Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00519/17.4BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/28/2019
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:FUNDO GARANTIA SALARIAL; DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE; INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Sumário:
1 – De acordo com a declaração de inconstitucionalidade em fiscalização concreta, entendeu o Tribunal Constitucional, designadamente no seu Acórdão nº 328/2018, de 27 de Junho de 2018, no âmbito do processo n.º 555/2017, que o artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, que define que o pagamento dos créditos laborais a cargo do FGS segundo o qual o mesmo deverá ser requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, não poderá ser interpretado no sentido de tal prazo não poder comportar a possibilidade de qualquer interrupção ou suspensão.
2 - Perante a referida decisão do Tribunal Constitucional que em fiscalização concreta declarou a inconstitucionalidade da indicada interpretação do Artº 2º nº 8 do DL n.º 59/2015, tal determinou a verificação de uma lacuna em concreto, que correspondentemente determinará a necessidade de, também em concreto, integrar a lacuna assim gerada.
3 - Perante a verificada lacuna, cabe aos tribunais, nomeadamente, criar, com alguma discricionariedade, uma norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), o que envolve para o caso concreto, a “construção” de uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica.
4 – Na integração da lacuna deverá ser respeitada a intenção do legislador constante do Artº 2º nº 8 do DL nº 59/2015, de limitar a um ano o prazo dentro do qual deverá ser requerido ao FGS o pagamento dos créditos reclamados, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
5 - Importa assim colmatar a lacuna que em concreto resultou da declaração de Inconstitucionalidade do TC, aceitando o prazo de caducidade de um ano criado pelo legislador, mas criando “norma (...) dentro do espirito do sistema” conformando-a com o regime constitucional vigente, restrita ao caso concreto, permissiva da suspensão do referido prazo, em decorrência da reclamação da créditos por parte do interessado no processo judicial de insolvência, até à data em que a insolvência venha a ser, definitivamente, decretada.
6 - Assim, mostra-se legítimo, perante a referida inconstitucionalidade, declarada em concreto, da interpretação adotada pelo FGS do nº 8 do Artº 2º do DL nº 59/2015, que tornou o referido normativo inoperante, que se lhe restaure a sua operacionalidade, com recurso à interpretação que o próprio legislador, por via do novel nº 9, veio a introduzir através da Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro.
Efetivamente legislador acolheu as críticas que o Tribunal Constitucional havia apontado ao nº 8 do Artº 2º do DL nº 59/2015, assegurando a suspensão do referido prazo de um ano para a apresentação da Ação, até 30 dias após o trânsito em julgado, designadamente, da decisão que venha a ser proferida na Ação de Insolvência.
7 - A interpretação adotada permite pois dar resposta ao facto do TC ter entendido, em concreto, que o artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, não poderia ser interpretado no sentido de impedir que o prazo de um ano para a reclamação dos créditos laborais junto do FGS fosse insuscetível de ser interrompido ou suspenso, interpretação que se adequa ao “espirito do sistema”, comprovado no facto do próprio legislador ter criado, ainda que ex nunc, norma exatamente nesse sentido. *
* Sumário elaborado pelo relator
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no qual, a final, se pronunciou no sentido da procedência do recurso
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Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
MBOR, devidamente identificada nos autos, no âmbito de Ação Administrativa que intentou contra o Fundo de Garantia Salarial, tendente à impugnação do Despacho do Presidente do Conselho de Gestão do FGS que indeferiu o pedido que havia formulado, no sentido de lhe serem pagos os créditos laborais que entendia ter direito, inconformado com a decisão proferida no TAF de Aveiro que em 31 de novembro de 2018 julgou improcedente a Ação, veio recorrer jurisdicionalmente para esta instância em 9 de janeiro de 2019, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. O art° 1° nº 1 al. a) do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, doravante aqui designado por NRFGS, preceitua que o Fundo assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja proferida sentença de declaração de insolvência do empregador.
2. A interpretação da citada norma no sentido de que a declaração de insolvência não é requisito material para que o trabalhador possa exercer o seu direito não tem o mínimo de correspondência com a letra da lei.
3. O sentido apreensível por qualquer destinatário do comando da norma é o de que a declaração de insolvência constitui requisito material necessário para o exercício do direito de exigir do FGS o pagamento dos créditos garantidos.
4. Qualquer trabalhador perante a leitura da norma fica na convicção de que o seu direito só pode ser exercido desde que a sua entidade empregadora seja declarada em estado de insolvência, e por tal, jamais admitirá nessa circunstância, que o seu direito possa ser extinto sem que estejam verificados os requisitos legais para o seu exercício.
5. Por violação do princípio da efetivação e garantia dos direitos fundamentais previstos, respetivamente, nos artºs 2° e 59° nº 3 do Constituição da República Portuguesa, a norma constante do art° 1° nº 1 al. a) do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial aprovado pelo Dec-Lei nº 59/2015 de 21 de Abril é materialmente inconstitucional quando, na unidade do diploma em que está inserida, é interpretada no sentido de que o pedido de pagamento dos créditos garantidos ao Fundo de Garantia Salarial não depende da declaração de insolvência da entidade empregadora.
6. Na data em que entrou em vigor o NRFGS o direito de a Autor reclamar o pagamento dos seus créditos garantidos ao abrigo do Fundo de Garantia Salarial estava consolidado na sua esfera jurídica a coberto de qualquer prazo prescritivo ou preclusivo.
7. O art° 3° nº 1 do Dec-Lei nº 59/2015 ao retroagir os efeitos do NRFGS a relações jurídicas já constituídas no regime legal anterior afronta a certeza e proteção das relações jurídicas constituídas e frustra expectativas legitimamente criadas, sendo por isso materialmente inconstitucional por violar o disposto no art° 2° da Constituição da República Portuguesa,
8. Não sendo o prazo de caducidade previsto no nº 8 do art° 2° do NRFGS suscetível de suspensão ou interrupção, tal como entendeu da douta sentença recorrida, o seu decurso pode ocorrer sem que o trabalhador possa exercer o seu direito perante o Fundo de Garantia Salarial por falta da verificação dos requisitos materiais e formais previstos nos artºs 1° nº al a) e 5° nº 2 al. a ) do NRJFGS.
9. A norma contida no artigo 2.°, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial instituído pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão; e, consequentemente,
Termos porque ao presente recurso deve ser dado provimento, revogando-se por consequência a douta decisão recorrida, assim se fazendo inteira e merecida Justiça.”
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O Recorrido/FGS não veio apresentar contra-alegações de Recurso.
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O Recurso apresentado veio a ser admitido por Despacho de 11 de abril de 2019.
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O Ministério Público, junto deste Tribunal, em Parecer emitido em 20 de maio de 2019, veio a emitir Parecer em 23 de maio de 2019, no qual, a final, se pronunciou no sentido da procedência do Recurso.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir, designadamente, as invocadas inconstitucionalidade de normas do DL 59/2015, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.
III – Fundamentação de Facto
Consta da decisão proferida a seguinte factualidade:
1. A autora foi admitida ao serviço de " TN & R, Lda." em 1 de fevereiro de 1987;
(Facto Provado por acordo e por documento a fls 67 e segs do PA – paginação eletrónica)
2. A 5 de janeiro de 2015 a autora comunicou a " TN & R, Lda." a cessação do seu contrato de trabalho por falta de pagamento de remunerações;
(Facto Provado por documento a fls 67 e segs do PA – paginação eletrónica)
3. A 26 de setembro de 2016 é proferido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto mantém a decisão de primeira instância quanto à declaração de insolvência de " TN & R, Lda.";
(Facto Provado por documento a fls 67 e segs do PA – paginação eletrónica)
4. A 21 de outubro de 2016 MBOR requer ao Fundo de Garantia Salarial pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, nos termos seguintes:
[…]
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
(Facto Provado por documento, a fls 1 e segs dos autos – paginação eletrónica)
5. Em 14 de fevereiro de 2017 é subscrito documento timbrado de "Unidade de Apoio à Direção. Núcleo de Assuntos Jurídicos e Contencioso. Instituto de Segurança Social, IP", dirigido a MBOR, onde consta em especial:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
(Facto Provado por documento, a fls 1 e segs dos autos – paginação eletrónica)
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IV – Do Direito
A Autora intentou a presente ação administrativa contra o “Fundo de Garantia Salarial” invocando a nulidade do despacho de 24.01.2017, que indeferiu o seu pedido de pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho celebrado com “TN & R, Lda.”, com o fundamento de que o requerimento da A. não foi apresentado dentro do prazo de 1 ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, nos termos do nº 8 do art. 2º do DL 59/2015, de 21.04, pedindo a sua condenação ao pagamento créditos descriminados no requerimento indeferido.
No que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“(...)
De harmonia com o disposto no artigo 2.,º n.º 8 do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial (NRFGS), aprovado pelo DL. n.º 59/2015, de 21 de Abril, o Fundo de Garantia Salarial só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Ora, este prazo previsto no n.º 8 do artigo 2.º do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial (NRFGS), aprovado pelo DL. n.º 59/2015, de 21 de Abril, cuja entrada em vigor ocorreu em 04-04-2015, é um prazo de caducidade.
Sobre o tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas dispõe o artigo 298.º do Código Civil o seguinte: "… 1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição. 2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição…".
