Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01280/08.9BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/22/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE MATÉRIA DE FACTO – DEPENDÊNCIA UMBILICAL COM O ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO
– FALTA DE ENCADEAMENTO
Sumário:I- Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 662º do C.P.C. , o Tribunal Superior só deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.

II- Sendo a demonstração do erro de julgamento de direito umbilicalmente dependente da validação da tese associada ao erro de julgamento de facto, a inverificação desta determina a improcedência daquele.

III- A falta de encadeamento da conclusão decisória elencada pela Recorrente com a motivação fáctica apurada nos autos determina igualmente a inverificação do erro de julgamento de direito imputado à decisão judicial recorrida
Recorrente:A., LDA
Recorrido 1:MUNICIPIO (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

A., LDA., com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga promanada em 11.04.2019, que julgou “(…) parcialmente procedente a presente ação administrativa, anulando-se, pela razão exposta, o segmento decisório do acto impugnado na parte em que ordenou a demolição de obras ilegais existentes/construídas no Lugar de (...) da freguesia de (...) do concelho de (...) (…)”.
Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
1.°
O presente recurso impugna a matéria de facto.
2.°
Ocorreu a gravação da audiência e a recorrente, nos termos do art. 640.° , n.° 1 e 2 do C.P.C. , indicou supra quais os concretos meios de prova , os pontos de facto que considera incorretamente julgados constantes do processo e do registo de gravação (indicando com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso ) , em que se funda para discordar da decisão da matéria de facto proferida , no que concerne ao ponto y da matéria dada como provada , deixando-se aqui reproduzido o vertido supra em I - Primeiro das Alegações .
3.°
Entende , em suma, a Recorrente que em face do alegado em I - Primeiro das Alegações ( cujo teor aqui se deixa reproduzido na integra ) , impõe-se que o vertido no ponto y da Sentença recorrida só pode ser NÃO PROVADO , o que se requer , por força dos depoimentos das testemunhas P. e A. , que merecem credibilidade e que mantiveram equidistância, apesar da ligação que têm com os titulares da Autora , e tiveram um discurso objectivo e coerente e que demonstraram conhecer os factos e depuseram no sentido de que desde que a Autora iniciou a atividade esta é unicamente a de compra e venda de peças de automóveis e que os veículos que ai se encontravam não eram sucata , antes se destinavam á manutenção / reparação automóvel , conforme se colhe da audição das passagens de gravação referidas , que destrói a versão que o Tribunal a quo dá dos seus depoimentos.
DA MATÉRIA DE DIREITO :
4.°
Dada como NÃO PROVADA , por este Tribunal , os factos constantes do ponto y dos FACTOS PROVADOS , deve ser julgada procedente a presente ação , no que concerne ao segmento decisório do acto impugnado que ordenou a remoção de todas de todas as viaturas e outras peças , anulando-se o mesmo , considerando-se, para o efeito, Provado que desde que a Autora iniciou a atividade esta é unicamente a de compra e venda de peças automóveis e que os diversos veículos automóveis que se encontravam no prédio em questão não são sucata , antes se destinavam à manutenção/reparação automóvel ( como resulta , aliás , do facto provado no ponto S dos Factos Provados ) .
5. °
O que decorre, também, do art. 130.° do C.P.C. que veda ao Tribunal a quo a prática de atos inúteis , ou seja,
Ao manter o Tribunal a quo o segmento decisório do acto impugnado que ordenou a remoção de todas as viaturas e outras peças, tal contraria o acordado na providência cautelar , homologado por sentença transitada em julgado , de onde se colhe que todas as viaturas e outras peças foram do prédio em questão removidas .
6.°
A sentença violou e interpretou, erroneamente , as normas que invocou na sentença em crise (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município (...) produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo:“(…)

1.° O presente recurso vem limitado á parte da sentença que julgou improcedente, o pedido de anulação do ato impugnado, com fundamento em erros nos pressupostos de facto, na parte em que determinou a remoção - no prazo de trinta dias - “de todas as viaturas e outras peças (...) que possui no Lugar de (...) da freguesia de (...) deste concelho de (...), uma vez que (...) a sucata (...) não se encontra.) legalizada.) nesta Autarquia, por falta das necessárias licenças .).”.
2. ° O recurso deverá, contudo ser rejeitado, pois, conforme resulta das alegações da Autora, esta não poderá dele retirar qualquer efeito útil, por os efeitos do ato impugnado se encontrarem esgotados e a Autora, com eles se ter conformado, nos termos e para os efeitos do disposto no n.° 1 do artigo 56.° do CPTA.
3. ° A Autora pretende fazer assentar a sua razão de discordância na “credibilidade e “equidistância” do depoimento das testemunhas P. e A.;
4. ° Contudo, o Tribunal a quo, beneficiando da imediação na observação da prova produzida não deixou de alertar para a circunstância de “P. e A. não mantiveram equidistância, face à ligação de tinham com os titulares da Autora, apresentando um discurso pouco objectivo, o que afetou irremediavelmente a credibilidade do seu testemunho.” (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.

