Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01153/08.5BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/24/2014
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:João Beato Oliveira Sousa
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
Sumário:Nos termos do art. 42º, 2, do Estatuto Disciplinar - Dec. Lei 24/84, de 16/1 - as irregularidades não compreendidas no n.º1 (“falta de audiência e “omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade”) consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até à decisão final, incluindo-se neste rol a nomeação do instrutor do processo em violação do artigo 51º do ED.*
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Município de Á....
Recorrido 1:SGCS...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Proc. 1153/08.5BEVIS
Acordam em conferência os juízes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
O MUNICÍPIO DE Á... veio interpor recurso do acórdão do TAF de Viseu que, julgando procedente a presente acção administrativa especial instaurada por SGCS, anulou da deliberação daquele Órgão Executivo tomada em 3 Julho de 2008, pela qual lhe foi aplicada a pena disciplinar de suspensão por 180 dias.
*
Em alegações o Recorrente formulou as seguintes C O N C L U S Õ E S:

I - Como se retira do acórdão recorrido foi apreciado pelo tribunal a quo um pretenso vício que a Autora não invocou na petição inicial, o qual, a existir, não era - nem é - superveniente à propositura da acção.

II - Com efeito, por requerimento junto a fls. 191 dos autos, entregue em Fevereiro de 2010 (veja-se que a acção deu entrada em 07/08/2008) a Autora veio arguir a nulidade dos actos praticados pelo Dr. MR, advogado, enquanto instrutor do processo disciplinar nº 1/2008, no qual foi proferida a decisão que nestes autos foi impugnada pela Autora, uma vez que aquele não era funcionário da autarquia ou de outro serviço público.

III - Entendeu - mas mal - o tribunal a quo que tal alegação, ainda que efectuada após a apresentação das alegações, não é extemporânea e que apenas havia que dar cumprimento ao contraditório, como aconteceu, apreciando, pois tal pedido e decidido, a final, anular o acto impugnado.

IV - Lavrou o tribunal a quo a decidi de tal modo em dois erros:

a) O primeiro, tem a ver com a admissibilidade da arguição efectuada pela Recorrida/Autora sobre um pretenso vício do acto decorrente de ter sido designado como instrutor do processo disciplinar um advogado e não um funcionário da autarquia, na medida em que nunca deveria ter sido admitida tal arguição por ser manifestamente extemporânea.

- Com efeito, conforme se retira do próprio requerimento e da leitura dos autos, mormente da douta petição inicial, em momento algum do processo disciplinar a Autora arguiu semelhante vício, pois que só no requerimento de fls. 191, apresentado em juízo em Fevereiro de 2010 (quando já haviam decorrido mais de um ano e meio da propositura da acção) veio aos autos arguir a nulidade dos actos praticados pelo instrutor do processo disciplinar e da deliberação proferida pela Câmara Municipal de Á... que aplicou à Autora uma pena de suspensão de 180 dias.

- Todavia, como referiu o Recorrente, ao exercer o contraditório ao teor do requerimento da Autora/recorrida, aquele momento (Fevereiro de 2010) não era próprio para o fazer sendo, portanto, tal arguição extemporânea.

- De facto, como a Autora nunca imputou e muito menos arguiu seja no processo disciplinar e seja na p.i. esse pretenso vício, pois que só em Fevereiro de 2010 o veio fazer, data em que era manifestamente extemporânea tal arguição.

- Acresce ainda ao que se acabou de referir que tratando-se – como foi o caso – de uma revogação de um acto (preparatório), não está em causa uma nulidade do acto (pois os actos nulos, como é sabido, não são susceptíveis de revogação – artigo 139.º do Código de Processo Administrativo), mas quanto muito o que estaria em causa era (uma mera) anulabilidade do acto.

- Logo a arguição deveria ter sido efectuada aquando da propositura da acção em conjunto com os demais vícios que imputou à decisão, até porque a ficar demonstrada a verificação do alegado vicio, ele já existiria e era do conhecimento da Autora no processo disciplinar e, por maioria de razão quando intentou a acção, pois aquele advogado foi precisamente o instrutor do processo disciplinar onde foi proferida a decisão final que foi impugnada.

- Tal equivale a dizer que a arguição do pretenso vício é - foi - extemporânea, até porque só a nulidade pode ser arguida a todo o tempo (artigo 58.º n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), sendo de três meses o prazo para a impugnação dos actos anuláveis (artigo 58º nº 2, b do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

- E dúvidas não podem existir que mesmo que hipoteticamente pudesse ressaltar de tal situação - ter sido um advogado e não um funcionário o instrutor do processo - algum respingo que pudesse beliscar a validade do acto recorrido, nunca implicaria a sua nulidade.

- Com efeito, em lado algum prescreve o artigo 51º do E.D. tal sanção para esta situação, e muito menos tal decorre do artigo 42º do mesmo diploma, sendo certo que só a falta de audiência do arguido e a omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade são sancionadas com a nulidade (insuprível).

- Além disso, mesmo que a designação de um advogado e não de um funcionário da autarquia como instrutor do processo disciplinar determinasse a nulidade dos actos por ele praticados e da posterior decisão final no processo disciplinar - e não é o caso - sempre careceria tal vício de ter sido arguido no processo disciplinar até a decisão final pela recorrida/autora (artigo 42º, nº 2 do ED, actualmente artigo37º, nº 2 da Lei 58/2008, de 09/09), sob pena de se considerar suprido.

- Ora é manifesto que a recorrida/autora não fez sindicar no processo disciplinar até a decisão final esta vexata quaestio e nem sequer o fez no momento em que impugnou a decisão final, mais concretamente na p.i., como aliás resulta dos autos e está referido no acórdão de que se recorre.

- Pelo que, admitindo-se apenas por mero exercício académico, que de uma nulidade se tratasse - e não é o caso - encontrar-se-ia ela suprida definitivamente (artigo 42º, nº 2 do ED) por não ter sido reclamada pela Recorrida/Autora no processo disciplinar até a decisão final.

b) O segundo erro do acórdão proferido pelo tribunal a quo decorre e está intrinsecamente relacionado com este primeiro na medida em que tem a ver com a (im)possibilidade do tribunal tomar conhecimento e apreciar este pretenso vício, por ser extemporâneo e por não se tratar de uma nulidade.

- Como resulta do acórdão recorrido entendeu (fls. 15 do douto acórdão) o tribunal a quo que “Considerando que a invocação do vício se verificou após a apresentação das alegações, apenas se teria que cumprir o contraditório e, tal foi cumprido. Pelo que, vamos apreciar, por precedência lógica, em primeiro lugar este vício” – itálico nosso.

- Porém, fê-lo mal, porquanto não podia nem devia o tribunal ter considerado tempestiva a invocação daquele pretenso vicio e muito menos podia conhecê-lo.

- Com efeito, como supra se demonstrou à saciedade mesmo que, por mera hipótese académica, se admitisse que tal nomeação não se enquadra no disposto no artigo 51º do ED, não decorre de tal preceito que uma nomeação efectuada em desconformidade com o citado preceito seja nula e, muito menos tal cominação se retira do artigo 42.º, nº 1 do ED ou do artigo 133º do Código de Processo Administrativo.

- Assim sendo, mesmo que se colocasse tal hipótese e se estivesse perante uma nulidade, teria sempre de ser classificada como suprível, à luz do disposto no artigo 42.º nº 1 do ED, a contrario, por não constar do elenco das nulidades insupríveis ali descritas, havendo pois que aplicar o regime prescrito no nº 2 do mesmo artigo, considerando-a definitivamente suprida (sanada) por não ter sido reclamada pela arguida/autora no processo disciplinar até à decisão final, não mais podendo vir a ser sindicada.

- Daqui resulta que mesmo que se admitisse que aquela nomeação estava viciada e era nula, tal nulidade, por ser suprível e não ter sido reclamada no seu devido tempo, goza da presunção inilidível que decorre do nº 2 do artigo 42º do ED e considera-se suprida, não podendo ser conhecida pelo tribunal.

- E além disso, mesmo que assim não se entendesse não estamos perante uma situação que determine a nulidade do acto, por não decorrer tal sanção quer do ED (artigos 51º e 42 do citado diploma) quer do artigo 133º do Código de Processo Administrativo.

- Assim quanto muito a aceitar-se que tal nomeação não acompanha cabalmente os cânones do citado preceito, estar-se-ia quanto muito perante uma situação que em hipótese poderia conduzir à sua anulabilidade.

- Na verdade, a regra em relação ao acto administrativo é a de que a sua ilegalidade é geradora da sua anulabilidade, sendo a nulidade a excepção apenas aplicável nos casos expressamente cominados na Lei.

- Mas nesse caso (anulabilidade) também o tribunal não podia, como fez, conhecer de um pretenso vício que não foi atempadamente arguido pela Autora/recorrida, porquanto esta se conformou com a sua existência ou porque dele não se apercebeu, omitindo por completo na impugnação do acto que efectuou na sua douta p.i. qualquer referência a esta matéria (sendo certo que este o pretenso vicio não é superveniente, como resulta do acórdão recorrido).

- Pelo que, no momento em que a Autora apresentou em juízo o requerimento de fls. 191 já há muito que estava decorrido o prazo de impugnação (3 meses), prescrito no artigo 58º, n.º 2 alínea b) do Código de Processo Administrativo (veja-se que a acção deu entrada em juízo em 07/08/1998 e o requerimento de fls. 191 foi entregue em Fevereiro de 2010 - cerca de um ano e meio da propositura da acção), sendo pois extemporânea a sua sindicância.

V - Como é consabido só a nulidade é do conhecimento oficioso e pode ser invocada a todo o tempo (artigo 134º do Código de Processo Administrativo).

VI - No caso em apreço como supra ficou demonstrado não estamos perante qualquer vício que determine a nulidade do acto (não resulta tal dos artigos 51º e 42.º do ED e muito menos do artigo 133º do Código de Processo Administrativo).

VII - Consequentemente, mesmo que por mera hipótese académica se admitisse que estamos na presença de algum vício do acto, o mesmo apenas se colocaria no plano da anulabilidade, e da anulabilidade o tribunal já não pode conhecer oficiosamente e muito menos pode o hipotético lesado fazer sindicá-la decorrido que esteja o prazo de impugnação do acto anulável prescrito no artigo 58º, nº 2 alínea b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

VIII - Nem outro entendimento se admite que possa existir sobre esta matéria, porquanto o prazo de impugnação (prescrito no artigo 58 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), como quaisquer outros prazos relativos ao exercício do direito de acção administrativa, é um prazo (substantivo) de caducidade do exercício de um direito, insusceptível de qualquer prorrogação.

IX - Consequentemente, não sendo exercido tal direito no prazo fixado caduca o direito à acção, tendo sido o que nos presentes autos aconteceu em relação ao suscitado vício, uma vez que a Autora, embora dele tendo conhecimento, omitiu da acção a sua arguição, pelo que como o que hipoteticamente estaria em causa seria um vicio que determinaria a anulabilidade do acto, quem poderia (tinha legitimidade) arguí-la era a Autora, mas sempre dentro do prazo fixado na lei que supra se mencionou, sob pena de caducar o direito de impugnação em relação a ele.

X – Teria, por isso, andado bem o tribunal a quo se tivesse julgado improcedente o requerimento de fls. 191: por um lado, por não estar em causa qualquer vício que determinasse a nulidade do acto, sendo por isso, extemporânea a arguição do hipotético vício; e por outro lado, porque que, na melhor das hipóteses, tal hipotético vício seria susceptível, em teoria, de determinar a anulabilidade do acto e, a verificar-se esta hipótese, uma vez que a Autora dele tinha conhecimento no momento em que instaurou a acção (logo o seu conhecimento não foi superveniente, como bem consta do acórdão recorrido), mas não cuidou de o atacar nesta vertente, conformando-se com a sua pretensa existência e deixando decorrer em relação a este o prazo da sua impugnação, já ter caducado o direito de exercer o direito da sua impugnação, sendo certo que dele o tribunal não pode conhecer por não ser do tal conhecimento oficioso.

XI - Assim, deveria ter sido indeferida a pretensão da Autora constante do requerimento de fls 191, e não deveria o tribunal a quo tê-la apreciado e muito menos ter julgado verificado o vício ali arguido pela Autora, antes devendo julgar tal requerimento extemporâneo por ter caducado o direito de invocar a anulabilidade do acto nele impugnado.

XII - Ao anular o acto com base em tal vicio a tribunal a quo fez uma errada interpretação dos artigos 42.º e 51.º do ED, do artigo 133º e 134º do Código de Processo Administrativo e do artigo 58º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e uma incorrecta aplicação do direito, pelo que deve ser revogada tal decisão e ser substituída, por outra que julgue extemporânea a arguição do vicio, nos termos constantes do requerimento da Autora de fls. 191 dos autos, apreciando as demais ilegalidades que a Autora imputa ao acto na p.i..

XIII - Além disso, o acórdão é nulo, nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos por existir uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão.

XIV - Com efeito, o vício arguido pela Autora – constante do requerimento de fls. 191 – vem apontado como se de uma nulidade se tratasse, sendo que foi dele que o tribunal – mas mal como já se referiu – decidiu conhecer, como consta da fundamentação do acórdão.

XV - Porém, o certo é que de seguida em oposição ao que descreve na fundamentação ao analisar a vexata quaestio faz se constar do acórdão que o acto impugnado padece de vicio de violação de lei (que nunca foi invocado pela Autora), pelo que deve ser anulado e decide-se anular o acto sem mais.

Termos em que

Deve ser declarado nulo o acórdão, nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por existir uma manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão;

Ou se assim, não for entendido,

ser concedido provimento ao presente recurso revogando-se o douto acórdão recorrido por outro que julgue extemporânea a arguição do vício por parte da Autora, nos termos constantes do requerimento de fls. 191, e aprecie e decida apenas sobre os vícios que por ela foram apontados na p.i..

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Não foi apresentada contra-alegação.
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O Ministério Público foi notificado nos termos do artigo 146º/1 CPTA.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
No acórdão recorrido estão assentes os seguintes factos:

1 - A Autora é Engenheira Civil, integrando o quadro do pessoal do Município de Á... (cfr. doc.1 junto com a PI).

2 - Por despacho do Presidente da Câmara de Á... de 23/01/2008 foi nomeado instrutor do Processo Disciplinar n.º 1/2008 o Dr. MR, advogado, o qual dirigiu todo o processo e elaborou Relatório Final (cfr. fls. 2 e seg. do PA).

3 - Em 31/01/2008 por força do despacho do presidente da Câmara de Á... de 23/01/2008, foi instaurado à Autora o processo disciplinar n.º 1/2008, no âmbito do qual foi acusada da prática dos factos constantes de fls. 7 e ss. do Relatório Final (cfr. doc.1, fls.4 e 7 junto com a PI e fls. 1 e 2 e 51 a 57 do PA).

4 - Em 15 de Abril de 2008 o Instrutor do processo disciplinar requereu a prorrogação do prazo fixado no art. 64°, n°1 do Estatuto Disciplinar, por cinco dias (cfr. doc.4 junto com a PI e fls.130 do PA).

5 - No âmbito do referido processo disciplinar o Instrutor por despacho, do qual o Presidente da Câmara Municipal de Á... tomou conhecimento em 29/04/2008, entendeu ser conveniente a produção complementar de prova para se averiguar a verdade material dos factos decisivos e relevantes para o apuramento da responsabilidade da arguida nos autos, (cfr. doc.1, fls.55 junto com a PI e135 do PA).

6 - Em sede de produção complementar de prova em 23/04/2008 foi ouvida a testemunha PP e em 14/05/2008 foram ouvidas as testemunhas, AC e JP (cfr. doc.1, fls.55, 57 e 58 junto com a PI e135, 137 a 139 e 151 a 154 do PA).

7 - A Autora, notificada para o efeito em 14/05/2008, pronunciou-se acerca do teor dos depoimentos prestados pelas referidas testemunhas em sede de produção complementar de prova em 26/05/2008 (cfr. doc.1 fls 59 e doc.3 juntos com a PI e fls.157 e 178 do PA).

8 - Por requerimento de 29/05/2008, o Instrutor do processo requereu a rectificação do requerimento por si apresentado em 15/04/2008, pelo facto de por lapso neste último ter sido requerida a prorrogação do prazo fixado no art. 64°, n° 1 do Estatuto Disciplinar por mais 5 dias, quando devido a erro informático o prazo que queria requerer era o de 45 dias (cfr. fls.182 do PA).

9 - Em 30/05/2008 o Instrutor do processo requereu o prazo não inferior a 10 dias para elaboração do Relatório Final de Instrução a que alude o n.º1 do artº 65º do Estatuto Disciplinar (cfr. fls.186 do PA).

10 - O Relatório Final do Instrutor tem data de 09/06/2008, no qual foi proposta a decisão de aplicação de uma pena de suspensão a fixar na moldura prevista de 121 dias a 240 dias (cfr. doc. 1, fls 89 e fls.188 do PA).

11 - Por decisão proferida pela Câmara Municipal de Á... na reunião realizada em 3 de Julho de 2008, notificada em 8 de Julho de 2008, foi aplicada à Requerente a pena disciplinar de suspensão por 180 dias (cfr. doc.2 junto com a PI, fls.277 e seg. do PA).

12 - Resulta do termo de abertura lavrado nos autos de Processo Disciplinar n.º 4/2008 instaurado à Autora, que o despacho de 04/08/2008 do Presidente da Câmara Municipal de Á... pelo qual foi determinada a instauração do Processo Disciplinar n°4/2008, à Autora, foi designado como instrutor o Advogado Dr. MR, foi revogado, determinando que ficassem sem efeito os actos praticados pelo referido instrutor uma vez que não era funcionário da autarquia ou de outro serviço público (cfr. doc. a fls.193 junto com requerimento de 22/02/2010 da Autora).


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DE DIREITO
Há duas questões a resolver, a primeira pertinente à invocada nulidade do acórdão e a segunda relativa a suposto erro de julgamento quanto à verificação do vício no qual o TAF baseou a anulação do acto impugnado.

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Questão da nulidade do acórdão

As razões da pretensa nulidade do acórdão estão sintetizadas nas conclusões XIII a XV do Recorrente.

É invocada a causa de nulidade prevista no artigo 668º/1/b) do CPC “por existir manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão”, considerando-se que a circunstância referida no requerimento da Autora de fls. 191 (o instrutor ser advogado e não funcionário público) foi indevidamente conhecida pelo TAF “como se de uma nulidade se tratasse”, para afinal se concluir no acórdão, divergentemente, que por essa razão “o acto impugnado padece de vício de violação de lei, e devendo, por isso, ser anulado”.

Diga-se desde já que algo está errado na arguição do Recorrente, visto que o artigo 66º/1/b) se refere à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito justificativos da decisão, sendo certo que a questão colocada, em substância, não radica numa hipotética falta de fundamentos da decisão, antes na invocação de uma fundamentação que se entende ser errada.

Porém, este erro de enquadramento jurídico não conduz fatalmente à improcedência da questão, uma vez que o Tribunal não se encontra vinculado ao enquadramento jurídico delineado pelas partes.

Do ponto de vista teórico a questão poderia ainda considerar-se referida ao artigo 668º/1/c), por os fundamentos estarem hipoteticamente em oposição com a decisão.

No entanto também isto seria infrutífero, por não existir em rigor tal oposição.

Na verdade, no acórdão não se diz que o vício em questão acarreta a nulidade do acto, mas apenas que se anula o acto impugnado com fundamento no vício de violação de lei detectado (com referência ao artigo 51º do E.D).

Ora, na hipótese de este julgamento ser erróneo, quer por não existir tal vício quer por dele não se dever tomar conhecimento, em função de ter sido extemporaneamente arguido, a consequência seria sempre erro de julgamento e não nulidade do acórdão.

Deste modo, contrariamente ao sustentado pelo Recorrente, o acórdão é formalmente válido.


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Questão do mérito do julgamento

O TAF fundamentou deste modo a decisão anulatória:

«Por requerimento a fls.191, veio ainda a Autora arguir a nulidade dos actos praticados pelo Dr. MR, advogado, enquanto instrutor no Processo Disciplinar n.º1/2008 no qual foi proferida decisão que pelos presentes autos se impugna, uma vez que não era funcionário da autarquia ou de outro serviço público.

Relativamente à invocação deste último vício, veio a Entidade Demandada a defender que a arguição apresentada pela Autora é extemporânea, porquanto não tendo a Autora imputado e arguido na p.i. o vício que agora alega padecer o acto recorrido, seja por não se ter apercebido dele no momento em que intentou a acção, seja porque se conformou com a sua existência, não pode agora vir fazê-lo tentando dele beneficiar, referindo que o despacho referido pela Autora foi proferido no âmbito de outro processo (processo n.° 4/2008) e não no processo disciplinar n.° 1/2008 a que se reportam estes autos.

A verdade, é que apesar da autora não ter invocado este vício na sua petição inicial e não sendo superveniente, pois existia desde o início, o tribunal dele tomou conhecimento e deve pois apreciar.

Considerando que a invocação do vício se verificou após a apresentação das alegações, apenas se teria que cumprir o contraditório e, tal foi cumprido.

Pelo que, vamos apreciar, por precedência lógica, em primeiro lugar este vício.

Vejamos, então:

Como resulta da matéria provada, por despacho do Presidente da Câmara de Á... de 23/01/2008 foi nomeado instrutor do Processo Disciplinar n.º 1/2008 o Dr. MR, advogado, o qual dirigiu todo o processo e elaborou Relatório Final.

Ora, o instrutor do processo é advogado de profissão, não sendo agente administrativo, auditor jurídico, funcionário público, nem tão pouco pertencente ao quadro da Câmara Municipal de Á....

Sendo que, o art. 51.º do E.D. estabelece o seguinte:

1 - A entidade que instaurar processo disciplinar deve nomear um instrutor escolhido de entre os funcionários ou agentes do mesmo serviço, de categoria ou classe superior à do arguido ou mais antigo do que ele na mesma categoria e classe, preferindo os que possuam adequada formação jurídica.

2 - Os membros do Governo e os órgãos executivos podem nomear para instrutor um funcionário ou agente de serviço diferente daquele a que pertença o arguido, de categoria ou classe igual ou superior à dele, ou um funcionário ou agente nas mesmas condições requisitado a outro serviço.

3 - Os membros do Governo podem também nomear para instrutor um funcionário ou agente da auditoria jurídica, caso exista, independentemente da sua categoria ou classe.

4 - A faculdade prevista no número anterior deverá ser usada relativamente aos serviços de inspecção, quando existam, em caso de infracção em matérias de tecnicidade específica ou directamente relacionadas com as atribuições daqueles serviços.

5 - O instrutor pode escolher secretário da sua confiança, cuja nomeação compete à entidade que o nomeou, e bem assim requisitar a colaboração de técnicos.

6 - As funções de instrutor preferem a quaisquer outras que o funcionário ou agente nomeado tenha a seu cargo, podendo determinar-se, quando tal seja exigido pela natureza e complexidade do processo, que aquele tique exclusivamente adstrito à função de instrução.

Assim sendo, o instrutor do processo só poderia ser um funcionário, auditor jurídico ou agente administrativo que o instrutor não é.

Acresce que a profissão de advogado é incompatível com a dependência hierárquica que o instrutor tem relativamente a quem o nomeia e ordena a instauração de processo disciplinar.

Sendo que, essa relação hierárquica é manifestada entre outras situações pela necessidade de pedir autorizações, como sucedeu nos autos, designadamente, com o pedido que foi feito no sentido de ser dilatado o prazo de defesa, bem como pela existência de recurso hierárquico dos actos do instrutor face à Câmara Municipal ou ao Presidente da Câmara Municipal - cfr. arts. 42.° e 75.° do E.D.

Pelo que, o acto impugnado padece de vício de violação de lei, e devendo, por isso, ser anulado.

A apreciação das demais ilegalidades encontra-se prejudicada porquanto a procedência do objecto da acção resulta do exposto.»

O que dizer sobre isto?

Em primeiro lugar que o Recorrente não impugna a factualidade na qual a Autora e o TAF fundam a existência do vício de violação do artigo 51º/1 do ED aplicável, aprovado pelo DL 24/84 de 16/1.

Ou seja, admite que foi nomeado como instrutor do processo disciplinar um advogado e não um funcionário ou agente do serviço do Município de Á....

Mas diverge da sentença quanto à extemporaneidade de arguição pela Autora desse vício e quanto à possibilidade do respectivo conhecimento pelo Tribunal “a quo”.

Sem razão.

Na verdade, nos termos do artigo 95º/2 CPTA «Nos processos impugnatórios, o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o acto impugnado (…) assim como deve identificar a existência de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadas, ouvidas as partes para alegações complementares pelo prazo comum de 10 dias…»

Significa isto que os vícios do acto administrativo não alegados pelas partes são de conhecimento oficioso, na medida em que a lei atribui ao tribunal o poder/dever de os apreciar.

E foi o que o TAF fez, cumprindo previamente as exigências do princípio do contraditório, como se constata de folhas 203 e 216 do processo físico.

O que o TAF não fez, como também exigia o mesmo artigo 95º/2, foi conhecer das demais causas de invalidade invocadas pela Autora na p.i., mas isso são contas de outro rosário.

Assim, são infundadas as críticas que o Recorrente dirige contra a decisão com fundamento na ilegalidade do conhecimento daquele vício.

Questão diferente é a de saber se o dito “vício” persiste como causa invalidante do acto, na medida em que apesar de existir ab initio uma clara ilegalidade na nomeação do instrutor do processo disciplinar (pelas razões já referidas), o Recorrente sustenta que foi suprida por falta de impugnação atempada pelo arguido no decurso do processo disciplinar, louvando-se para tanto nos artigos 42º/1/2 ED (DL 24/84) e 37º/2 da Lei 58/2008, de 9/9.

Não há dúvida que no caso foram infringidas determinadas restrições previstas no artigo 51º para a nomeação do instrutor do processo disciplinar e que, portanto, se verifica aí uma ilegalidade ou até, na terminologia do ED, uma “nulidade” de âmbito procedimental, a qual pode ou não, dependendo das circunstâncias, inquinar de ilegalidade a decisão final do mesmo processo.

A “nulidade insuprível” determina a inaproveitabilidade do processo e, como tal, afectará irremediavelmente de anulabilidade a decisão final.

Mas se for uma “nulidade suprível”, terá que ser invocada pelo arguido no decurso do processo disciplinar, sob pena de a irregularidade ficar sanada, e nesta hipótese, como se existisse uma presunção de aceitação pelo arguido, já não sairá afectada a decisão final.

As nulidades insupríveis, no ED, estão associadas à “falta de audiência do arguido”, isto é, sobretudo situações em que a defesa é injustamente dificultada por deficiências na acusação ou na instrução do processo.

No que se refere a ilegalidades reflectidas na nomeação do instrutor do processo, afigura-se que se trata de “nulidades” supríveis.

Neste sentido é útil a leitura do acórdão do STA (2ª S. do CA), Rec. 0735/07, cuja fundamentação parcialmente se transcreve, com nota de concordância:

«O art. 42º do Estatuto Disciplinar (Dec. Lei 24/84, de 16/01) divide as nulidades do procedimento disciplinar em dois géneros: as insupríveis e as supríveis.

São insupríveis, nos termos do n.º 1, “a falta de audiência” e a “omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade”. Estas nulidades não têm que ser reclamadas no procedimento e quando se verificam afectam o acto final de anulabilidade.

São supríveis, nos termos do n.º 2, do mesmo artigo, todas as demais, as quais se consideram “supridas se não forem reclamadas pelo arguido até à decisão final” do procedimento disciplinar.

A incompetência da entidade que nomeou o instrutor não se reconduz à falta de audiência, como é óbvio. E também não traduz a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade. A referência a diligências essenciais para a descoberta da verdade tem a ver com a aquisição processual da verdade material (daí a referência diligências essenciais para a descoberta da verdade) e não com a regularidade formal da nomeação do instrutor, ou com as garantias de imparcialidade na sua actuação. Para este último efeito existem, de resto, mecanismos especialmente previstos, como é o caso do incidente da suspeição – cfr. art. 52º, 2, e 77º, 3, do Estatuto Disciplinar.

Não se enquadrando a ilegalidade apontada no género delimitado no n.º 1, do art. 42º do ED, então, rege o n.º 2, segundo o qual “as restantes nulidades consideram-se supridas se não forem reclamadas pelo arguido até à decisão final”. O arguido no procedimento não reclamou a nulidade (procedimental) emergente da incompetência da entidade que nomeou o instrutor, até à decisão final.

Logo, a mesma (a ter ocorrido) considera-se suprida.

Deste modo, estando suprida a eventual nulidade procedimental emergente da incompetência da entidade que nomeou o instrutor, o acórdão recorrido não pode manter-se devendo ser revogado e consequentemente, devem prosseguir os autos para conhecimento dos outros vícios imputados ao acto contenciosamente impugnado.»

Pois bem, afigura-se que a jurisprudência transcrita é adequada ao caso destes autos, em que igualmente a Recorrida, enquanto arguida, não reclamou no processo disciplinar a nulidade procedimental emergente da ilegalidade da nomeação do instrutor.

E, sendo assim, outra solução não resta senão a de revogar o acórdão sob recurso para prosseguimento da acção administrativa especial, em ordem ao conhecimento dos vícios invocados pela Autora na petição inicial.


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DECISÃO
Pelo exposto acordam em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e ordenar o prosseguimento dos autos para conhecimento dos demais vícios imputados ao acto impugnado.
Custas pela Recorrida.
Porto, 24 de Outubro de 2014
Ass.: João Beato Sousa
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Hélder Vieira