Portanto, o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS estabelece um prazo para o trabalhador pedir o pagamento de créditos laborais ao Fundo de Garantia Salarial, sem dizer expressamente que se trata de prazo prescricional (artigo 298º, n.º 2 do CC), pelo que se a lei nada refere acerca da natureza daquele prazo, forçoso é concluir que se trata de um prazo de caducidade e não de prescrição.
O prazo de caducidade é, por fim, um prazo prefixo que, pressupondo o interesse na rápida definição do direito, não se compadece com dilações e, por isso, não comporta a paralisação do direito. Assim, por determinação legal expressa, exceto nos casos em que a lei o determine, os prazos de caducidade não se suspendem nem se interrompem [artigo 328.º do CC].
Na caducidade, o prazo visa preestabelecer o lapso de tempo dentro do qual se terá de exercer o direito, por imposição da lei ou vontade negocial. O prazo, na caducidade, é condição de admissibilidade e procedibilidade, por ser elemento constitutivo do direito.
Por isso, considerando que o prazo do artigo 2.º/8 do DL nº 59/2015, de 21 de abril começa a correr a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, em conformidade com o disposto no artigo 329.º do CC, entendendo-se que o início da contagem daquele prazo, de caducidade, vem expressamente fixado na letra da lei e corresponde ao momento a partir do qual a autora pode pedir ao Fundo o pagamento dos créditos laborais em dívida, pelo que o início da sua contagem não depende, como pretende o autor, da existência de sentença que declare a insolvência do empregador.
Em síntese: se a lei não fixar outra data, nos casos em que a lei se limita a fixar o prazo da caducidade, sem fixar a data a partir do qual se conta, começa a correr a partir do momento em que puder ser exercido [artigo 329º CC].
O decurso do prazo de caducidade provoca a extinção ou a perda da prerrogativa de exercer o direito. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo [artigo 331º, nº 1 do CC]. Pelo que, a única forma de evitar a caducidade é praticar, dentro do prazo correspondente, o ato que tenha efeito impeditivo.
Pois bem, a interpretação feita dos citados normativos nacionais está em consonância com as normas comunitárias, mormente com a Diretiva nº 2008/94/CE, que admite [à semelhança da Diretiva n.º 80/987/CEE, do Conselho, de 20 de Outubro, alterada pela Diretiva n.º 2002/74/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro] que os Estados-Membros possam limitar a obrigação de pagamento das instituições de garantia; devendo contudo, quando fizerem uso dessa faculdade, determinar a duração do período que dá lugar ao pagamento dos créditos em dívida pela instituição de garantia, duração não pode ser inferior ao período relativo à remuneração dos três últimos meses da relação de trabalho anterior e/ou posterior a uma data que seja fixada pelos Estados-Membros, podendo ser calculado este período mínimo de três meses com base num período de referência cuja duração não pode ser inferior a seis meses (cfr. artigo 4º).
Relembre-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia, no seu acórdão de 28-11-2013, Proc. C-309/12 considerou, em sede de reenvio prejudicial, que a Diretiva 80/987/CEE do Conselho, de 20 de outubro de 1980, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador, conforme alterada pela Diretiva 2002/74/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que não garante os créditos salariais vencidos mais de seis meses antes da propositura da ação de insolvência do empregador, mesmo quando os trabalhadores tenham proposto, antes do início desse período, uma ação judicial contra o seu empregador, com vista à fixação do valor desses créditos e à sua cobrança coerciva [disponível in,
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=fundo%2Bgarantia%2Bsalarial&docid=144986&pageIndex=0&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=393942#ctx1].
Pois bem, no caso, o prazo do artigo 2.º/8 do DL nº 59/2015, de acordo com o artigo 329º do CC, começa a correr a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Dito isto, está provado que o contrato de trabalho do autor cessou a 5 de janeiro de 2015 (Facto Provado 2.), podendo requerer ao FGS o pagamento de créditos laborais até 6 de janeiro de 2016, mas está provado que o autor requereu o pagamento dos créditos laborais a que julga ter direito em 21 de outubro de 2016 (Facto Provado 4.).
Facilmente se compreende que não assiste razão ao autor.
Importa agora analisar e decidir o suscitado.
Atenta a matéria de facto fixada, e a prova disponível, de modo a permitir uma mais eficaz visualização daquilo que aqui está em causa, infra se esquematizará cronologicamente a principal factualidade aqui relevante:
a) O Contrato Laboral do Trabalhador foi resolvido em 5 de janeiro de 2015;
b) Em 10.02.2015 foi requerida a Declaração de Insolvência da Empregadora;
c) A Insolvência foi declarada em 26.09.2016;
d) Estando pendente o Processo de insolvência, o prazo de um ano para requerer rendimentos junto do FGS esteve suspenso até 30 dias após à declaração de insolvência;
e) Em 21 de outubro de 2016 o trabalhador reclamou os créditos junto do FGS;
f) O Requerido foi recusado pelo FGS por despacho de 24/01/2017, notificado por ofício de 14/02/2017
g) A presente Ação foi intentada em 15/05/2017;
Vejamos:
É certo que o Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04, atual lei reguladora do Fundo de Garantia Salarial, fixa no artigo 2.º, nº 8, um prazo de caducidade de um ano, o qual, por não ter sido excecionado (Artº 328º CC), se consubstanciaria, em princípio, num prazo insuscetível de suspensão ou interrupção.
Determina, por outro lado, o artigo 3º do mesmo Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04 que ficam sujeitos ao novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado em anexo ao diploma, os requerimentos apresentados após a sua entrada em vigor.
Como se viu, o requerimento do Autor junto do FGS foi apresentado em 21 de outubro de 2016, ou seja, depois de 4 de Maio de 2015, data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04 – artigo 5º do mesmo diploma legal -, pelo que, por força do artigo 3º do mesmo, ser-lhe-á aplicável o prazo de caducidade do novo diploma legal.
No entanto, já a anterior legislação regulamentadora do Fundo de Garantia Salarial estabelecia requisitos temporais para apresentação do requerimento junto do Fundo de Garantia Salarial, dispondo o artigo 319.º da Lei 35/2004, de 29.07, no seu n.º 3, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respetiva prescrição.
A prescrição prevista no artigo 337º nº 1 do anexo da Lei nº 7/2009, de 12.02, que aprovou a revisão do Código do Trabalho dispõe:
“O crédito do empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”
O contrato de trabalho do Autor cessou como se viu em 5 de janeiro de 2015, pelo que prescreveria, se não se verificasse interrupção, seguida de alteração do prazo, em 06/01/2015.
No entanto, a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito – artigo 323º, nº 1, do Código Civil.
A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo seguinte – artigo 326º nº 1 do Código Civil.
A nova prescrição está sujeita ao prazo de prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311º, nos termos do disposto no artigo 326º, nº 2, ambos do Código Civil.
Estabelece o artigo 311º, nº 1, do Código Civil que o direito para cuja prescrição, ainda que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença transitada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.
Mostrando-se provado ter sido requerida a Insolvência da Empregadora em 10.02.2015, é manifesto que se mostrava suspenso o prazo de prescrição, o que determinou que a mesma só viria a ocorrer passados vinte anos, como resulta do artigo 311º nº 1, conjugado com o artigo 309º, ambos do Código Civil.
É assim notório que à face da lei antiga faltava muito tempo para ocorrer a prescrição dos créditos cujo pagamento é requerido ao Réu e, consequentemente, sendo o prazo de caducidade da reclamação desses direitos ao Fundo de Garantia Salarial, de três meses antes da respetiva prescrição, faltariam muitos anos para ocorrer essa caducidade.
Em qualquer caso, a nova lei estabelece um prazo mais curto de caducidade – um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho - artigo 2.º nº 8 do Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04.
Perante um prazo mais longo de caducidade ao abrigo da lei antiga e um prazo mais curto de caducidade ao abrigo da nova lei, impõe-se o recurso ao artigo 297º para determinar a contagem desse prazo.
Determina este artigo que a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
Já vimos que segundo o artigo 319º nº 3 da Lei nº 35/2004, de 29.07, faltavam vários anos para a caducidade do direito de reclamar o pagamento dos créditos dos Autores e que segundo o artigo 2º, nº 8, do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21.04, o prazo de um ano de caducidade só começou a contar a partir da entrada em vigor desse diploma legal – 4 de Maio de 2015, caducando em 4 de Maio de 2016.
Tendo o requerimento para pagamento dos créditos laborais dado entrada no FGS em 21 de outubro de 2016, aparentemente ter-se-ia verificado já a caducidade do direito do Autor, uma vez que o pedido não estaria dependente da declaração definitiva da insolvência da Sociedade.
Em qualquer caso, importa agora apreciar a suscitada questão à luz, de entre outros no mesmo sentido, do Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 328/2018, de 27 de Junho de 2018, no âmbito do processo n.º 555/2017, que veio “Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão.”
Aqui chegados, importa escalpelizar o expendido no referido Acórdão do Tribunal Constitucional.
Em bom rigor, o TC não põe em causa a existência do prazo de um ano “para requerer o pagamento dos créditos laborais”, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, mas tão só o facto desse prazo ser “insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão.”
Mais se afirma no mesmo Acórdão do TC que “Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa).”
Sintomaticamente afirma-se ainda no identificado Acórdão do Tribunal Constitucional que “(...) não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.”
O sinal dado pelo TC vai pois singelamente no sentido de, na situação em apreciação, não dever ser fixado um prazo sem que o mesmo comporte potencialmente “qualquer suspensão ou interrupção”.
O importante é que aquando da fixação de um qualquer prazo, seja o mesmo estabelecido antecipadamente, com certeza e sem ambiguidades. Como se afirmou no nº 39 do Acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2002, Marks & Spencer (C-62/00, Colect., p. I-6325), “para cumprir a sua função de garantia da segurança jurídica, um prazo de prescrição deve ser fixado antecipadamente. Uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza” (acórdão de 24 de Março de 2009, Danske Slagterier, C-445/06).
Aqui chegados, e perante o referido acórdão do Tribunal Constitucional, importa verificar se ocorrerão causas interruptivas e suspensivas da caducidade do art.º 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril.
Efetivamente, importará verificar se deverá ser considerada a existência de causas interruptivas e suspensivas da caducidade do art.º 2.º, n.º 8 do Decreto-lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, designadamente o tempo que mediou entre a cessação do contrato de trabalho e a existência de um plano de insolvência, até à data em que a insolvência veio a ser, definitivamente, decretada e consequentemente declarar que o prazo de 1 (um) ano, para requerer o fundo, foi cumprido pelo recorrente.
Em decorrência da referenciada inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional, em termos de fiscalização concreta, cujo teor se acompanhará nos mesmos termos e condições, enquanto desaplicação de norma por inconstitucionalidade, importa encontrar solução interpretativa adequada e compatível com o declarado.
Assim, e não obstante a condicionante interpretativa imposta ao n.º 8 do artigo 2.º do DL n.º 59/2015, de 21 de Abril, pelo Tribunal Constitucional, há, em qualquer caso, que limitar no tempo o exercício do direito ao pagamento de créditos salariais pelo FGS, a um ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato (cfr. artº 337.º, n.º 1, do CT), considerando, no entanto, as vicissitudes decorrentes da tramitação do Processo de Insolvência, junto do qual foram reclamados os créditos laborais, por forma a acautelar que os atrasos processuais e procedimentais não se venham negativamente a refletir-se na esfera jurídica do trabalhador.
Como decorre da Diretiva 80/987, não há qualquer impedimento à aplicação de um prazo de prescrição ou de caducidade de um ano (princípio da equivalência).
Todavia, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se a configuração deste prazo não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade).
Como de algum modo decorre do acórdão do Tribunal Constitucional aqui em análise, importa predominantemente que o trabalhador não veja o prazo que lhe é atribuído para recorrer ao FGS, substancialmente diminuído em resultado de questões colaterais que vão consumindo o prazo.
Independentemente da interpretação que se adote no que respeita à suspensão ou interrupção do prazo para exercício do direito, não se poderá subverter a intenção do legislador de acordo com a qual o FGS só deverá assegurar o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
O que se vem referindo, encontra acolhimento na filosofia que presidiu ao Acórdão do TC nº 257/2008 em cujo ponto 13 se afirma lapidarmente que:
“[…]
Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, quer na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.
É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a ‘garantir uma existência condigna’ – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que ‘os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei’.
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
[…]
Como a norma [da alínea a) do n.º 1] expressamente acentua – nos seus próprios termos, tem-se em vista ‘garantir uma existência condigna’ –, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico âmbito de proteção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
[…]”.
É pois manifesto que “é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cfr. artigo 59.º, n.º 2, da Constituição) ” (Acórdão TC n.º 510/2016).
Como se afirmou relevantemente no Acórdão nº 328/2018, do TC, “Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Pela sua relevância transcrevem-se ainda as seguintes passagens do referido Acórdão do Tribunal Constitucional (Sublinhados do original):
“De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS.
Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
(...)
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito.
Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição.
Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
(...)
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (...), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.
(...)
A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada (...) a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa).
Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo (...)”
Assim sendo, acolhe-se o entendimento plasmado no identificado Acórdão do Tribunal Constitucional, o qual, em síntese, decidiu que o artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, que define que o pagamento dos créditos laborais a cargo do FGS deve ser requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, não poderá ser interpretado no sentido de tal prazo não poder comportar a possibilidade de qualquer interrupção ou suspensão.
Estamos pois perante uma decisão do Tribunal Constitucional que em fiscalização concreta declara a inconstitucionalidade do Artº 2º nº 8 do DL n.º 59/2015, e que como tal determina a verificação de uma lacuna em concreto, que correspondentemente determinará a necessidade de, também em concreto, integrar a mesma, em resultado da circunstância do referido normativo ter ficado inoperacional e esvaziado, insuscetível de ser aplicado.
Com efeito, a lacuna é uma falha de legislação, na regulação de uma situação da vida que exige uma disciplina normativa.
A existência de lacunas é inevitável, pois as leis são impotentes para prever todas as situações que carecem de ser disciplinadas pelo Direito. Tal ocorre, seja pelo facto de existirem matérias não reguladas, seja porque o conteúdo da lei é incompleto pois não contempla certos domínios de uma determinada matéria, seja porque a mesma lei, abarcando os referidos domínios, não é suficientemente pormenorizada para reger determinados efeitos jurídicos que neles emirjam.
Assim, a lacuna pode envolver quer uma falha de previsão (a lei não contempla uma situação que deve ser regulada juridicamente) ou de estatuição (a lei prevê a referida situação mas não determina as correspondentes consequências jurídicas).
As razões que conduzem à existência de lacunas prendem-se a fatores tão diversos como, a intenção do legislador em não regular; falhas técnicas do legislador ou incapacidade de o mesmo encontrar uma solução jurídica adequada para uma dada situação; o aparecimento de situações imprevistas; ou, finalmente, uma declaração de inconstitucionalidade de uma norma, ainda que em apreciação concreta.
Na medida em que a lacuna é uma falha normativa que desafia exigências de completude reclamadas pelo sistema jurídico, este prevê mecanismos de integração do vazio jurídico.
A integração de lacunas pode envolver institutos normativos, como é o caso da emissão de uma lei ou o efeito automático de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, que determina, de acordo com o nº 1 do art.º 282.º da Constituição, a reposição em vigor (repristinação) de uma lei revogada por aquela que foi julgada inconstitucional.
Perante a verificada situação de inoperacionalidade da norma declarada inconstitucional, os tribunais devem criar, com alguma discricionariedade, uma norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), o que envolve para o caso concreto, a “construção” de uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica.
É incontornável que os tribunais não podem abster-se de julgar invocando falta da lei, de acordo com o n.º 1 do art.º 8.º do CC (proibição de juízos de non liquet).
Como por outro lado se afirmou no Acórdão do STA nº 0292/16, de 08.09.2016, “Com efeito, a ideia do juiz como mero intérprete - uma espécie de “correia de transmissão do legislador” - e, portanto, sem um poder criativo da própria ordem jurídica não corresponde à realidade.
O juiz também cria Direito, designadamente, nos termos do artigo 10º, nº3, do CC, devendo nesse caso criar uma norma “dentro do espírito do sistema”. Espírito do sistema acolhe a ideia que corresponde aos “juízos de valor legais a que se referia ao artigo 110º do Estatuto Judiciário, mas aperfeiçoada. Nomeadamente, já se não limita aos juízos de valor legais, antes busca os que são próprios de todo o sistema jurídico” - OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, página 413.
É consensual, por outro lado, que o “julgador apreende certos elementos e decide, criativamente, em termos finais. Por certo que o quantum da criatividade não é uniforme: atingindo um máximo quando da aplicação de conceitos vazios ou da integração de lacunas rebeldes à analogia e extra-sistemáticas, ele surge reduzido perante normas rígidas ou mesmo típicas. Mas existe sempre, desde a apreensão dos factos à localização das fontes.” - MENEZES CORDEIRO, prefácio ao Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Claus - Wilhelm Canaris, por si traduzido, páginas CVI/CVII.
Em termos mais expressivos CASTANHEIRA NEVES, ressalta o papel do juiz, numa visão que recusa ao Direito a natureza de “[…] um simples meio técnico de quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabilidade do homem se manifestem. Para se assumir e realizar esse direito, vimos como é indispensável o juiz. Por isso mesmo é eminente a sua tarefa e nobre o papel que dele se espera. […] Negar-se-á esse seu sentido se for mero funcionário, funcionalmente enquadrado e nisso comprazido, servidor passivo de qualquer legislador, simples burocrata legitimante da coação” - Entre o Legislador, a Sociedade e o Juiz, ou entre Sistema, Função e Problema - Os modelos alternativos da realização jurisdicional do Direito, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume LXXIV, página 43.
“Hart acentua repetidamente a função do direito como meio de controlo social que só pode ser defendido se entrarem também no direito – ao interpretar regras jurídicas carecidas de interpretação nas suas zonas obscuras ou ao adaptá-las a relações sociais novas – ideais sociais, ou ideais éticos, que vinculem a argumentação e a decisão” - Teoria Analítica do Direito por MAZUREK, SAARBRYCKEN, Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, pág. 378.
É de resto uma evidência, que a grande maioria das regras jurídicas carece de interpretação. Como sublinha OLIVEIRA ASCENSÃO a posição enunciada no brocardo “in claris non fit interpretatio…” é contraditória nos seus próprios termos, pois mesmo para concluir que uma deposição legal é evidente foi necessário um trabalho de interpretação, embora quase instantâneo, e é com base nele que se afirma que o texto não suscita problemas particulares”. Por isso, considera o mesmo autor, “são absurdas certas posições hermenêuticas que se repetem, do imperador Justiniano a autocratas modernos, e pelas quais se proíbe a interpretação da lei. Efetivamente, conclui o autor, “a interpretação jurídica não se destina a uma recognição de um qualquer conteúdo já pensado, mas destina-se a formular princípios para a ação, regras.” - O Direito, Introdução e Teoria Geral, páginas 345/346.
Note-se, a propósito, que “a letra da lei e o que ela exige num caso concreto podem ser perfeitamente claros; contudo, pode haver dúvidas sobre se o legislador tem o poder para legislar desse modo” - HART, o Conceito de Direito, página 161. Nestas condições o julgador, nos casos que lhe são colocados, averigua a validade constitucional da lei, de acordo com os parâmetros que racionalmente vinculam o próprio legislador, existindo, como refere o mesmo autor, “…vários tipos de raciocínio que os tribunais usam caracteristicamente, ao exercer a função criadora que lhes é deixada pela textura aberta do direito contido na lei ou no precedente” [obra citada, página 161].
Vários tipos de raciocínio e de argumentação que não se reconduzem necessariamente a uma busca de critérios objetivos da decisão, mas apelam a um paradigma justificativo que “não pretende de forma alguma encontrar princípios evidentes, mas sim descobrir, através de um trabalho de autorreflexão, as pressuposições que são indiscutíveis se desejarmos formular argumentos intersubjectivamete válidos” – ver, neste sentido, ADELA CORTINA, Ética da Discussão e Fundamentação Última da Razão, As Filosofias Políticas Contemporâneas [após 1945], página 171. A racionalidade da decisão há-de decorrer, nesta conceção, do desenvolvimento de uma argumentação séria, a qual depende de várias regras ou condições - ética da discussão: “1- Todo o sujeito capaz de falar e de agir deve poder tomar parte em discussões; 2.1. Cada um deve poder problematizar toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.2. Cada um deve poder fazer com que seja admitida na discussão toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.3. Cada um deve poder exprimir os seus pontos de vista, os seus desejos e as suas necessidades; 3. Nenhum locutor deve ser impedido por uma pressão autoritária, quer ela se exerça no interior quer no exterior da discussão de aproveitar dos seus direitos, tal como eles estão estabelecidos em 1 e 2”.
Não é, assim, possível reconduzir a função do juiz, essencialmente concretizadora e criadora da Ordem Jurídica [em maior ou menor grau] a uma função predominantemente técnica [axiologicamente neutra] face a uma necessária e sempre presente relação de compromisso ético do juiz com o Direito que interpreta, aplica em concreto, faz cumprir e, desse modo, também vai construindo. Outro entendimento contribuiria para a “deslegitimação do poder judicial”, enquanto “poder soberano” como nota ORLANDO AFONSO - Poder Judicial In Dependência, página 202. “Deslegitima-se” - diz o autor, entre outras maneiras – “quando a pretexto de apregoadas desburocratizações ou de modernizações tecnológicas se reconduz o papel do Juiz ao de um mero operador judiciário, adulterando-se-lhe a função”. Por isso o autor [nota 271] entende como deslegitimadora a tentativa de “…reduzir o Poder Judicial a uma função burocrática sem qualquer outra dimensão que não seja a da prestação de um mero serviço administrativo”.
Podemos concluir, portanto, que no pensamento jurídico atual, não é acolhido o entendimento que vê o Juiz como um mero operador judiciário, um mero prestador de serviço administrativo ou, nas palavras de Castanheira Neves, um mero instrumento técnico de legitimação da coação. Podemos afirmar com toda a segurança que as funções exercidas pelo Juiz são funções públicas, mas não são predominantemente técnicas, porque predominantemente exercem um poder público, sendo o exercício desse poder o núcleo essencial do conteúdo das respectivas funções»
A questão da desaplicação da referida norma por inconstitucionalidade, já foi tratada, desde logo na Sentença do TAF de Coimbra, proferida no Procº 585/16.0BECBR de 7 de fevereiro de 2017 que veio a determinar a declaração de inconstitucionalidade que se tem vindo a apreciar.
Na referida Sentença do TAF de Coimbra a solução resultante da verificada lacuna foi encontrada por recurso à “norma geral da prescrição dos créditos laborais, precisamente um ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato – cf. artigo 337 nº 1 do CT – esta, sim, suscetível das interrupções constituídas pela ação laboral e pela reclamação dos créditos na insolvência, interrupções indispensáveis pata a reposição da justiça em face de um anormal atraso das decisões no processo de insolvência que são pressuposto da obrigação do Fundo.”
Já neste Tribunal a referida questão foi já tratada em diversos Acórdãos, a saber: Processo n.º 1777/17.0BEPRT de 21.12.2018; Processo n.º 61/17.3BEBRG de 11.01.2019; Processo n.º 295/17.0BEPNF de 25.01.2019; Processo nº. 232/17.2BEBRG de 21.12.2018; Processo n.º 2492/16.7BEPRT de 07.12.2018.
Nos referenciados Acórdãos do TCAN se tem afirmado que “ Dispõe o artigo 282º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.
1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.
Não vemos razão para não aplicar esta norma, dirigida à hipótese de “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral” ao caso, como o presente, em que temos uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ainda sem força obrigatória geral.
Na verdade é a solução que mais segurança e certeza traz para a solução de casos similares, dada a sedimentação que o antigo regime jurídico já tinha alcançado.”
Se bem que a base do entendimento jurídico que se preconiza tenha ponto de partida idêntico àquele que determinou as precedentemente referenciadas decisões deste TCAN, o sentido decisório que se adotará, passará antes pela criação no caso concreto de norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), “construindo-se” uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica, correspondente àquele que se presume ser a vontade do legislador.
Também nos acórdãos deste TCAN nº 662/18.2BEBRG, de 1 de fevereiro de 2019, e nº 616/17.6BEPNF, de 29 de março de 2019, se adotou solução que aqui, no essencial, se acompanhará, sendo que ambos os referidos acórdãos, transitaram já em julgado.
Na realidade, é incontornável que era intenção do legislador no Artº 2º nº 8 do DL nº 59/2015, limitar a um ano o prazo dentro do qual deverá ser requerido ao FGS o pagamento dos créditos reclamados, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional não questiona aquele prazo, apenas se “opondo”, por via de declaração concreta de inconstitucionalidade, a que esse prazo não seja suscetível de suspensão ou interrupção.
A solução a dar à controvertida questão, na “construção” de norma em observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica, encontra-se facilitada em decorrência do facto do próprio legislador a ter introduzido, ainda que apenas ex nunc, nova norma, através da Lei n.º 71/2018, de 31/12, compatibilizando o Artº 2º nº 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, com o entendimento do Tribunal Constitucional estabelecido no seu Acórdão nº 328/2018 que se tem vindo a referir.
Com efeito, ainda que sem natureza interpretativa, a Lei n.º 71/2018 introduziu no Artº 2º do Decreto-Lei n.º 59/2015, um nº 9, no qual se refere que “O prazo previsto no número anterior suspende-se com a propositura de ação de insolvência, a apresentação do requerimento no processo especial de revitalização e com a apresentação do requerimento de utilização do procedimento extrajudicial de recuperação de empresas, até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º ou da data da decisão nas restantes situações.”
O novel normativo permitiu assim percecionar de forma clara quais os princípios estruturantes da ordem jurídica, correspondentes à vontade do legislador.
Assim, em face de tudo quanto se expendeu, mostra-se legítimo, perante a referida inconstitucionalidade, declarada em concreto, da interpretação adotada pelo FGS do nº 8 do Artº 2º do DL nº 59/2015, que tornou o referido normativo inoperante, que se lhe restaure a sua operacionalidade, com recurso à interpretação que o próprio legislador, por via do novel nº 9, veio a introduzir através da Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro.
Efetivamente legislador acolheu as críticas que o Tribunal Constitucional havia apontado ao nº 8 do Artº 2º do DL nº 59/2015, assegurando a suspensão do referido prazo de um ano para a apresentação da Ação, até 30 dias após o trânsito em julgado, designadamente, da decisão que venha a ser proferida na Ação de Insolvência.
A interpretação que se adotará permite pois dar resposta ao facto do Tribunal Constitucional ter entendido, em concreto, que o artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, não poderia ser interpretado no sentido de impedir que o prazo de um ano para a reclamação dos créditos laborais junto do FGS fosse insuscetível de ser interrompido ou suspenso, interpretação que se adequa ao “espirito do sistema”, comprovado no facto do próprio legislador ter criado, ainda que ex nunc, norma exatamente nesse sentido.
Deste modo, à luz do precedentemente discorrido, uma vez que a decisão de insolvência foi definitivamente adotada em 26.09.2016, e o requerimento a reclamar os créditos laborais junto do FGS foi apresentado em 21.10.2016, é assim manifesto que o mesmo se mostrava tempestivo.
Assim, revogar-se-á a decisão recorrida, mais se determinado que o FGS proceda à reapreciação do Requerimento da aqui Recorrente à luz da sua tempestividade.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao Recurso interposto, revogando-se a sentença Recorrida, mais se determinando a reapreciação do Requerimento da aqui Recorrente, pelo FGS, à luz da sua declarada tempestividade.
Custas pela Entidade Recorrida, em ambas as instâncias, sem prejuízo da isenção de que goza.
Porto, 28 de junho de 2019
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco
Ass. Nuno Coutinho
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa