Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00537/07.0BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/26/2015
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Fernanda Esteves
Descritores:RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA
GERÊNCIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I. A responsabilização subsidiária ao abrigo do artigo 24º, nº 1 da LGT exige a prova da gerência efectiva ou de facto, o efectivo exercício de funções de gerência, não se bastando com a mera titularidade do cargo, a gerência nominal ou de direito.
II. É sobre a administração tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os factos integradores do efectivo exercício da gerência.
III. Não há uma presunção legal que imponha a conclusão de que quem tem a qualidade de gerente de direito exerceu a gerência de facto.
IV. A circunstância de a Oponente ser uma das duas gerentes nomeadas, cujas assinaturas (conjuntas) eram necessárias para obrigar a sociedade devedora originária, não constitui, por si só, indício suficiente do exercício efectivo do cargo de gerente.
V. Se o juiz inferir a gerência de facto automática e exclusivamente com base na gerência de direito, está a reconduzir a presunção judicial a uma presunção legal.
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública e M...
Recorrido 1:M... e Fazenda Pública
Decisão:Concedido provimento ao recurso interposto por M...
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

1.1. M..., CF 1…, com domicílio na Rua…, Porto, interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto na parte em que julgou improcedente a oposição à execução fiscal nº 1910100701033409 e apensos que contra si foi revertida e que corre termos no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 1, inicialmente instaurada contra a sociedade “B... Agência de Publicidade, Lda.”, por dívidas de IVA dos anos de 1996 a 2001 e coimas fiscais.
A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

1.Na Lei Geral Tributária o legislador apenas se pronunciou expressamente quanto à produção de efeitos daquele diploma nada dizendo quanto à retroactividade da Lei.

2.- Para resolver esta questão fundamental temos que lançar mão do n.º2 do artigo 12º do Código Civil o qual encerra duas previsões e, consequentemente, duas estatuições.

3.- Ora, e salvo o devido respeito por opinião diversa, a recorrente entende que a LGT se aplica às situações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor, nos termos do n.º 2º 2ª parte, do artigo 12º do CC, e nesta medida tem eficácia retroactiva.

4. Isto porque, no caso concreto, a dívida tributária remonta a 1996 mas subsiste (dado tratar-se de um imposto periódico) - como se um único facto fosse - para além da entrada em vigor da Lei Nova (LGT).

5. Caberá à Fazenda Pública, quer às dívidas anteriores à entrada em vigor da LGT quer às posteriores, alegar e provar os pressupostos da culpa da Oponente «por o património da sociedade, garantia geral dos credores e nomeadamente do Estado, se ter tornado insuficiente para a satisfação das obrigações tributárias» - DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, Lisboa-1999,pp. 111 e 112.

6. Ao entender que ao caso sub iudice se aplicarão, consoante o facto gerador de responsabilidade, os diplomas legais (CPT e LGT) o MM Juiz a quo errou no julgamento da matéria de direito.

7º Para que a responsabilização dos gestores possa fazer-se, é necessário que estes tenham, "com efectivida­de, exercido funções no âmbito das quais se originou uma diminuição ilícita do património da sociedade" - RUI BARREIRA, A Responsabilidade dos Gestores de Sociedades por Dívidas Fiscais, in Fisco nº18, pág. 4.

8. Dito de outro modo, «o responsável subsidiário deve ter, culposamente, dissipado ou malbaratado o património social» - DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, ob.cit., pág. 112

9. Atendendo à ratio e à letra da lei verifica-se que foi intuito do legislador abranger no âmbito subjectivo da responsabilidade tributária todas as pessoas que exerçam funções de administração, mesmo que não sejam gestores de direito – dispõe o preceito que “ainda que somente de facto”.

10. Além disto, e apesar de se bastar com uma gerência “ainda que somente de facto”, o legislador definiu como aspecto decisivo, para a responsabilização, o exercício efectivo de funções de gerência ou administração.

11.“O exercício efectivo de funções de gerência ou administração traduz-se na prática, ainda que irregular, de qualquer acto pelo qual se manifeste o exercício de funções de gerência ou de administração e que vincule a sociedade perante terceiros (como por exemplo: contratação de trabalhadores, negociação de contratos de prestação dos serviços da Sociedade, negociação com investidores; procura de crédito para a Sociedade...)” Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: Processo n.º 005735, de 17 de Março de 1993; Processo n.º 0 18268, de 26 de Abril de 1995; Processo n.º 023350, de 24 de Março de 1999.

