Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00247/13.0BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/10/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Helena Ribeiro
Descritores:PROVA;
INQUÉRITO CRIMINAL;
PRESUNÇÕES JUDICIAIS;
Sumário:1.As provas são apreciadas livremente pelo juiz, a não ser nos casos de prova tabelada, em que os meios de prova tenham um valor legal pré-determinado. Tal não significa que o juiz tenha a liberdade de julgar os factos de forma arbitrária, caprichosa, ou como lhe aprouver, mas apenas que o juiz não está subordinado a regras ou critérios formais estabelecidos na lei, decidindo antes segundo a sua experiência prática da vida e a sua prudência.

2.A prova produzida no inquérito criminal assim como os despachos aí proferidos, não têm eficácia probatória extraprocessual legal. Apenas as sentenças penais condenatórias ou absolutórias, conforme decorre do disposto nos artigos 623.º e 624.º do CPC e nos termos aí estabelecidos, têm eficácia probatória extraprocessual legal, desde que transitadas em julgado.

3. Na formação da sua convicção, o juiz pode e deve recorrer, sempre que tal se justifique e seja possível, a presunções judiciais. Trata-se de «um processo mental de investigar, por meio de induções e deduções, uma verdade provável, revelada por determinadas circunstâncias, ou como tal havida por disposição expressa da lei».

4. Provado que o comboio histórico foi visto a circular na linha do Douro nas proximidades da propriedade da Autora perto da hora em que ocorreram ambos os incêndios, que o mesmo funciona com locomotiva a vapor, contendo fornalha, e que após o comboio passar nos locais em causa, verificaram-se os incêndios, esses factos que não podem deixar de ser considerados, à luz da experiência de vida, como fortemente indiciadores da existência de uma conexão direta entre o deflagrar dos incêndios e a passagem pelo local do dito comboio.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo:

I. RELATÓRIO
1.1.Quinta ..., S.A. moveu a presente ação administrativa comum, nos termos dos artigos 35º, nº 1, e 42º, nº 1, do CPTA (na versão anterior à entrada em vigor das alterações operadas pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, aplicável nestes autos, em consonância com os nºs 1 e 2 do artigo 15º deste último diploma legal), contra a CP – COMBOIOS DE PORTUGAL, E. P. E. («CP») e contra a INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. («IP», sucessora legal da REFER, E.P.E.), todos com os demais sinais nos autos, na qual formulou o seguinte pedido: “deverá a Ré ser condenada a pagar à Autora a quantia de 317.360,00€ acrescida de juros à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares as empresas comerciais desde a citação até efetivo pagamento”.
1.2.Citada, a Ré IP apresentou contestação, na qual se defendeu por impugnação, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
1.3.Citada, a Ré CP apresentou contestação, na qual se defendeu por impugnação, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
Requereu, ainda, a intervenção principal da Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A..
1.4.Admitida a intervenção principal requerida, a Interveniente SEGURADORAS UNIDAS, S.A. (por alteração da denominação da Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.) apresentou contestação. Defendeu-se, primeiramente, por exceção (designadamente, com fundamento na ilegitimidade passiva para intervir como parte principal), e por impugnação.
1.5. Realizou-se audiência prévia, na qual foi determinada a convolação da posição da Interveniente seguradora, de principal para acessória, julgando-se improcedente a matéria de exceção (dilatória) por esta aventada. Foi ainda julgada improcedente a exceção peremptória de prescrição, atendendo à posição processual que ora assume a Interveniente acessória.
1.6. O TAF de Mirandela proferiu sentença que julgou a ação parcialmente procedente, constando da mesma o seguinte dispositivo:
«Nos termos e com os fundamentos expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condena-se a Ré CP no pagamento à Autora do montante de 119.022,85€ (cento e dezanove mil e vinte e dois euros e oitenta e cinco cêntimos), ao qual acrescem juros de mora, à taxa aplicável de 4% ao ano, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se no que mais contra aquela foi peticionado;
B) Absolve-se a Ré IP do pedido; e
C) Condena-se as partes no pagamento das custas processuais a que houver lugar, na medida do seu decaimento, ou seja: na proporção de 62,50% para a Autora e na proporção de 37,50% para a Ré CP; na mesma proporção quanto à Interveniente acessória; e por inteiro por conta da Autora em relação à Ré IP.
*
Registe e notifique.»

1.7. Inconformado com a sentença proferida, o Réu CP interpôs o presente recurso de apelação que terminou com a formulação das seguintes CONCLUSÕES:
«1. Os presentes autos fundam-se na responsabilidade civil extracontratual da Recorrente em consequência de um incêndio que alegadamente foi provocado pelo “comboio histórico da linha do Douro” explorado e operado por aquela.
2. Foi alegado pela Recorrida que esse incêndio provocou danos na sua propriedade denominada “Quinta ...”, peticionando a condenação da Recorrente no pagamento do valor de 317.360,00 Euros, a título de indemnização por esses danos.
3. Perante a matéria de facto considerada provada, o Tribunal “a quo” proferiu decisão nos termos da qual julgou a ação parcialmente procedente.
4. Não pode a Recorrente concordar com a apreciação da prova levada a cabo, discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a decisão prolatada, quanto à matéria de facto e quanto à solução de direito.
DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
5. Com o merecido respeito por diverso entendimento, andou mal o Tribunal “a quo” ao:
- dar como demonstrada a factualidade atinente a considerar que o comboio histórico provocou o incêndio relatado nos autos através da libertação de faúlhas da sua chaminé não protegida; (Factos 22, 23, 37 e 38 da matéria dada como provada)
- ao não considerar provados os factos que demonstram que o aludido comboio se encontrava dotado com os equipamentos necessários para impedir a ocorrência de incêndios, nomeadamente equipamentos que impediam a fuga de partículas, cinzas e faúlhas e que apagavam partículas incandescentes. (Factos A), B), C), I), J), K) e L) da matéria dada como não provada)
- DO ERRO DE JULGAMENTO:
REAPRECIAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL:
6. A sentença proferida padece de manifesto erro de julgamento, desde logo porque não teve em devida linha de conta toda a prova carreada aos presentes autos, nomeadamente a prova documental e testemunhal – a qual, quanto a nós valorou de forma desadequada - e também porque recorreu, indevidamente, às presunções judiciais por forma a dar como provado que o incêndio foi causado pelo comboio histórico, quando não foi, de todo, produzida prova nesse sentido.
7. O presente recurso sobre a decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção da Recorrente de que o Tribunal “a quo” terá efetuado uma incorreta apreciação da prova, e concretamente na instrução da matéria factual plasmada nos pontos 22, 23, 37 e 38 do elenco da factualidade considerada provada e nas alíneas A), B), C), I), J), K) e L) da matéria considerada como não provada, os quais, pelos motivos que se infra se demonstrará, deveriam ter sido considerados não provados e provados, respetivamente.
8. O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil consagra o princípio da livre apreciação da prova, investindo o julgador na tarefa de emitir uma decisão sobre a matéria de facto “segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
9. Porém, a decisão sobre a matéria de facto não poderá ser flagrantemente desconforme aos elementos probatórios processualmente recolhidos.
10. De tal sorte que o artigo 662.º do Código de Processo Civil vem impor ao Tribunal da Relação um verdadeiro dever de alterar a decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto nas situações em que a prova produzida impuser decisão diversa.
11. Situação que se encontra plasmada nos presentes autos, nomeadamente no que concerne à apreciação conferida aos factos constantes dos artigos supra referidos e que aqui se pretendem ver alterados.
12. Estamos em crer que o Meritíssimo Tribunal “a quo” não ajuizou bem a prova produzida pois a mesma não se mostrou minimamente suficiente para alicerçar a convicção aduzida na sentença proferida no sentido da demonstração da causa do incêndio ou da não demonstração de que o comboio se encontrava dotado dos mecanismos necessários e possíveis para evitar incêndios.
13. Reitere-se: jamais poderia o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerar suficientemente demonstrado que o incêndio foi provocado pelo comboio histórico, quando a prova produzida foi, como afirmado na sentença, claramente insuficiente à demonstração dos factos alegados nesse sentido pela Recorrida.
14. Na verdade, não se consegue conceber que tenha o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerado provado que o incêndio em apreço foi causado pelo comboio histórico quando nenhuma das testemunhas inquiridas, seja no âmbito dos presentes autos ou no processo crime referido na sentença, presenciou ou visualizou a deflagração do incêndio.
15. Nenhuma das testemunhas mostrou conhecimento direto dos factos atinentes à causa do incêndio.
16. E se, de facto, pode o julgador lançar mão das presunções judiciais, a fim de criar uma convicção probatória positiva de determinados factos (parte de um facto conhecido para afirmar um outro facto), não pode, contudo, e como sucede no caso dos autos, “dar um salto maior do que a perna” para dar como provado que o incêndio foi causado pelo comboio histórico, só porque o comboio foi visto a circular na linha do douro nas proximidades da propriedade da A. perto da hora que ocorreu o incêndio.
17. Acresce que, quanto aos equipamentos de que o comboio histórico se encontrava dotado, o Tribunal “a quo” não valorou, corretamente, o que, quanto a essa matéria, foi afirmado pelas testemunhas AA, BB e CC.
18. Na verdade, estas testemunhas explicaram, pormenorizadamente, quais os equipamentos de que o comboio estaria dotado e que a instalação dos mesmos impedia a fuga de partículas, cinzas e faúlhas e visavam também apagar partículas incandescentes, evitando, desse modo, a ocorrência de incêndios.
19. Da conjugação dos meios probatórios produzidos, impunha-se decisão diversa daquela que veio a ser proferida e que, presentemente, se impugna.
20. A Recorrente está, pois, em crer que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu em verdadeiro e manifesto erro de julgamento.
21. A convicção probatória emanada na sentença proferida quanto à causa do incêndio assentou em presunções judiciais.
22. Como referido na sentença, uma vez que inexistiu prova direta das causas do incêndio, na medida em que nenhuma das testemunhas ouvidas em Tribunal presenciou a sua deflagração e muitas das testemunhas, dado o significativo intervalo temporal, pouco ou nada de concreto conseguiram oferecer sobre as viagens em causa, foi feita valoração mais atenta dos sinais probatórios constantes dos processos de inquéritos.
23. Como resulta da motivação da sentença, todos os factos dados como provados no sentido de considerar que o incêndio foi provocado pelo comboio histórico – artigos 22.º, 23.º, 37.º e 38.º dos factos provados – alicerçaram-se, unicamente, nos elementos constantes do processo de inquérito junto com a petição inicial.
24. Pois, de facto, nos presentes autos, como vimos, não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
25. Se, por um lado, se demonstra enorme estranheza por a decisão sob recurso ter considerado que o incêndio foi causado pelo comboio histórico quando nenhuma prova nesse sentido foi produzia,
26. Por outro, maior estupefação se sente por a base da motivação para essa decisão ser quase exclusivamente, o processo crime identificado na sentença que terminou na fase de inquérito.
27. Na verdade, nesse processo crime foi proferido despacho de arquivamento do inquérito por se considerar, entre o mais, que:
“Relativamente aos factos denunciados susceptíveis de integrar, em abstrato, este tipo de ilícito criminal, forçoso é concluir que, após a realização das diligências que supra se descreveu, não foram recolhidos indícios suficientes da sua prática capazes de sustentar um despacho de acusação.
Na verdade, não foram recolhidos indícios suficientes que o incêndio fora provocado pelo comboio histórico da linha do Douro (e melhor identificado a fls. 40, 63), designadamente a partir da matéria libertada pela combustão ocorrida na locomotiva do mesmo ou se a partir de eventuais faúlhas expelidas das suas rodas.
Efectivamente, o incêndio despoletou-se após a passagem do comboio histórico, contudo não foi possível determinar com segurança e certeza a origem/causa do mesmo.” (Negrito e sublinhado nossos)
28. No que se refere a este despacho de arquivamento, o Tribunal “a quo” refere que “o despacho de arquivamento socorre-se, naturalmente, dos factos recolhidos no inquérito, mas vai além de um juízo meramente fáctico, pois que procede a uma apreciação jurídica da realidade processualmente demonstrada no processo de inquérito, seguindo critérios de standard da prova próprios do processo penal e, assim, como não poderia deixar de ser de qualquer modo, as conclusões do Ministério Público não são susceptíveis de influir no juízo deste Tribunal.” (Negrito nosso)
29. O Tribunal “a quo” parece fazer tábua rasa do que o Código de Processo Penal estabelece quanto ao “standard de prova” na fase de inquérito, que é totalmente distinto das exigências de prova do processo penal em fase de julgamento.
30. Na fase de inquérito, ao contrário da fase de julgamento, basta a verificação de meros indícios de verificação de crime para que seja proferido despacho de acusação.
31. Neste sentido, estabelece o artigo 283.º do Código de Processo Penal no seu número 1 que, “Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele;” E, no seu número 2 que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
32. Acresce que, conforme dispõe o artigo 277.º do Código de Processo Penal, apenas se se tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime ou não ter sido possível obter indícios suficientes da verificação de crime é que é proferido despacho de arquivamento.
33. Isto é, na fase de inquérito, basta a mera probabilidade razoável de ter ocorrido um facto suscetível de enquadrar um ilícito criminal para ser proferido despacho de acusação, o que não aconteceu no caso em apreço, uma vez que, como alegado, o Ministério Público entendeu não terem sido recolhidos indícios suficientes que o incêndio fora provocado pelo comboio histórico da linha do Douro.
34. Tudo quanto alegado na sentença quanto ao facto de que o despacho de arquivamento não poderá ser valorado, na medida em que as exigências de prova em matéria processual penal são mais exigentes do que no processo civil foi erradamente valorado, uma vez que estamos perante a fase de inquérito em que, como vimos, as exigências de prova são mínimas.
35. Os factos plasmados na prova recolhida no processo de inquérito são os mesmos que o Tribunal “a quo” utilizou para formar a sua convicção, sendo esta, embora tendo por base os mesmos factos, completamente contrária à do Ministério Público sendo que este conduziu e mediou toda a prova produzida em sede de inquérito.
36. Tendo por base quase exclusivamente o processo crime para motivar a decisão, outra decisão não poderia ter tido o Tribunal “a quo” de que a mesma que foi tomada no inquérito e assim absolver a Recorrente, por não se ter provado que o comboio histórico foi o causador do incêndio.
37. É de especial relevância salientar que, à semelhança do que ocorreu nos presentes autos, também em sede de processo crime não foi produzida qualquer prova, seja testemunhal, documental ou pericial, no sentido de atestar que o incêndio foi provocado pelo comboio histórico.
38. Dos elementos recolhidos do processo de inquérito que serviram para motivar a decisão sob recurso, assumiram especial preponderância pelo Tribunal “a quo”, como meio de prova indiciário, o auto de notícia elaborado pela GNR e o relatório da GNR/SEPNA.
39. Ambos os documentos apenas contêm opiniões efetuadas por pessoas que não presenciaram a deflagração do incêndio nem realizaram qualquer perícia ao local no sentido de apurar as causas do mesmo, bastando-se a emitir conclusões com base na sua opinião pessoal.
40. Não podendo, nenhum dos dois referidos documentos, fazer prova da causa do incêndio, muito menos prova plena como o Tribunal “a quo” parece querer atribuir, uma vez que não se trata de um auto que relate o presenciado por autoridades, mas apenas a mera convicção pessoal deles.
41. O facto de duas pessoas referirem que o incêndio pode ter sido causado pelo comboio histórico porque, no entender destes, o comboio é suscetível de provocar incêndios, não pode, jamais ser suficiente para que se dê como provado que aquele incêndio em concreto ocorreu por causa do comboio histórico, quando mais nenhum elemento nos autos aponta nesse sentido.
42. De igual modo, também não poderão ser valorados, mesmo que a título de indícios probatórios, os depoimentos das testemunhas prestados em sede de inquérito para considerar que a causa do incêndio foi o comboio histórico, uma vez que também nenhuma destas testemunhas visualizou o foco do incêndio.
43. Será despiciendo transcrever os depoimentos das testemunhas quanto a esta matéria, na medida em que todos são, sem exceção, no sentido de não terem presenciado ou visualizado a deflagração do incêndio – aliás, como admitido na sentença sob recurso.
44. Perdoem-nos, ainda, o desabafo, mas o Tribunal “a quo” parece querer fazer o “trabalho” que a Recorrida não fez e que lhe competia, na medida em que recaia sobre esta o ónus de provar que o incêndio foi causado pelo comboio histórico.
45. A Recorrida nem sequer arrolou nos presentes autos qualquer das testemunhas que a decisão sob recurso faz alusão como tendo emitido conclusões e pareceres, no processo crime, quanto à origem do acidente, mesmo sendo conhecedora dos trâmites do processo crime por ser parte no mesmo.
46. Os poderes do Tribunal não podem ir até ao ponto de suprir o ónus que sobre as partes prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste, não podendo configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes.
47. Do que antecede resulta que a decisão sob recurso deveria ter considerado como não provada a factualidade constante dos artigos 22.º, 23.º, 37.º e 38.º dos factos provados, uma vez que nenhuma prova foi produzida nesse sentido nem nos presentes autos nem no âmbito do processo crime através do qual o Tribunal “a quo” se socorre para obter indícios probatórios que, a nosso ver, são inexistentes.
48. Da prova produzida nos presentes autos, resulta que os equipamentos que dotavam o comboio histórico são absolutamente eficazes no sentido de evitarem incêndios, uma vez que impediam a fuga de partículas, cinzas e faúlhas e que apagavam partículas incandescentes que pudessem sair.
49. Na verdade, resultou provado que nas viagens que o comboio histórico realizou nos dois dias em que ocorreu o incêndio, o mesmo encontrava-se equipado com o seguinte: - Com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio;
- Na sua caixa de fumos, tinha montado um filtro de rede que evitava a saída de cinzas e faúlhas da fornalha;
- Com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas;
- Estava equipado e tinha integrado um sistema de água pulverizada capaz de apagar partículas incandescentes.
50. Assim, no que respeita a esta matéria, os concretos meios probatórios cujo reexame se solicita a este Venerando Tribunal e que impunham decisão diversa da proferida são os que se passam a elencar:
- AA (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 10/05/2022 e cujos trechos se acham devidamente transcritos no corpo das presentes alegações);
- DD (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 10/05/2022 e cujos trechos se acham devidamente transcritos no corpo das presentes alegações);
- BB (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 10/05/2022 e cujos trechos se acham devidamente transcritos no corpo das presentes alegações);
- CC (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 10/05/2022 e cujos trechos se acham devidamente transcritos no corpo das presentes alegações).
51. Escalpelizados os depoimentos destas testemunhas, e cujos trechos essenciais acabamos de transcrever, dos mesmos ressalta que o comboio histórico estava dotado de todos os equipamentos necessários para evitar a saída de faúlhas para o exterior, pelo que não se mostra como possível que, com todos esses mecanismos existentes e em pleno funcionamento fosse possível que essa locomotiva causasse o incêndio relatado nos autos.
52. Não podemos deixar de manifestar a nossa perplexidade para o facto do Tribunal “a quo” ter considerado que estas testemunhas não garantiram que estes equipamentos eram eficazes e que não permitiam o vazamento de matéria incandescente suscetível de provocar um incêndio quando o comboio se encontrava em movimento.
53. Como facilmente se constata através da simples leitura do depoimento destas testemunhas, as mesmas garantiram que, da experiência que tinham e que já era longa, o comboio era seguro e estava dotado de mecanismos eficazes que impediam a saída e propagação de faúlhas, evitando qualquer incidente causado pelas mesmas.
54. Estamos perante testemunhas que fazem (ou faziam) parte da tripulação do comboio histórico há muitos anos, tendo, por isso, muita experiência quanto ao funcionamento do mesmo.
55. Estas foram as únicas testemunhas que depuseram sobre estes factos relacionados com os equipamentos de que o comboio histórico se encontrava dotado e tiveram um depoimento claro, imparcial e seguro quanto a esta matéria.
56. Assim, tendo por base a prova produzida quanto a esta matéria, o Tribunal “a quo” deveria ter considerados como provados os factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), K) e L) da matéria considerada como não provada.
57. Ao dar como provados ao factos constantes dos artigos 22.0, 23.0, 37.0 e 38.0 da matéria considerada provada, concretamente imputando a causa do incêndio ao comboio histórico e ao considerar como não provados os factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), K) e L) da matéria considerada como não provada, o Tribunal “a quo” efetuou uma errada apreciação da prova, incorrendo, pois, em erro de julgamento.
58. “Ora, apesar de em tese geral, a jurisprudência não descartar conferir relevo, em determinadas circunstâncias, ao depoimento indirecto, prestado por testemunhas que não percepcionaram directamente os factos e tiveram deles conhecimento através do relato das próprias partes ou de terceiros, a reduzida fiabilidade de tais meios de prova desaconselha a sua aceitação como pela principal e estruturante do puzzle probatório. Poderão, sim, em determinados contextos probatórios, funcionar como peça complementar a fornecer importantes achegas que permitam estabelecer sinapses ou conexões lógicas entre o conjunto dos meios de prova, de modo a contribuir para a emergência de um todo probatório coerente, por forma a permitir ao julgador, fundadamente, exprimir uma convicção segura quanto à realidade dos factos” (cfr. Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 30/04/2014, proferido no âmbito do Processo n.º 792/09.1TBMAI.P1).
59. Sucede que, nos presentes autos, e sempre com o máximo respeito, os depoimentos indiretos produzidos pelas testemunhas em sede de processo crime e que foram valorados nos presentes autos não têm o condão de funcionar, como se alude no supra citado acórdão, como peça complementar” destinada á demonstração da matéria factual que se acha incorretamente julgada.
60. Isto porque nenhuma das testemunhas assistiu ao deflagrar do incêndio.
61. Do acervo probatório produzido nos presentes autos, atenta a sua escassez, jamais seria possível considerar provada a causa do incêndio.
62. A matéria ínsita nos artigos 22.º, 23.º, 37.º e 38.º do elenco da factualidade considerada provada deveria ter sido considerada NÃO PROVADA.
63. E deveria ser considerada como PROVADA os factos constantes das alíneas A), B), C), I), J), K) e L) da matéria considerada como não provada.
- DO DIREITO:
64. A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como consequência direta e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente ação.