Neste pressuposto, e considerando a respetiva ordem de invocação, as questões essenciais a dirimir são as seguintes: erro de julgamento de (i) facto e (ii) de direito da sentença recorrida, designadamente por violação do artigo 130º do C.P.C.
Assim sendo, estas serão, por razões de precedência lógica, as questões a apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO

O quadro fáctico [e respetiva motivação] apurado na decisão recorrida foi o seguinte: “(…)
A) A favor de J., encontra-se inscrita, na Conservatória do Registo Predial (...), sob n° 00438/ 930330, a aquisição, por compra, de um prédio rústico (“Campo do Godo Branco — pinhal e mato — 2100 m2), situado freguesia de (...)/(...).
B) Em 01/01/1990, entre A. e mulher M., como Primeiros Outorgantes, e J., na qualidade de Segundo Outorgante foi celebrado um contrato de arrendamento comercial, onde declararam, além do mais:
“(...) Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico sito no Lugar de (...), freguesia da A., concelho de (...), a confrontar de Norte com M., a Sul com A., do Nascente com caminho limite de concelho e a Poente com J., inscrito na matriz rústica da freguesia da A. sob art. 78, com área de 3.400m2.
Pelo presente contrato os Primeiros dão de arrendamento aos Segundos a parte do supra citado prédio, numa área de 2.500m2, a qual se encontra limitada por uma vedação de rede de arame.
PRIMEIRO: - A referida parcela de terreno, destina-se em exclusivo a uma sucata de Automóveis, não podendo ser-lhe dado outro destino (...)” .
C) Em 16/05/2003, J. apresentou junto da Camara Municipal de (...) pedido de licenciamento para legalização de depósito de sucata.
D) Por despacho de 30/05/2003, do Vereador do Planeamento e Gestão Urbanística, foi indeferida a pretensão de J..
E) Em 24/09/2003, J. dirigiu requerimento ao Presidente da Câmara Municipal de (...), a comunicar que: “No local, onde se encontra implantada a construção a que se reporta o Proc em epigrafe, deixou de ser depositada sucata, que foi transferida para o deposito sito em (...) (...) Requer a Vª. Exa. que o processo supra referenciado fique a aguardar a atualização e revisão do PDM (...).
F) J. foi notificado, em 02/03/2004, mediante mandado datado de 29/12/2003, da Câmara Municipal de (...), da intenção da Câmara Municipal de proceder ao encerramento do local (Lugar de (...)-(...) - (...)) onde possui ilegalmente um “Depósito de Sucata” em atividade, e consequente desmantelamento do mesmo uma vez que o pedido da sua legalização foi indeferido por despacho exarado em 30.05.2003”, e para em 10 dias se pronunciar por escrito.
G) Por declaração datada de 10/03/2004, o Presidente da Junta de Freguesia de A., declarou que: “(...) o terreno situado a poente do caminho de ligação entre A. e Fonte Boa, existente em (...), no local denominado por “Quinta Grande” onde se encontra instalado o Estabelecimento de Sucata, de J., portador do BI (...) pertence a esta Vila de A. (...)”.
H) O Presidente da Câmara Municipal de (...) remeteu ofício, datado de 26/03/2004, ao Vereador do Pelouro das Obras da Câmara Municipal de (...), sob o assunto “Pedido de informações relativas ao processo n° 45603 de J.”, a solicitar colaboração na resolução de uma situação potencialmente poluente que existe nos limites geográficos dos concelhos de (...) e (...) e que se refere a um depósito de sucata, sita nas freguesias de (...) e A. e pertença de J..
I) Com data de 16.06.2004, foi elaborada informação com o seguinte teor: “Após reunião efetuada no local da sucata (...) e após analisar o processo respectivo se concluiu que o caminho existente junto desta, é que delimita os dois concelhos. Como a sucata é composta por a) — depósito de sucata e b) oficina de mecânica e venda de peças, e ficando esta dividida pela existência de um caminho, ficou esclarecido que a parte pertencente ao concelho de (...) será b). Perante estes factos e no aspeto de licenciamento, compete à Camara Municipal de (...) julgar o espaço b). Informo ainda que este espaço (b), possuiu construções e está vedado em todo seu perímetro, e situa-se em Reserva Agrícola Nacional, conforme se poderá confirmar nas plantas que junto se anexa...”.