12.Cabendo à Fazenda Pública o ónus de demonstrar que o gerente de direito, contra quem reverteu a execução fiscal, exerceu de facto tais funções não poderia tal facto negativo ser dado como provado sustentado apenas na prova documental.

13.Resultam dos factos alegados, e da prova produzida em sede de audiência de julgamento que a Recorrente nunca exerceu, de facto, a gerência ou praticou actos de gestão da sociedade, originária devedora.

14.Do depoimento das testemunhas deveria ter sido dado como provado, salvo o devido respeito, que a Oponente nunca desempenhou as funções de gerente na sociedade, nem praticou actos de gestão societários ao não o fazer a MM Juíza a quo errou no julgamento da matéria de facto.

15.Considerando os factos tributários de 1996 a 1998, encontrava-se em vigor o CPT, que no seu artigo 34º estabelecia o prazo de 10 anos para prescrição da obrigação tributária, a contar do início do ano seguinte àquele em que tiver ocorrido o facto tributário.

16.Posteriormente, com a entrada em vigor em 01/01/1999, a LGT aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de Dezembro, veio disciplinar a mesma matéria reduzindo o prazo de prescrição para oito anos (v. o artigo 48º n.º 1 da LGT).

17.De acordo com o artigo 279º do CC, aplicável por força do artigo 5º-1 do referido DL n.º 398/98, a lei que estabelecer para qualquer efeito um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só começa a contar a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que segundo a lei antiga falte menos prazo se completar.

18.A Recorrente foi citada em 23.10.2006 pelo que, nos termos do art. 48º-3 LGT- “ A interrupção da prescrição relativamente ao devedor principal não produz efeito quanto ao responsável subsidiário se a citação deste, em processo de execução fiscal, for efectuada após o 5º anos posterior ao da liquidação.”

19.Desde 01.01.2001 até ao presente, decorreram mais de oito (8) anos, donde, o prazo prescricional já se completou quanto aos impostos de 1997 a 1999.”

20.Conforme disposto no artº.175, do Código de Procedimento e Processo Tributário, a prescrição é de conhecimento oficioso do Tribunal, razão pela qual, deveria o Tribunal “a quo” ter apreciado oficiosamente o decurso deste prazo e em consequência, mandar arquivar os presentes autos por prescrição. Não o fazendo, violou a mui douta sentença “a quo”, por erro de interpretação, os artºs.175, 204, nº.1, al. d), do Código de Procedimento e Processo Tributário, e artºs.48 e 49, da Lei Geral Tributária.

TERMOS EM QUE, DEVERÁ A DOUTA DECISÃO DO MERITÍSSIMO TRIBUNAL A QUO SER REVOGADA E, EM CONSEQUÊNCIA SER ACÇÃO JULGADA PROCEDENTE E DECLARADA EXTINTA A EXECUÇÃO REVERTIDA CONTRA AQUI RECORRENTE, COM O QUE SE FARÁ JUSTIÇA.

1.2. Também, a Fazenda Pública, inconformada com a parte da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou procedente a oposição à execução fiscal revertida contra a Oponente, dela veio interpor recurso, rematando com as seguintes conclusões:
A. A Fazenda Pública não se conforma com o julgamento que na sentença recorrida foi feito no âmbito do incidente de oposição à execução, na parte em que foi decidida parcialmente procedente, por entender que a sentença recorrida, nos termos em que foi proferida, padece de erro de julgamento de facto e de direito.
B. No que concerne ao erro de julgamento de direito, este manifesta-se nos princípios ou doutrina jurídica subjacentes ao entendimento de inconstitucionalidade material do art. 8º do RGIT quando interpretado com o sentido de que aí consagrar-se-ia uma responsabilização subsidiária pelas coimas, que se efectiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora, sufragado na jurisprudência do STA a que adere, a qual perfilhou.
C. Este entendimento mostra-se ultrapassado por decisão do Plenário do Tribunal Constitucional ulteriormente proferida, vertida no acórdão nº 437/2011 de 03.10.2011, proc. nº 206/10, e seguida em jurisprudência posterior do mesmo Tribunal, que decidiu não julgar inconstitucional o art. 8º, nº1, al.s a) e b), do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal contra gerentes ou administradores da sociedade devedora, já acolhida pelo STA em acórdãos exaradas ainda antes da sentença recorrida
D. Por outro lado, no que concerne ao julgamento de ilegitimidade da oponente em relação às dívidas de IVA de 1999 e 2000, sustentado na suposta falta de prova da culpa da oponente na insuficiência do património societário para satisfação dos débitos tributários indicados,
E. este mostra-se afectado de erro de julgamento de facto, na medida em que a sentença recorrida, estabelecendo que a oponente e a outra sócia, eram as únicas sócias e gerentes da sociedade executada originária, obrigando-se a sociedade pela assinatura conjunta das duas sócias - gerentes, indicador de que a sociedade só poderia ter subsistido por intermédio do exercício efectivo da gerência pela oponente,
F. decide assim que a oponente exerceu a gerência da sociedade, e, não tendo definido que esse exercício efectivo tivesse sido exercido por um período definido ou mesmo que tivesse terminado, foi desde sempre gerente efectiva, e que continuou a sê-lo nos momentos temporais relevantes para a concretização da sua responsabilidade subsidiária tal como foi feita.
G. Esta base factual determina, num ponto de vista objectivo, coerente e consequente, que essa gerência tem de ser reconhecida até ao término do prazo legal de pagamento ou entrega das dívidas revertidas relativas ao IVA de 1999 e 2000, preenchendo os requisitos postos pela al. b) do nº1 do art. 24º da LGT para efectivação da responsabilidade subsidiária.
H. O enquadramento legal da al.a) do nº1 do art. 24º da LGT, apesar de sugerido na sentença recorrida, não vem minimamente justificado, limitando-se a dita sentença a expender que “o art. 24º da LGT impõe à Administração Fiscal o ónus de prova da referida culpa” (na insuficiência patrimonial da sociedade) e que “é manifesto que quanto a este pressuposto a Fazenda Pública nada conseguiu provar, aliás nem sequer alegou a culpa da oponente”.
I. Ao invés, a subsunção à al. b) do nº1 do art. 24º da LGT para efectivação da responsabilidade subsidiária, em lugar da al.a) do mesmo normativo, para a qual a sentença aponta, é a ilação necessária a retirar dos termos em que foi promovida a reversão e da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida.
J. Os indicados erros de julgamento de direito e de facto afectam a valia intrínseca da decisão recorrida, tendo esta, salvo o respeito devido, infringido o n ° 3 do artigo 659° do CPC, aplicável por remissão do art. 2º, al. e), do CPPT.
Nestes termos e nos demais do Direito aplicável requer-se a V.ªs Exª.s se dignem conceder provimento ao recurso, por provado e procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida, substituindo-a por Acórdão que declare totalmente improcedente a oposição.


Não foram apresentadas contra-alegações.

A Exma. Procuradora - Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de (a) serem declaradas prescritas as dívida de IVA dos anos de 1996, 1997 e 1998; (b) dever ser mantida a sentença no que tange à inadmissibilidade da reversão por dívidas de coimas fiscais; (c) dever ser revogada a sentença na parte em que julgou procedente a oposição referente às dívidas de IVA dos anos de 1999 a 2001.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir, já que a tal nada obsta.

Objecto do recurso - Questões a apreciar e decidir:

As questões que importa apreciar e decidir, suscitadas e delimitadas pelas alegações dos recursos e respectivas conclusões [cf. artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nº s 3 e 4 e 690º, nº 1 todos do CPC), “ex vi” artigo 2º, alínea e), e artigo 281º do CPPT], são as de saber: (i) se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao concluir que a Oponente exerceu a gerência de facto da devedora originária; (ii) se a sentença errou quanto ao requisito da culpa pela insuficiência do património societário para satisfação das dívida exequendas; (iii) do erro de julgamento quanto à inconstitucionalidade da reversão das coimas; (iv) da prescrição da dívida relativa aos anos de 1996 a 1998.

2. Fundamentação

2.1. Matéria de Facto

2.1.1. É a seguinte a matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida e que damos por reproduzida ipsis verbis:
Factos Provados:

A) Contra a sociedade “B... Agência do Publicidade, Lda.”, N.I.F. 5…, com sede na Rua…, em Vila Nova de Gaia, foi instaurado no Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia, a execução fiscal nº 1910100701033409 e aps., para cobrança coerciva de dívidas de IVA relativas aos anos 1996 a 2001 e Coimas Fiscais relativas aos anos 2000 a 2004, cf. informação de fls. 62 e Certidão da Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia de fls. 30 e 31 dos autos.

B) Desde a constituição da sociedade executada originária, que se encontravam nomeadas como únicas sócias e gerentes da sociedade: Maria… e M..., cf. Certidão da Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia de fls. 30 e 31 dos autos.

