Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00580/20.4BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/24/2020
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA, ÓNUS DA PROVA, FORTES INDÍCIOS DE ACTUAÇÃO DOLOSA NA INEXISTÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA DO PATRIMÓNIO,
DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Nos termos do artigo 52.º, n.º 4 da LGT, na actual redacção, introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada por insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que, em qualquer dos casos, não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.

II - O benefício da isenção fica, assim, dependente de dois pressupostos, a provar pelo Requerente, em alternativa: (i) existência de prejuízo irreparável decorrente da prestação da garantia ou (ii) falta de bens económicos para a prestar.

III - Demonstrado um dos pressupostos enunciados, a AT pode deferir o pedido “desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.”

IV - A apreciação da legalidade do acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia só pode fazer-se tendo em conta os elementos de facto e de direito que condicionaram a respectiva prolação.

V - A referência à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma actuação dolosa do interessado, pretende desincentivar não só a subtracção de bens à penhora como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia – e consequente suspensão da execução fiscal - o devedor que dolosamente se desfaz do seu património.
Se tal conduta fosse tolerada, estar-se-ia a tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo do credor tributário. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:R., LDA
Recorrido 1:Fazenda Pública.
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

R., LDA, NIPC(…), com sede na Travessa (…), (…), (…), interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, proferida em 20/05/2020, que julgou improcedente a reclamação formulada contra a decisão proferida pelo Director de Finanças de (...), que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia para obter a suspensão da execução fiscal, no âmbito dos processos de execução fiscal (PEF) n.º 0418201801235494 e apensos, que correm termos no Serviço de Finanças de (...)-1, relativos a dívida exequenda no valor de €381.604,93.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
“A) O presente recurso deve ser admitido com efeito suspensivo, ao abrigo do disposto no artigo 286.º, n.º 2, parte final do CPPT.
B) O Tribunal «a quo» incorreu em erro de julgamento, porque não deu como provado um facto essencial que, pela prova documental que consta dos autos deveria ter sido dado como provado, por não permitirem extrair outra conclusão que não a da sua comprovação.
C) O Tribunal «a quo» não deu como provado o seguinte facto:
• Se, por um lado, a Reclamante viu sair do seu património três veículos, por outro lado, entrou nas suas contas o montante correspondente ao valor dos mesmos (ponto 46 da petição inicial).
D) Esse facto resulta, no entender da Recorrente, claramente demonstrado através do documento n.º 6 junto com a petição inicial, que se trata do comprovativo do depósito na conta da Recorrente do valor correspondente à venda dos bens. Resultando provado que associado à venda das viaturas houve a entrada de dinheiro na conta da Recorrente e que, portanto, aquele ato de alienação se tratou de um ato oneroso, não poderia aquele facto ser usado pela AT, e depois pelo Tribunal, para justificar a existência de “fortes indícios de atuação dolosa na insuficiência do património”.
E) No ponto 11 dos factos provados, encontra-se transcrito o despacho proferido pelo Diretor de Finanças de (...) de concordância com os fundamentos relatados em informação anterior, que propôs a manutenção na ordem jurídica do ato objeto de reclamação judicial, no qual se refere:
“Para além disso, nos anos precedentes (2014 a 2017) a gerência daR., LDA, NIPC (…), por via da utilização de faturas emitidas pela C., LDA NIPC(...), que não tinham subjacentes operações reais, retirou da esfera societária os montantes correspondentes a essas faturas: 409.074,52€ (ano de 2014), 175.091,43€ (ano de 2015), 386.704,56€ (ano de 2016) e 262.322,50€ (ano de 2017).”
F) Trata-se de um facto controverso, encontrando-se a ser discutido no âmbito das impugnações judiciais que correm termos junto do TAF de Braga, onde se discutem a legalidade das correcções efetuadas em sede inspetiva pela AT, relacionadas com as faturas emitidas pelaC., razão pela qual não poderia o tribunal «a quo» ter dado esse facto como provado.
G) A douta sentença proferida incorreu em erro em matéria de direito, porquanto não foram dados como provados factos suficientes que permitissem concluir, como fez a douta sentença recorrida, que “a AT invocou e provou, que existem indícios fortes, sérios, consistentes e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa da reclamante, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial, o que impede a dispensa de garantia”.
H) A alienação das quotas da sociedadeF., Lda. — atual D., Lda. - não pode ser encarada como um indício de atuação dolosa na diminuição do património da Recorrente, uma vez que as quotas não integravam o património daquela, mas antes o património do seu sócio-gerente e da sua sócia.
I) A “manifesta falta de meios económicos para prestar garantia” e os “inexistência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do executado”, requisitos de que depende a isenção de garantia nos termos do artigo 52.º, n.º 4 da LGT, afere-se em relação ao património do executado, no caso, a sociedade aqui Recorrente, e não em relação ao património dos seus sócios.
J) As vendas das viaturas trataram-se de transmissões onerosas que em nada diminuíram o património da Recorrente, uma vez que tendo saído do património da Recorrente as referidas viaturas, a Recorrente viu entrar no seu património o valor correspondente àqueles bens.
K) Ainda que os veículos se mantivessem na esfera patrimonial da Recorrente, considerando o seu valor, que não foi contestado pela AT, sempre se concluiria pela insuficiência de bens penhoráveis da Recorrente para assegurar o pagamento da dívida exequenda, uma vez que o valor global dos bens alienados pela Recorrente é manifestamente inferior ao valor da garantia a prestar, pelo que nunca seriam suficientes para servir de garantia no processo de execução fiscal.
L) O Tribunal «a quo» considerou existirem “indícios de atuação dolosa” baseado em factos que, por um lado, não dizem respeito ao património da Recorrente, mas ao património pessoal dos seus sócios e, por outro lado, baseada em factos que não implicaram a diminuição do património da Recorrente.
M) Nos presentes autos a AT não alegou nem demonstrou a existência de intenção por parte da Recorrente de, através dos atos de alienação do património — realce-se, atos onerosos e que não implicaram a diminuição do património — diminuir as garantias do credor tributário, pelo que incorreu o tribunal «a quo» em erro em matéria de direito quando considerou existirem fortes indícios de atuação dolosa na insuficiência do património.
N) A AT apresentou, já em sede de reclamação judicial do despacho de indeferimento do pedido de dispensa de garantia um “indício novo” que não constava do despacho que indeferiu o pedido de dispensa de garantia (ponto 11 dos factos provados), tratando-se, portanto, de fundamentação à posteriori pelo que não poderia ser considerado como motivo justificativo para indeferir o pedido de dispensa de garantia.
O) A AT através do facto elencado no ponto 11 dos factos provados remete para os factos alegadamente apurados em sede de inspeção tributária, não demonstrando que a conduta da Recorrente foi no sentido de, com intenção dolosa, diminuir a garantia e frustrar a cobrança do crédito tributário. Aliás tal facto é anterior ao processo executivo e ao próprio procedimento
Termos em que:
a) Deverá ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se, em consequência, nula a douta sentença por verificação de erro de julgamento, porquanto não deu como provado um facto essencial que, pela prova documental que consta dos autos deveria ter sido dado como provado;
b) deverá ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se, em consequência, nula a douta sentença por verificação erro de julgamento em matéria de direito, uma vez que não foram dados como provados factos que permitissem concluir pela existência de fortes indícios de atuação dolosa na insuficiência do património, nos termos do n.º 4 do artigo 52.º da LGT.
Pede deferimento.”
***
A Recorrida não apresentou contra-alegações.
***
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
***
Dada a natureza urgente do processo, há dispensa de vistos prévios (artigo 36.º, n.º 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ex vi artigo 2.º, n.º 2, alínea c) do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
***
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, por considerar que a AT não alegou nem provou factos demonstrativos do preenchimento do pressuposto de que depende a dispensa de prestação de garantia, contido na última parte do n.º 4 do artigo 52.º da LGT.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
FACTOS PROVADOS
Julgo provados os seguintes factos relevantes para a decisão da causa:
1. Correm termos no Serviço de Finanças de (...)-1, os processos de execução fiscal nº 0418201801235494 e apensos, contra a ora reclamante, com vista à cobrança coerciva de dívidas de IVA de diversos períodos dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 e de IRC dos anos de 2014 e 2015, no valor exequendo global de 381.604,93 € – cfr. certidões de dívida de fls. 63 a 142 e informação de fls. 151-154;
2. Com data de 23/11/2018 a reclamante solicitou ao BANCO (...) uma Garantia Bancaria a ordem da AT no valor de 492.432,67€ - cfr. documento de fls. 148;
3. Por ofício datado de 29/11/2018 o BANCO (...)comunicou à reclamante o seguinte – cfr. ofício de fls. 149:
“Assunto: Não aprovação de pedido de crédito - Garantia Bancária Ex.mo(s) Senhor(es),
Tendo presente o pedido de crédito acima identificado, o qual mereceu a nossa melhor atenção, o BANCO (...) informa que decidiu pela sua não aprovação.”;
4. Em 06/12/2018 a ora reclamante apresentou no Serviço de Finanças de (...)-1 requerimento a solicitar a dispensa de prestação de garantia, do qual consta, entre o mais, o seguinte – cfr. requerimento de fls. 143-150:
“(…)1. A Requerente foi notificada pelo V. Serviço de Finanças, das demonstrações de liquidação de IVA referentes aos períodos 201401, 201402, 201403, 201404, 201405, 201406, 201407, 201409, 201410, 201411, 201412, 201501, 201503, 201504, 201505, 201506, 201507, 201508, 201509, 201603, 201604, 201605, 201606, 201607, 201608, 201609, 201610, 201611, 201703, 201704, 201705, 201706, 201707, 201709 e das respectivas liquidações de juros de IVA.
2. E irá apresentar reclamação graciosa cujo prazo termina em 15-02-2019.
3. A Requerente foi também notificada das demonstrações de liquidação de IRC de 2014, 2015, e das respectivas demonstrações de liquidação de juros e demonstrações de acerto de contas.
4. E apresentará reclamação graciosa até ao dia 15-02-2018.
(…)
7. A Requerente pretende que as execuções fiscais sejam suspensas até à decisão das reclamações graciosas, nos termos dos artigos 52º da LGT e 169º nº 2 do CPPT.
8. No entanto, a Requerente não tem bens de valor suficiente para prestar garantia conforme demonstra o balancete que se junta como documento 1.
9. Também não possui meios financeiros para solver a divida, ainda que em prestações, tal como se verifica pelo balancete junto.
10. Já que o valor total da garantia a prestar para suspensão dos processos de execução supra identificados é de €425.857,90.
11. A Requerente não possui quaisquer bens imóveis.
12. A Requerente já solicitou junto do Banco a constituição de uma garantia bancária a favor da AT -cfr. documento 2.
13. Contudo, tal garantia não foi aprovada - cfr. documento 3.
14. Pelo que se verifica a manifesta falta de meios económicos, já que a Requerente não possui bens suficientes penhoráveis para o pagamento da totalidade da dívida exequenda e acrescido.
(…)
18. Acresce que a inexistência de bens de bens penhoráveis não é da responsabilidade da Requerente.
Nestes termos requer-se a V.a Ex.a que lhe seja concedida a isenção da prestação de garantia, no processo supra identificado, pelos motivos atrás expostos.(…)”;
5. Em 12/04/2019 o Serviço de Finanças de (...)-1 prestou informação, o qual mereceu despacho de concordância superior na mesma data, do qual consta, designadamente, o seguinte – cfr. fls.151-153;
“(…) Contra a sociedadeR., Lda., NIF(...), pendem diversos processos de execução fiscal, constantes da relação anexa, cujo montante total em divida ascende neste momento a € 468.464,48:
(…)
A executada deduziu Reclamação Graciosa, a qual foi autuada sob o nº 0418201904000526, relativamente aos valores em divida nos autos de execução fiscal 0418201801235494 e apensos.
À ordem destes autos não se encontram-se penhorados quaisquer bens;
A executada apresentou em 07 de Dezembro de 2018, requerimento (GPS2018E003710981) a solicitar a suspensão dos presentes autos, mediante dispensa de prestação de garantia, alegando, para o efeito, insuficiência de bens e de meios económicos;
O valor necessário para efeitos de garantia nestes autos é de € 502.298,76, calculado nos termos do artº 199º nº 6 do CPPT;
Contra a executada pende ainda outro processo de execução fiscal, no valor actual em dívida de € 74.878,19; (…)”;
6. Em 12/04/2019, no âmbito do processo de execução fiscal referido no ponto 1 deste probatório, foi fixado o valor de 502.298,76 € para prestação de garantia, com vista à respectiva suspensão – cfr. documento de fls. 154-156;
7. Em 30/04/2019 o Director de Finanças de (...) proferiu despacho de concordância com os fundamentos relatados em informação anterior, da qual consta, entre o mais, o seguinte – cfr. informação e despacho de fls. 158-163:
“(…) Através de comunicação electrónica da aplicação informática G.P.S., com o nº 04182019C140323 e datada de 2019-04-12 (14:52 h), vem o senhor Chefe do Serviço de Finanças de (...), solicitar a apreciação do pedido de suspensão do processo de execução fiscal (PEF) com o nº 0418201801235494 e seus 69 apensos, onde é executada a sociedade, R., Lda, NIPC(...), nos termos do artº 169º/nº 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), bem como, do pedido de dispensa de prestação de garantia, nos termos do nº 4 do artº 52º da Lei Geral Tributária (LGT) e artº 170º do CPPT, em virtude de à data do pedido (2018-12-07), terem a intenção de interpor contencioso administrativo, o que veio a ser efectuado, através de reclamação graciosa, em 2019-02-20, a qual tomou o nº 0418201904000528.
(…)
2 -As liquidações em cobrança nos PEF identificados no ponto anterior, resultam de auto declaração e de liquidações adicionais apuradas em consequência de acção de inspecção efectuada a coberto das ordens de serviço externas, com os nºs. OI201800532, OI201800533, OI201800534 e OI201800535, respeitantes aos exercícios dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, respectivamente.
3 - A requerente, não se conformando com a legalidade dos actos tributários deduziu reclamação graciosa, em 2019-02-20, a qual tomou o nº 0418201904000528.
4 - À data do pedido (2018-12-07), por existir esse motivo solicita a suspensão da execução, nos termos do nº 1 do artº 169º do CPPT, solicitando, para o efeito, dispensa de prestação de garantia, nos termos do nº 4 do artº 52º da LGT e 170º do CPPT, alegando:
(…)
5 - Do balancete anexo, relativo a Novembro de 2018, retira-se que os activos fixos tangíveis estavam mensurados no montante de € 8.497,50, e que existia uma verba relativa a investimentos financeiros no montante de € 1.500,00, não se mostrando possível, pelos dados fornecidos, averiguar, com precisão, o valor dos inventários.
6 - De acordo com a informação prestada pelo serviço de finanças, o valor da garantia necessária para suspender a execução no decurso do prazo de interposição do contencioso administrativo e calculada nos termos do nº 6 do artº 199º do CPPT (…), é do montante de € 502.298,76.
DO DIREITO:
(…)
Relativamente ao pedido de suspensão da execução, nos termos do nº 2 do artº 169º do CPPT, pela própria redacção da norma, verifica-se que a suspensão só pode ser obtida se for prestada garantia, sendo adicional o requerimento a solicitá-la.
Assim sendo, improcede este pedido de suspensão da execução.
No entanto, e porque o pedido não foi apreciado em tempo útil, isto é, já foi apresentado o meio gracioso de sindicância da legalidade da dívida exequenda, vai-se efectuar a análise do pedido de dispensa de prestação de garantia, pois já se mostram reunidas as legais condições para que a executada o solicite nos termos do nº 1 do artº 169º do CPPT.
O nº 4 do artigo 52º da LGT, dispõe que “A administração tributária pode, a requerimento do interessado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado”.
No nº 4 do artº 52º da LGT, estão expostas três premissas para que os requerentes possam obter a dispensa de prestação de garantia, sendo duas alternativas e uma terceira de preenchimento obrigatório, a saber:
- A prestação de garantia causar prejuízo irreparável; ou
- Manifesta falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis; e
- Não existam fortes indícios que a insuficiência ou ausência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado, a provar pela AT.
Como já se referiu no ponto 4 da presente informação, os requerentes alegam a inexistência de bens (pontos 8, 9, 11, 12, 13 e 14 da petição), o prejuízo irreparável (ponto 115 da petição) e que não lhes pode ser assacada responsabilidade na insuficiência ou ausência de bens (ponto 18 da petição).
Não é essa a nossa convicção, no que respeita à falta de responsabilidade na insuficiência ou ausência de bens, como se passa a expor:
-As OI201800532, OI201800533, OI201800534 e OI201800535, tiveram o seu início em “(...) 2018-03-14, data em que o sujeito passivo, na pessoa de F., NIF(...), na qualidade de sócio-gerente, tomou conhecimento das ordens de serviço supra identificadas, nos termos do art. 51º do RCPITA.” - último parágrafo a fls. 4/40 do relatório de Inspecção;
- Do ponto “II - 3.1.13. Outras Relações Inter-Sujeito Passivo”, consta que o sócio-gerente da sociedade executada, F., NIF (...), foi, até 2018-05-15, “(...) sócio-gerente da sociedade F., Lda., NIPC (...), (actualmente, D., Lda.) que é fornecedor do SP” - a fls. 7/40 do relatório de inspecção - e a esposa S., NIF (...), também era sócia nas duas sociedades;
- Os relatórios de Inspecção foram notificados à sociedade, em 2018-09-06 (OI201800532, OI201800533 e OI201800534) e 2018-09-26 (OI201800535);
- compulsada a certidão permanente da sociedade D., Lda., através da aplicação informática TMENU, do Ministério da Justiça, verifica-se que pela Inscrição nº 4, da apresentação nº 16/20180514 (11:59:01 UTC), que a sociedade alterou a designação social, de F., Lda., para D., Lda. e que pelo depósito nº 198/2018-05-14, C., NIF (...), casada sob o regime de comunhão de adquiridos, com F., NIF (...), adquiriu a quota de € 500,00, a sua irmã, S., NIF(...), e que pelo depósito nº 197/20180514(12:07:16 UTC), F., NIF (...), casado sob o regime de comunhão de adquiridos, comC., NIF(...), adquiriu a quota de €4.500,00, aF., NIF (...);
- a sociedade executada alienou, em 2018-09-04, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca…, modelo…, com a matrícula nº -XX-XX, datada de 2012-01-06, à sociedade, D., Lda.;
- a sociedade executada alienou, em 2018-11-05, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca …, modelo X, com a matrícula nº XX-XX-XX, datada de 2016-02-17, adquirida em 2018-10-29; e
- a sociedade executada alienou, em 2018-10-08, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca …, modelo Z, com a matricula nº XX-XX-XX, datada de 2014-06-06, adquirida em 2018-09-04.
Conclusão
Nestes termos, concluímos, salvo melhor opinião, que é de se indeferir o pedido de suspensão da execução, nos termos do artº 169º/nºs. 1 e 2 do CPPT, assim como, é de se indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia, por existirem fortes indícios de actuação dolosa da requerente na insuficiência ou ausência de bens no seu património.”;
8. O despacho referido no ponto antecedente foi notificado ao mandatário da reclamante por ofício nº 3129, datado de 07/08/2019, remetido via correio registado sob o nº RF180020636PT, com aviso de recepção assinado em 08/08/2019 – cfr. ofício, talão de registo e aviso de recepção, de fls. 164-166;
9. A petição inicial dos presentes autos foi remetida ao Serviço de Finanças de (...)-1, através de correio registado sob o nº RH442514651PT, em 10/06/2019 – cfr. fls. 62;
10. Em 05/02/2020 a ora reclamante apresentou duas impugnações judiciais para discussão da legalidade das liquidações de IRC referentes aos exercícios de 2014 e 2015 e das liquidações de IVA de diversos períodos dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017 que correm termos neste Tribunal, respectivamente, sob os nº 245/20.7BEBRG e 246/20.5BEBRG – por consulta ao SITAF;
11. Em 26/02/2020 o Director de Finanças de (...) proferiu despacho de concordância com os fundamentos relatados em informação anterior, que propôs a manutenção na ordem jurídica do acto objecto de reclamação judicial e a remessa da petição inicial desta ao TAF de Braga, da qual consta, designadamente, o seguinte – cfr. informação e despacho de fls. 175-179:
“(…) 3. Em 2019-08-08, por despacho da Directora de Finanças de (...) foi indeferido o pedido de dispensa da prestação de garantia, para obter a suspensão dos PEF supra identificados, tendo essa decisão sido notificada em 2019-08-08 à executada (…);
4. Ora, é exactamente essa decisão que é objecto da presente RAC. As suas alegações estão sintetizadas nas conclusões da sua petição, cujo teor a seguir se reproduz: (…)
Analisada a argumentação deduzida pela reclamante, os documentos por ela apresentados e toda a factualidade conhecida, importa referir o seguinte.
A. No essencial, as liquidações de impostos que deram origem aos PEFs em análise resultaram de correcções levadas a efeito nos procedimentos inspectivos com as ordens de serviço nº OI201800532/3/4/5, referentes aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017, respectivamente, tendo a sociedade tido conhecimento da sua realização através dos ofícios nº 524.1938, 524.1939, 524.1940 e 524.1941, datados de 2018-03-01 carta aviso a que se refere o artigo 49º do RCPITA e a alínea l) do nº 3 do artigo 59º da LGT;
B. Os procedimentos inspectivos tiveram início em 2018-03-14, data em que o sujeito passivo, na pessoa de F., NIF (...), na qualidade de sócio-gerente, assinou as ordens de serviço antes identificadas, nos termos do artigo 51º do RCPITA;
C. Estes procedimentos tiveram na sua génese a inspecção efectuada àC., LDA NIPC (...) (doravante, C.), no âmbito da qual se identificou a prática reiterada de utilização de facturas por operações inexistentes a jusante, sendo aR., LDA uma das potenciais beneficiárias desse esquema;
D. Esses indícios foram confirmados em sede inspectiva, isto é, que as facturas emitidas pela C. e contabilizadas pela R. LDA, NIPC(...), não correspondiam a operações reais;
E. Ora, com essa conduta a gerência da R. LDA, NIPC (...) diminuiu ao longo dos anos o património da sociedade, na justa medida do valor dessas facturas, que importaram em 409.074,52 € (ano de 2014), 175.091,43 € (ano de 2015), 386.704,56 € (ano de 2016) e 262.322,50 € (ano de 2017) - cfr. Anexo I (Relatório de Inspecção, designadamente, o mapa resumo de fls. 27);
F. Por outro lado, constata-se que após o início dos procedimentos inspectivos referidos, a gerência praticou diversos actos de gestão, que, no seu cômputo geral não revestem a natureza de actos correntes, antes sim, indiciam uma estratégia de transferência de activos e da própria actividade desenvolvida para a sociedadeD., LDA, NIPC 10014666, senão vejamos:
a.D., LDA, NIPC(...), resulta da redenominação em 2018-05-14 da sociedade F., LDA, constituída em 2011-09-22, pelo sócio e gerenteF., NIF (...) (precisamente o gerente da R. LDA, NIPC(...)), que renunciou à gerência em 2018-05-04 e transmitiu a sua quota em 2018-05-14 a F., NIF (...), casado com C., NIF (...), cunhados do transmitente - cfr. Anexo II (certidão permanente);
b. Factura FAC nº 13/277 de 2018-05-22 (anexada à presente RAC, pela mandatária): Venda de activos fixos tangíveis à D., LDA, NIPC(...), no montante de 122.858,55 €;
c. AD., LDA, NIPC (...) foi a adquirente das 3 viaturas XX-XX-XX, XX-XX-XX e XX-XX-XX) mencionadas nas alegações da reclamante;
d. Desde 2019-05-22 até 2018-10-29 (data da última factura emitida) teve como principal cliente a sociedadeD., LDA, NIPC (...), representando 93% dos valores facturados nesse período;
e. A última declaração mensal de remunerações que apresentou reporta-se ao mês de Setembro do ano de 2018, verificando-se que a quase totalidade dos trabalhadores ao serviço da R. LDA, NIPC(...), são, desde então, funcionários da D., LDA, NIPC
f. A R. LDA, NIPC (...) cessou a actividade em sede de IVA (nos termos do artigo 34º nº 1 alínea b) do CIVA - esgotado o activo da sociedade) e IRC, com data de 2018-10-31.
CONCLUSÃO
Os factos a que supra se aludem evidenciam que a gerência da R. LDA, NIPC (...), após ter tido conhecimento do início dos procedimentos inspectivos praticou actos de gestão que se materializaram na transferência do seu património societário e da própria actividade para uma sociedade relacionada, aD., LDA, NIPC (...).
Para além disso, nos anos precedentes (2014 a 2017) a gerência da R. LDA, NIPC (...), por via da utilização de facturas emitidas pela C., LDA NIPC (...), que não tinham subjacentes operações reais, retirou da esfera societária os montantes correspondentes a essas facturas: 409.074,52 € (ano de 2014), 175.091,43 € (ano de 2015), 386.704,56 € (ano de 2016) e 262.322,50 € (ano de 2017).
Pelo exposto, propõe-se que seja mantida a decisão notificada em 2019-08-08 (objecto da presente reclamação), subindo de imediato a RAC, nos termos dos nº 3 e 4 do artº 278º do CPPT. (…)”.
Com interesse para a presente decisão, mais se provou que:
12. Desde 28/03/2013 eram sócios da ora reclamante F. e S., casados entre si na comunhão de adquiridos – cfr. certidão do registo comercial, a fls. 209-216;
13. Desde 17/11/2018 F. é o único sócio e gerente da reclamante, após ter sido transmitida a quota de S. a seu favor – cfr. certidão do registo comercial, a fls. 209-216;
14. Desde 17/08/2015 eram sócios da sociedade F., LDA, NIPC (...), F. e S., casados entre si na comunhão de adquiridos – cfr. certidão do registo comercial, a fls. 217-225;
15. Em 14/05/2018 foi lavrado o registo de alterações ao contrato da sociedade F., LDA, a qual alterou a denominação para D., LDA, e passando a ser sócios F. eC., casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos, após transmissão das quotas de F. e S., registada na mesma data – cfr. certidão do registo comercial, a fls. 217-225;
16. Em 22/05/2018 a reclamante emitiu factura de venda à sociedade D., LDA de diversos bens móveis, no valor global de 122.858,55 €, incluindo as viaturas …, com a matrícula XX-XX-XX e …, com a matrícula XX-XX-XX, estas respectivamente, pelo valor de 2.000,00 € e 5.000,00 € - cfr. documento nº 5 junto com a petição inicial;
17. Em 27/09/2018 a reclamante emitiu factura de venda à sociedadeD., LDA da viatura …. com a matrícula XX-XX-XX, pelo valor de 5.000,00 € - cfr. documento nº 5 junto com a petição inicial.
*
FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem factos que cumpra julgar não provados com interesse para a decisão da causa.
*
MOTIVAÇÃO
A convicção do Tribunal fundou-se no posicionamento das partes, assumido nos respectivos articulados e, na análise crítica dos documentos e informações oficiais juntos aos autos não impugnados, conforme indicado em cada um dos pontos do probatório.”
*
Indo ao encontro do objecto recursivo, nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), por constar dos autos prova documental pertinente, adita-se ao probatório a seguinte matéria:
18. Em 12/09/2018, encontrava-se depositado na conta n.º…, do balcão de … do BANCO (...), titulada porR., Lda., o montante de €122.858,55, com origem na conta n.º…– cfr. documento n.º 6 junto aos autos com a petição inicial, cuja cópia legível foi apresentada em 10/08/2020.
19. Em 28/09/2018, foi depositado noutra conta da sociedadeR., Lda., do BANCO (...), o montante de €6.150,00, proveniente da conta n.º…– cfr. documento n.º 6 junto aos autos com a petição inicial, cuja cópia (verso) apresentada ainda não se encontra totalmente legível quanto à identificação do número da conta creditada.
2. O Direito

Constitui objecto do presente recurso a sentença proferida pelo TAF de Braga que manteve na ordem jurídica o despacho reclamado, que indeferiu pedido de dispensa de prestação de garantia efectuado pela aqui Recorrente.
Tendo a sentença a quo julgado improcedentes as questões invocadas na petição inicial, veio, nesta sede recursiva, a Recorrente invocar que o tribunal recorrido errou no julgamento de facto e de direito ao considerar não estar preenchido o pressuposto de que depende a dispensa de prestação de garantia, contido na última parte do n.º 4 do artigo 52.º da Lei Geral Tributária (LGT). Para tanto, a Recorrente utiliza os fundamentos constantes das alegações e condensados nas conclusões de recurso supra transcritas.
A Recorrente, no que respeita à decisão da matéria de facto, entende que a factualidade seleccionada se apresenta insuficiente e que tal limitação terá influenciado o sentido decisório.
Sustenta que o Tribunal «a quo» incorreu em erro de julgamento, porque não deu como provado um facto essencial que, pela prova documental que consta dos autos, deveria ter sido dado como provado, por não permitir extrair outra conclusão que não a da sua comprovação. Ou seja, o Tribunal «a quo» não deu como provado o seguinte facto:
“ Se, por um lado, a Reclamante viu sair do seu património três veículos, por outro lado, entrou nas suas contas o montante correspondente ao valor dos mesmos (ponto 46 da petição inicial).”
Esse facto resulta, no entender da Recorrente, claramente demonstrado através do documento n.º 6 junto com a petição inicial, que se trata do comprovativo do depósito na conta da Recorrente do valor correspondente à venda dos bens. Resultando provado que associado à venda das viaturas houve a entrada de dinheiro na conta da Recorrente e que, portanto, aquele acto de alienação se tratou de um acto oneroso, não poderia aquele facto ser usado pela AT, e depois pelo Tribunal, para justificar a existência de “fortes indícios de actuação dolosa na insuficiência do património”.
Ora, acerca da factualidade invocada na petição inicial e que é possível inferir do mencionado documento n.º 6 junto com a petição inicial, já este tribunal aditou supra, nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do CPC, a matéria que considerou pertinente. Afigurando-se que a restante pretensão da Recorrente contende com a análise e ilação de direito que cabe a este tribunal realizar a partir dos factos vertidos no probatório.
Insurge-se, ainda, quanto à matéria que se mostra assente no item 11 da decisão da matéria de facto:
“No ponto 11 dos factos provados, encontra-se transcrito o despacho proferido pelo Diretor de Finanças de (...) de concordância com os fundamentos relatados em informação anterior, que propôs a manutenção na ordem jurídica do ato objeto de reclamação judicial, no qual se refere: (…)”
Ora, na discriminação dos factos que há-de fazer não tem o juiz que se pronunciar sobre todos os factos alegados pelas partes ou acerca dos que emergem oficiosamente do processo de execução fiscal ou do processo administrativo, tendo antes o dever de seleccionar os que interessam para a decisão segundo as várias soluções plausíveis de direito, devendo limitar-se àqueles que o tribunal considere, no seu livre juízo de apreciação, como úteis ao apuramento da verdade.
Está em causa sindicar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar que a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia enferma do vício de violação do disposto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT.
Na actual redacção, introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, estabelece o artigo 52.º, n.º 4 da LGT que “a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.”
Recordamos que na anterior redacção do preceito (decorrente da Lei n.º 62-B/2012, de 31/12), o texto deste n.º 4 era o seguinte:
«4 - A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que em qualquer dos casos a insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado.»
Todavia, estando em apreciação decisão de indeferimento de pedido de dispensa de garantia formulado em 06/12/2018 [cfr. ponto 4 do probatório], teremos em conta a redacção do artigo 52.º, n.º 4 introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12.
Deste preceito normativo resulta que a competência para conhecer do pedido de dispensa de prestação de garantia é da Administração Tributária. O tribunal não pode praticar actos que são da competência da Administração Tributária, como resulta do disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT.
Não pode, por isso, o tribunal conhecer do pedido de dispensa de prestação da garantia, pelo que apenas lhe compete apreciar a legalidade da decisão, neste âmbito, proferida pela Administração Tributária. Compete-lhe apenas aferir da legalidade/ilegalidade das decisões proferidas pela administração, verificando da ofensa/não ofensa dos princípios jurídicos que condicionam toda a actividade administrativa, e, anular/não anular o acto reclamado, sem qualquer possibilidade legal de, em substituição da Administração Tributária, definir se a Recorrente fica ou não dispensada de prestar garantia – cfr. Acórdão do STA, de 15/10/2014, proferido no âmbito do processo n.º 0918/14.
A apreciação da legalidade do acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia só pode fazer-se tendo em conta os elementos de facto e de direito que condicionaram a respectiva prolação.
A mencionada norma estabelece, como na sentença recorrida se escreveu, que a par de dois requisitos de verificação alternativa — (i) o caso de a prestação de garantia causar prejuízo irreparável ou (ii) a verificação de manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, existe um outro critério, de verificação cumulativa com os anteriores, com vista ao deferimento do pedido de isenção de garantia - (iii) a inexistência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.
A controvérsia situa-se, apenas, no facto de a Recorrente entender que não existem fortes indícios de que a eventual insuficiência patrimonial se deveu a actuação dolosa da sua parte, não sendo objecto do recurso a verificação ou não da manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, constando da decisão de indeferimento a sua verificação.
Na sequência do que já afirmámos, a aferição destes requisitos não pode alhear-se dos elementos de facto e de direito considerados no acto de indeferimento em apreço e, por isso, necessariamente, partiremos da fundamentação do acto para a nossa análise.
É por estes motivos que se nos afigura que a matéria de facto constante do ponto 11 da decisão recorrida é irrelevante para a decisão da causa, devendo ser eliminada da decisão da matéria de facto e desconsiderada por este tribunal superior.
Na medida em que estão vertidos no ponto 7 do probatório os fundamentos que sustentaram o indeferimento do pedido de dispensa, é sobre a sua suficiência para tal decisão que se deverá debruçar este tribunal, sem cair na tentação de se apoiar em outros factos que não se mostrem vertidos na decisão reclamada.
Estabilizada, assim, a decisão da matéria de facto, concentremo-nos na fundamentação do despacho reclamado, na parte controvertida concernente à (in)existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente.
Pela sua pertinência e para melhor compreensão, vejamos o teor da decisão reclamada (cfr. ponto 7 do probatório, para a qual se remete):
«(…) Como já se referiu no ponto 4 da presente informação, os requerentes alegam a inexistência de bens (pontos 8, 9, 11, 12, 13 e 14 da petição), o prejuízo irreparável (ponto 115 da petição) e que não lhes pode ser assacada responsabilidade na insuficiência ou ausência de bens (ponto 18 da petição).
Não é essa a nossa convicção, no que respeita à falta de responsabilidade na insuficiência ou ausência de bens, como se passa a expor:
-As OI201800532, OI201800533, OI201800534 e OI201800535, tiveram o seu início em “(...) 2018-03-14, data em que o sujeito passivo, na pessoa deF., NIF(...), na qualidade de sócio-gerente, tomou conhecimento das ordens de serviço supra identificadas, nos termos do art. 51º do RCPITA.” - último parágrafo a fls. 4/40 do relatório de Inspecção;
- Do ponto “II - 3.1.13. Outras Relações Inter-Sujeito Passivo”, consta que o sócio-gerente da sociedade executada, F., NIF(...), foi, até 2018-05-15, “(...) sócio-gerente da sociedadeF., Lda., NIPC(...), (actualmenteD., Lda.) que é fornecedor do SP” - a fls. 7/40 do relatório de inspecção - e a esposa, S., NIF(...), também era sócia nas duas sociedades;
- Os relatórios de Inspecção foram notificados à sociedade, em 2018-09-06 (OI201800532, OI201800533 e OI201800534) e 2018-09-26 (OI201800535);
- compulsada a certidão permanente da sociedade, D., Lda., através da aplicação informática TMENU, do Ministério da Justiça, verifica-se que pela Inscrição nº 4, da apresentação nº 16/20180514 (11:59:01 UTC), que a sociedade alterou a designação social, deF., Lda., para D., Lda. e que pelo depósito nº 198/2018-05-14, C., NIF (...), casada sob o regime de comunhão de adquiridos, comF., NIF(...), adquiriu a quota de € 500,00, a sua irmã, S., NIF (...), e que pelo depósito nº), F., NIF (...), casado sob o regime de comunhão de adquiridos, com C., NIF(...), adquiriu a quota de €4.500,00, aF., NIF (...);
- a sociedade executada alienou, em 2018-09-04, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca …, modelo XSRHKH, com a matrícula nºXX-XX-XX, datada de 2012-01-06, à sociedade, D., Lda.;
- a sociedade executada alienou, em 2018-11-05, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca …, modelo X, com a matrícula nº XX-XX-XX, datada de 2016-02-17, adquirida em 2018-10-29; e
- a sociedade executada alienou, em 2018-10-08, a propriedade do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca…, modelo …, com a matricula nº XX-XX-XX, datada de 2014-06-06, adquirida em 2018-09-04.
Conclusão
Nestes termos, concluímos, salvo melhor opinião, que é de se indeferir o pedido de suspensão da execução, nos termos do artº 169º/nºs. 1 e 2 do CPPT, assim como, é de se indeferir o pedido de dispensa de prestação de garantia, por existirem fortes indícios de actuação dolosa da requerente na insuficiência ou ausência de bens no seu património. (…)»
Atentemos, agora, no discurso fundamentador da sentença recorrida para concluir que existem fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da reclamante e manter o despacho reclamado:
«(…) No caso dos autos está apenas em discussão saber se a AT cumpriu o seu ónus de demonstrar os indícios de actuação dolosa da reclamante na insuficiência de património, que consubstancia o fundamento do acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia apresentado pela reclamante.
Resulta do probatório (facto provado nº 4) que a reclamante apresentou requerimento solicitando a dispensa da prestação de garantia, alicerçando esse pedido essencialmente na manifesta falta de meios económicos, já que a requerente não possui bens suficientes penhoráveis para o pagamento da totalidade da dívida exequenda e acrescido e na impossibilidade de prestar garantia bancária, a qual não foi aprovada pela instituição bancária, acrescentando ainda que a inexistência de bens de bens penhoráveis não á da responsabilidade da Requerente.
Sucede que a AT, na apreciação desse requerimento (facto provado nº 7), concluiu que existem fortes indícios de actuação dolosa da requerente na insuficiência ou ausência de bens no seu património, motivo pelo qual indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia.
No despacho que indefere a pretensão da reclamante e respectiva “Informação” que lhe subjaz, a AT expôs quais foram os indícios de actuação dolosa na oneração e dissipação do património:
- a alienação dos bens da reclamante para a sociedade D., LDA, à data da transmissão com os mesmos sócios e gerente que a reclamante, F. eS., designadamente três veículos automóveis; e,
- a alteração da denominação social da sociedade F., LDA, paraD., LDA e a transmissão das quotas desta sociedade a favor dos seus cunhados.
Ora, todos esses factos foram provados e a própria reclamante confirma-os no seu articulado inicial (cfr. factos provados nº 12 a 17).
Alega, contudo, que a venda das viaturas não consubstancia acto doloso uma vez que das vendas efectuadas não resultou qualquer prejuízo para o património da reclamante, não obstando a que uma sociedade proceda à gestão corrente do seu património, o facto de estar a ser objecto de uma inspecção tributária.
Não pode o Tribunal acolher tais alegações.
De facto, é evidente que à data, quer da transmissão dos bens quer do património social da sociedade adquirente dos mesmos bens, a reclamante tinha já conhecimento das inspecções tributárias de que estava a ser alvo, desde 14/03/2018, sendo que os relatórios de inspecção foram notificados à sociedade em 06/09/2018 (cfr. facto provado nº 7).
Significa, pois, que as operações de oneração e transferência de património foram levadas a cabo em Maio e Setembro de 2018, ou seja, quando a reclamante já estava totalmente ciente do valor que lhe viria a ser exigido pela AT.
Relativamente à alegação da reclamante para justificar a venda dos bens, de se tratar de meros actos de gestão corrente, a mesma não se demonstrou nos autos, nem é compatível com a alienação da totalidade do seu património, que afasta a mera gestão corrente, e a qual foi acompanhada pela cessação da sua actividade em sede de IVA, em 31/10/2018, e pela transferência dos seus trabalhadores para a D., LDA, tendo apresentado a última declaração mensal de remunerações reportada ao mês de Setembro de 2018, ou seja, tudo em momento posterior ao seu conhecimento das acções inspectivas e anterior ao pedido de dispensa de prestação de garantia (cfr. facto provado nº 11).
Acresce que a reclamante não refuta os argumentos invocados pela AT, optando por não emitir qualquer pronúncia quanto a esse fundamento do despacho reclamado, e que se prendem com o facto de os sócios da reclamante terem transmitido as quotas da sociedadeD., LDA, de que eram também os únicos titulares, para os seus cunhados e, posteriormente, terem transmitido para essa sociedade os bens móveis da reclamante, mais transferindo para essa empresa a quase totalidade dos trabalhadores da reclamante.
Com os fundamentos expostos, considerando os momentos temporais em que foram efectuadas as operações de venda de património e o modo como foram executadas, de forma global, para uma sociedade com os mesmos sócios que a reclamante, conclui-se, tal como a AT invocou e provou, que existem indícios fortes, sérios, consistentes e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa da reclamante, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial, o que impede a dispensa de prestação de garantia.
Em conformidade, nenhuma ilegalidade há a assacar ao acto reclamado, impondo-se a sua manutenção na ordem jurídica. (…)»
Assim, o tribunal recorrido considerou que a AT apontou fortes indícios de que a insuficiência resultou de comportamento doloso da Recorrente, para justificar o indeferimento da dispensa de garantia.
A Recorrente diverge deste julgamento, mas, essencialmente, reitera os argumentos que já havia aventado na sua petição inicial.
Contudo, antes de analisarmos a situação em concreto, atentemos no conceito de indícios e também no conceito de responsabilidade baseada em actos dolosos.
A recolha dos (fortes) indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciados, nem configura uma acusação criminal. Não é de factos provados, mas sim de indícios que fala a lei. E estes são os factos a partir dos “quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, pág. 154; também neste sentido, entre outros, o Acórdão do TCAN, de 26/04/2012, proferido no âmbito do processo n.º 00964/06.0 BEPRT.
Portanto, não é imperioso que a Administração Tributária efectue uma prova directa de que na origem da insuficiência patrimonial está um comportamento doloso da Recorrente, pois que, como em muitos outros casos, haverá que recorrer à prova indirecta, o que significa que à AT basta evidenciar a consistência de determinados factos que indiciem, traduzindo uma probabilidade elevada, que a Recorrente teve em vista colocar-se numa situação de insuficiência de bens.
Ora, indícios são definidos por João de Castro Mendes como aqueles factos que “permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos, em virtude de leis naturais conhecidas pelos homens e que funcionam como máximas de experiência” - citado por José Luís Saldanha Sanches, A Quantificação da Obrigação Tributária, 2ª edição, pág. 311, sendo que nesta tarefa, poderá a Administração Tributária lançar mão de elementos obtidos com recurso à fiscalização cruzada, junto de outros contribuintes, para obter os referidos indícios.
No que concerne à responsabilidade da Recorrente pela insuficiência de bens, afigura-se-nos pertinente o enquadramento efectuado pelo Acórdão deste TCAN, de 18/10/2013, proferido no âmbito do processo n.º 00101/13.5BEVIS:
“(…) Aqui chegados, importa fazer, desde já, uma constatação: a de que estamos perante três interpretações totalmente diversas do requisito constante da parte final do n.º 4 do artigo 52.º da Lei Geral Tributária.
Temos, de um lado, a interpretação seguida pelo órgão de execução fiscal, segundo a qual a irresponsabilidade pela insuficiência ou inexistência de bens só ocorre quando decorra de causas a que é completamente alheio e que não possa controlar. Aponta-se aqui para um conceito de responsabilidade que prescinde da culpa do agente e se centra exclusivamente na natureza do facto que dá origem à situação de insuficiência de bens. A responsabilidade existe se essa insuficiência deriva de um facto voluntário (qualquer que seja o juízo de censura que se deva assacar ao agente) e não existe se essa insuficiência deriva de facto involuntário (como tal entendido o facto fortuito, aquele que não pode ser controlado ou dominado pela vontade do agente).
Temos, no outro extremo, a interpretação seguida pela Recorrente, segundo a qual a irresponsabilidade pela insuficiência ou inexistência de bens ocorre quando demonstre que a diminuição de bens não resultou de uma atuação que visasse a diminuição das garantias dos seus credores (cfr. conclusão “HH”). Aponta-se aqui para um conceito de responsabilidade assente no dolo específico do agente, segundo a qual a responsabilidade só existe se essa insuficiência deriva de factos praticados com o intuito de obstar à prestação da própria garantia.
Temos finalmente, a meio termo entre as duas, a interpretação que julgamos ter sido seguida na parte final da douta sentença recorrida, segundo a qual a irresponsabilidade pela insuficiência ou inexistência de bens ocorre quando se demonstre que o requerente da dispensa da prestação da garantia «não teve uma participação culposa na insuficiência patrimonial em que se encontra» (primeiro parágrafo da pág. 34 da douta sentença). Aponta-se aqui para um conceito de responsabilidade assente na culpa do agente, seja ela fundada no dolo, ou na negligência censurável (omitindo a diligência que lhe era exigível na salvaguarda dos interesses do credor).
A posição seguida pela administração tributária aponta para um conceito de responsabilidade que não tem tradução no nosso ordenamento jurídico tributário nem no ordenamento jurídico civil. Ninguém é responsável perante outrem ou deixa de o ser apenas porque o facto que determinou a situação que a lei pretendeu evitar decorreu de ação voluntária ou involuntária do sujeito. E as situações em que a responsabilidade existe independentemente da culpa têm natureza excecional, como decorre do n.º 2 do artigo 483.º do Código Civil, a que aqui recorremos para o correto enquadramento do termo «responsabilidade», na falta de conceito privativo do direito tributário que aqui sirva e atento o disposto no artigo 11.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária.
A indisponibilidade do crédito tributário a que alude o artigo 30.º, n.º 2, da mesma Lei e a proibição de moratórias no pagamento das obrigações tributárias, consagrada no n.º 3 do seu artigo 36.º, também não justificam, por si só, uma tal interpretação, seja porque ao dispensar a garantia não se está a dispensar o pagamento do crédito a garantir, seja porque a moratória é concedida nos casos expressamente previstos na lei, entre os quais se inclui, sem esforço, o previsto no artigo 170.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
A posição segundo a qual a responsabilidade pela insuficiência de bens não existe se se demonstrar que essa insuficiência não deriva de factos praticados com o intuito de obstar à prestação da própria garantia também não tem respaldo na letra da lei. E pondera-se que tornaria este requisito redundante, porque o instituto do abuso de direito chegaria para resolver a situação em desfavor do requerente. Mal se compreenderia, também, que este pudesse obstar ao andamento da execução apenas porque os atos de dissipação de bens não foram praticados com o intuito de defraudar o Estado e mesmo nas situações em que sabia que tal prejuízo iria ou poderia ocorrer. Porque os sujeitos tributários estão adstritos a deveres de boa prática que vão muito para além de comportamentos tipicamente fraudulentos, como decorre do artigo 32.º daquela Lei.
A questão que fica, por isso, é a de saber se à prova de que a insuficiência de bens, para este efeito, não basta a demonstração de que não existiu essa responsabilidade a título de dolo (seja ele específico, direto, necessário ou eventual) e é também necessário demonstrar que não existiu essa responsabilidade a título de negligência.
A esta questão respondemos que essa responsabilidade deve ser dolosa, no sentido de que tal responsabilidade existe quando ocorram situações de diminuição da garantia patrimonial provocadas pelo executado ou por este consentidas, bem sabendo que iriam diminuir as garantias dos credores e conformando-se com esse resultado. Vejamos porquê:
A dispensa de garantia resulta – a nosso ver – da necessidade de conferir igual tratamento a quem tem bens e quem os não tem, assegurando que tem acesso à suspensão da execução, nas mesmas circunstâncias, não apenas o devedor que possa prestar a garantia, mas também o que não possua meios económicos para o fazer. Prevalece o interesse do executado na conservação da sua situação patrimonial (na pendência do processo em que seja discutida a legalidade da dívida tributária) sobre o interesse do credor na medida em que seja necessário a assegurar essa igualdade de tratamento.
E é seguro que não se justifica a preocupação em conferir tratamento igual ao devedor que tem bens e ao que não os tem, quando tenha sido este a dar origem a tal desigualdade, gerando para si mesmo uma situação económica que o coloca em situação de tal necessidade, bem sabendo que iria enfrentar essa necessidade ou até mesmo por causa dela, com o objetivo de frustrar os interesses do credor.
Mas já não se nos afigura proporcionado que se onere da mesma forma quem, por desconhecimento, impreparação ou inabilidade se deixa cair em igual situação de necessidade, a menos que sobre ele recaia um especial dever de cuidado na gestão desse património.
Esse dever existe no caso dos gestores, ou administradores de sociedades. Que, nos termos do disposto no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, devem observar deveres de cuidado, conduzindo a sociedade com a diligência de um gestor criterioso e ordenado. A assunção das tarefas correspondentes implica disponibilidade, competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções. Pelo que não será, em princípio, de excluir a culpa do agente se agiu com impreparação ou desinteresse, ou tomou decisões ruinosas, se for possível, com razoável segurança, concluir que tal comportamento nunca seria possível num gestor criterioso e ordenado. Porque não deve assumir funções de tamanha responsabilidade quem não está tecnicamente preparado para apreender o alcance das decisões que será chamado a tomar ou quem não está realmente interessado no destino da sociedade.
Mas não existe para a generalidade das pessoas, sobre quem não recaem idênticos deveres. Sejam eles legais, estatutários ou contratuais.
Pelo que a única questão que fica é a de saber se o requisito da parte final do n.º 4 do artigo 52.º deve ser mais exigente quando o requerente da dispensa da prestação da garantia esteja especialmente adstrito a estes deveres.
Mas também aqui a resposta terá que ser negativa. Porque não existe nada na lei que sustente esse tratamento diferenciado dos executados. Não há nada que nos permita concluir que tenha sido intenção do legislador subordinar a concessão de garantia de determinadas pessoas a um regime mais exigente. E também não é possível recorrer a outras normas da Lei Geral Tributária que disponham sobre tal responsabilidade (para integrar esse tratamento diferenciado), porque estamos perante normas que afetam as garantias processuais graciosas e contenciosas dos contribuintes e, nessa medida, subordinadas ao princípio da reserva de lei, não sendo sobre elas admitida a integração analógica – artigo 11.º, n.º 4, da Lei Geral Tributária.
De todo o exposto decorre que a prova – para os efeitos da parte final do n.º 4 do artigo 52.º da Lei Geral Tributária – de que a insuficiência de bens não é da responsabilidade da sociedade executada (ou de quem a geriu) se basta com a demonstração de que essa insuficiência de bens não foi provocada pelo executado ou por ele consentida de forma dolosa, não sendo também necessária a demonstração de que essa insuficiência de bens não resultou da gestão negligente da sua atividade. (…)”
É patente, da leitura integral da fundamentação do despacho reclamado, que o que levou ao indeferimento do pedido de isenção de prestação de garantia foi o não preenchimento do terceiro pressuposto cumulativo, defendendo a Recorrente que não foram recolhidos fortes indícios de que a situação de insuficiência ou inexistência de bens é da sua responsabilidade.
Não podemos deixar de secundar a análise realizada pelo tribunal recorrido, dado que os argumentos vertidos em sede recursiva pouco ou nada adiantam ou acrescentam.
Compreendemos a alegação da Recorrente quando afirma que a alienação das quotas da sociedadeF., Lda. - actualD., Lda. - não pode ser encarada como um indício de actuação dolosa na diminuição do património da Recorrente, uma vez que as quotas não integravam o património daquela, mas antes o património do seu sócio-gerente e da sua sócia.
Porém, tal comportamento não pode ser visto isoladamente, mas antes em concatenação com todo o circunstancialismo apurado, que revela, apesar de só indiciariamente, pelo menos uma tentativa de salvaguarda de uma actividade (fabrico de calçado, comércio por grosso e a retalho de calçado), com tudo o que é necessário para exercê-la (o que inclui o património da sociedade), deslocalizando meios, recursos, para outra sociedade, gerida pelo cunhado dos sócios da sociedade executada. É inevitável transparecer uma intenção, um acto volitivo, de afastamento do credor tributário, indiciariamente com vista a protecção de património, eventualmente destinado a salvaguarda de continuidade da actividade com “outro rosto” (outra denominação, outra sociedade).
No contexto em que foram efectuadas as alienações dos bens móveis da Recorrente para a sociedadeD., Lda., tem importância o facto de os sócios da Recorrente terem transmitido as quotas da sociedadeD., Lda., de que eram também os únicos titulares, para os seus cunhados.
A proximidade familiar subjacente aponta para eventual controlo dos bens alienados, daí a irrelevância de em determinadas datas (12/09/2018 e 28/09/2018), matéria que se aditou ao probatório sob os pontos 18 e 19, o correspectivo valor das vendas dos bens ter entrado em contas da sociedade executada. Acentuamos que se desconhece o destino de tais montantes nos dias subsequentes aos depósitos, considerados o balancete e as disponibilidades financeiras apresentadas pela Recorrente à AT.
Recuperamos aqui a impossibilidade aludida pelo tribunal recorrido de se entender as referidas alienações dos veículos como actos de gestão corrente da sociedade executada, na medida em que se apurou a transmissão, em simultâneo, de grande quantidade de máquinas e outros equipamentos eventualmente destinados ao exercício da (mesma) actividade pela sociedade adquirente –D., Lda.
Sustenta a Recorrente que, ainda que os veículos se tivessem mantido na sua esfera patrimonial, considerando o seu valor (€12.000,00), que não foi contestado pela AT, sempre se concluiria pela insuficiência de bens penhoráveis da Recorrente para assegurar o pagamento da dívida exequenda, uma vez que o valor global dos bens alienados pela Recorrente é manifestamente inferior ao valor da garantia a prestar, pelo que nunca seriam suficientes para servir de garantia no processo de execução fiscal.
Isto é, pretende a Recorrente desvalorizar o seu comportamento, direccionando as atenções para a irrelevância de tal actuação, devido ao valor diminuto dos bens vendidos, fazendo crer que, ainda que tais negócios não se tivessem realizado, mesmo assim, a Reclamante encontrar-se-ia numa situação de manifesta falta de meios económicos.
Este raciocínio apela a operações exclusivas de quantificação ou valorização dos bens que, só por si, a norma do n.º 4 do artigo 52.º da LGT não autoriza. Pois, mesmo que os bens alienados fossem insuficientes para garantir a dívida exequenda, a sua alienação (indiciariamente) dolosa agravou a insuficiência, podendo ter passado de mera insuficiência para uma quase inexistência de bens. O texto da lei alude à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma actuação dolosa do interessado, pretendendo com isso desincentivar não só a subtracção de bens à penhora [o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários (artigo 50.º/1 LGT)], como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia – e consequente suspensão da execução fiscal – o devedor que dolosamente se desfaz do seu património.
Se tal conduta fosse tolerada, um contribuinte cujo património fosse insuficiente para garantir a dívida exequenda e acrescido veria penhorados os bens que compõem esse património e prosseguida a execução (cfr. artigo 169.º/6 CPTT), ao passo que o contribuinte mais “ágil”, que dolosamente aliena o seu património, seria beneficiado com a isenção de prestação de garantia e premiado com a suspensão da execução.
No fundo, seria tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo do credor tributário.
Não é isso que resulta da lei, nem dos princípios gerais de direito (cfr. artigo 11.º/1 LGT) – cfr., neste mesmo sentido, o Acórdão do TCAN, de 03/08/2018, proferido no âmbito do processo n.º 00268/18.6BEAVR.
Acompanhando a análise efectuada em primeira instância, resulta claro da prova produzida haver indícios fortes de que a insuficiência ou inexistência dos bens se deveu a actuação dolosa do interessado.
Como vimos, a recolha dos fortes indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciados, pelo que andou bem a AT ao indeferir a pretensão da Recorrente com base na parte final do n.º 4 do artigo 52.º da LGT.
Com os fundamentos expostos, considerando os momentos temporais em que foram efectuadas as operações de venda de património (coevos com a inspecção tributária – cfr. ponto 7 da decisão da matéria de facto: 2018) e o modo como foram executadas, de forma global, para uma sociedade que teve, até dias antes da primeira alienação (14/05/2018-22/05/2018 – cfr. pontos 14, 15 e 16 do probatório), os mesmos sócios que a Recorrente (passando, em 14/05/208, a ter como sócios os seus cunhados), conclui-se, tal como a AT invocou e provou, que existem indícios fortes, sérios, consistentes e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.
Do que vimos dizendo se conclui que a sentença recorrida não padece dos erros de julgamento que lhe vêm imputados, impondo-se negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida que manteve a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, proferida pelo Director de Finanças de (...) em 30/04/2019.

Considerado o valor fixado à causa, urge, ainda, ponderar a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Importa realçar que o valor em que a parte decaiu e será condenada nas respectivas custas assenta na base tributável de €381.604,93, valor esse que se apresenta algo superior a €275.000,00, montante a partir do qual passa a acrescer 1,5 UC, a final, por cada €25.000,00 ou fracção e que importa ponderar à luz do princípio da proporcionalidade aferido ao concreto serviço prestado.
Nesta instância, tudo ponderado e perante a possibilidade de graduação casuística e prudencial do montante da taxa de justiça devida a final, não perdendo de vista que deve existir correspectividade entre os serviços prestados e a taxa de justiça cobrada aos cidadãos que recorrem aos tribunais, de acordo com o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 2.º da CRP, atendendo ainda ao direito de acesso à justiça acolhido no artigo 20.º igualmente da CRP, e o processado ter sido tendencialmente simples; alcançamos razões válidas e ponderosas para dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final, nos termos do n.º 7 do artigo 6.º do RCP.
Na sequência do exposto, deverá a conta de custas a elaborar desconsiderar o remanescente da taxa de justiça.

Conclusões/Sumário

I - Nos termos do artigo 52.º, n.º 4 da LGT, na actual redacção, introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12, a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada por insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que, em qualquer dos casos, não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.
II - O benefício da isenção fica, assim, dependente de dois pressupostos, a provar pelo Requerente, em alternativa: (i) existência de prejuízo irreparável decorrente da prestação da garantia ou (ii) falta de bens económicos para a prestar.
III - Demonstrado um dos pressupostos enunciados, a AT pode deferir o pedido “desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do interessado.”
IV - A apreciação da legalidade do acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia só pode fazer-se tendo em conta os elementos de facto e de direito que condicionaram a respectiva prolação.
V - A referência à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma actuação dolosa do interessado, pretende desincentivar não só a subtracção de bens à penhora como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia – e consequente suspensão da execução fiscal - o devedor que dolosamente se desfaz do seu património.
Se tal conduta fosse tolerada, estar-se-ia a tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo do credor tributário.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais; devendo, contudo, na conta de custas a elaborar a final desconsiderar-se o remanescente da taxa de justiça.

Porto, 24 de Setembro de 2020


Ana Patrocínio
Paula Teixeira
Conceição Soares