J) A informação referida no ponto anterior deu origem ao despacho de 18/06/2004, no sentido de se comunicar à Câmara de (...) e para se notificar o proprietário que é intenção da Câmara proceder à demolição das obras executadas ilegalmente.
K) Em 01/07/2004, foi emitido Mandado de Notificação, para notificação pessoal de J., ordenado pelo Sr. Vereador M., no uso de Delegação de Competências atribuído pelo despacho n° 15/2002 de 15 de novembro, nos termos e com o teor seguinte:
“ Em conformidade com o despacho de 18.06.2004, do Senhor Vereador deste Município, notifica-se V. Exa. da intenção desta Camara Municipal proceder à demolição de todas as obras ilegais que constam da informação efetuada à data de 18.6.04, pela Divisão do Planeamento e Gestão Urbanística, nomeadamente as que se referem a sua alínea b) ou seja: ( Vedação de Terreno, Oficina de Mecânica e Venda de Peças e Outras Construções) que aí possui no Lugar de (...) - (...) - (...) - Em Espaço de Reserva Agrícola Nacional -, que não estão legalizadas por esta Autarquia.
Mais se notifica V. Exa. de que dispõe do prazo de 15 dias a contar da data da presente notificação para se pronunciar por escrito a esta Camara do que tiver por conveniente dizer sobre o seu conteúdo, de acordo com o art. 106.° n.° 3 do decreto Lei 555/99 de 16 de dezembro com as alterações introduzidas pelo Decreto Lei 177/01 de 4 de junho em vigor “.
L) J. foi notificado pessoalmente do documento referido no ponto anterior em 31 agosto 2004.
M) Em 15/09/2004, J. pronunciou-se por escrito.
N) Através do ofício n. DPGU - 20285, com data de 19/10/2004, respeitante ao Processo 45603 (Legalização de uma sucata, Lugar de (...) - (...)), J. foi notificado nos seguintes termos:
“Na sequencia do despacho de 2004/10/14, do Vereador Eng. M., comunica-se a V. Exa. a informação desta divisão relativa ao pedido identificado em epígrafe:
“o requerente vem apresentar uma exposição relativa a legalização de uma sucata.
Assim vimos informar o seguinte:
1- Relativamente ao ponto 3 da exposição temos a indicar que, decorridos mais de 5 dias, ainda não foi apresentado o Contrato Promessa.
2- Relativamente ao ponto 4 e 6, o requerente deverá fazer prova que as construções foram edificadas em data anterior ao DL 38382 de 7 de agosto de 1951.
3- Relativamente ao ponto 5, a licença de utilização apenas foi necessária a partir do ano 1960
4- Relativamente ao ponto 7, o local onde está inserida a pretensão está classificada como Espaço Agrícola integrado na Reserva Agrícola Nacional.
5- Relativamente ao ponto 8, temos a indicar que a mesma foi deslocada para Norte, daí que a pretensão se localiza a essa distância. As plantas do regulamento do PDM não contemplavam o acerto da estrada, produto do desnivelamento ao IC1.
6- Relativamente ao 9, se o terreno será incluído na próxima revisão do PDM em outra classificação de espaço que venha, no futuro, viabilizar a pretensão, teremos que aguardar até a sua ratificação.
7- Posto isto, a exposição em nada altera as informações anteriormente comunicadas ao requerente”.
8- A Autora foi notificada em 14/04/2008 do Oficio 769 da Divisão de Fiscalização da Camara Municipal de (...), com data de 07.04.2008, respeitante ao Processo Fiscal n° 2/08 - Obras Ilegais no Lugar de (...) da Freguesia de (...), assinado pelo Vereador M., com o seguinte teor: “Na sequência da informação da brigada fiscal respectiva, que constatou a construção de obras ilegais, Legalização de uma Sucata, pelo que, através do presente oficio, fica V. Ex.a notificado de que é intenção desta Câmara Municipal proceder à sua demolição, conforme despacho de 25.03.2008, por não possuir a necessária licença para o efeito.
Mais fica notificado de que, ao abrigo do disposto no artigo 106.°, n.° 3, do Decreto Lei n° 555/99, de 16 de dezembro, alterado e republicado pela Lei 60/07 de 4 de setembro, dispõe do prazo de 15 dias, úteis, para se pronunciar acerca da referida intenção, a contar da data da receção do presente oficio. (...)”.
O) A Autora apresentou exposição escrita, com data de 30/04/2008, onde conclui que inexiste fundamento para qualquer demolição.
P) Com data de 13/05/2008, foi proferido despacho a ordenar a notificação para em trinta dias remover todas as viaturas e outras peças bem como demolir as obras ilegais.
Q) Desta decisão a Autora foi notificada em 04 de junho de 2008, através do ofício 1291 da Câmara Municipal de (...), datado de 28.05.2008, com o seguinte teor:
“No seguimento dos assuntos em epígrafe, e de acordo o meu despacho datado de 13.05.08, notifica-se essa firma para no prazo de 30 dias a contar da data da receção do presente ofício, proceder à remoção de todas as viaturas e outras peças, assim como demolir as obras ilegais, que possui no Lugar de (...) da freguesia de (...) deste concelho de (...), uma vez que quer a sucata, como as obras não se encontram legalizadas nesta Autarquia, por falta das necessárias licenças (utilização e obras).
Mais se notifica que nos termos do artigo 106.° n°s 1 e 4 do Decreto-lei 555/99, de 16 de dezembro, alterado e republicado pela Lei 60/07, de 4 de setembro, será esta Autarquia a efetuar esses trabalhos, a suas expensas, caso não dê cumprimento à notificação (...)”.
R) Do teor da matrícula e inscrições em vigor da Autora, com registo na Conservatória do Registo Comercial de Braga, consta como seu objeto o “Comercio de peças e acessórios para veículos automóveis, manutenção e reparação de veículos automóveis”.
S) A Autora apresentou declaração de início de atividade em 03 de janeiro de 2007.
T) Em 1990, o prédio referido em A) encontrava-se delimitado por vedação de arame e muro de pedra solta parcialmente desfeito - cf. fls. 57 PA 45603 e Testemunha L..
U) Muro esse que foi sendo recuperado e alteado pelos titulares da Autora - Cf. depoimentos das Testemunhas L., P., A.; cf. relatório fotográfico constante do Relatório Pericial Colegial.
V) No prédio referido em A) existem cinco construções não licenciadas pela Câmara Municipal de (...).
W) Todas as construções foram sendo erigidas ao longo das décadas de 80/90 - Cf. depoimento da Testemunha L., P. cf. relatório fotográfico constante do Relatório Pericial Colegial.
X) O barracão, usado exclusivamente para fins agrícolas, parcialmente aberto nas laterais, erigido em data anterior a 7 de agosto de 1951, sofreu, ao longo das décadas de 80/90, obras de alteração e ampliação, contando actualmente com casa de banho, quarto e escritório - cf. depoimentos das Testemunhas L. e P..
Y) Pelo menos até 2008 foi exercida atividade de sucata no prédio referido em A) - cf. depoimentos das Testemunhas L., P. e A..
Z) O prédio integra-se, na totalidade, em zona construtiva - cf. Relatório Pericial junto aos autos.
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Os factos vertidos nas alíneas A) a S) correspondem aos factos assentes em despacho saneador — cf. de fls. 280 e ss. dos autos.
Quanto aos restantes, a convicção deste Tribunal resultou da ponderação global e conjugada de toda prova produzida em juízo - documental/testemunhal e pericial - observados que foram os princípios do contraditório e da imediação.
Ouviram-se Testemunhas, a saber:
L. demonstrou conhecer bem o local em discussão e o Tribunal valorou positivamente o seu depoimento por isento, não demonstrando interesse próprio ou outro nesta causa, espelhando um retrato de uma realidade vivida, com as limitações próprias da memória.
A partir do depoimento desta Testemunha, o Tribunal ficou convencido que, com referência ao prédio em discussão nos presentes autos, já nos anos 70 existia um barracão, afeto exclusivamente à agricultura, usado para guardar alfaias agrícolas, de construção pouco sólida, edificada de acordo com as técnicas antigas, sem sinais de cimento ou de betão. Por sua vez, a propriedade era delimitada por arame, admitindo-se a existência de muros de pedra solta, baixos e parcialmente destruídos - cf. depoimento desta Testemunha com teor do contrato de arrendamento comercial celebrado em 1/1/1990.
À medida que ia crescendo a atividade aí desenvolvida - sucata de automóveis - o terreno foi sendo vedado em todo o seu perímetro, os muros foram sendo alteados e as construções erigidas.
O Tribunal ficou convencido da existência de uma sucata no local em discussão desde os anos 70.
A versão desta Testemunha foi, aliás, corroborada por outras duas Testemunhas: (i) P., amigo dos titulares da empresa aqui Autora, e (ii) A., comerciante de automóveis, irmão dos titulares da Autora. Ambos conheciam bem o local, o prédio em discussão e as construções cuja legalidade se discute nos presentes autos, tanto mais que as Testemunhas reconheceram imediatamente o local quando confrontadas com as fotografias dos autos, designadamente de fls. 223 e ss.
Da conjugação de toda a prova produzida, documental, testemunhal e pericial, o Tribunal ficou convencido que quer os muros, quer as cinco construções foram realizadas em datas ulteriores a 1977.
Quanto ao tipo de atividade exercida pela Autora no prédio sito no Lugar de (...), os depoimentos das Testemunhas não foram suficientes para afastar o pressuposto de facto de que a Administração partiu para decidir como decidiu. Ou seja, não logrou êxito a tentativa de convencer o Tribunal que hoje a atividade se reconduz unicamente à compra e venda de peças de automóveis, com isso pretendendo afastar qualquer semelhança com a atividade de sucata que havia sustentado o acto impugnado. Com efeito, L. evitou responder as questões formuladas sobre esta matéria com receio de responder com falta de rigor. Por sua vez, P. e A. não mantiveram equidistância, face à ligação de tinham com os titulares da Autora, apresentando um discurso pouco objectivo, o que afetou irremediavelmente a credibilidade do seu testemunho.
O mesmo se diga quanto ao depoimento de F., Técnico de Arquitetura, que prestou serviços à Autora, tendo sido pouco rigoroso quanto a esta matéria, não demonstrando conhecer o dia-a-dia da atividade desenvolvida pela Autora, além de ser ter deslocado ao local em horário fora de laboração.
Quanto à matéria de facto relacionada com a classificação da zona onde se localizam as construções, o Tribunal sustentou o julgamento da matéria de facto no resultado da prova pericial, única, idónea, para classificar com exatidão - a zona em termos urbanísticos, a partir do levantamento topográfico. Por esta razão, não se consideraram os depoimentos das Testemunhas J., A., R. e R. (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
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Assente a factualidade que antecede, cumpre, agora, apreciar as questões suscitadas nos recursos jurisdicionais em análise.
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I- Do imputado erro de julgamento de facto
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A primeira questão decidenda consubstancia-se em saber se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos pontos indicados pela Recorrente.
Vejamos.
A lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria de facto, exige, desde logo, o cumprimento do ónus processual preconizado no artigo 640º do CPC.
De facto, e no que concerne à sua legal admissibilidade, ressuma com evidência do preceituado no nº. 2 do artigo 640º do CPC que, “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Destaca-se, nesta problemática, o Acórdão produzido por este Tribunal Central Administrativo Norte de 04.12.2015, no processo nº. 418/12.6BEPRT, cujo teor ora parcialmente se transcreve:”(…)
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar (dá-se aqui uma “ênfase redundante” nas palavras de Cardona Ferreira in Guia de Recursos em Processo Civil, 5º edição, pág. 167), os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Tem por objectivo responsabilizar as partes (princípio da auto-responsabilidade das partes), vedando-lhes a impugnação a decisão da matéria de facto como uma mera manifestação de inconformismo infundado – cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 3ª edição, 2010, Almedina, p. 159 – bem como garantir, para além do contraditório, a cooperação processual entre as partes e o Tribunal.

Cfr. Ac. RL, de 26-03-2015, proc. nº 183/13.0TBPTS.L1-2 [destaque nosso]:
«(…) o art. 640.º do CPC fixa o ónus de alegação a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Desse ónus, consta, designadamente, a especificação obrigatória dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados, dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada e da decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art. 640.º, n.º 1, do CPC).
O estabelecimento desse ónus de alegação destina-se, fundamentalmente, a proporcionar o efetivo contraditório da parte contrária e, por outro lado, a facilitar a compreensão e decisão da impugnação pela Relação, que pode modificar a decisão de facto, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
O incumprimento de tal ónus de alegação implica, sem mais, a rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, do CPC).».

Conforme se sumaria no Ac. deste TCAN, de 22-05-2015, proc. nº 132/10.7BEPNF [destaque nosso]:
I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente: (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.

De igual forma no Ac. deste TCAN, de 28-02-2014, proc. nº 00048/10.7BEBRG [destaque nosso]:
I. Resulta do art. 685.º-B do CPC que quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve, obrigatoriamente, especificar, sob pena de rejeição do recurso, não só os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.

Igualmente no Ac. deste TCAN, de 22-10-2015, proc. nº 1369/04.3BEPRT, se lembra [destaque nosso]:
«Como já salientámos em casos idênticos (v. Acórdão do TCAN, de 22.05.2015, P. 1224/06.2BEPRT), as competências dos Tribunais Centrais Administrativos em sede de intervenção na decisão da matéria de facto encontram-se reguladas, por força da remissão do artigo 140.º do CPTA, nos artigos 640.º e 662.º do CPC/2013, que acolheram um regime que, de um lado, assume a alteração da matéria de facto como função normal da 2.ª instância e, do outro, não permite recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas admite a possibilidade de revisão de “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente” (v. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 2014, 130). Neste contexto, recai sobre o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de especificar, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, por outro, os concretos meios probatórios que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos que entende que deviam ter sido dados como provados ou não provados, incluindo a indicação exata das passagens da gravação, no caso de depoimentos gravados (artigo 640.º do CPC) (…)”.

Em reforço deste entendimento, ressalte-se o expendido no Acórdão deste T.C.A.N. de 17.01.2020 [processo n.º 141/09.9BEPNF], consultável em www.dgsi.pt:
“(…) Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 155 sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.
É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo.” (…)”.
Deste modo, à luz de tudo o quanto se vem de expender, haverá que se entender que a lei processual, para facultar a reapreciação da decisão matéria da facto, exige que o Tribunal Superior seja confrontado com (i) os concretos pontos que, no entender do Recorrente, se mostram como incorretamente julgados; (i.1) a indicação do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida; (i.2) a definição da decisão que, no entender daquele, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e a (i.3) expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Cientes do que se vem de expor, importa agora analisar a situação sob apreciação aferindo do cumprimento do ónus processual supra sintetizados, e, mostrando-se necessário, do acerto da matéria de facto sob impugnação.
E, nesse domínio, dir-se-á que a Recorrente faz expressa referência aos pontos de facto que, no seu entender, se mostram como incorretamente julgados, motivando, na exigência de lei, tal entendimento, ou seja, com definição do meio probatório que impõe decisão diversa da recorrida, que define objetivamente, e com expressa de indicação com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
O que serve para concluir que a Recorrente cumpre adequadamente o ónus de impugnação preconizado no nº. 2 do artigo 640º do C.P.C, nada obstando, por isso, à reapreciação da matéria de facto impugnada no recurso quanto àqueles concretos factos e com base nos referidos elementos probatórios.
Importa, por isso, aferir do acerto [ou desacerto] da matéria de facto sob impugnação.
Do preceituado no nº.1 do artigo 662º do CPC, ex vi artigo 1º do CPTA, ressuma com evidência que este Tribunal Superior deve alterar a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuser decisão diversa.

Na interpretação desta normação de lei ordinária, decidiu-se no aresto do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, o seguinte:
“(…) o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância. Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação. Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos não apreensíveis na gravação dos depoimentos.
Em suma, na reapreciação das provas em segunda instância não se procura uma nova convicção diferente da formulada em primeira instância, mas verificar se a convicção expressa no tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos, que a decisão não corresponde a um erro de julgamento (…)”.

Posição que se acolheu no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 27.11.2020, tirado no processo nº. 01291/14.5BEAVR:
“(…) Nesse domínio, impõe-se precisar que da conjugação do regime jurídico previsto nos arts. 637º, n.º 2, 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), 641º, n.º 2, al. b) e 662º do CPC ex vi art. 1º do CPA, é pacífico o entendimento que perante o direito positivo processual vigente, sempre que esteja em causa a impugnação do julgamento da matéria de facto em relação a facticidade cuja prova ou não prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos ao princípio da livre apreciação, a 2.ª Instância tem de efetuar um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, considerando os meios de prova indicados pelo apelante no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da 1ª Instância, formando a sua convicção autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e recorrendo a presunções judiciais ou naturais, embora esteja naturalmente limitado pelos princípios da imediação e da oralidade, “devendo alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 273 e 274; Acs. STJ de 14/01/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.S1; RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BRGC.C1, in base de dados da DGSI..
No entanto, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do art. 662º, n.º 1 do CPC, não basta que a prova indicada pelo apelante, conectada com a restante prova constante dos autos, a que o tribunal ad quem, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se, consinta esse julgamento de facto diverso, mas antes que o determine, isto é, que o “imponha”.
Essa exigência legal fixada pelo mencionado n.º 1 do art. 662º decorre da circunstância de se manterem em vigor no atual CPC os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
Deste modo, apesar de serem de rejeitar as teses que defendem que a modificação da decisão de matéria de facto apenas está reservada para os casos de “erro manifesto” e, bem assim aquelas que sustentam não ser permitido à 2.ª Instância contrariar o juízo formulado pela 1ª Instância relativamente a meios de prova que são objeto do princípio da livre apreciação da prova, importa ter presente que os princípios da livre apreciação da prova, da imediação, da oralidade e da concentração se mantêm vigorantes e que como decorrência dos mesmos e da consideração que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao juiz da 1ª Instância, sequer desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou na produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da sua convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação áudio dos depoimentos pessoais prestados em audiência final. Como tal, os poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova produzida que entenda pertinente, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Deriva do que se vem dizendo que após a 2.ª Instância ter feito esse seu julgamento autónomo em relação à matéria de facto impugnada pela apelante, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso” Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609 (…)”.
Reiterando esta linha jurisprudencial, tem-se, portanto, por assente que, perante a impugnação do tecido fáctico fixado em 1ª instância, impede sobre o Tribunal Superior a realização de um novo julgamento, encontrando-se a alteração da tecido fáctico fixado em 1ª instância apenas reservada para as situações em que a prova produzida imponha decisão diversa, o que não sucede quando o Tribunal ad quem, apreciada essa prova, propende antes para uma diferente convicção, contudo, não imposta pela prova produzida.
Realmente, inexistindo uma convicção inevitável quanto à prova produzida, o Tribunal Superior terá que conceder na prevalência da decisão proferida pela 1ª Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
Cientes destes considerandos de enquadramento, atentemos, agora, no caso sub juditio.
A Recorrente veio pugnar pela alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo errou ao dar como provado o vertido na alínea y) dos factos assentes, do seguinte teor: “(…) Pelo menos até 2008 foi exercida atividade de sucata no prédio referido em A) (…)”.
A motivação que estriba o erro de julgamento em análise prende-se com o entendimento de que “(…) A resposta dada ao ponto Y não resulta (…) da mais correta apreciação da prova produzida (…)”, já que “(…) dos depoimentos unânimes das testemunhas P. e A. ( declarações gravadas em cassete proferidas, respetivamente, nos minutos 03:15 e 05:13 ) que desde que a Autora iniciou a atividade esta é unicamente a de compra e venda de peças de automóveis e que os diversos veículos automóveis que aí se encontravam não eram sucata, antes se destinavam à manutenção/reparação automóvel, (…)”.
Apreciando.
Ressuma da motivação da matéria de facto que o Tribunal a quo fundou a convicção de que a “(…) Pelo menos até 2008 foi exercida atividade de sucata no prédio referido em A) (…)” na (i) asserção da falta de isenção e imparcialidade dos depoimentos prestados a este propósito, ademais e especialmente, dos preconizados pelas testemunhas P. e A., devidamente concatenada com a (ii) ponderação do depoimento prestado pela testemunha L., inequívoco em reconhecer a existência de uma sucata no local em discussão desde os anos 70.
Ora, e quanto ao primeiro pilar argumentativo supra elencado, cabe salientar que a Recorrente procura afastar a atestada falta de isenção e imparcialidade do depoimento prestado pelas testemunhas P. e A., invocando, para tanto, que as mesmas merecem credibilidade e que mantiveram equidistância, apesar da ligação que tinham com os titulares da Autora, e têm um discurso objectivo e coerente.
Esta alegação, porém, é manifestamente insuficiente para comprometer a razoabilidade da convicção formada pelo julgador.
De facto, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum e do senso comum.
Quer isto tantos significar que se impunha à Recorrente invocar a violação de qualquer dos passos para a formação de convicção do julgador, designadamente, porque não existiram os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou mesmo porque não houve liberdade de formação da convicção.
Ora, isso claramente não foi feito, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão da pretensão do Recorrente ora em análise.
Ademais, e para que não subsistam quaisquer dúvidas, contra a tese invocada pela Recorrente - de que os veículos automóveis que se encontravam na sua oficina não eram sucata, antes se destinavam à manutenção/reparação automóvel – milita o depoimento prestado pela testemunha L..
Estamos, portanto, perante duas posições divergentes sobre a mesma materialidade.
Como é sabido, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita [cfr. artigo 414º do C.P.C.].
Deste modo, também por esta motivação, não merece crítica a livre convicção do tribunal a quo firmada sobre os aludidos factos.
Nestes termos, improcede o suscitado erro de julgamento da decisão da matéria de facto, que assim se mantém inalterada.
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III- Do imputado erro de julgamento de direito
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A questão decidenda, como sabemos, traduz-se em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito, designadamente, por violação do artigo 130º do C.P.C.
Realmente, a Recorrente sustenta que, “(…) dada como não provada, por este Tribunal, os factos constantes do ponto y) dos factos provados, deve ser julgada procedente a presente ação, no que concerne ao segmento decisório do acto impugnado que ordenou a remoção de todas de todas as viaturas e outras peças, anulando-se o mesmo, considerando-se, para o efeito, Provado que desde que a Autora iniciou a atividade esta é unicamente a de compra e venda de peças automóveis e que os diversos veículos automóveis que se encontravam no prédio em questão não são sucata, antes se destinavam à manutenção/reparação automóvel (como resulta , aliás , do facto provado no ponto S dos Factos Provados)(…)”.
Defende ainda que “(…) Ao manter o Tribunal a quo o segmento decisório do acto impugnado que ordenou a remoção de todas as viaturas e outras peças, tal contraria o acordado na providência cautelar, homologado por sentença transitada em julgado, de onde se colhe que todas as viaturas e outras peças foram do prédio em questão removidas (…)”, o que colide frontalmente com o disposto no artigo 130º do CPC, que veda ao Tribunal a prática de atos inúteis.
Ora, no que concerne à primeira ordem de razões invocada pela Recorrente, é de manifesta evidência que ali invocado enuncia o sentido provável a atravessar ao erro de julgamento de direito em análise.
De facto, caso resulte não provado o tecido fáctico vertido Y) dos factos assentes, mais demonstrando-se que “(…) os diversos veículos automóveis que se encontravam no prédio em questão não são sucata, antes se destinavam à manutenção/reparação automóvel (…)”, será de proceder o erro de julgamento de direito imputado à decisão judicial recorrida, pois que esta se mostrará destituída de real fundamento legitimador do seu dispositivo.
Em sentido inverso, isto é, não sendo de acolher a tese da Recorrente no particular conspecto em análise, não será de admitir a procedência do erro de julgamento em análise, por falta de demonstração dos necessários pressupostos prévios integradores da tese da Recorrente.
Pois bem, no caso sub juditio, já vimos que a Recorrente não logrou demonstrar a existência de qualquer erro de julgamento da matéria de facto adquirida nos autos, que assim se manteve inalterada, ademais e especialmente, quanto à afirmação positiva de que “(…) Pelo menos até 2008 foi exercida atividade de sucata no prédio referido em A) (…)”.
Por conseguinte, em consonância com a lógica que se vem supra de expor, falece inteiramente a objeção da Recorrente no domínio em apreço.
Idêntica conclusão é atingível no que tange ao segundo grupo de razões invocadas pela Recorrente.
De facto, o Recorrente labora em manifesto equívoco quanto à assinalada evidência de que do “(…) acordado na providência cautelar, homologado por sentença transitada em julgado (…) colhe[-se] que todas as viaturas e outras peças foram do prédio em questão removidas (…)”
Na verdade, escrutinado o teor da transação celebrada a fls. 164 e seguintes [suporte digital] dos autos cautelares apensos - que correram termos no TAF de Braga sob o nº. 1042/08.3BEBRG -, resulta cristalino que o que ali ficou acordado foi apenas o seguinte: “(…) O Requerido obriga-se a suspender a eficácia do ato administrativo na parte que ordenou a remoção das viaturas e das peças, objeto do litígio nos presentes autos, até que seja proferida decisão na ação administrativa especial nº. 1280/08.9, que corre por apenso, o que o Recorrente aceita (…)”.
Mas daí não decorre a conclusão lógica e necessária que “(…) todas as viaturas e outras peças foram do prédio em questão removidas (…)”.
Na verdade, a única conclusão lógica que decorre do apontado tecido fáctico é o que dele consta, ou seja, que o Requerido abstém-se de executar o ato administrativo que ordenou a remoção das viaturas e das peças até à prolação de decisão final deste processo.
Qualquer outra conclusão em face do aludido preceito legal constitui uma extrapolação não sustentável, mesmo temerária, por falta do respectivo nexo lógico.
Neste enquadramento, não se pode acompanhar a tese sustentada pela Recorrente no sentido de que a respetiva conclusão decisória não está logicamente encadeada com a respetiva motivação fáctica.
Assim deriva, naturalmente, que não se antolha a existência de qualquer erro de julgamento direito na questão tratada, improcedendo, por isso, todas as conclusões deste recurso jurisdicional.

Deve, portanto, ser negado provimento ao recurso jurisdicional e mantida a sentença recorrida.
Assim se decidirá.
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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice” e manter a decisão recorrida.
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Custas pela Recorrente.
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Registe e Notifique-se.
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Porto, 22 de outubro de 2021,

Ricardo de Oliveira e Sousa
João Beato
Luís Migueis Garcia