C) A sociedade obrigava-se mediante a assinatura conjuntas das duas sócias gerentes, cf. Certidão da Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia de fls. 30 e 31 dos autos.

D) Em 18/01/2007, foi a oponente foi citada na qualidade de responsável subsidiária da sociedade executada originária com o fundamento “Inexistência de bens susceptíveis de penhora da executada originária e responsabilidade subsidiária nos períodos referidos na lista anexa”, cf. fls. 44 e 45 dos autos.

E) Em 02/02/2007, a oponente apresentou a presente oposição o Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 1, cf. fl. 6 dos autos,

F) A oponente sempre foi trabalhadora da P…, com horário integral, e nunca teve conhecimentos na área da publicidade, cf. depoimento de testemunhas.

IV. FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem outros factos provados ou não provados nos autos.

O Tribunal formou a sua convicção com base nos documentos indicados relativamente a cada um dos factos os quais não foram impugnados, bem como, no depoimento das testemunhas inquiridas. No entanto, o tribunal pouco aproveitou dos depoimentos das testemunhas arroladas pela oponente uma vez que estas não demonstraram, com a necessária certeza, qual a era exactamente a relação da oponente com a sociedade executaria originária.

A instauração da execução contra a sociedade, posterior reversão e a altura a que se reportam as contribuições, constituem factos de conhecimento oficioso do Tribunal, dispensando a respectiva alegação, nos termos do art. 514º C.P.C.

2.2. O direito

Na execução fiscal revertida contra a Oponente está em causa a cobrança coerciva de dívidas de coimas fiscais e IVA (relativo aos anos de 1996 a 2001).

Quanto à dívida de coimas­, o tribunal recorrido considerou, invocando jurisprudência do STA, que a reversão feita em execução fiscal, nos termos do artigo 8º do RGIT, de dívidas de coimas contra os gerentes e administradores dos executados originários é inconstitucional, por violação dos princípios da intransmissibilidade das penas, presunção de inocência e da violação dos direitos de audiência e defesa.

Quanto às dívidas de impostos, a sentença recorrida considerou demonstrado que a Oponente exercia a gerência de facto da devedora originária e que “não logrou ilidir a presunção de culpa resultante do art. 13º do CPT” e quanto às dívidas referentes aos anos de 1999, 2000 e 2001, “a Fazenda Pública nada conseguiu provar, aliás, nem sequer alegou a culpa da oponente” e concluiu assim que a oponente “é parte legítima para a reversão relativamente às dívidas de IVA dos anos de 1996, 1997 e 1998”.

Tendo sido interpostos dois recursos da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (um pela Fazenda Pública e outro pela Oponente), apreciaremos em primeiro lugar o recurso interposto pela Oponente, uma vez que questiona o acerto da sentença recorrida quanto ao exercício da gerência de facto da devedora originária pela Oponente e que, em caso de procedência, acarretará a prejudicialidade do conhecimento das demais questões, incluindo o recurso da Fazenda Pública (na parte atinente à questão da culpa, a qual se coloca a jusante do exercício da gerência de facto da devedora originária, e da inconstitucionalidade das coimas).

2.2.1. A Recorrente insurge-se contra a sentença recorrida, desde logo, na parte em que esta concluiu que a Oponente foi gerente de facto da sociedade executada.

A este propósito, alega a Recorrente que “cabendo à Fazenda Pública o ónus de demonstrar que o gerente de direito, contra quem reverteu a execução fiscal, exerceu de facto tais funções não poderia tal facto negativo ser dado como provado sustentado apenas na prova documental” [conclusão 12)] e que resulta dos factos alegados e da prova produzida em sede de audiência de julgamento que a Recorrente nunca exerceu, de facto, a gerência ou praticou actos de gestão da sociedade, devedora originária (conclusão 13 e 14).

Vejamos.

A execução fiscal contra a qual se dirige a presente oposição tem em vista a cobrança coerciva de dívidas que têm na sua origem liquidações de IVA relativas aos anos de 1996 a 2001 e coimas fiscais.

Sabido que o regime da responsabilidade subsidiária aplicável é o vigente no momento em que se verifica o facto gerador da responsabilidade (artigo 12º do Código Civil), dúvidas não restam que a responsabilidade dos administradores ou gerentes de sociedades de responsabilidade limitada pela dívida relativa aos anos de 1996, 1997 e 1998 é aferida face ao regime previsto no artigo 13º do Código de Processo Tributário (CPT) e a relativa às dívidas de 1999 a 2001 é aferida nos termos definidos no artigo 24º da Lei Geral Tributária (LGT).

De acordo com o artigo 13º do CPT: “Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração nas empresas e sociedades de responsabilidade limitada são subsidiariamente responsáveis em relação àquelas e solidariamente entre si por todas as contribuições e impostos relativos ao período do exercício do seu cargo, salvo se provarem que não foi por culpa sua que o património da empresa ou sociedade de responsabilidade limitada se tornou insuficiente para a satisfação dos créditos fiscais”.

Por seu turno, estabelece o artigo 24º da LGT:

1. Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:

a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;

b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.

(…) ”.

No mesmo sentido dispõe o artigo 8º do RGIT, quanto à responsabilidade dos responsáveis subsidiários por dívidas provenientes de coimas fiscais.

Destes normativos legais resulta, desde logo, que a responsabilidade subsidiária aí prevista não exige sequer a gerência nominal ou de direito (“que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração”) e ainda que a responsabilização subsidiária exige a prova da gerência efectiva ou de facto, o efectivo exercício de funções de gerência, não se bastando com a mera titularidade do cargo, a gerência nominal ou de direito.

Ora, é sobre a administração tributária, enquanto exequente e como titular do direito de reversão, que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos que lhe permitem reverter a execução fiscal contra o gerente da devedora originária, designadamente, os factos integradores do efectivo exercício da gerência de facto [de acordo com a regra geral de quem invoca um direito tem que provar os respectivos factos constitutivos - artigo 342º, nº 1, do CC e artigo 74º, nº 1, da LGT]. Com efeito, não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efectivo exercício da função e que faça inverter o referido ónus que recai sobre a administração tributária [a inscrição no registo comercial da nomeação de alguém como gerente apenas resulta a presunção legal (cf. artigo 11º do Código do Registo Comercial) de que é gerente de direito, não de que exerce efectivas funções de gerência] e só quem goza de uma presunção legal, escusa de provar o facto a que ela conduz (artigo 350º, nº 1, do CC).

Como se refere no acórdão do STA (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) de 28/2/2007, Recurso 1132/06, a prova da gerência de direito não permite presumir, nem legal nem judicialmente, a gerência de facto, impondo-se ao exequente fazer a respectiva alegação e subsequente prova.

Porém, embora o juízo quanto ao efectivo exercício de funções de gerência “não pode [o juiz] retirá-lo mecanicamente, do facto de o revertido ter sido nomeado gerente, na falta de presunção legal” [citado acórdão do STA], pode suceder que o julgador, caso a caso e com base no conjunto de prova produzida, com base nas regras da experiência e em juízos de probabilidade infira a gerência efectiva de outros factos [acórdão do TCAN de 27/3/2008, Processo 00090/03]. Ou seja, o facto de não existir uma presunção legal sobre esta matéria, não tem como corolário que o Tribunal com poderes para fixar a matéria de facto, no exercício dos seus poderes de cognição nessa área, não possa utilizar as presunções judiciais que entender, com base nas regras da experiência comum [acórdão do STA de 10/12/2008, Processo 0861/08].

No caso, embora tenha considerado (bem) que o ónus da prova do exercício da gerência de facto pela Oponente recai sobre a Fazenda Pública, a sentença recorrida considerou que os elementos dos autos permitem concluir que a Oponente foi gerente de facto da sociedade originária devedora.

A este respeito, na sentença recorrida foi considerado o seguinte: “ (…) dos factos constantes de documentos juntos pela Fazenda Pública e levados ao probatório, resulta demonstrado que a oponente, e Maria…, eram as únicas sócias e gerentes da sociedade originária com intervenção de ambas, com as respectivas assinaturas para obrigar a sociedade.

A única prova trazida pela oponente foi o testemunho de uma amiga e do seu filho, que não demonstraram com a certeza, segurança e exactidão necessárias, que tipo de relação tinha a oponente a sociedade aqui em causa, de modo a afastar a veracidade da prova documental.”

Por conseguinte, da circunstância de ser necessária a assinatura da Recorrente (uma vez que são apenas duas gerentes e uma delas é a Recorrente) para obrigar a executada originária, extraiu o Tribunal a quo a conclusão de que esta exerceu de facto as funções de gerência.

Com o devido respeito, não podemos concordar com o assim decidido.

No caso em apreço, não foi dado como provado qualquer facto que indicie o exercício da gerência de facto da sociedade executada por parte da Oponente.

É certo que do probatório consta que a Oponente é sócia da sociedade executada e, juntamente com a outra sócia, foi nomeada, logo na data da constituição, gerente daquela e que para obrigar a sociedade eram necessárias as assinaturas das duas gerentes [cf. alíneas B) e F) do probatório].

Mas se, por um lado, como vimos, da gerência de direito não é possível extrair a gerência de facto, por outro lado, o facto de a sociedade se obrigar com a assinatura da Oponente, embora possa constituir um indício no sentido e que esta geria efectivamente a sociedade, por si só, não permite concluir que, no período aqui em causa, tenha praticado algum acto em representação daquela [a chamada gerência de facto de uma sociedade comercial consistirá no efectivo exercício das funções que lhe são inerente e que passam, nomeadamente, pelas relações com os fornecedores, com os clientes, com as instituições de crédito e com os trabalhadores, tudo em nome, no interesse e em representação dessa sociedade. Para que se verifique a gerência de facto é indispensável que o gerente use, efectivamente, dos respectivos poderes, que seja um órgão actuante da sociedade, tomando as deliberações consentidas pelo facto, administrando e representando a empresa, realizando negócios e exteriorizando a vontade social perante terceiros - nestes termos, Rúben Anjos de Carvalho - Francisco Rodrigues Pardal, Código de Processo das Contribuições e Impostos, Anotado e Comentado, 2ª Edição, Coimbra, 1969, pág. 139, citado, entre outros, nos acórdãos do TCAN de 18/11/2010 e 20/12/2011, Processos 00286/07 e 00639/04, respectivamente].

Como se escreveu, a este propósito, no acórdão do TCAN de 14/1/2010, Processo 00787/06 e cujo entendimento sufragamos: “ (…) A admitir-se o contrário, estaria, afinal, a admitir-se a existência de uma presunção de “funcionamento automático”: demonstrada que ficasse a gerência de direito (facto conhecido), dela se extraia o exercício de facto da gerência. Ora, como deixámos já dito, na inexistência de presunção legal que permita que tal inferência se faça automaticamente (sem prejuízo da possibilidade de prova do contrário, nos termos previsto no n.º 2 do art. 350.º do CC), a mesma só pode fazer-se quando, face à prova de que o revertido tinha a qualidade de gerente de direito e demais circunstâncias do caso, nomeadamente as posições assumida no processo e provas produzidas ou não pelo revertido e pela Fazenda Pública, o julgador entenda que nas circunstâncias do caso há uma probabilidade forte (certeza jurídica) de ter ocorrido o exercício da gerência e que inexistem razões para duvidar desse exercício. (….) Ora, o facto de o Oponente constar do contrato social como gerente de direito da sociedade originária devedora e, mais do que isso, ser aquele cuja assinatura era necessária e bastante para obrigar a sociedade, nada permite concluir quanto à prática efectiva de qualquer acto em representação da sociedade. Aliás, o contrato social pode não ter sido, necessariamente, cumprido: é bem possível que a sociedade tenha prosseguido a sua actividade à margem ou mesmo sem observância do pacto social.” (sublinhado nosso).

Acresce, ainda, que a Fazenda Pública (a quem competia o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente) nada alegou ou provou quanto ao efectivo exercício da gerência de facto por parte da Recorrente, pelo que sempre contra si teria de ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência.

Não tendo sido feita qualquer prova de que a Oponente/Recorrente, para além de deter a qualidade de gerente de direito da executada originária, também a exerceu de facto, praticando os actos próprios e típicos da gerência no período aqui em causa, não pode ser responsabilizada, a título subsidiário, pelo pagamento das dívidas exequendas, sendo, por isso, parte ilegítima na execução fiscal.

Deste modo, ao concluir pela legitimidade da Recorrente para a execução, incorreu a sentença recorrida em erro de julgamento e, como tal, não pode manter-se.

Procede, pois, este fundamento do recurso da Oponente.

E com a procedência deste fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nos dois recursos.

3. Decisão

Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:

a) Conceder provimento ao recurso interposto pela Oponente;

b) Revogar a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente a oposição;

c) Julgar a oposição totalmente procedente e, em consequência, extinta a execução fiscal revertida contra a Oponente.

d) Não conhecer do recurso interposto pela Fazenda Pública.

Custas pela Fazenda Pública, apenas na 1ª instância.

Porto, 26 de Fevereiro de 2014

Ass. Fernanda Esteves

Ass. Ana Patrocínio

Ass. Ana Paula Santos