65. Não se logrou demonstrar que o incêndio deflagrou tal como foi explanado na Petição Inicial e, consequentemente na sentença sob recurso, ou seja, não se provou que o foi o comboio histórico que esteve na origem do incêndio.
66. Provou-se, pois, a existência de danos na propriedade da Recorrida sem se ter logrado demonstrar que o incêndio causador desses danos deflagrou em consequência de faúlhas libertadas para o exterior pelo comboio histórico.
67. Importa, pois, aquilatar das consequências dessa falta de demonstração em sede da responsabilidade civil extracontratual que a Recorrida pretende imputar à Recorrente.
68. Neste caso concreto, o ónus da prova da causa do incêndio competia à Recorrida e não o tendo satisfeito, como demonstrado, a sua pretensão não pode deixar de improceder.
69. A este propósito, dispõe o artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, que: “Áquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
70. Sendo a Recorrida que se arroga no direito a ser indemnizada pela Recorrente em consequência de um incêndio causado por um comboio que esta explora, obviamente que é à Recorrida que compete o ónus de provar os factos constitutivos desse seu direito.
71. E não cumprindo a Recorrida esse ónus, a dúvida sobre a causa do incêndio tem de ser resolvida contra si.
72. Pois, neste sentido, estabelece o artigo 414.º do Código de Processo Civil que “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”.
73. Assim, não tendo sido feita prova inequívoca e bastante de que o incêndio foi causado pelo comboio, a presente ação encontra-se votada ao insucesso.
74. Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos artigos 342.º do Código Civil e 414.º do Código Processo Civil, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada na íntegra.
TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO INTEGRAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO, E REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, NOS TERMOS SUPRA EXPENDIDOS, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.»
1.8. A Autora contra-alegou, mas não apresentou conclusões.
1.9.O Ministério Público junto deste TCA Norte, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º1 do CPTA, não emitiu parecer.
1.10. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO.
2.1.Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPT.
Acresce que por força do artigo 149.º do CPTA, o tribunal ad quem, no âmbito do recurso de apelação, não se queda por cassar a sentença recorrida, conquanto ainda que a declare nula, decide “sempre o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito”.
2.2. Assentes nas mencionadas premissas, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste TCAN resumem-se a saber se:
b.1- o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como provada ao dar como assente os factos descritos nos pontos 22, 23, 37 e 38 e se reponderando na prova produzida se impõe dar como não provada essa matéria;
b.2. o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto dada como não provada nas alíneas A), B), C), I), J), K) e L) e se reponderando na prova produzida se impõe dar como provada essa matéria;
b.3. se o Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação e aplicação da lei (face ao sucesso da prévia impugnação da matéria de facto feita), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, julgando a ação totalmente improcedente)
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A.DE FACTO
3.1. Com interesse para a decisão da causa, a 1.ª Instância deu como provados os seguintes factos:
1) A Autora é proprietária e legítima possuidora da denominada “Quinta Nova” que abarca um conjunto de prédios rústicos e um prédio urbano, melhor descritos nos artigos 1º a 15º da petição inicial.
2) Os prédios atrás referidos têm a configuração identificada na planta junta com a petição inicial como doc. nº ...3, o qual se dá por integralmente reproduzido.
3) Sobre os ditos prédios, com a configuração atrás referida, a Autora vem, ao longo dos anos por si e pelos seus antecessores, limpando e roçando o mato, granjeando o olival e cuidando do mesmo e das restantes árvores de fruto existentes na “Quinta Nova”, plantando, podando, limpando, sulfatando, vindimando a vinha, colhendo e fazendo seus os respectivos frutos.
4) E, ainda, explorando o Hotel ..., recebendo hóspedes, servindo refeições e organizando visitas e passeios pela Quinta ..., com a configuração atrás referida constante da planta junta como doc. nº ...3.
5) Sendo que (no que respeita aos frutos da vinha) a Autora produz, com os mesmos, vinho na Quinta ....
6) Vinho esse que vende no mercado, nomeadamente sob as marcas “Pomares”, “Grainha” e “Quinta Nova”.
7) Tudo o que se refere nos quatro itens anteriores tem sido praticado pela Autora e pelos seus ante possuidores à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e com a convicção de que eram os verdadeiros proprietários do conjunto imobiliário designado “Quinta Nova”, do seu terreno, vinha e hotel e que exerciam direitos próprios, sem lesar quaisquer direitos de outrem.
8) A Ré CP explora e opera o “comboio histórico da linha do Douro”, do qual é proprietária.
9) O comboio histórico consiste na “Locomotiva a Vapor 0186, construída em 1925 pela Henschel & Son, e 5 carruagens históricas” que percorrem, em regra de Junho a Outubro, a distância que vai da estação da Régua à Estação do Tua.
10) No dia 24 de Julho de 2010, a Autora tinha plantados pés de vinha ao longo da “Quinta Nova”, destinados à produção e comercialização vinho.
11) E, concretamente, numa área ardida de 0,5 hectares de vinhal, que se estende para norte da linha de caminho-de-ferro, contígua ao Rio Douro, com a configuração (aproximada) constante do croqui junto com a petição inicial como doc. nº ...4 e que se dá por integralmente reproduzido, encontravam-se plantados 800 (oitocentos) pés de vinha.
12) Estes oitocentos pés de vinha encontravam-se plantados desde o ano de 2002.
13) E eram da casta “Touriga Nacional”.
14) No giro comercial da actividade vinícola e de acordo com a sua legis artis as vinhas que ficam mais próximas do Rio Douro são bastante valorizadas (com a melhor classificação possível atribuída pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, I. P.) e dão o vinho com mais qualidade, valor comercial e maior procura.
15) No giro comercial da actividade vinícola e de acordo com a sua legis artis a casta “Touriga Nacional” é uma das castas portuguesas mais valorizadas e elogiada em Portugal e no mundo.
16) Sendo aquela que tem mais valor comercial e que define o perfil da gama Quinta Nova.
17) As plantas em causa originavam vinhos, a saber, “QN Douro Grande Reserva” e “QN Douro Touriga Nacional”.
18) Os quais constituem das mais fortes imagens de marca da Autora.
19) No dia 24 de Julho de 2010, alguns minutos antes das 18h20, o referido “comboio histórico” passou junto da “Quinta Nova”.
20) O “comboio histórico” era seguido por uma dresina destinada a detectar e actuar perante eventuais focos de incêndio, percorrendo o mesmo trajecto embora com uma diferença de cerca de 20 minutos.
21) No dia em causa fazia-se sentir elevada temperatura, superior a 30ºC.
22) Nesse dia, ao passar junto à “Quinta Nova”, o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé não protegida.
23) O incêndio deflagrou pelas 18h20 do referido dia 24 de Julho de 2010, após a passagem do referido comboio histórico, e foi extinto pelas 20h05 do mesmo dia.
24) No dia 25 de Julho de 2010, cerca das 12h30, o incêndio reacendeu no mesmo local, tendo consumido apenas lenha que se encontrava na área já ardida não tendo propagado a outras áreas, tendo sido dado como extinto pelas 14h15.
25) O incêndio consumiu e destruiu totalmente a área de vinha e os 800 pés de vinha acima referidos.
26) O custo de reposição dos pés de vinha destruídos corresponde a 2.332,00€.
27) Na sequência do incêndio de 2010, por referência a um período de 5 anos, no que toca aos 0,5 hectares de vinha ardida, a Autora deixou de poder produzir vinho para fins comerciais, deixando de lucrar o equivalente a 95.056,58€.
28) No dia 30 de Julho de 2011, a Autora tinha plantados pés de vinha ao longo da “Quinta Nova”, destinados à produção e comercialização de vinho.
29) E, bem assim, oliveiras, sobreiros e cedros.
30) Concretamente, numa área ardida de cerca de 0,5 hectares, que se estende para norte da linha de caminho-de-ferro, contígua ao Rio Douro, na localização constante do croqui junto com a petição inicial como doc. nº ...6, o qual se dá por integralmente reproduzido, encontravam-se plantados, em 0,07ha, 200 pés de vinha.
31) E, na remanescente área, 35 oliveiras, 18 sobreiros e 4 cedros.
32) Os 200 pés de vinha encontravam-se plantados ali desde o ano de 2002.
33) Os 200 pés de vinha eram da casta “Touriga Nacional” para a produção de vinhos, a saber, “QN Douro Grande Reserva” e “QN Douro Touriga Nacional”.
34) No dia 30 de Julho de 2011, alguns minutos antes das 15h20, o referido “comboio histórico” passou junto da “Quinta Nova”.
35) O “comboio histórico” era seguido por uma dresina destinada a detectar e actuar perante eventuais focos de incêndio, percorrendo o mesmo trajecto embora com uma diferença de cerca de 20 minutos.
36) No dia em causa fazia-se sentir elevada temperatura, superior a 30ºC.
37) Ao passar junto à “Quinta Nova” o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé.
38) O incêndio deflagrou pelas 15h27 do referido dia 30 de Julho de 2011, após a passagem do referido comboio histórico, e foi extinto pelas 18h23 do mesmo dia.
39) O incêndio consumiu e destruiu totalmente a área de vinha, os 200 pés de vinha e as árvores acima referidas.
40) O custo de reposição dos pés de vinha corresponde a 583,00€.
41) No incêndio de 2011, foram destruídos 8 sobreiros adultos, com um valor unitário de 150,00€ (= 1.200,00€ no total).
42) No incêndio de 2011, foram destruídas 15 oliveiras adultas, com um valor unitário de 150,00€ (= 2.250,00€ no total).
43) No incêndio de 2011, foram destruídos 10 sobreiros jovens, com um valor unitário de 150,00€ (= 1.500,00€ no total).
44) No incêndio de 2011, foram destruídas 20 oliveiras jovens, com um valor unitário de 150,00€ (= 3.000,00€ no total).
45) Na sequência do incêndio de 2011, por referência a um período de 5 anos, no que toca a 0,07 hectares de vinha ardida, a Autora deixou de poder produzir vinho para fins comerciais, deixando de lucrar o equivalente a 13.101,27€.
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III.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a decisão da presente causa, não resulta provado o seguinte:
A) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, a locomotiva/comboio histórico encontrava-se equipada com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio.
B) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, o comboio histórico, na sua caixa de fumos, tinha montado um filtro de rede que evitava a saída de cinzas e faúlhas da fornalha.
C) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, estava equipada com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas.
D) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, o comboio histórico estava equipado e tinha integrado um sistema de água pulverizada capaz de apagar partículas incandescentes.
E) O custo de reposição das vinhas destruídas no incêndio ocorrido no dia 24 de Julho de 2010, relativamente aos trabalhos de surriba, corresponde a 6.000,00€.
F) Os 200 pés de vinha referidos no item 32) dos factos provados produziam uvas de variedades para a produção de vinho generoso (vinho do Porto).
G) As videiras que produzem castas para a produção de vinho do Porto têm elevado valor comercial.
H) Os vinhos do porto da Quinta Nova constituem uma das mais fortes imagens de marca da Autora.
I) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, a locomotiva/comboio histórico encontrava-se equipada com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio.
J) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, o comboio histórico, na sua caixa de fumos, tinha montado um filtro de rede que evitava a saída de cinzas e faúlhas da fornalha.
K) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, estava equipada com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas.
L) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, o comboio histórico estava equipado e tinha integrado um sistema de água pulverizada capaz de apagar partículas incandescentes.
M) No dia 30 de Julho de 2011, quando o comboio histórico passou ao Km 120,700 da linha do Douro, pelas 15h30m, encontrava-se já, junto à via, do lado esquerdo, no sentido ascendente, um foco de incêndio, tendo sido constatado, pelo respectivo operador de revisão e venda e pelos passageiros, que tal incêndio já se encontrava activo antes da passagem do comboio.
N) O custo de reposição das vinhas destruídas, relativamente aos trabalhos de surriba, corresponde a 1.000,00€.»
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III.B.DE DIREITO
3.2. Na ação que moveu contra as Rés, a autora pediu a condenação da Ré CP a indemniza-la pelos danos sofridos em consequência de um incêndio alegadamente provocado pelo “comboio histórico da linha do Douro” explorado e operado pela CP, ora Recorrente, com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito praticado no âmbito da função administrativa.
O tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, condenando a ora Recorrente, no pagamento de uma indemnização à autora no montante de 317.360,00€.
A Recorrente não se conforma com a sentença proferida, alegando que o Tribunal a quo decidiu erroneamente ao dar como demonstrada a factualidade atinente a considerar que o comboio histórico provocou o incêndio relatado nos autos através da libertação de faúlhas da sua chaminé não protegida; (Factos 22, 23, 37 e 38 da matéria dada como provada) e ao não considerar provados os factos que demonstram que o aludido comboio se encontrava dotado com os equipamentos necessários para impedir a ocorrência de incêndios, nomeadamente equipamentos que impediam a fuga de partículas, cinzas e faúlhas e que apagavam partículas incandescentes. (Factos A), B), C), I), J), K) e L) da matéria dada como não provada).
Em termos sumários, considera que a sentença recorrida errou porque, não teve em devida linha de conta toda a prova carreada aos presentes autos, nomeadamente, a prova documental e testemunhal, que valorou de forma desadequada, e também porque recorreu, indevidamente, às presunções judiciais por forma a dar como provado que o incêndio foi causado pelo comboio histórico, quando não foi, de todo, produzida prova nesse sentido.
Na procedência do invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto, a Apelante pretende a revogação da decisão proferida pela 1.ª instância e a sua substituição por outra que julgue a ação totalmente improcedente, com a sua consequente absolvição do pedido.
Vejamos se lhe assiste razão.
b.1. Da Impugnação da matéria de facto
3.3.Antes de passarmos à análise dos concretos erros de julgamento que o Apelante assaca à decisão sobre matéria de facto operada pelo tribunal a quo, impõe-se enunciar os critérios que presidem a essa impugnação e os termos a que este TCAN se encontra subordinado na reponderação da prova produzida.

b.1.1.dos critérios impostos ao recorrente em sede de impugnação da matéria de facto.
3.4. Com a reforma introduzida pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, ao CPC, o legislador introduziu o registo da audiência de discussão e julgamento, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da 2.ª Instância.
A intenção do legislador foi a de que o tribunal de segunda instância passasse a realizar um novo julgamento em relação à matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo esta a conclusão que resulta expressamente do disposto no art.º 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a “Relação” deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.
Como vem sendo repetidamente afirmado quer pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência daquelas alterações, são de rejeitar todas as interpretações minimalistas do enunciado art.º 662º que, refugiando-se nas dificuldades relacionadas com a audição dos depoimentos testemunhais captados sem registo de imagem, com prejuízo do princípio da imediação (prejuízo esse que, aliás, é uma realidade), se limitam a fazer um controlo meramente formal da fundamentação vertida pelo tribunal a quo, assim como aquelas que se limitam a fundamentar, de forma genérica, sem referência aos concretos meios de prova e a conectá-los entre si e com as regras da experiência comum, isto é, sem fazer um novo julgamento, por forma a demonstrar o acerto ou desacerto da decisão proferida pelo tribunal a quo em relação à matéria impugnada em sede recursória. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI..
Perante as regras positivas enunciadas na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, o Tribunal de 2.ª Instância deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância.
Como verdadeiro tribunal de substituição, a 2.ª Instância aprecia livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, a 2.ª Instância não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que a 1ª instância fez dessa mesma prova, podendo e devendo na formação dessa sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI..
Contudo, importa não perder de vista que não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela 2.ª Instância em sede de matéria de facto se transforme na repetição do julgamento realizado em 1.ª Instância, sequer admitir recursos genéricos, e daí que tenha imposto ao recorrente, em sede de impugnação da matéria de facto, o cumprimento dos ónus que enuncia no art.º 640º do CPC, pelo que se mantém o entendimento que o tribunal de 2ª instância deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 153., estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Acresce que tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da auto -responsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, se impunha que tivesse sido proferida e os concretos meios de prova que reclamam essa solução diversa.
Deste modo é que o art. 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º).
Note-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial da delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do âmbito do recurso, mas se destinam a fundamentar o recurso, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes ob. cit., pág. 155., sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente:
a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
O cumprimento dos referidos ónus tem, como alerta Abrantes Geraldes, a justificá-la a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da 2.ª Instância, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações. É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de auto- responsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159.
No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI..

Por último, precise-se que porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela 2.ª Instância dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
A alteração da matéria de facto só deve, assim, ser efetuada pelo Tribunal de 2.ª Instância quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art. 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma.
Deste modo, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parteAna Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609..
Em face do exposto, a «rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a)Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c)Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128 e 129, com bold apócrifo).»

Para o caso de não ser liminarmente rejeitado o recurso interposto sobre a matéria de facto, o âmbito de apreciação pela 2.ª Instância é estabelecido de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os
princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela 2.ª Instância, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Cuidemos agora de verificar se ocorrem os invocados erros de julgamento assacados à decisão recorrida quanto ao julgamento acerca da matéria de facto.

b.1.1. do erro de julgamento quanto à prova dos factos inscritos nos pontos 22, 23, 37 e 38 da fundamentação de facto da sentença recorrida.
3.5. A Apelante impetra erro de julgamento à sentença recorrida por o Senhor juiz a quo quanto ter considerado provados os factos inscritos nos pontos 22,23,37 e 38 do elenco dos factos provados, asseverando que não foi produzida qualquer prova direta que permitisse extrair uma convicção sólida nesse sentido.
Alega que para a prova dessa matéria o Senhor juiz a quo se ateve ao inquérito crime, o qual, porém, foi arquivado por despacho do Ministério Público com fundamento na falta de indícios suficientes em como os incêndios objeto da ação administrativa movida pela Autora, tivessem sido provocados por faúlhas libertadas aquando da passagem do “comboio histórico” junto à quinta da Autora. Ademais, quer em relação aos documentos que constam desse inquérito, quer em relação aos depoimentos prestados nesse âmbito, uns e outros, nada revelam quanto à causa dos incêndios, resultando desse documentos e das pessoas ouvidas nessa sede, que estão em causa meras “opiniões”.
Vejamos.
3.6.A matéria que consta dos referidos pontos do elenco dos factos provados é a seguinte:
«22) Nesse dia, ao passar junto à “Quinta Nova”, o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé não protegida.
23) O incêndio deflagrou pelas 18h20 do referido dia 24 de Julho de 2012, após a passagem do referido comboio histórico, e foi extinto pelas 20h05 do mesmo dia.
(...)
37) Ao passar junto à “Quinta Nova” o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé.
38) O incêndio deflagrou pelas 15h27 do referido dia 30 de Julho de 2011, após a passagem do referido comboio histórico, e foi extinto pelas 18h23 do mesmo dia.»
3.7. O Apelante considera que os factos provados nos pontos 22,23, 37 e 38 da fundamentação de facto da sentença recorrida deviam ter sido julgados como não provados, uma vez que nenhuma das testemunhas mostrou conhecimento direto dos factos atinentes à causa do incêndio e que o facto de o comboio ter sido visto a circular na linha do Douro nas proximidades da propriedade da Recorrida perto da hora que ocorreu o incêndio não poderia consubstanciar causa suficiente para dar como provado que foi o comboio que provocou o referido incêndio.
Observa que a convicção probatória emanada na sentença proferida quanto à causa do incêndio assentou em presunções judiciais, e que se é certo que o julgador pode lançar mão das presunções judiciais, a fim de criar uma convicção probatória positiva de determinados factos (parte de um facto conhecido para afirmar um outro facto), não pode, contudo, e como sucede no caso dos autos, “dar um salto maior do que a perna” para dar como provado que o incêndio foi causado pelo comboio histórico, só porque o comboio foi visto a circular na linha do douro nas proximidades da propriedade da Apelada perto da hora que ocorreu o incêndio.
Sustenta que, como resulta da motivação da sentença, todos os factos dados como provados no sentido de considerar que o incêndio foi provocado pelo comboio histórico ( pontos 22.º, 23.º, 37.º e 38.º dos factos provados), alicerçaram-se, unicamente, nos elementos constantes do processo de inquérito crime junto com a petição inicial, e que no âmbito dos presentes autos não foi produzida qualquer prova nesse sentido.
E sendo assim como entende que é, considera que tendo em conta que no aludido inquérito foi proferido despacho de arquivamento do processo crime por se considerar, entre o mais, que« não foram recolhidos indícios suficientes que o incêndio fora provocado pelo comboio histórico da linha do Douro (e melhor identificado a fls. 40, 63), designadamente a partir da matéria libertada pela combustão ocorrida na locomotiva do mesmo ou se a partir de eventuais faúlhas expelidas das suas rodas.», o Tribunal a quo errou ao considerar que “o despacho de arquivamento socorre-se, naturalmente, dos factos recolhidos no inquérito, mas vai além de um juízo meramente fáctico, pois que procede a uma apreciação jurídica da realidade processualmente demonstrada no processo de inquérito, seguindo critérios de standard da prova próprios do processo penal e, assim, como não poderia deixar de ser de qualquer modo, as conclusões do Ministério Público não são suscetíveis de influir no juízo deste Tribunal.”
Para o Apelante, a consideração de que as exigências de prova em matéria processual penal são mais exigentes do que no processo civil foi erradamente valorada pelo Tribunal a quo, uma vez que, no caso, estava-se na fase de recolha de indícios que pudessem sustentar a dedução de uma acusação crime, ou seja, na fase de inquérito crime e não de julgamento crime, pelo que, também aqui as exigências quanto à prova se regem por um standard que não é o que se aplica para efeitos de condenação criminal.
Nesse sentido, refere que sendo os factos plasmados na prova recolhida no processo de inquérito os mesmos que o Tribunal “a quo” utilizou para formar a sua convicção, ou seja, estando essa convicção probatória alicerçada nos mesmos factos que levaram o Ministério Público a concluir em sentido oposto, sendo que foi o Ministério Público que no âmbito do inquérito criminal conduziu e mediou toda a prova produzida em sede de inquérito, evidencia o erro de julgamento em que incorreu o Senhor Juiz a quo ao concluir diversamente.
Logo, considerando que a prova dos factos vertidos nos referidos pontos do elenco dos factos provados assentou quase exclusivamente no processo de inquérito, tendo os fundamentos probatórios para alicerçar a prova desses factos assentado nos documentos e depoimentos prestados no âmbito do inquérito criminal, o apelante conclui que o Tribunal “a quo” não poderia decidir senão como se concluiu naquele processo e assim, não podia senão absolver o Apelante, por não se ter provado que o comboio histórico foi o causador do incêndio.
Quid iuris?
3.8. De acordo com o disposto no art.º 607.º, n.º 5, do CPC “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Nos termos deste preceito, a prova serve para criar no espírito do julgador a convicção acerca da veracidade de cada um dos factos.
«A prova não é uma certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida ( certeza histórico-empírica).
Não se pode pretender uma certeza absoluta, própria das ciências matemáticas. Os factos sobre que versa são geralmente ocorrências da vida quotidiana que se situam no passado, os quais dificilmente poderiam ser integralmente reconstituídos.
A prova visa apenas, de acordo com critérios de razoabilidade essenciais à aplicação do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto»- cfr. Jorge Augusto Pais de Amaral, in “Direito Processual Civil”, 2016, 12.ª Edição, Almedina, pág.287.
Conforme bem elucida LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA: “Pese embora a existência de algumas flutuações terminológicas, o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não” – in SOUSA, Luís Filipe Pires, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª edição, Revista e ampliada, Almedina (no prelo), p. 6, disp. in https://www.oa.pt/upl/%7B4b6f3e08-f2a4-47f2-950e-82552acc8b74%7D.pdf.
No mesmo sentido, LEBRE DE FREITAS afirma que «(...) ao julgador basta, na apreciação da prova, assentar a sua convicção num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança”, não sendo exigível, “que a convicção do julgador sobre a realidade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano»- Cfr. FREITAS, Lebre de (2013) – A acção declarativa, 3ª edição, Coimbra Editora, ponto 14.4, nota 32.
Por outro lado, as provas são apreciadas livremente pelo juiz, a não ser que estejamos perante casos de prova tabelada, i.é, situações em que os meios de prova tenham um valor legal pré-determinado. Tal não significa que que o juiz tenha a liberdade de julgar os factos de forma arbitrária ou caprichosa, ou como lhe aprouver, mas apenas que o juiz não está subordinado a regras ou critérios formais estabelecidos na lei, decidindo antes segundo a sua experiência prtática da vida, e a sua prudência, i.é, de acordo com “ a objetividade da vida”, convocando a sua experiência ou vivência pessoal, e o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere.
Nas palavras de CASTANHEIRA DAS NEVES : “trata-se …da objetividade da experiência de vida e social-prática em que o conhecer e o agir, o conhecer e o avaliar se dão mãos e formam uma unidade, pois mais não é do que compreender-se a si e aos outros no con-viver comunicante num mesmo mundo humano”- in “Questão-de-facto_ questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, Coimbra: Livr. Almedina, 1967, p.479, p.481.
No julgamento de facto, exige-se ao juiz que considere as provas recolhidas e as valore, pelo que, nesse exercício o mesmo tem de convocar a sua experiência de vida, e é desejável que o faça, e sobretudo que a tenha, pois a experiência é parte componente da prudência.
Trata-se de uma livre valoração das provas, mas de uma valoração que é racional e não arbitraria, exigindo-se ao juiz que fundamente como chegou a determinado resultado probatório.
Outrossim, se o juiz ficar na dúvida, nem por isso lhe é permitido que se abstenha de julgar ( cfr. artigo 8.º, n.º1 do Cód.Civil), impondo-se-lhe, em tais casos, que profira decisão contra a parte a quem cabia o ónus de provar o facto. Aliás, são as regras do ónus da prova que definem o critério que o juiz deve adotar para proferir a decisão.
3.9.Na formação da sua convicção, o juiz pode e deve recorrer, sempre que tal se justifique e seja possível, a presunções judiciais. Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 349.º do Cód.Civil :
Presunções, são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
A presunção pode ser estabelecida pela lei ( presunção legal) ou admitida pelo julgador ( presunção judicial, natural ou de facto).
Quanto à denominada “prova por presunções”, como bem elucida CUNHA GONÇALVES: “Posto que o legislador haja incluído entre as provas as presunções, a verdade é que estas não constituem prova, nem mesmo indireta ou circunstancial, porque são, apenas, processo mental de investigar, por meio de induções e deduções, uma verdade provável, revelada por determinadas circunstâncias, ou como tal havida por disposição expressa da lei”- in Tratado de Direito Civil, XVI, pág. 376.
As presunções judiciais são assim meios lógicos ou mentais, ou afirmações formadas/assentes em regras práticas da experiência em que o juiz « valendo-se de certo facto e de regras de experiência conclui que aquele denuncia a existência doutro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro: procede então mediante uma presunção ou regra da experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência»- cfr. A.Lopes Cardoso: RT, 86.º-112 e AA. aí citados.
A presunção exige, por conseguinte, a concorrência de dois factos: o facto base, que tem de ser conhecido, e o facto ilação, que é aquele a que se chega, por dedução, partindo do anterior.
A prova por presunções judiciais só é admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal- cfr. art.º 351.º do Cód.Civil.
Deve ainda ter-se presente que nos termos do n.º1 do artigo 342.º do CPC, “quem alega, deve provar” .
4.Por fim, é consabido que a decisão sobre a matéria de facto tem de ser motivada, ou seja, justificada de modo a poder ser compreendida e controlada, devendo o juiz dar a conhecer o tratamento da prova que levou à decisão, ou seja, deve narrar os antecedentes probatórios, as inferências realizadas na sua obtenção e as que aqueles tornam possíveis, mostrando os passos- chave que permitam evidenciar o núcleo da decisão.
Basicamente, exige-se que o juiz explique como a partir do material probatório apresentado chegou a determinada conclusão que se expressa nos factos provados e nos não provados. O que requer um tratamento individualizado dos distintos meios de prova que ilustre de maneira suficiente porque razão se lhes atribuiu um valor, positivo ou negativo. Cfr. Revista Julgar, n.º13, pág.172/173.
4.1.Voltando ao caso em discussão, o Senhor juiz a quo, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, foi exaustivo e rigoroso na enunciação dos meios de prova em que se estribou e na explicação do tratamento que deu aos meios de prova, enunciando de forma clara como chegou à decisão que proferiu sobre a prova e a não prova dos factos essenciais ao conhecimento do mérito da ação.
Vejamos.
4.2.Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o Senhor juiz a quo, começou por enunciar de forma clara que nos presentes autos não foi produzida qualquer prova direta sobre a causa dos incêndios, mas que, é licito ao julgador recorrer a presunções judiciais para formar a sua convicção, lendo-se nessa decisão que:
««Partindo dos factos essenciais alegados pelas partes, sem prejuízo dos factos instrumentais e dos factos complementares ou concretizadores que resultaram da instrução da causa (cf. artigo 5º, nºs 1 e 2, do CPC) – e deixando de parte os factos conclusivos, as alegações de direito e os factos de todo irrelevantes para a decisão da causa –, a decisão da matéria de facto efectuou-se mediante o recorte dos factos pertinentes, em função da sua relevância jurídica e atentas as soluções plausíveis de direito (cf. artigo 607º, nºs 3 a 5, do CPC), de harmonia com a motivação que se segue.
Por prova legal, os itens 1) a 9) do probatório provêm da admissão por acordo decorrente da falta de impugnação especificada das Rés (cf. artigo 574º, nºs 1 e 2, do CPC).
Já no âmbito da prova livre, e preliminarmente à incursão nos itens do probatório respeitantes à fattispecie dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, mormente a ilicitude e a imputação subjectiva e objectiva no contextos de cada um dos incêndios, convém ter por perto que, enquanto no processo penal o standard probatório é o exigente “para além de toda a dúvida razoável”, já em direito processual administrativo, de matriz civilística, o standard da prova que opera é o da probabilidade prevalecente (“mais provável que não”), que se consubstancia em duas regras fundamentais: entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação lógica relativamente maior face às demais; deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa. De facto, o standard da prova evidencia que a verdade apurada no processo não é uma verdade absoluta mas a verdade apurada à luz da informação disponível (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-10-2017, proc. nº 585/13.1TCFUN-A.L1-7, e de 25-10-2016, proc. nº 3894/05.0TVLSB.L1-7).
Essa motivação pode decorrer de prova directa, quando se logra a demonstração da verificação de um concreto evento, ou indirecta (circunstancial), quando a demonstração incide não sobre o evento a provar mas antes em outros eventos correlacionados/circunstanciais e de cuja verificação se extrai, segundo as regras de experiência comum de vida, a ocorrência do evento a provar (praesumptio hominis) (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02-05-2017, proc. n2 2170/13.9TVLSB.L1-1).
Alinhados por esse diapasão, impõe-se percorrer os elementos probatórios que o processo contempla, sabendo-se que inexiste prova directa das causas do incêndio, na medida em que nenhuma das testemunhas ouvidas em Tribunal presenciou a sua deflagração e muitas das testemunhas, dado o significativo intervalo temporal, pouco ou nada de concreto conseguiram oferecer sobre as viagens em causa, o que importa uma valoração mais atenta dos sinais probatórios constantes dos processos de inquéritos.» ( sublinhado nosso).
4.3. Seguidamente, partindo de certos factos incontestados, e dos elementos de prova documental e testemunhal que foram produzidos nos autos, apelando a presunções judiciais que fundamentou de forma clara e conscienciosa, o Senhor Juiz a quo deu como provado que no dia 24 de julho de 2010, a Autora tinha plantados pés de vinha ao longo da “Quinta Nova”, destinados à produção e comercialização de vinho, numa área ardida de 0, 5 hectares de vinhal, que se estende para norte da linha de caminho-de-ferro, contígua ao Rio Douro onde se encontravam plantados 800 (oitocentos) pés de vinha, os quais eram da casta “Touriga Nacional” desde o ano de 2002.
.A casta “Touriga Nacional” é uma das castas portuguesas mais valorizadas e elogiada em Portugal e no mundo e, entre as tintas, a casta touriga nacional é reconhecida como sendo “a casta mais nobre de Portugal”, sendo aquela que tem mais valor comercial e que define o perfil da gama Quinta Nova. As plantas em causa consistentemente originavam vinhos de topo de gama, nomeadamente “Grande Reserva Touriga Nacional”, os quais constituem das mais fortes imagens de marca da Autora.
Mais deu como provado que, que no dia 24 de julho de 2010, alguns minutos antes das 18h20, o comboio histórico da linha do Douro, explorado pela Ré/Recorrente passou junto da “Quinta Nova”.
No dia em causa fazia-se sentir elevada temperatura, superior a 30.º centígrados.
E, ao passar, junto à “Quinta Nova”, o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé não protegida ( ponto 22 do elenco dos factos provados)- matéria impugnada.
O referido incêndio deflagrou pelas 18h20 do referido dia 24 de julho de 2010, após a passagem do referido comboio histórico, e foi extinto pelas 20h05 do mesmo dia ( ponto 23 do elenco dos factos provados)-matéria impugnada.
O incêndio consumiu e destruiu totalmente a área de vinha e os pés de vinha acima referidos.
No dia 25 de julho de 2010, cerca das 12h30, o incêndio reacendeu no mesmo local, tendo consumido apenas lenha que se encontrava na área já ardida não tendo propagado a outras áreas, tendo sido dado como extinto pelas 14h15.
Mais se provou que, no dia 30 de julho de 2011, a Autora tinha plantados pés de vinha ao longo da “Quinta Nova”, destinados à produção e comercialização de vinho, bem assim, oliveiras, sobreiros e cedros.
E, concretamente, numa área ardida de cerca de 0, 5 hectares, que se estende para norte da linha de caminho-de-ferro, contígua ao Rio Douro, 200 pés de vinha que produzem uvas de variedades para a produção de vinho generoso (vinho do Porto), e, na remanescente área, 35 Oliveiras, 18 sobreiros e 4 cedros.
Os pés de vinha encontravam-se plantados ali desde o ano de 2002.
Mais se provou que, no dia 30 de Julho de 2011, alguns minutos antes das 15h20, o referido “comboio histórico” passou junto da “Quinta Nova”.
E que, ao passar, junto à “Quinta Nova”, o comboio histórico provocou um incêndio derivado da libertação de faúlhas da sua chaminé ( ponto 37 do elenco dos factos provados)-matéria impugnada.
No dia em causa fazia-se sentir elevada temperatura, superior a 30.º centígrados
E o incêndio deflagrou pelas 15h27 do referido dia 30 de Julho de 2011, após a passagem do referido comboio histórico, 18h23 do mesmo dia ( ponto 38 do elenco dos factos provados)-matéria impugnada.
O incêndio consumiu e destruiu totalmente a área de vinha, os pés de vinha e as árvores acima referidos.
4.4.De toda a matéria dada como provada, descrita em sumula nos termos que antecedem, apenas vem impugnada a facticidade vertida nos pontos 22,23, 37 e 38, ou seja, que os referidos incêndios foram provocados pela libertação de faúlhas da chaminé do comboio histórico quando aquele passou junto à “Quinta Nova”, respetivamente, nos dias 24/07/10, pelas 18h20m e 30/07/11, pelas 18h23m.
Pese embora, como o Tribunal a quo expressa na motivação da decisão que proferiu sobre os factos que deu como assentes, não tenha sido produzida prova direta sobre alguns factos, máxime, sobre a matéria impugnada nos referidos pontos 22,23, 37 e 38, na medida em nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento afirmou ter presenciado a causa que determinou os incêndios, aquiescemos com a 1.ª Instância quando considerou provado, recorrendo a presunções judiciais, que a causa desses incêndios se ficou a dever à libertação de faúlhas do “comboio histórico” aquando da sua passagem, junto à “Quinta Nova”, nas datas em causa.
4.5.É um facto que o Senhor juiz a quo se socorreu, para a formação da sua convicção, como indício probatório, dos elementos documentais e dos depoimentos que constam dos inquéritos crime que foram juntos aos autos pela Autora, ora Apelada, como prova documental, pese embora esses inquéritos tenham terminado com um despacho de arquivamento.
Isso mesmo resulta expressamente da motivação da decisão sobre a matéria de facto, e que para melhor elucidação, ora se transcreve:
« No tocante, em particular, aos itens 19) a 25) dos factos provados e itens A) a D) dos factos não provados, concernentes à dinâmica do incêndio de 2010, comece-se por aludir ao despacho de arquivamento prolatado no processo de inquérito NUIPC 73/10.... a fls. 130-136 do doc. ...5 junto com a petição inicial (o que vale também para o despacho proferido no processo de inquérito respeitante ao incêndio de 2011, com o NUIPC 82/11...., sob o doc. ...7 junto com a petição inicial), para não deixar de assentar que o despacho de arquivamento socorre-se, naturalmente, dos factos recolhidos no inquérito, mas vai além de um juízo meramente fáctico, pois que procede a uma apreciação jurídica da realidade processualmente demonstrada no processo de inquérito, seguindo critérios de standard da prova próprios do processo penal e, assim, como não poderia deixar de ser de qualquer modo, as conclusões do Ministério Público não são susceptíveis de influir no juízo deste Tribunal.
Assim, a este Tribunal importam apenas os factos plasmados na prova recolhida no processo de inquérito à luz do direito processual civil e já não quaisquer juízos fáctico-jurídicos enformados pela lei processual penal.
Focando-nos em tais elementos com relevância probatória, sublinhe-se, primeiramente, o auto de notícia elaborado pela GNR – um documento autêntico (cf. artigos 3632, n.2s 1 e 2, 3712 e 372, do CC) – constante do processo de inquérito NUIPC 73/10.... (cf. fls. 3 do doc. ...5 junto com a petição inicial), que relata que, na opinião dos Bombeiros Voluntários ..., “[o] incêndio terá sido causado por faúlhas libertadas pela chaminé do comboio histórico”. Embora não se trate de um juízo peremptório (até porque os bombeiros não presenciaram a deflagração do incêndio), ainda assim não deixa de ser instrumentalmente relevante a declaração representada no aludido documento, na medida em que se cura de um juízo probabilístico tecnicamente habilitado, porque provindo de um corpo de bombeiros e, para mais, dos bombeiros que acorreram ao local para extinguir o incêndio.
Outro meio de prova indiciário importante é o relatório da GNR/SEPNA a fls. 42 do processo de inquérito NUIPC 73/10.... (cf. doc. ...5 junto com a petição inicial), pelo qual o instrutor formulou as seguintes conclusões, das quais, por itálico nosso, destacamos algumas: Efectuadas todas as diligências achadas necessárias pelo instrutor, conclui este que a ignição deste foco de incêndio teve como base a matéria incandescente (faúlhas) provenientes da locomotiva do comboio histórico da linha do Douro que percorre todos os sábados, de cinco de Junho a nove de Outubro a estação ferroviária da Régua à estação do Tua. (...) Certo no entanto que todo este contemplar de beleza leva a que se corra o risco permanente de vários focos de incêndio ao longo dos quarenta e seis quilómetros do percurso. É um dado histórico que o mesmo originou várias ignições, havendo até a nível da CP o direito de substituir a locomotiva a vapor por uma locomotiva a diesel sempre que as condições climáticas de excessivo calor possam originar situação de perigo de incêndio. Será, ou seria uma medida de prevenção que deveria ser assumida efectivamente, no entanto consta-te apenas que o comboio histórico do Douro é seguido na sua retaguarda por uma DREZINE (veículo ferroviário) com água para apagar as possíveis ignições que aconteçam ao longo do trajecto, não conseguindo este método ser totalmente eficaz como foi o caso neste foco de incêndio”.
São também assaz relevantes os indícios probatórios trazidos pelos depoimentos prestados no processo de inquérito NUIPC 73/10...., como seja, desde logo, o de EE, cujas declarações foram registadas nos seguintes termos: “(...) ao final da tarde, ouviu o comboio Histórico a passar como é normal aos sábados durante o verão, e chegado à piscina que tem uma vista privilegiada sobre a quinta onde ocorreu o incêndio e como é lógico sobre o local onde deflagrou o mesmo, reparou de imediato em três colunas de fumo em locais distintos da quinta. De imediato ligou aos responsáveis da Quinta Nova sobre o que se estava a passar e também fez o mesmo no dia seguinte aquando de um reacendimento. Afirma que um dos focos de incêndio foi extinto por um DRAZINE (veículo ferroviário) que transportava dois contentores de água como prevenção. Os outros dois focos foram combatidos e extintos com os meios aéreos e terrestres. Frisa que já em anos anteriores reparou que o mesmo comboio histórico deu origem a um foco de incêndio(cf. fls. 32 do doc. ...5 junto com a petição inicial).
Embora o representante legal da CP, FF, tenha dito que, ainda que não tivesse conhecimento directo da matéria, “a circulação do comboio histórico respeita todas as normas em vigor, inclusive realizam adaptações constantes para evitar a saída de matéria incandescente (cf. relatório a fls. 67 do doc. ...5 junto com a petição inicial), todos os demais inquiridos no âmbito do aludido processo de inquérito NUIPC 73/10.... deixaram em aberto a possibilidade de um incêndio ocorrer por força do funcionamento do comboio histórico.
GG declarou o seguinte: “Em termos de ignições é conhecido da parte da REFER/CP, que o comboio histórico pode dar origem a essas ignições, havendo no entanto por parte desta empresa um cuidado de prevenção relativamente a possíveis focos (...)” (itálico nosso) (cf. fls. 34 do doc. ...5 junto com a petição inicial). Também AA, inspector de tracção ao serviço do comboio histórico no dia 24 de Julho de 2010, declarou, entre o mais, que, embora não tenha sido informado de qualquer foco de incêndio, “[p]or ser normal o comboio histórico largar matéria que provoca algumas ignições, foi determinado pela autoridade florestal competente que passasse a circular acompanhado pela DREZINE (itálico nosso) (cf. fls. 50 e 54 do doc. ...5 junto com a petição inicial). Em sentido próximo, HH, maquinista ao serviço do comboio histórico no dia 24 de Julho de 2010, declarou, entre o mais, que, embora não tenha sido informado de qualquer foco de incêndio, “[p]ode ocorrer, por vezes, a saída de matéria da locomotiva a vapor, que provoca algumas ignições, embora isso ocorra muito raramente. Para tentar debelar/minimizar eventuais focos de incêndio, foi determinado pela autoridade florestal competente que passasse a circular acompanhado pela DREZINE (itálico nosso) (cf. fls. 50 e 57 do doc. ...5 junto com a petição inicial). Também BB, maquinista ao serviço do comboio histórico no dia 24 de Julho de 2010, declarou, entre o mais, que o comboio é constituído por locomotiva, um tractor, uma cisterna com água, a qual vai largando água para baixo e lados do comboio, como sistema de prevenção de incêndios, uma vez que a fornalha vai largando cinzas para o cinzeiro situado por debaixo da máquina, sendo que poderá largar inadvertidamente cinzas para a linha férrea. Por último seguem as carruagens com os passageiros. (...) (itálico nosso) (cf. fls. 50 e 83-84 do doc. ...5 junto com a petição inicial).
A acrescer, no âmbito do mesmo processo de inquérito, foram inquiridos dois bombeiros que faziam parte da tripulação da dresina que circulou com um lapso de tempo de 20/30 minutos (por motivos de segurança) na traseira do comboio histórico, admitiram ter observado/combatido um incêndio que presumem ter sido provocado por matéria libertada pela combustão ocorrida na locomotiva do comboio em questão” (cf. relatório a fls. 67 do doc. ...5 junto com a petição inicial).
Para terminar, seja quanto ao incêndio de 2010, seja quanto ao incêndio de 2011, note-se que as Testemunhas AA (inspector de tracção ao serviço da CP), BB (inspector de tracção ao serviço da CP), BB (à altura, maquinista da CP) e CC (maquinista da CP), esclareceram, convincentemente, que o comboio histórico encontrava-se dotado de uma rede destinada a permitir a saída de fumo sem deixar sair faúlhas e ainda de um cinzeiro também destinado a colher as partículas, como também um sistema integrado composto por uma cisterna que largava água (por gravidade) ao longo do percurso – da dresina, muito se falou, mas esta não vem alegada pela CP, nem pode ser considerada como facto concretizador visto que só vem alegado um sistema integrado na carruagem e a dresina, como explicaram as testemunhas, é constituída por um veículo autónomo que, com uma diferença de cerca de 20 minutos, acompanha o comboio histórico para acudir a eventuais focos de incêndio.
Não obstante, apesar de vir demonstrado que o comboio histórico estava dotado desses equipamentos, já não se provou que fossem tão eficazes como alega a Ré CP. Com efeito, além de todas as evidências que já foram salientadas na presente motivação quanto à possibilidade de vazamento de matéria incandescente, não houve nenhuma Testemunha capaz de assegurar a absoluta eficácia dos equipamentos do comboio histórico. Todas se mostraram crentes de que o sistema era capaz de reter a saída de faúlhas, mas, tal como resultou claro do depoimento da Testemunha CC, a caixa de fumos tem uma rede e a chaminé tem um filtro que evita que saiam faúlhas “ou muitas faúlhas”, mas “pode sair alguma”, ou seja, embora raramente, às vezes pode sair, o que, no dizer da mesma, até viu acontecer.
De resto, quanto às hipóteses levantadas pela Ré CP em sede de alegações finais de que poderia ter sido alguém na Quinta Nova a atear o fogo ou eventualmente um cigarro atirado por um passageiro, não passam de realidades possíveis no plano das hipóteses, pois que não foi produzida prova minimamente consistente que permita, directa ou indirectamente, reputar-lhes uma probabilidade maior do que aquela que, conforme se expôs, vem demonstrada pelos meios de prova adquiridos no processo.
Em suma, toda a prova leva a considerar que a probabilidade preponderante é a de que, tal como vem alegado pela Autora, os incêndios foram provocados pelo comboio histórico, o qual se encontrava dotado de equipamentos incapazes de impedir a saída para o exterior de todas as partículas incandescentes.»- negritos nossos.
4.6.A Apelante, recorde-se, pretende que tudo quanto vem alegado na sentença recorrida- no sentido de o despacho de arquivamento do inquérito criminal não poder ser valorado na medida em que as exigências de prova em matéria processual penal são mais exigentes do que no processo civil- seja considerado como erro de julgamento do Tribunal a quo.
Para a Apelante, tendo em conta que, os factos plasmados na prova recolhida no processo de inquérito são os mesmos que o Tribunal “a quo” utilizou para formar a sua convicção, sendo esta completamente contrária à do Ministério Público, quando foi este quem conduziu e mediou toda a prova produzida em sede de inquérito, só pode levar à conclusão de que se impunha ao Senhor Juiz a quo que tivesse proferido decisão igual à que foi tomada pelo Ministério Público no inquérito e assim, que tivesse absolvido a Apelante, por não se ter provado que o comboio histórico foi o causador do incêndio.
Mas sem razão.
4.7.Dispõe o n.º1 do artigo 283.º do Código de Processo Penal que: “Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele;”.
E, no seu n.º2 estabelece que : “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”
Acresce que, conforme dispõe o artigo 277.º do Código de Processo Penal, apenas se se tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime ou não ter sido possível obter indícios suficientes da verificação de crime é que é proferido despacho de arquivamento.
Aquiescemos com a Apelante quando afirma que na fase de inquérito, basta a probabilidade razoável de ter ocorrido um facto suscetível de enquadrar um ilícito criminal para ser proferido despacho de acusação. Por outro lado, é um facto que na perspetiva do Ministério Público não foram recolhidos indícios suficientes em como os incêndios em causa foram provocados pelo comboio histórico da linha do Douro.
Acontece que, a prova produzida em sede de inquérito criminal assim como os despachos aí proferidos, não têm eficácia probatória extraprocessual legal, ou seja, não se impõem ao julgador, máxime, para o que interessa, ao juiz administrativo no âmbito de uma ação indemnizatória em ordem ao apuramento de responsabilidade aquiliana.
Apenas as sentenças penais condenatórias ou absolutórias, conforme decorre do disposto nos artigos 623.º e 624.º do CPC e nos termos aí estabelecidos, têm eficácia probatória extraprocessual legal, desde que transitadas em julgado.
Tal não significa, porém, que constando esse inquérito, com tudo o que integra, como prova documental junta aos presentes autos, que os elementos deles constantes não pudessem ser atendidos/valorados pelo Senhor juiz a quo como indícios probatórios, ao abrigo do princípio da livre apreciação das provas ( artigo 607.º, n.º5 do CPC), e tidos em conta para a formação da sua convicção.
Conforme se extrai da motivação da decisão sobre a matéria de facto proferida foram considerados pelo Tribunal “a quo”, como meio de prova indiciário, o auto de notícia elaborado pela GNR e o relatório da GNR/SEPNA que constam do referido inquérito criminal. Esses documentos apenas contêm opiniões efetuadas por pessoas que não presenciaram a deflagração do incêndio nem realizaram qualquer perícia ao local no sentido de apurar as causas do mesmo, bastando-se a emitir conclusões com base na sua opinião pessoal. Como tal, concordamos que nenhum dos dois referidos documentos, tem aptidão, de per se, para provar da causa do incêndio, uma vez que não se trata de auto que relate o presenciado por autoridades, mas apenas a mera convicção pessoal deles.
De igual modo, os depoimentos das testemunhas prestados em sede de inquérito não confirmam de forma direta que a causa dos incêndios foi a passagem do comboio histórico, que libertou faúlhas, as quais fizeram deflagrar os referidos incêndios.
Porém, contrariamente ao que sustenta a Apelante, do que antecede não resulta que a decisão sob recurso deveria ter considerado como não provada a factualidade constante dos artigos 22.º, 23.º, 37.º e 38.º dos factos provados, por ter sido essa a conclusão que desses mesmos elementos constantes do inquérito ( autos da GNR e depoimentos), foi extraída pelo Ministério Público .
É que, como dissemos, nada impedia o Tribunal a quo, de valorar essa prova documental junto aos autos, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, e de considerar esses elementos como um indício probatório. Foi o que fez o senhor juiz a quo ,de forma racional e irrepreensível.
Ademais, contrariamente ao entendimento da Apelante, não se pode afirmar que nenhuma outra prova foi produzida para além dos elementos que constam do referido inquérito criminal.
Na verdade, não vem impugnado, estando assente, que o comboio histórico passou nos locais em causa, que o mesmo funciona com locomotiva a vapor, contendo fornalha, e que após o comboio passar nos locais em causa, verificaram-se os incêndios.
4.8. Ora, não obstante nenhuma das testemunhas ter revelado conhecimento direto dos factos atinentes à causa do incêndio, a verdade é que o comboio foi visto a circular na linha do Douro nas proximidades da propriedade da Apelada perto da hora em que ocorreram ambos os incêndios, factos que não podem deixar de ser considerados, à luz da experiência de vida, como fortemente indiciadores da existência de uma conexão direta entre o deflagrar dos incêndios e a passagem pelo local do dito comboio.
Na verdade, de acordo com as regras práticas da experiência de vida, não é de todo irrelevante a circunstância dos incêndios que deflagraram na “Quinta ...” se terem verificado logo após a passagem do comboio histórico, em dias de muito calor, e quando é certo, como melhor veremos, não se ter provado que os equipamentos que apetrechavam o comboio histórico barravam de forma estanque qualquer possibilidade de libertação de faúlhas que pudessem provocar incêndios.
Ademais, que a possibilidade de libertação de faúlhas e de consequente perigo de ocorrência de incêndios, existia, resulta desde logo da circunstância de a própria Apelante ter recorrido à utilização da referida “Dresina” como mecanismo para apagar eventuais focos de incêndio provocados pelo comboio em causa.
4.9.Por outro lado, não é despicienda a circunstância de terem ocorrido, não apenas, um incêndio, mas dois incêndios, em anos seguidos, na Quinta ..., logo após a passagem do dito comboio, factos que levam à convicção segura de que os incêndios deflagraram porque por ali passou o referido comboio, que os provocou. Não é crível que tenha sido uma mera coincidência: passa o comboio, e por duas vezes, em anos distintos, ocorre um incêndio!
5.Acresce que, como adianta o Senhor Juiz a quo:
«Por fim, além de todos os excertos já sublinhados que concitam a probabilidade séria de ocorrer um vazamento de matéria do comboio histórico, concorrem em sentido favorável ao da alegação da Autora, quanto ao incêndio de 2010, outros dois factos instrumentais relevantes.
De uma parte, o ter sido afirmado sem hesitações pela Testemunha II, ao serviço no hotel da Quinta Nova no dia do incêndio, que, tendo o incêndio ocorrido num sábado, ninguém estava a trabalhar nas vinhas nesse dia, o que é verosímil, pelo que se mostra improvável que tivesse sido provocado por alguém que se encontrasse a trabalhar nas parcelas próximas da linha de comboio.
De outra parte, e ainda mais importante, o momento de passagem do comboio é significativamente compatível com a alegação da Autora, visto que, segundo fls. 40 do doc. ...5 junto com a petição inicial, à altura, o percurso e o horário eram os seguintes: partida da Régua às 14h45; chegada à estação do Pinhão às 15h22; partida da estação do Pinhão às 15h42; chegada à estação do Tua às 16h04; no sentido inverso, de regresso, partida da estação do Tua às 17h06; chegada à estação do Pinhão às 17h26; partida da estação do Pinhão às 17h46; chegada à estação da Régua às 18h22. Desse modo, é plausível que a deflagração tenha ocorrido no percurso de regresso à Régua, uma vez que a Quinta Nova se situa sensivelmente a meio entre as estações do Pinhão e Régua, tendo o comboio partido daquela às 17h46 e chegado à Régua às 18h22. Logo, é bem mais provável do que improvável a tese de que o comboio passou minutos antes das 18h20 e que a deflagração ocorreu ou evidenciou-se pelas 18h20.
No que tange, em particular, à dinâmica do incêndio de 2011, quanto aos itens 34) a 39) dos factos provados e aos itens I) a M) dos factos não provados, a Autora alega que o incêndio foi provocado pela libertação de faúlhas do comboio histórico, ao passo que a Ré CP, impugnando a factualidade alegada na petição inicial, contesta por via negação motivada, apresentando outra versão dos acontecimentos, isto é, que o incêndio não foi provocado pelo comboio histórico, porque alegadamente já se encontraria activo antes da passagem do comboio histórico.
Tenteada a prova constante dos autos, entende-se que vem demonstrada a tese factual da Autora, em detrimento da tese da Ré CP.
Primeiro, recordando os horários do comboio histórico acima expostos, é credível que a deflagração tenha ocorrido no percurso em direcção à estação do Tua, uma vez que a Quinta Nova se situa sensivelmente a meio entre as estações do Régua e Pinhão, tendo o comboio partido daquela às 14h45 e chegado a esta às 15h22. Logo, é mais do que plausível que o comboio tenha passado minutos antes das 15h20 e que a deflagração tenha ocorrido pelas 15h30.
Segundo, tal como já se assinalou, porque o incêndio ocorreu num sábado, em que ninguém estava a trabalhar nas vinhas.
Terceiro, porque não deixa de ser instrumentalmente relevante que no relatório da GNR/SEPNA a fls. 40 e ss. do processo de inquérito 82/11.... (cf. doc. ...7 junto com a petição inicial) venham assinaladas seis ignições causadas pelo comboio histórico, no ano de 2011, em ..., ... e ....
Quarto, as fotografias colhidas a fls. 39 do mesmo relatório da GNR/SEPNA indiciam que o incêndio ocorre depois da passagem do comboio e não antes, porque aquando da fotografia da passagem do comboio não é evidente a existência de um incêndio activo, mas apenas o fumo do comboio.
Por último, mas não menos importante, apesar de a Ré CP alegar que a existência de um incêndio prévio foi presenciado por um operador de revisão e venda e pelos passageiros, não foi ouvido qualquer um deles e as Testemunhas ouvidas tão-pouco ofereceram um relato minimamente consistente sobre a factualidade alegada pela Ré CP para efeitos de impugnação.
De facto, mesmo de entre as testemunhas arroladas pela Ré CP, todas elas declararam não ter memória do incêndio de 2011 (designadamente, por não estarem certos de que estivessem em serviço no dia do incêndio). Mesmo a Testemunha JJ, gestor ligado à área comercial da Ré CP, embora depondo com sinceridade, mostrou diversas pechas na fidedignidade da sua memória, referindo que “tinha a ideia”, “a sensação” de que viu um foco de incêndio numa viagem de 2011 (pois, por vezes, acompanhava os turistas nas viagens do comboio histórico) mas que este já estaria activo quando o comboio passou, porém, admitiu não saber se foi no concreto dia 30-07-2011, nem se foi junto à Quinta Nova ou a outra qualquer. Além do mais, a mesma Testemunha afirmou que o incêndio de que se lembra não teria grande significância, porque não havia qualquer sinal do mesmo quando fazia a viagem de regresso, o que é incompatível com a dimensão do incêndio evidenciada nos relatórios da GNR e nas fotografias colhidas no supramencionado inquérito, levando a duvidar de que se trate do mesmo incêndio, visto que, tendo o incêndio sido dado como extinto às 18h23, infere-se que a Testemunha teria presenciado qualquer sinal de incêndio (ou, pelo menos, dos meios de combate ao mesmo e das consequências na paisagem) na viagem de regresso, dado que o comboio saía da estação de Pinhão às 17h46 e chegava à Régua às 18h22, passando, nesse intervalo, junto à Quinta Nova.»
5.1.No caso, é incontornável que da prova produzida não se apurou que alguém tivesse presenciado ou visto o concreto ato de ignição, o que, diga-se, como bem observa a Apelada, tratando-se de faúlhas saídas de um comboio em andamento, seria praticamente impossível de acontecer.
Contudo, como elucida o Senhor juiz a quo na motivação, e pelas razões aí aduzidas, tendo em conta todas as circunstâncias, os factos considerados e o standard da probabilidade prevalecente, bem como, a natureza das coisas, a conclusão que se impõe retirar é a de que foi o comboio histórico explorado pela Apelante que causou os incêndios.
Como se disse supra, as presunções judiciais são ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do Código Civil.
Por fim, dir-se-á ainda que, como de resto bem observa a Apelada, que no limite, a argumentação aduzida pela Apelante de que o facto de ninguém ter visto o concreto ato de ignição faria com que a ação tivesse de ser considerada improcedente não pode colher, pois a aceitar-se tal argumentação tal equivaleria, na prática a admitir que seria impossível a prova em incêndios provocados nas circunstâncias descritas, pois as faúlhas libertadas por um comboio histórico apenas vão provocar a ignição depois deste passar e o fogo não deflagra com intensidade de modo imediato.
Assim, andou bem o Tribunal a quo ao apreciar os factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos.
Termos em que se impõe concluir pela improcedência do invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto dada como provada nos pontos 22,23, 37 e 38 do elenco dos factos provados.
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b.1.2. da não prova da matéria constante das alíneas A,B,C,I,K e L dos factos não provados
5.2. A Apelante impetra à sentença recorrida erro de julgamento por o Tribunal a quo ter levado aos factos não assentes a matéria das alíneas A,B,C,I,K e L, quando essa matéria devia ter sido considerada provada.
5.3.A matéria que consta dessas alíneas é a seguinte:
«A) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, a locomotiva/comboio histórico encontrava-se equipada com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio.
B) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, o comboio histórico, na sua caixa de fumos, tinha montado um filtro de rede que evitava a saída de cinzas e faúlhas da fornalha.
C) Na viagem do dia 24 de Julho de 2010, estava equipada com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas.
I) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, a locomotiva/comboio histórico encontrava-se equipada com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio.
K) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, estava equipada com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas.
L) Na viagem do dia 30 de Julho de 2011, o comboio histórico estava equipado e tinha integrado um sistema de água pulverizada capaz de apagar partículas incandescentes.»
5.4.Prima facie, importa referir que analisada a impugnação da matéria de facto operada pela Apelante impõe-se reconhecer que a mesma cumpriu com os ónus que sobre si impendiam e que acima se elencaram em sede de impugnação da matéria de facto, na medida que indica qual a concreta matéria de facto que, na sua perspetiva, não devia ter sido dada como não provada e antes considerada assente, quais os concretos elementos de prova que suportam o diferente julgamento que preconiza no que respeita à prova gravada, indica os concretos pontos dos depoimentos prestados pelas testemunhas que suportam, na sua perspetiva, a prova dos factos dados como não provados nas alíneas que impugna, transcrevendo, inclusivamente, os concretos excertos dos depoimentos que suportam essa matéria, pelo que, deste ponto de vista, nenhum obstáculo processual se levanta a que se conheça dessa impugnação.
5.5.Posto isto, a Apelante, em dissonância com o decidido, considera que da prova produzida resulta que os equipamentos que dotavam/apetrechavam o comboio histórico são absolutamente eficazes no sentido de evitarem incêndios, uma vez que impediam a fuga de partículas, cinzas e faúlhas e que apagavam partículas incandescentes que pudessem sair.
Entende ter resultado provado que nas viagens que o comboio histórico realizou nos dois dias em que ocorreu o incêndio, o mesmo encontrava-se equipado com o seguinte:
- Com dispositivos que evitavam a saída para o exterior de partículas incandescentes que pudessem provocar incêndio;
- Na sua caixa de fumos, tinha montado um filtro de rede que evitava a saída de cinzas e faúlhas da fornalha;
- Com um “cinzeiro” que tinha montada uma rede que impedia a fuga de partículas;
- Estava equipado e tinha integrado um sistema de água pulverizada capaz de apagar partículas incandescentes.
Aponta como fundamento probatório os depoimentos prestados em audiência de julgamento pelas seguintes testemunhas: AA; DD; BB e CC.
5.6.Antes de mais, vejamos a fundamentação avançada pelo Senhor Juiz a quo para a não prova desta matéria, e que foi designadamente a seguinte:
“Para terminar, seja quanto ao incêndio de 2010, seja quanto ao incêndio de 2011, note-se que as Testemunhas AA (inspector de tracção ao serviço da CP), BB (inspector de tracção ao serviço da CP), BB (à altura, maquinista da CP) e CC (maquinista da CP), esclareceram, convincentemente, que o comboio histórico encontrava-se dotado de uma rede destinada a permitir a saída de fumo sem deixar sair faúlhas e ainda de um cinzeiro também destinado a colher as partículas, como também um sistema integrado composto por uma cisterna que largava água (por gravidade) ao longo do percurso – da dresina, muito se falou, mas esta não vem alegada pela CP, nem pode ser considerada como facto concretizador visto que só vem alegado um sistema integrado na carruagem e a dresina, como explicaram as testemunhas, é constituída por um veículo autónomo que, com uma diferença de cerca de 20 minutos, acompanha o comboio histórico para acudir a eventuais focos de incêndio.
Não obstante, apesar de vir demonstrado que o comboio histórico estava dotado desses equipamentos, já não se provou que fossem tão eficazes como alega a Ré CP. Com efeito, além de todas as evidências que já foram salientadas na presente motivação quanto à possibilidade de vazamento de matéria incandescente, não houve nenhuma Testemunha capaz de assegurar a absoluta eficácia dos equipamentos do comboio histórico. Todas se mostraram crentes de que o sistema era capaz de reter a saída de faúlhas, mas, tal como resultou claro do depoimento da Testemunha CC, a caixa de fumos tem uma rede e a chaminé tem um filtro que evita que saiam faúlhas “ou muitas faúlhas”, mas “pode sair alguma”, ou seja, embora raramente, às vezes pode sair, o que, no dizer da mesma, até viu acontecer.»

5.7.Depois de lidas as transcrições dos depoimentos das testemunhas indicadas pela Apelante como fundamento probatório para a preconizada alteração do julgamento da matéria de facto dada como não provada nas mencionadas alíneas e após audição de toda a prova testemunhal que foi produzida em audiência de julgamento, não podemos senão concordar com a decisão recorrida, na parte em que considera não se poder extrair dos depoimentos prestados pelas indicadas testemunhas, como provada a facticidade que consta das sobreditas alíneas.
Na verdade, pese embora resulte provado, da consideração dos depoimentos prestados pela referidas testemunhas que o comboio em causa estava apetrechado com equipamentos destinados a impedir/evitar a saída de faúlhas suscetíveis de causar incêndios e, bem assim de um sistema capaz de apagar incêndios- factos que não foram incluídos nos factos assentes mas que entendemos ora não ser de aditar, uma vez que, em nada alterariam a decisão a proferir Sob pena de se levar a cabo uma atividade processual diletante ou gratuita, uma vez que se sabe, à prioria ser inconsequente.- não resulta desses depoimentos testemunhais a prova em como esse equipamento, de facto, impedia qualquer saída de faúlhas ou que, uma vez surgido um incêndio, o mesmo era apagado prontamente.
Como tal, não podemos senão subscrever integralmente a motivação que levou o Senhor Juiz a quo a dar como não provada a facticidade constante dessas alíneas.

Termos em que, improcede o invocado erro de julgamento quanto à matéria de facto.
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b.2. Do erro de julgamento quanto ao mérito
5.8.Mantendo-se absolutamente inalterada a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo e nem mesmo sindicando a Apelante o acerto da sua interpretação e aplicação do Direito (face aos fundamentos de facto considerados), que aqui igualmente se tem por acertada, não se tornam necessárias quaisquer outras considerações adicionais.
Por outras palavras, a Apelante não sindicou ter existido erro «na determinação da norma aplicável», ou na forma como deveria «ter sido interpretada e aplicada», mas sim e apenas a suficiência da matéria de facto resultante da prova produzida para julgar a ação parcialmente procedente.
Aliás, a Apelante refere expressamente que a propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como consequência direta e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente ação e que não se tendo logrado demonstrar que o incêndio deflagrou tal como foi explanado na Petição Inicial e, consequentemente, na sentença sob recurso, ou seja, não se tendo provado que foi o comboio histórico que esteve na origem do incêndio, não se pode imputar os danos sofridos pela Apelada a uma conduta ilícita e culposa da mesma ( Apelante).
Acontece que, não tendo sido alterado o julgamento realizado pelo Tribunal a quo acerca da matéria de facto provada e não provada, ficou desse modo esgotado o objeto do seu recurso, por no mesmo não se incluir qualquer sindicância quanto à seleção, interpretação e aplicação do Direito (atendendo aos fundamentos de facto a considerar).

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela improcedência do recurso de apelação interposto pela Apelante confirmando-se a sentença que julgou a ação parcialmente procedente.

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IV-DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores deste Tribunal Central Administrativo do Norte em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
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Custas pela Apelante (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 10 de março de 2023

Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa