requerida […].”

Referiu ainda a 1ª instância que “não se permite a adoção da providência cautelar antecipatória de inibição do Requerido em praticar o ato de emissão da autorização de utilização do espaço objeto das obras, porquanto, os argumentos lançados pelo Requerente para sustentar o “fumus boni juris” dessa nova medida cautelar estão todos indexados ao ato de emissão do Alvará, não se perscrutando fundamentos de direito que diretamente tenham a ver com a eventual contaminação desse futuro ato administrativo”.
(...) “o ato que emite o Alvará de obras é distinto e autónomo do ato que, posteriormente, autoriza a utilização do local objeto de intervenção, visto que, diversas são as finalidades, os pressupostos e os procedimentos que aos mesmos subjazem”.

Atenta a Sentença proferida, são imputadas à mesma, os seguintes vícios:
a) “(...) erro de julgamento sobre a matéria de facto, ao não ter considerado determinados factos e ter desconsiderado outros com especial relevo para uma justa decisão final” e
b) “(...) erro de julgamento da matéria de direito, “violando o disposto nos artigos 129.º, 112.º e 120.º, todos do CPTA”.

Com a nova redação do CPTA, deixou de existir o critério da evidência que permitia decretar, só por si, a providência requerida.

Há que averiguar agora, desde logo, a existência do periculum in mora, a constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal.

Continua a recair sobre o requerente o ónus de fazer prova sumária dos requisitos do periculum in mora, enquanto receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente; e do fumus boni iuris, enquanto sumária avaliação da probabilidade de existência do direito invocado.

Ao referido acresce ainda a eventual necessidade de ser feita uma ponderação de todos os interesses em presença (públicos e/ou privados).

Importa sublinhar que as providências cautelares têm como objetivo essencial a composição provisória de uma situação jurídica por forma a acautelar o efeito útil de futura e eventual decisão de procedência da ação principal (periculum in mora).

A tutela cautelar tende assim a salvaguardar o efeito útil da sentença a proferir na correspondente ação principal, enquanto garante da tutela jurisdicional efetiva.

O Juiz terá assim de se colocar na situação futura de uma hipotética sentença de procedência da ação principal, verificando perfunctoriamente se existirão razões para julgar que tal decisão venha a tornar-se inútil, sem qualquer alcance prático, por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos dificilmente reparáveis para quem dela pretende beneficiar, que obstem reconstituição natural ou à reintegração da esfera jurídica do beneficiado com a sentença.

Na redação atual dada ao CPTA pelo Decreto-Lei n° 214-G/2015, de 2 de Outubro de 2015, o fumus boni iuris apresenta-se sempre sob a formulação positiva, idêntica àquela que anteriormente constava da alínea c) do n° 1 do art.º 120° do CPTA.

Ponderada a tutela cautelar em função dos critérios agora estatuídos no artigo 120° n.º 1 do CPTA, a análise da verificação da aparência do bom direito poderá assumir relevância, caso seja necessário verificar uma efetiva probabilidade de procedência da pretensão principal, sendo que os requisitos aplicáveis são de preenchimento cumulativo.

A formulação positiva do fumus boni iuris é-nos dada pela introdução na redação do n.º 1 do artigo 120. ° do CPTA do substantivo "provável", que imprime uma menor flexibilidade à análise a fazer.

Como refere Isabel Celeste Fonseca, o requisito do fumus boni iuris na formulação positiva, obriga a um juízo positivo de probabilidade através da "intensificação da cognição cautelar", ou seja, duma "apreciação mais profunda e intensa da causa". (Cfr. Isabel Celeste M. Fonseca, Dos novos processo urgentes no Contencioso Administrativo (função e estrutura), págs. 66 a 68).

No mesmo sentido aponta Mário Aroso de Almeida, no seu Manual de Processo Administrativo, 2016, p. 452, onde refere que com a reforma do CPTA de 2015 se consagrou "um regime homogéneo quanto a este ponto para os dois tipos de providências, estabelecendo que, tanto umas, como outras, só podem ser adotadas quando seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente, veio introduzir uma novidade sem precedentes no nosso ordenamento jurídico, com o evidente alcance de limitar o acesso dos cidadãos à tutela cautelar em processo administrativo: a de submeter ao critério do fumus boni iuris, com a configuração que, em processo civil, lhe atribui o n° 1 do artigo 368° do CPC, a adoção das providências cautelares conservatórias e, em particular, da providência da suspensão da eficácia de atos administrativos -- providência cuja atribuição, importa recordá-lo, nunca, até à entrada em vigor do CPTA, tinha estado dependente da formulação de qualquer juízo sobre o bem fundado da pretensão impugnatória do requerente".

A ponderação por parte do tribunal sobre a probabilidade da procedência da pretensão formulada no processo principal deve assim ser feita em moldes perfunctórios, materializados num juízo de verosimilhança ou mera previsibilidade e razoabilidade dos indícios, que permita assentar na probabilidade do êxito da pretensão principal.

Retornando à situação concreta, e como reiteradamente se afirmou, incumbe ao requerente da providência o ónus de alegar e provar a matéria de facto integradora do periculum in mora, através de factos ou circunstâncias suficientemente determinados que, segundo um juízo de normalidade e pelas regras de experiência comum, abarquem a situação de perigo justificativa da concessão da medida pretendida.

DO ERRO DE JULGAMENTO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Alega o Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como provada a sua afirmação constante do Requerimento Inicial, onde referiu que no decurso do mês de Agosto de 2019 a Contrainteressada havia demolido a parede.

É hoje pacifico, designadamente na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, que “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1.ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto. (...)” (Cfr. vg. Acórdão deste TCAN, de 11/02/2011, no Processo n.º 00218/08.8BEBRG).

Como já mais recentemente se sumariou no acórdão do TCAN nº 00175/15.4BEPRT, de 11-05-2017, “À instância recursiva apenas caberá sindicar e modificar o decidido quanto à factualidade dada como provada e não provada, caso verifique a ocorrência de erro de apreciação, suscetível de determinar a viciação da decisão final, mormente enquanto erro de julgamento, patente, ostensivo palmar ou manifesto.
Efetivamente, em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.”

Em qualquer caso, sem prejuízo do referido, o recorrente não demonstra que a divergência suscitada relativamente à matéria de facto, ainda que viesse a ser admitida, pudesse influenciar a decisão final a proferir, em face do que, sempre improcederia o pretendido.

Efetivamente, e não obstante a argumentação esgrimida a este respeito pelo Recorrente, o que é verdade é que os factos dados como provados, ainda que escaços, mostram-se suficientes, adequadamente justificados e fundamentados.

Na realidade, os factos provados assentaram na livre convicção do tribunal a quo, esclarecida e motivada, em conformidade com o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 a 5, do CPC.

Assim, sem necessidade de acrescida argumentação, entende-se deverem improceder os erros de julgamento da matéria de facto suscitados

Reafirma-se, em qualquer caso, que o invocado “facto” sempre se mostraria irrelevante e insuficiente para determinar uma decisão divergente daquela que foi adotada.

Assim, em face do precedentemente expendido, mostra-se que neste aspeto improcede o Recurso jurisdicional interposto.

DOS ERROS DE JULGAMENTO DA SENTENÇA RECORRIDA.

Reafirma-se que o Tribunal a quo, recusou a adoção da primeira providência requerida por ter entendido que o ato cuja suspensão vinha requerida, se encontrava já executado (Demolição), tendo indeferido a segunda providência (subsidiária), por entender que se inverificava o necessário fumus bonus iuris, por ausência de demonstração de que o ato constitutivo da Licença de Utilização comportasse alguma ilegalidade própria do referido ato.

Afirmou-se na decisão recorrida, designadamente, que “… é distinto e autónomo do ato que, a montante de todos eles, aprova o licenciamento das obras, e que se consolidou na ordem jurídica, pois nem sequer foi objeto do presente processo cautelar”.

Em bom rigor, e no que respeita à requerida suspensão da demolição da parede supostamente mestra em causa, tendo a mesmo já sido demolida, de nada se retiraria da suspensão de tal ato,

Como se afirmou na decisão recorrida, o ato emissor do alvará esgotou os seus efeitos, “através da realização das obras que já se verificaram no campo material dos factos, que o Requerente não foi a tempo de evitar”.

A respeito da suspensão do ato de demolição, mostra-se o procedimento cautelar destituído de qualquer efeito útil, em face do que desde logo não se mostra verificado o pressuposto processual do interesse em agir.

Não merece pois censura o entendimento adotado pelo tribunal a quo ao decidir pela falta de interesse processual e, consequentemente, falta de utilidade da providência cautelar requerida.

Em qualquer caso, como resulta da sentença recorrida, o ato cuja eficácia se pretende ver suspensa, em bom rigor é o ato constante do “despacho da Exma. Senhora Chefe de Divisão Municipal de Gestão de Procedimentos Urbanísticos, de 22/Nov/2019, no qual se decidiu emitir alvará de licenciamento de obras de alteração que incidem sobre o prédio sito na Praça da Trindades, n.º 105, e Rua do (...), n.º 3 e 5, notificada ao aqui Requerente, em 28/Nov//2019”.

A decisão recorrida recusou ainda a segunda providência requerida (Autorização de utilização) por entender que se inverificava o necessário fumus boni iurus, dado que o Recorrente nada tinha alegado que se prendesse com a licitude do referido ato.

Como singelamente se afirmou a este respeito na decisão recorrida, o ato que decide a emissão do alvará (de Demolição) é “…distinto e autónomo do ato que, posteriormente, autoriza a utilização do local objeto de intervenção, visto que, diversas são as finalidades, os pressupostos e os procedimentos que aos mesmos subjazem”, não se encontrando demonstrada a probabilidade de procedência da Ação Principal.

Com efeito, estando já consolidado na ordem jurídica, designadamente, o ato de licenciamento edificativo, não poderá o Requerente, a pretexto da suspensão de ato diverso, determinar a suspensão da utilização do edificado, sob pena de subverter todos os princípios de natureza jurídica aplicáveis à situação, tanto mais que não foi invocado e menos ainda provado, que as obras realizadas se mostrem contrárias à licença emitida.

Objetivemos em função do suscitado:

DO PRENCHIMENTO DOS REQUISITOS DAS PROVIDÊNCIAS CAUTELARES - PRIMEIRA PROVIDÊNCIA

Do fumus bonus iuris

Da ilegitimidade da Contrainteressada
A legitimidade da Contrainteressada no controvertido procedimento foi singelamente atestada pelo contrato de arrendamento vigente, de 25/09/2017, o qual assegurava a legitimidade da contrainteressada para realizar a operação urbanística aqui controvertida.

Da falta de realização de audiência prévia do Recorrente
Refira-se que, estando documentalmente demonstrada a legitimidade da Contrainteressada para requerer o que requereu, como resulta expresso e explicito da clausulado do referido contrato de arrendamento, não se vislumbram razões para efetivar a pretendida audiência dos interessados à aqui Recorrente, o que se mostraria redundante, atenta a autorização constante já do procedimento, ínsita no referido contrato de arrendamento.

Quaisquer diferendos relativamente ao teor e limites do contrato de arrendamento é matéria que teria de ser dirimida noutro local, que não nestes tribunais.

Do erro nos pressupostos de direito
Alega a Recorrente que a controvertida parede demolida e objeto da operação urbanística em análise, será uma parede essencial para a estrutura do edifício e para a sua segurança e estabilidade.

Como evidenciado em 1ª instância, para além do facto da referida parede já ter há muito sido demolida, não foram apresentadas quaisquer evidências demonstrativas do alegado.

Assim, o referido não carece de acrescida argumentação, tanto mais que estamos em presença de um processo de natureza cautelar e urgente, cabendo ao tribunal efetuar uma análise meramente perfunctória do invocado, sendo que alegar não é provar (Allegatio et non probatio quasi non allegatio - Alegar e não provar é quase não alegar).

Tal como entendido pelo tribunal a quo, fica por demonstrar a alegada verificação do fumus bonus iuris, por não ter sido evidenciado que a referida circunstância determine que se mostre provável a procedência da correspondente ação principal.

Da incompetência do autor do ato
Invoca ainda o Recorrente a falta de competência de quem proferiu “a decisão em causa”, por entender que não foi junto com a decisão de emissão de alvará o despacho de delegação de competências legitimador da prolação do referido ato, o que equivaleria à falta de fundamentação do mesmo.

É incontroverso que o referido despacho de delegação de competências, não teria de ser junto com o ato, ainda que tenha de ser feita referência ao mesmo, como decorre do n.º 1 do artigo 48.º do CPA, o que foi cumprido, uma vez que referido alvará consta expressa a referida delegação de competências, inverificando-se assim o suscitado vicio.

Em face de tudo quanto precedentemente se expendeu, é assim manifesto, tal como decidido em 1ª instância, que se não se mostra preenchido o necessário fumus bonus iuris para que pudesse ser julgada procedente a requerida providência.

Acresce que o preenchimento dos requisitos aplicáveis, se mostra cumulativo, em face do que não haveria necessidade de apreciar os restantes pressupostos.

Da verificação do Periculum in Mora
Sem prejuízo do afirmado, e para que não possam subsistir quaisquer dúvidas, sempre se dirá que os prejuízos reclamados se mostrariam insuscetíveis de ser evitados pela Providência Cautelar, atendo o facto da demolição que se pretendia evitar, já ter ocorrido anteriormente à apresentação em juízo da presente Providência Cautelar.

Em qualquer caso, o Recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu numa falácia, uma vez que o risco de produção de prejuízo de difícil recuperação continuará a ser real, não obstante a verificada demolição da parede cuja providência pretendia evitar.

A Recorrente em defesa deste seu argumento, conjetura um conjunto de hipóteses, sem que, em bom rigor, concretize o tipo de prejuízos que poderão advir da improcedência do seu pedido, mormente atenta a circunstância da demolição que se pretendia evitar, já ter ocorrido, mostrando-se os seus efeitos irreversíveis, a menos que a parede em causa pudesse ser reconstruida, o que não está em causa nem foi requerido na presente Providência.

A Recorrente afirma singelamente que a execução do ato cuja suspensão vem requerida terá graves consequências, sem que objetive e prove os prejuízos concretos que daí poderão advir, o que desde logo compromete a pretendida verificação do periculum in mora” – cfr. artigo 120.º, n.º 1 do CPTA.

Com efeito, quaisquer prejuízos que pudessem advir da demolição da controvertida parede, não seriam certamente mitigados com a mera suspensão do ato, já após a demolição que se pretendia evitar.

Como se sumariou no Acórdão deste Tribunal proferido no Proc. n.º 03175/14.8BEPRT, de 17-04-2015, Cabe ao Requerente da Providência alegar e provar a existência do periculum in mora, não bastando a mera invocação de considerações genéricas e conclusivas, de uma situação de facto consumado ou de produção de prejuízos de difícil reparação.
Impende sobre o Requerente o ónus de alegação de factos concretos que permitam ao Tribunal perspetivar a existência de prejuízos de difícil reparação ou de uma situação de facto consumado.

Mais uma vez aqui se sublinha que alegar, não é provar, ao que acresce que Alegar e não provar é quase não alegar, como decorre do brocardo latino, Allegatio et non probatio quasi non allegatio.

Em face de tudo quanto se expendeu supra, não se reconhece a verificação de quaisquer prejuízos de difícil reparação que pudessem ser evitados com a suspensão do ato em questão.

Da ponderação de interesses
Importa agora apreciar o requisito negativo (ou cláusula de salvaguarda) enunciado no n.º 2 do art.º 120.º do CPTA.

O núcleo fundamental do critério da ponderação de interesses é avaliar se os prejuízos causados ao interesse público e aos outros interesses pela concessão da providência são ou não superiores aos prejuízos causados aos interesses do requerente em caso de recusa da sua adoção.

Em qualquer caso, inverificados quaisquer dos restantes dois requisitos, naturalmente que apreciação da ponderação de interesses se mostra inútil, uma vez que todos os pressupostos são de aplicação cumulativa – cfr. artigo 120.º, n.º 2 do CPTA.

DA SEGUNDA PROVIDÊNCIA
Alega finalmente o Recorrente que sempre teria o Tribunal que decretar a providência cautelar requerida subsidiariamente, nomeadamente decretando a abstenção por parte do Município da emissão da sucessiva e emergente autorização de utilização do edificado.
Há desde logo uma questão incontornável e que se prende com o facto de, em bom rigor, na providência requerida subsidiariamente, não vir requerida a suspensão da emissão da autorização de utilização com base em pressupostos atinentes ao próprio ato, mas antes em função dos pressupostos já discutidos relativamente ao anterior ato de licenciamento e demolição.

O entendimento adotado cinge-se ao raciocínio de acordo com o qual, uma vez que a demolição da controvertida parede já ocorreu, então suspendam-se os atos urbanísticos sucessivos, independentemente dos mesmos conterem, ou não vícios próprios.

Efetivamente, o Recorrente não logrou demonstrar que a suspensão do ato de autorização de utilização, requerido subsidiariamente, evidenciasse vícios próprios, sendo que o mesmo se consubstancia num ato juridicamente distinto e autónomo relativamente ao ato de demolição, não podendo aquele ser suspenso em decorrência de alegados vícios deste, enquanto ato diverso.

Se os argumentos aduzidos relativamente ao primeiro ato (demolição), face ao qual se requereu a suspensão, se mostraram insuficientes para julgar procedente a providência, por maioria de razão a mesma argumentação se mostra incapaz de determinar a suspensão de ato diverso e subsidiariamente requerido (Autorização de utilização).

Em face de tudo quanto se discorreu supra, não se reconhece que a decisão recorrida mereça censura, a qual se manterá, julgando-se improcedente o Recurso.

DECISÃO
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, negar provimento ao recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida.

Custas pelo Recorrente
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Porto, 16 de outubro de 2020
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Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa