Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01754/11.4BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/24/2023
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE MATÉRIA DE FACTO; DANOS MORAIS;
JUÍZO DE EQUIDADE; INDEMNIZAÇÃO;
Sumário:I- Captando-se a errónea reprodução das condições “gerais” e “particulares” do contrato de seguro visado nos autos no âmbito do probatório coligido, é de proceder o erro de julgamento de facto imputado à decisão judicial recorrida, impondo-se a correção de tal representação.

II- A indemnização por danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados pelo lesado, sendo que na indemnização pelo dano não patrimonial o "pretium doloris" deve ser fixado, por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida.

III- Nos casos em que o Tribunal a quo se socorre de juízos de equidade para determinar se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, o Tribunal Superior só deve intervir quando tais juízos se revelem, de forma patente, em colisão com critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados em circunstâncias semelhantes.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:CONCEDER PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Município; CONCEDER PARCIALMENTE PROVIMENTO ao recurso interposto por AA.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
* *
I – RELATÓRIO
AA e Município ..., melhor identificados nos autos à margem referenciados de AÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM por aquele intentados contra COMPANHIA DE SEGUROS S..., S.A., vêm interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada nos autos, que julgou parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, condenou (i) a Ré Seguradora no pagamento da quantia de € 2.258,63, a título de danos patrimoniais, aplicada a franquia, bem como ao juros de mora desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do pedido quanto ao mais; bem como (ii) o Réu Município no pagamento da quantia de € 249,4, correspondente ao valor da franquia, e da quantia de € 7.500,00, a título de danos não patrimoniais, valores aos quais acrescem juros desde a citação até integral e efetivo pagamento, absolvendo-o do pedido quanto ao mais.
Alegando, o Recorrente AA formulou as seguintes conclusões: “(…)
A) Deve o presente Recurso ser admitido, por estar em tempo e o Autor ter decaído no montante do seu pedido de 42.635,66 euros, em mais de 30.000,00 euros.
B) A decisão é recorrível, nos termos do artigo 142° n° 1 do CPTA.
C) É ainda recorrível nos termos da alínea c) do n° 3 do citado artigo 142° do CPTA
D) Deve a d. sentença do tribunal a quo ser revogada, por ter condenado os Réus em montantes meramente simbólicos, ao arrepio da jurisprudência dominante e como tal não ter feito a aplicação do princípio da equidade em justa medida.
E) A d. sentença tem muita e variada fundamentação, quer com base na matéria de facto assente, isto é, dada como provada e que se transcreveu no início deste recurso, quer no tocante às disposições citadas do Código Civil, das disposições citadas do RRCEC, cfr. artigos 7° e 9° do referido regime mas é completamente omissa quanto à jurisprudência sobre a matéria, para fundamentar a decisão e sobretudo quanto ao quantum indemnizatório.
F) Talvez por isso, a d. sentença recorrida tenha condenado os Réus num valor insignificante, face aos valores fixados pela jurisprudência largamente sobre a matéria, afastando-se dessa orientação superior;
G) Face a tudo quanto se deixou exposto, deve a sentença do tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que condene os Réus no montante do pedido, ou seja, em 42.635,66 euros, valor do pedido ampliado, que o Autor mantém e considerando que o processo deu entrada há 11 anos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (26/OUTUBRO/2011), considera bastante modesto (…)”.
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Já quanto ao seu recurso, o Recorrente Município ... rematou nos seguintes termos: “(…)
1ª) O que resulta dos documentos juntos aos autos é que, durante a década de 1980, o interveniente terá celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil com a A..., S.A. que, posteriormente, terá cessado por caducidade e, mais tarde (em 1993 de acordo com o número da apólice), o mesmo interveniente celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil com a Ré S... (provavelmente a sucessora da A...) que é o mais recente e que se encontrava em vigor à data do sinistro dos autos.
2ª) Tal como se demonstrou documentalmente, a apólice n.° ...3 titula um contrato de seguro celebrado entre o Município ... e a Ré Companhia de S..., S.A. que é composto, entre outras, pelas condições gerais (estabelecendo um âmbito de cobertura extensiva aos danos não patrimoniais) e particulares (estabelecendo uma franquia fixa, por sinistro, de €200,00).
3ª) Estas são as condições do contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre o interveniente e a Ré S... que, naturalmente, não se pode valer de outras condições estabelecidas anteriormente com aquela que terá sido a sua antecessora, ou seja, A..., S.A., através das quais se excluiu do âmbito de cobertura do contrato de seguro de responsabilidade civil os danos não patrimoniais.
4ª) No que concerne ao valor da franquia e à cobertura dos danos não patrimoniais os dois contratos estabelecem condições diferentes.
5ª) Deverá, assim, a alínea Q) dos factos provados (página 8 da sentença) passar a ter uma diferente redação nos termos da qual o contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre o interveniente e a Ré S... contém condições gerais que estabelecem um âmbito de cobertura extensiva aos danos não patrimoniais (esta parte já lá está) e condições particulares que estabelecem uma franquia fixa, por sinistro, de €200,00, excluindo-se qualquer referência ao contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado pelo interveniente com a A..., SA., uma vez que o mesmo, à data do sinistro dos autos, já havia cessado.
6ª) É que o contrato de seguro é um negócio formal, que tem de ser reduzido a escrito chamando-se apólice ao documento que o consubstancia e dela devendo constar todas as condições estipuladas entre as partes.
7ª) Na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respetivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual ditada pelo art.° 405° do Código Civil, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respetiva apólice, posto que, esta exigência legal de documento constitui elemento do contrato, isto é, formalidade ad substantiam (art.° 364° n.° 1 do Código Civil).
8ª) A nova redação daquela alínea Q) dos factos provados (página 8 da sentença) determina que, em sede de aplicação do direito aos factos, se tenha de concluir que a Ré S... deva responder por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, com exceção dos aludidos 200,00€ de franquia.
9ª) A decisão recorrida viola, por isso, claramente, as normas dos artigos 364° n° 1 e 405° do Código Civil (…)”.
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Notificado do interposição do recurso jurisdicional por parte de AA, a Recorrida Companhia de S..., S.A., não contra-alegou.
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A Recorrida Companhia de S..., S.A contra-alegou o recurso apresentado pelo Recorrente Município ..., que rematou com o seguinte quadro conclusivo: “(…)
A. Entre a Companhia de S..., S.A. e o Município ..., foi, de facto, celebrado um Contrato de Seguro, que teve início com a A..., S.A., celebrado a 30 de outubro de 1989, e que posteriormente passou para a Companhia de S..., S.A., com a Apólice ...3, conforme documento junto pela aqui recorrida, em sede de contestação, como documento .° 1.
B. Tal contrato de seguro (o único existente nos autos), veio a ser dado como assente em sede de Despacho Saneador - Ponto B da Matéria de Facto Assente.
C. O Recorrente Município não juntou com o seu articulado Contestação nenhuma apólice, nem nunca impugnou ou questionou sobre a vigência e/ou aplicabilidade de tal contrato de seguro em qualquer momento do processo.
D. Do referido Contrato de Seguro, resulta qual o valor da franquia a cargo do tomador do seguro e/ou segurado, e, bem assim, no artigo 4.°, alínea a) que: “são excluídos da cobertura do presente contrato:
a) os prejuízos ou danos morais.”
E. Por outro lado, e pese embora a transferência que se operou posteriormente entre A... e a aqui Recorrida S... quanto ao presente contrato de seguro, ao arrepio do pugnado pelo Recorrente Município, aquele contrato, celebrado entre o Município e a A..., não cessou!
F. Por nunca o Recorrente Município ter impugnado o doc. ... junto com a contestação da aqui Recorrida S... (Apólice de seguro) e/ou alegado algo em contrario à sua vigência e/ou aplicabilidade, foi dado como assente no douto Despacho Saneador, Ponto B da Matéria Assente.
G. A presente ação deu entrada em juízo a 26 de outubro de 2011, aplicando-se àquela data, o Código do Processo Civil do Decreto - Lei n.° 329-A/95, de 12 de dezembro, vulgarmente designado, na gíria jurídica de “o Antigo Código de Processo Civil” que vigorou até agosto de 2013.
H. Por tal facto é que, aquando da prolação do douto Despacho Saneador, o mesmo seguiu os trâmites do disposto no artigo 511.° do “antigo” Código de Processo Civil” que dispunha que “o juiz, ao fixar a base instrutória, seleciona a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida”.
I. O referido Despacho Saneador foi notificado às partes intervenientes no processo a 21 de maio de 2012, tendo as partes 15 dias para do mesmo reclamar.
J. O Réu Município veio apresentar reclamação quanto à questão de não se encontrar incluída da douta base instrutória um facto que o mesmo considerava importante à boa discussão da causa, alegado no art. 17.° da sua contestação,
K. reclamação essa que veio a ser procedente por douto despacho proferido a 18.06.2012 e notificado às partes a 20.06.2012, passando a incluir-se na B.I. o seguinte quesito, N° 31.°: “ o sumidouro é visível a, pelo menos, 4/5 metros de distância, atento o sentido de marcha do A.?”
L. O Recorrente Município nada reclamou contra o teor da apólice, quer quanto ao valor da franquia quer quanto à alegada não aplicabilidade e/ou vigência à data da exclusão contida nas C. Gerais, art. 4.°, alínea a), tendo, assim, tal documento sido dado como assente na matéria assente do Despacho Saneador,
M. Onde, como supra se referiu, ficou a mesma a constar na Alínea B) que “o Município ... e a Ré Companhia de S..., S.A. celebraram contrato de Seguro de responsabilidade Civil que se rege pelas condições constantes do Documento ... junto com a Contestação pela Ré S... e que se dá por integralmente reproduzido”.
N. O Despacho Saneador não sofreu mais nenhuma reclamação, nem o Interveniente Município ... questionou a legalidade; vigência e/ou aplicabilidade do Contrato de Seguro junto como documento n.°... com a Contestação da Recorrida Companhia de S....
O. Face à inexistência de qualquer reclamação por parte do Recorrente Município e, consequentemente, não existindo nenhum despacho de deferimento ou não,
P. Obviamente o Recorrente Município não gozou do direito que processualmente detinha de poder de tal despacho recorrer (da reclamação não ter sido procedente).
Q. Assim sendo, o douto Despacho Saneador transitou em julgado, adquirindo força de caso julgado material, nos termos do artigo 671.° e da alínea h) do n.° 2 do artigo 691.° do antigo CPC, que atualmente correspondem aos artigos 619.° e 644.° impondo-se, com força obrigatória dentro e fora do processo.
R. As questões só agora colocadas pelo Recorrente Município são extemporâneas e inadmissíveis, por constituírem matéria nova, nunca antes colocada e trazida à colação nos presentes autos,
S. razão pela qual e SMO, está impedido o Recorrente Município de as levantar a este tempo e, consequentemente, está impedida a sua apreciação agora por este doutro Tribunal Central Administrativo, carecendo os pedidos do Recorrente de todo e qualquer fundamento legal e legitimidade processual.
T. Assim, tendo em conta a matéria assente, designadamente, tendo sido dado como reproduzido o teor do contrato de seguro junto pela aqui Recorrida S..., como doc. ..., da sua contestação,
U. andou bem o douto Tribunal a quo ao condenar o Recorrente no pagamento de 7.500,00 € a título de danos não patrimoniais, aplicando a exclusão que o referido contrato de seguro continha nas suas Condições Gerais do artigo 4.°, alínea a), e da quantia de €: 249,40 correspondente ao valor da franquia pelos danos patrimoniais e,
V. bem assim, na condenação da aqui Recorrida S... quanto “ao pagamento da quantia de €: 2.258,63, a título de danos patrimoniais, aplicada a franquia, bem como ao juros de mora desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do pedido quanto ao mais”.
W. Neste sentido vide o entendimento doutrinal, designadamente pelas palavras do Mestre Abrantes Geraldes: “Se este (recurso) não for interposto, (as ditas decisões) formarão caso julgado material ou formal, nos termos dos arts. 671.° e 672.°')." in ‘Recursos em Processo Civil', Novo Regime, 3J Edição, 2010, pág.195, e também o Professor Miguel Teixeira de Sousa no seu livro “Estudos sobre o Novo Processo Civil", de 1997, conforme supra citado e que aqui, novamente, se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais,
X. E o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12 de abril de 2012, e disponível no site www.dgsi.pt cujo sumário pela sua importância se deixou supra transcrito e aqui novamente tido como reproduzido (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão dos recursos, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior silenciou quanto ao propósito a que se alude no nº.1 do artigo 146º do C.P.T.A.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre apreciar e decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir são as seguintes:
(i) Recurso interposto por AA Ministério da Defesa Nacional: omissão de pronúncia e erro de julgamento de direito, “(…) por (…) má aplicação da lei, cf. artigos 494º e 496º do Código Civil e não seguindo a orientação de jurisprudência maioritária sobre esta matéria (…)”;
(ii) Recurso interposto pelo Município ...: erro de julgamento de facto e de direito.
E na resolução de tais questões que consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO
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III.1- Recurso interposto pelo Município ...
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III.1.1- Do imputado erro de julgamento de facto e de direito
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1. Estas questões estão veiculadas, sobretudo, nas conclusões 1ª a 5ª, 8º e 9º, das alegações de recurso supra transcritas, substanciando-se na alegação [aqui sintetizada] de que:
(i) A alínea Q) do probatório transcreve erroneamente as condições “gerais” e “especiais” do contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela apólice n.º ...3, devendo, por isso, tal alínea passar a ter nova redação “(…) excluindo-se qualquer referência ao contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado pelo interveniente com a A..., S.A.”.
(ii) A procedência do erro de julgamento de facto caracterizado no sobredito ponto (i) “(…) determina que, em sede de aplicação do direito aos factos, se tenha de concluir que a Ré S... deva responder por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, com exceção dos aludidos 200,00€ de franquia”.
2. Vejamos, sublinhando, desde já, que dois esteios argumentativos que se vêm de elencar invocados, não obstante de natureza diversa, conexionam-se, pelo que serão objeto de análise conjunta.
3. Assim, e entrando no conhecimento de tal constelação argumentativa, importa que se comece por sublinhar que se mostra coligido na alínea Q) do probatório o seguinte tecido fáctico: “(…) O Município ... e a Ré Companhia de S..., S.A., assinaram um acordo, intitulado contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ...3, a compreender condições gerais e especiais que, em parte, se transcrevem (…)” [destaque e sublinhado nosso].
4. Pois bem, escrutinado o teor das “condições gerais e especiais” seguidamente transcritas, logo se constata que as mesmas não se reportam apenas ao contrato de seguro titulado pela apólice nº. ...3, abrangendo ainda a um outro contrato de seguro celebrado pelo Município Recorrente com A..., S.A., titulado pela apólice nº. ...04.
5. Donde se capta a errada representação - por excesso e défice - das condições “gerais” e “particulares” do contrato de seguro elencado na alínea Q) do probatório, isto é, outorgado pelo Município Recorrente com a Companhia de S..., S.A., titulado pela Apólice ...3.
6. Por excesso, porque a materialidade reportada ao contrato de seguro titulado pela apólice nº. ...04 nada tem que ver com o contrato de seguro elencado na alínea Q) do probatório.
7. Por défice, porquanto está em falta a disponibilização das condições “particulares” deste contrato de seguro.
8. O que nos transporta, inelutavelmente, para a existência de uma errónea reprodução das condições “gerais” e “particulares” do contrato de seguro titulado pela Apólice ...3, impondo-se, por isso, a retificação desta representação.
9. Por conseguinte, em consonância com a lógica que se vem supra de expor, vinga nos termos e com o alcance que se vem de explicitar o primeiro fundamento do recurso em análise.
10. E o assim decidido nada bule com a natureza do alegado pela Recorrida no domínio do caso julgado, pois que este instituto não é convocável quanto ao tecido fáctico declarado em juízo, sendo ainda de referir a inexistência de correspondência factual entre o fixado na alínea Q) da decisão recorrida e o vertido na alínea B) da matéria de facto assente em saneador, o que também contribuiu para a posição ora assumida por este Tribunal Superior no que diz respeita a esta matéria.
11. Ponderado o acabado de julgar e o que demais se mostra fixado na decisão judicial recorrida temos, então, como assente o seguinte quadro factual: “(…)
A. No dia 22/09/2009, o Autor, com 42 anos, caminhava pela Estrada Municipal que liga a cidade ... ao ... - cf. depoimentos das Testemunhas BB; CC.
B. Caminhava a pé - cf. depoimento das Testemunhas BB e CC.
C. Na curva, o Autor caiu dentro de uma caixa de receção de águas pluviais localizada na valeta, junto ao talude - cf. declarações de parte; cf. depoimento das Testemunhas BB e CC, DD, EE, cf. fotografia de fls. 8, 109 e ss., 118 e ss., 196 dos autos.
D. Que se encontrava sem tampa ou grelha de proteção e com folhagem - cf. declarações de parte; cf. depoimento das Testemunhas BB e CC, DD, EE, FF; cf. fotografia de fls. 8, 118 dos autos.
E. Quando a área envolvente se encontra limpa, inclusivamente as infraestruturas públicas, o sumidouro/caixa de receção de águas pluviais é visível, no período diurno, a 4/5 metros de distância atento o sentido de marcha do Autor - cf. fotografia de fls. 8, 118 dos autos.
F. A via onde o Autor caiu é uma via municipal situada no concelho ... - facto assente no despacho saneador de fls. 130 dos autos.
G. O Autor conhecia a Estrada Municipal e há mais de dez anos que tinha por hábito fazer caminhadas nas imediações de sua casa, cujo percurso compreendia essa mesma estrada - cf. declarações prestadas pelo Autor e depoimento de GG
H. A aludida Estrada Municipal não tem passeios - cf. declarações de parte; cf. depoimento das Testemunhas BB e CC, DD, EE, FF; cf. fotografia de fls. 8 dos autos.
I. A via no local do acidente tem a configuração de entroncamento - cf. declarações de parte; cf. depoimento das Testemunhas BB e CC, DD, EE, FF; cf. fotografia de fls. 8, 118 dos autos.
J. O Autor deu entrada nos Serviços de Urgência do Hospital ... — cidade ..., S.A., no dia 22/09/2009, pelas 13 horas e 18 minutos - cf. documento de fls. 195, 196 dos autos.
K. Em virtude da queda, o Autor sofreu traumatismo do calcanhar direito, dor edema e dismorfia calcanhar direito, fraturou o calcâneo do pé direito, tendo sido submetido a tratamento conservador com imobilização em tala gessada - cf. documento de fls. 195 dos autos; cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
L. Tendo tido alta nesse mesmo dia 22/09/2009, orientado para consulta externa de Ortopedia e de Fisiatria - cf. documento de fls. 195, 315 e 345 e ss. dos autos.
M. O Autor foi seguido em consulta externa e realizou tratamentos no Serviço de Medicina Física e Reabilitação desde novembro de 2009, em virtude da sequela de fratura do calcâneo, tendo sido tratado conservadoramente por Ortopedia, com evolução lenta mas favorável, mantendo - em maio de 2010 - talalgias mecânica à direita e rigidez do tornozelo com força muscular global grau 4 - cf. documento de fls. 316 dos autos.
N. Data da consolidação das lesões: 01/07/2010 - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
O. Período de repouso absoluto: entre 22/09/2009 e 29/09/2009 a corresponder a 8 dias - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
P. Logo após, as lesões passaram a consentir algum grau de autonomia, ainda com limitações, período que se terá iniciado em 30/09/2009 e 1/7/2010, a corresponder a 275 dias - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
Q. Durante o processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, o Autor viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual entre 22/09/2009 e 1/07/2010, sendo fixável num período total de 283 dias - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
R. O Autor sofreu física e psiquicamente quer em virtude do evento, quer durante o período de consolidação das lesões em grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
S. O Autor sofreu um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica fixado em 3,271 pontos, numa capacidade integral do indivíduo de 100 pontos - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
T. Estas sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, apesar de implicarem esforços suplementares - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
U. Autor ficou com a sua imagem afetada quer em relação a si, quer em relação aos outros, atenta a claudicação da marcha, por vezes, com apoio de canadiana, em grau 4, numa escala de 7 graus - cf. Relatório Pericial de fls. 345 e ss. dos autos.
V. O Autor é funcionário da Sociedade F..., S.A, auferindo o salário mínimo mensal, que ascendia, à data da audiência final, em € 557,00 - cf. declarações do Autor e GG; cf. documento de fls. 217 e ss., 402 dos autos.
W. O Autor realizou tratamentos de fisioterapia no Centro Hospitalar do ..., E.P.E., nos dias 2, 3, 4, 9, 11, 14, 16, 17, 18 e 21 de dezembro de 2009 e 19, 20, 21, 25, 26, 27 e 29 de janeiro de 2010 - cf. de fls. 9 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
X. Realizou tratamentos no Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Centro Hospitalar do ..., EPE, da sequela da fratura do calcâneo à direita, tratada conservadoramente por Ortopedia - cf. de fls. 10 dos autos.
Y. Em 11 de maio de 2010, o Autor continuava em consulta externa a fazer tratamentos no Serviço de Medicina Física desde novembro de 2009, como sequela da fratura do calcâneo à direita, provocada pela queda no referido buraco em 22 de setembro de 2009 - cf. de fls. 10 dos autos.
Z. O Autor é casado, a sua mulher está desempregada, têm um filho menor em idade escolar - cf. declarações do Autor e depoimento das Testemunhas GG; BB e CC.
AA. O Autor e respetivo agregado familiar vivem num anexo da casa de um familiar - cf. declarações do Autor e depoimento da Testemunha GG.
BB. Em virtude da queda, o Autor suportou as despesas que se passam a descriminar:
- despesas com compra de ponteiras para canadianas, no dia 10 de novembro de 2009, no dia 3,96 €;
- despesas com consultas médicas, em 11 de novembro de 2009 e 22 de janeiro de 2010, no valor de 3,96 €;
- pagamento de taxas no Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E, no dia 9 de junho de 2010, no valor de 47,25 €;
- despesa no Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E, no valor de 5 €;
- despesa paga na farmácia ... no montante de 2,50 €, por uma ponteira de canadiana;
- despesa efetuada na ... no valor de 3,40 €, por uma ponteira de canadiana;
- despesa efetuada em J..., Lda., no valor de 28,90 €;
- despesa na casa de saúde de cidade ... - consulta de Ortopedia no dia 2 de junho de 2011, no valor de 55,00 €.
- cf. documentos de fls. 19 a 38 dos autos.
CC.A Companhia de Seguros S... assumiu despesas em resultado da queda, a saber:
- despesas da Farmácia ... - recibo n.° ...49, de 30/09/09 - no valor de € 25,94;
- despesa ... - recibo n.° ...97, de 26/10/09 - no valor de € 17,55;
- aquisição de canadianas Á... - recibo n.° ...93, de 10/11/09 - no valor de € 15,66.
- cf. documentos de fls. 19, 21 e 24, em conjugação com o documento ...01 dos autos.
MAIS SE PROVOU:
DD. O Autor encontrou-se em situação de incapacidade para o trabalho por doença desde 27-02-2008, prorrogada até 13/03/2013 - cf. documento de fls. 190 a 192, 217 e ss. e 269 e ss. dos autos.
EE. Na data em que ocorreu o acidente, o Autor estava autorizado a sair do domicílio, pese embora se encontrar em situação de baixa médica - cf. de fls. 238 e ss. dos autos.
FF. Por ter atingido o limite máximo de concessão do subsídio por doença (1095 dias), em 05-05-2010, foi-lhe atribuída a pensão provisória por invalidade desde 05-06-2010 a 26-10-2010, data em que foi considerado apto - cf. de fls. 217 e ss. dos autos.
GG. No período compreendido entre 22/09/2009 (data do acidente) e 05/05/2010 foi processado subsídio de doença no valor de € 2.954,88 - cf. de fls. 217 e ss., 474 e ss. dos autos.
HH. O Autor sofre de patologia psiquiátrica - depressão, pelo menos, desde 3/5/2010, sendo acompanhado por consultas de psiquiatria no CHAA desde 29/09/2010 até, pelo menos, 19/11/2013 - cf. documento de fls. 306 e ss. dos autos.
II. Em junho de 2013, o Autor encontrava-se em situação de incapacidade temporária para o trabalho por motivo de patologia psiquiátrica - cf. de fls. 27, 289 e ss. dos autos.
IGUALMENTE SE PROVOU:
Q) O Município ... e a Ré Companhia de S..., S.A., assinaram um acordo, intitulado contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.° ...3, a compreender condições particulares gerais e particulares que se transcrevem:
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[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
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[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cf. documento de fls. 54 e ss. dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, cf. ainda despacho saneador de fls. 130 e ss. dos autos.
JJ) Em Janeiro de 2009, a Companhia de Seguros S... dirigiu ao Autor a seguinte comunicação:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cf. de fls. 101 dos autos.
12. Assente a realidade que antecede, vejamos agora se assiste razão ao Recorrente quanto ao invocado erro de julgamento de direito.
13. Realmente, defende o Recorrente que “(…) A nova redação daquela alínea Q) dos factos provados (página 8 da sentença) determina que, em sede de aplicação do direito aos factos, se tenha de concluir que a Ré S... deva responder por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, com exceção dos aludidos 200,00 € de franquia”.
14. E, efetivamente, defende bem.
15. Na verdade, resulta da nova redação da alínea Q) do probatório que, entre a Ré e o Interveniente principal, foi celebrado um contrato de seguro do ramo “Responsabilidade Civil Geral”, titulado pela Apólice ...3, nos termos da qual a Ré garante a responsabilidade civil do Interveniente Principal até ao montante de € 50.000,00, ficando a cargo do Interveniente Principal uma franquia de € 200,00 por sinistro.
16. Como se explanou no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2012, tirado no processo nº. 347/11.0TJCBR.C1: “(…) a franquia é uma dedução ao montante indemnizatório, um desconto que tem de incidir sobre quem o recebe e que normalmente é o segurado. O que importa é que ao pagar a indemnização a seguradora deduza logo aí o valor da franquia. A franquia tem por fundamento o estímulo à prudência do segurado e a eliminação da responsabilidade do segurador em pequenos sinistros, obstando aos custos administrativos inerentes (…)”.
17. Deste modo, deve responder a Ré até ao limite do montante do capital segurado, que se cifra em € 50,000,00, mas deduzida da importância da franquia no valor de € 200,00.
18. Deste modo, não tendo sido este o caminho trilhado na sentença recorrida, é mandatório concluir que a mesma é merecedora da censura que o Recorrente lhe dirige.
19. Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional, revogada a sentença recorrida no concreto segmento em análise, condenando-se a Ré Companhia de S... no pagamento da indemnização que se vier a apurar, deduzida da franquia de € 200,00.
20. Ao que se provirá no dispositivo.
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III.2- Recurso interposto por AA
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21. A questão decidenda que ora importa dissolver, como sabemos, traduz-se em determinar se Tribunal a quo, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em omissão de pronúncia e erro de julgamento de direito, “(…) por (…) má aplicação da lei, cf. artigos 494º e 496º do Código Civil e não seguindo a orientação de jurisprudência maioritária sobre esta matéria (…)”.
22. Vejamos, retendo, desde já, o sentido da decisão do T.A.F. do Porto expresso nos seguintes excertos: “(…)
O facto.
O facto naturalisticamente apurado traduziu-se na queda do Autor, numa caixa de receção de águas pluviais localizada na valeta, junto ao talude, que se encontrava sem tampa ou grelha de proteção e com folhagem.
Provou-se não só que a caixa de recolha de águas pluviais se encontrava sem tampa/grelha, como também sem sinalização de aproximação de perigo, numa via municipal situada no concelho ..., sem passeios, com configuração de entroncamento.
Da ilicitude da conduta administrativa
Imputa-se ao Município Demandado uma responsabilidade por omissão em virtude da lesão corporal infligida pelo Autor ter resultado da falta de segurança da via pública, acompanhada de ausência de sinalização de perigo, quando o estado da via era conhecido pelos Serviços do Município.
Retira-se do probatório o contexto vivencial a partir do qual se desenrola o momento da queda.
In casu, a falta de segurança da via pública e a falta de sinalização de perigo constituíram omissões de vigilância relevantes à luz do dever de garante, dever objetivo de cuidado (atividade material) que recaía sobre o Município no que respeita ao estado de conservação e de segurança da rede viária da cidade.
A via encontra-se sob a jurisdição territorial do Município. A fiscalização e a manutenção constituem obrigações que devem ser exercidas com total preocupação pela segurança dos seus potenciais utilizadores — cf. alínea f) do n° 2 do artigo 64° da Lei 169/99, de 18 de setembro, alterada e republicada pela Lei n° 5-A/2002, de 11 de janeiro, atenta a redação em vigor à data do facto ilícito e danoso.
(…)
In casu, há ilicitude na omissão. As normas e princípios legais ou regulamentares aplicáveis, ou ainda das regras de prudência comum, desaprovam a existência de uma infraestrutura — caixa de recolha de águas — sem qualquer barreira de proteção, numa via sem passeios. Acresce que os aludidos deveres de fiscalização e de manutenção visam exatamente assegurar a circulação de pessoas em condições de segurança.
O Município deveria ter representado o perigo de uma caixa de recolha de águas pluviais, camuflada pela vegetação e folhagem, numa Estrada Nacional sem passeios.
(…)
Da culpa do serviço.
O Município não conseguiu ilidir a presunção legal de culpa.
O facto de o Autor conhecer o local não é suficiente para se dar por verificado qualquer concurso de culpa do lesado.
(…)
Dos danos e do nexo de causalidade entre a conduta ilícita e os danos.
(…)
Provou-se nexo de causalidade adequada entre o facto - omissão imputável à Entidade Demandada - e tais danos numa perspetiva de processo factual (naturalístico) e de adequação (jurídico). O cumprimento do dever de conservação/manutenção e/ou sinalização da via pública apresenta-se, neste caso, como suficiente e apto para evitar os prejuízos alegados — à luz da doutrina da causalidade adequada. Com efeito, a colocação da grelha/barreira/tampa (ou a sinalização pela sua inexistência) era apta a evitar o acidente.
Dos danos.
(…)
A obrigação de indemnizar tem como medida os danos que resultaram do facto ilícito e culposo e há de sempre corresponder ao valor do prejuízo causado na esfera do lesado.
Partimos da necessária classificação entre danos patrimoniais e danos morais.
Começando pelos danos patrimoniais, deve a Entidade Demandada ser condenada, desde logo, no pagamento das despesas resultantes da queda e tratamentos necessários ao longo do processo evolutivo das lesões - a título de danos patrimoniais -, a saber:
- despesas com compra de ponteiras para canadianas, no dia 10 de novembro de 2009, no dia 3,96 €;
- despesas com consultas médicas, em 11 de novembro de 2009 e 22 de janeiro de 2010, no valor de 3,96 €;
- pagamento de taxas no Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E, no dia 9 de junho de 2010, no valor de 47,25 €;
- despesa no Centro Hospitalar do Alto Ave, E.P.E, no valor de 5 €;
- despesa paga na farmácia ... no montante de 2,50 €, por uma ponteira de canadiana;
- despesa efetuada na ... no valor de 3,40 €, por uma ponteira de canadiana;
- despesa efetuada em J..., Lda., no valor de 28,90 €;
- despesa na casa de saúde de cidade ... - consulta de Ortopedia no dia 2 de junho de 2011, no valor de 55,00 €.
Por sua vez, provou-se que as lesões apenas se consolidaram em 1/7/2010, com referência a um acidente que ocorreu em 22/09/2009.
O Autor ficou em repouso absoluto durante 8 dias. As lesões passaram a consentir algum grau de autonomia, ainda com limitações período que se terá iniciado em 30/09/2009 e 1/7/2010, a corresponder a 275 dias.
Durante o processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, o Autor viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual entre 22/09/2009 e 1/07/2010, sendo fixável num período total de 283 dias.
Nove meses sem poder exercer a sua atividade profissional.
Considerando que o Autor recebia o salário mínimo nacional que, à data, ascendia a € 557,00; considerando que o Autor, no período compreendido recebeu prestações sociais, pelo menos, no valor de € 2.954,88, o valor a indemnizar, também a título de danos patrimoniais, ascende a € 2.058,12.
O Autor sofreu, ainda, física e psiquicamente quer em virtude do evento, quer durante o período de consolidação das lesões em grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente.
O Autor sofreu um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 3,271 pontos, numa capacidade integral do indivíduo de 100 pontos.
Estas sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, apesar de implicarem esforços suplementares.
O Autor ficou com a sua imagem afetada quer em relação a si, quer em relação aos outros, atenta a claudicação da marcha, por vezes, com apoio de canadiana, em grau 4, numa escala de 7 graus.
Cumpre, assim, determinar o quantum indemnizatório relativo a estes danos alegados e provados pelo Autor.
Importa recordar, ainda que em jeito de sinopse, a seguinte jurisprudência: o dano biológico constitui uma lesão da integridade psicofísica, suscetível de avaliação médico-legal e de compensação, estando a integridade psicofísica tutelada diretamente no artigo 25°, n°1, da Constituição (« A integridade moral e física das pessoas é inviolável») e no artigo 70°, n°1, do Código Civil.
O dano biológico preenche-se na lesão em se e per se considerada (dano-evento), tratando-se da lesão de bens pessoais.
Por sua vez, a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz a incapacidade resultante de um acidente é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial, além dos danos de natureza não patrimonial.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem frisado:
Encontrando-se o autor desempregado, à data do acidente em que ficou lesado, mas exercendo, no atrasado, uma atividade profissional remunerada, por conta de outrem, é de prever que quando regressar ao trabalho irá sofrer um maior esforço para receber o seu salário.
O dano corporal constitui um «tertium genus», ao lado do dano patrimonial e do dano moral, distinguindo-se o dano biológico e o dano moral subjetivo, assentes na estrutura do facto gerador da diminuição da integridade bio-psíquica, constituindo o dano biológico o evento do facto lesivo da saúde, e o dano moral subjetivo, tal como o dano patrimonial, o dano consequência, em sentido estrito.
O dano biológico é ressarcível mesmo que implique apenas a realização de um maior esforço do lesado para obter o mesmo rendimento profissional.
Diferentemente, já dano estético constitui um subtipo do dano não patrimonial, envolvendo uma avaliação - numa perspetiva estática e dinâmica - personalizada da imagem do lesado em relação a si próprio e perante os outros, que resulta de deterioração da sua imagem física pelas sequelas físicas causadas pelo acidente.
O dano corporal não depende da existência e prova dos efeitos patrimoniais, estes é que se apresentam como consequência posterior do primeiro, devendo ser considerado reparável ainda que não incida na capacidade de produzir rendimentos e, também, independentemente desta última.
Verificando-se o dano biológico, deverá o mesmo ser reparado e, eventualmente, deverá ser ressarcido, também, o dano patrimonial resultante da redução da capacidade laboral, caso se demonstre a sua existência e o nexo de causalidade com o dano biológico.
O dano biológico, tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado, a título de dano moral, devendo a situação ser apreciada, casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
Neste caso, para além do dano moral pelo sofrimento, dor, constrangimento, emoções moralmente legítimas que merecem reparação atenta a realidade fáctica apurada, ajuizada de acordo com um padrão objetivo, verifica-se um dano biológico reconduzível também a título de dano moral, porquanto, nada se provou quanto à redução da capacidade de produzir rendimentos, antes o Tribunal ficou convencido que a conjugação do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, aliada a afetação da sua imagem, atenta a claudicação da marcha, por vezes, com apoio de canadiana, em grau 4 numa escala de 7 graus, afeta a potencialidade física, psíquica ou intelectual do Autor.
Provaram-se, assim, danos não patrimoniais: dano biológico e estético, para além do dano moral (sofrimento e dor) suscetível, in casu, de ser indemnizado por assumir um grau de intensidade e objetividade que merece a tutela do direito - cf. artigo 496.° do Código Civil, pelo que há que conceder uma indemnização ao lesado, aqui Autor.
No caso em apreço, atendendo à objetiva gravidade dos factos apurados, importa fixar o montante da indemnização à luz da equidade, nos termos do n° 3 do aludido preceito, tendo presente as circunstâncias referidas no artigo 494.°: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso concreto.
À luz da equidade, e ponderadas todas as circunstâncias do caso, fixa-se o montante de 7.500 € como compensação ao Autor pelos restantes danos (danos não patrimoniais) causados pela omissão ilícita (…)”.
23. O objeto do presente recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações.
24. Nas conclusões de recurso, o Recorrente defende que a sentença recorrida, (i) para além de ser omissa quanto à jurisprudência sobre a matéria para fundamentar a decisão, (ii) condenou os Réus em montantes meramente simbólicos, ao arrepio da jurisprudência dominante e não fazendo a aplicação do princípio da equidade em justa medida, (iii) tendo, inclusive, omitido pronúncia sobre a determinação dos danos patrimoniais presentes e futuros requerida em sede de ampliação do pedido.
25. Vejamos estas questões especificadamente.
26. Assim, e quanto ao primeiro grupo de razões, refira-se que a eventual falta de referência de jurisprudência sobre a matéria para fundamentar a decisão é incapaz de fulminar a sentença recorrida com qualquer vício de falta de fundamentação determinante da aplicação da sanção mais gravosa da decisão judicial recorrida nos autos.
27. De facto, tal consequência só releva nos casos de absoluta fundamentação de facto ou de direito [vd. neste sentido aresto deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 16.02.2018, tirado no processo nº. 00483/09.3BEPRT, consultável em www.dgsi.pt].
28. Naturalmente, poder-se-á equacionar se a fundamentação de direito aposta na decisão judicial recorrida é suficiente, correta e adequada em face das questões envolvidas.
29. Mas saber se a fundamentação da sentença reúne estes requisitos não é matéria que se insira no vício de nulidade sentença, por falta de fundamentação, antes se incluindo no âmbito de eventual erro de julgamento.
30. O que nos remete para a segunda questão suscitada pelo Recorrente, e que se prende com o eventual desfasamento do juízo de equidade firmado pelo Tribunal recorrido em relação aos critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados na graduação de indemnizações como forma de ressarcir danos morais como os que vêm narrados nos autos.
31. Neste particular conspecto, cabe notar que, segundo o disposto no artigo 496º nº 1 do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e, segundo o nº 3 do preceito, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º.
32. O art. 494º alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso justificativas.
33. Assim, cumprindo o que dispõe a normação que se vem de mencionar, cumpre dar relevância ao facto do Recorrente, quando caminhava a pé na Estrada Municipal que liga a cidade ... ao ..., caiu dentro de uma caixa de receção de águas pluviais localizada na valeta, junto ao talude que se encontrava sem tampa ou grelha de proteção e com folhagem, em função do que sofreu traumatismo do calcanhar direito, dor edema e dismorfia calcanhar direito, fraturou o calcâneo do pé direito, tendo sido submetido a tratamento conservador com imobilização em tala gessada [cfr. alíneas A), B), C), D) e K) do probatório].
34. Cumpre ainda importância ao facto de que, durante o processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, o Recorrente viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual entre 22.09.2009 e 01.07.2010, sendo fixável num período total de 283 dias [cfr. alínea Q) do probatório].
35. Mais cabe relevar que o Recorrente sofreu física e psiquicamente, quer em virtude do evento, quer durante o período de consolidação das lesões em grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo sofrido um défice funcional Permanente da integridade físico-psíquica fixado em 3,271 pontos, numa capacidade integral do indivíduo de 100 pontos e ficado Autor, para além de ter ficado com a sua imagem afetada quer em relação a si, quer em relação aos outros, atenta a claudicação da marcha, por vezes, com apoio de canadiana, em grau 4, numa escala de 7 graus [cfr. alíneas R), S)e U) do probatório];
36. Derradeiramente, cabe ponderar a total ausência de culpa do Recorrente na produção do acidente descrito nos autos, bem como nas suas consequências.
37. Perante este quadro fáctico, o Tribunal recorrido socorreu-se de um juízo de equidade, tendo atribuído ao Autor uma indemnização fixada em € 7,500,00 a título de danos morais.
38. Ora, como é sabido, nos casos em que o Tribunal a quo se socorre de juízos de equidade para determinar se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, o Tribunal Superior só deve intervir quando tais juízos se revelem, de forma patente, em colisão com critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados em circunstâncias semelhantes.
39. Ora, esse é claramente o caso dos autos.
40. Com efeito, a indemnização fixada em € 7,500,00 como forma de ressarcimento dos danos morais descritos nos autos, afigura-se-nos manifestamente exígua em face de critérios jurisprudenciais seguidos em situações semelhantes, que situaram antes a indemnização na ordem dos € 15,000,00 a € 50,000,00.
41. Neste sentido, pode ver-se o “guião jurisprudencial” devidamente delineado no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, datado de 10.03.2022, tirado no processo nº. 00303/15.0BEBRG: “(…)
(i) Acórdão do STJ, de 07.04.2016, proferido no processo nº 237/13.2TCGMR.G1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000,00, a jovem de 22 anos de idade, com internamento de três semanas, que ficou incontinente urinária, registou um quantum doloris de 4, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 8% (compatível com o exercício da atividade habitual mas implicando esforços suplementares), registou um dano estético de 3, a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer foi fixada em 1, sofreu angústia de poder vir a falecer, e tornou-se uma pessoa triste, introvertida, deprimida, angustiada, sofredora, insegura, nervosa, desgostosa da vida, e inibida e diminuída física e esteticamente, quando antes era uma pessoa dinâmica, expedita, diligente, trabalhadora, alegre e confiante;
(ii) Acórdão do STJ, de 28.01.2016, proferido no processo nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 40.000,00, a jovem de 17 anos, face a quatro operações, padecimento de dores intensas, antes e após as intervenções cirúrgicas a que foi submetido, internamento por longos períodos, necessidade efetuar tratamentos de reabilitação, submissão futura a mais duas operações, e cicatriz com 50cm de comprimento (o que lhe determinou a atribuição de um quantum doloris de grau 5, e de um dano estético de grau 4);
(iii) Acórdão do STJ, de 26.01.2016, proferido no processo nº 2185/04.8TBOER.L1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 45.000,00, a jovem de 20 anos, desportista, que ficou com várias cicatrizes em zonas visíveis e padeceu de acentuado grau de sofrimento (quantum doloris de grau 5) e relevante dano estético;
(iv) Acórdão do STJ, de 21.01.2016, proferido no processo nº 1021/11.3TBABT.E1.S1 - fixada indemnização por danos não patrimoniais de € 50.000,00, a jovem de 27 anos, com múltiplos traumatismos, sequelas psicológicas, quantum doloris de grau 5, dano estético de 2 pontos, incapacidade parcial de 16 pontos, repercussão nas atividades desportivas e de lazer de grau 2, claudicação na marcha e rigidez da anca direita (…)”.
42. E mais adiante: “(…)
(i) no Acórdão do TRP, de 15/01/2013, proferido no processo n.º 1949/06.2TVPRT.P1, em que se considerou que o montante de 15.000,00 euros era adequado a compensar um lesado que sofreu um quantum doloris de grau 4 em 7, com perda de vários dentes e demais tratamentos dentários, ficando com uma cicatriz notória no lábio superior e com dificuldade em lidar com tal situação.
(ii) no Acórdão do TRP de 11/05/2016, proferido no processo n.º 805/15.8T8PNF.P1, em foi arbitrada uma compensação de 12.500,00 € a um lesado de 36 anos de idade, que foi sujeito a intervenções cirúrgicas, a internamento hospitalar por três dias, foi sujeito a consultas de ortopedia, tratamentos nos serviços clínicos da Ré, incluindo fisioterapia, tendo ficado com cicatriz na região posterior do antebraço, com 15 cms., que lhe determina um dano estético no grau 3 em 7, padeceu dores fixáveis no grau 4 em 7, sofreu grandes incómodos e provações e continua com dores e que, durante 60 dias, esteve dependente de terceira pessoa para assistência básica, uma vez que não se conseguia deitar, levantar, vestir, calçar, alimentar e fazer a sua higiene pessoal sozinho.
(iii) no Acórdão do STJ de 29/06/2011, proferido no processo n.º 345/06.6PTPDL.L1.S1, em que relativamente a um jovem de 19 anos de idade, que ficou a padecer de um IPG de 11,73 pontos que teve um período de 30 dias de incapacidade temporária geral e profissional total, seguido de um período de 177 dias de incapacidade temporária geral e profissional parcial e a quem foi fixado um quantum doloris de grau 5 em 7, o dano estético, constituído por uma cicatriz de 14 cms., que lhe determina um dano estético de 3, em 7, arbitrou-se uma compensação de 25.000,00 euros (…)”.
43. Reiterando toda esta linha jurisprudencial, entendemos que a ponderação casuística das circunstâncias pertinentes resultantes do provado que desenham a especificidade do caso concreto no sentido da fixação da indemnização em € 7,500,00 danos não se mostra bem realizada, impondo-se a sua revisão por forma a tal indemnização situar-se antes no montante de € 25,000,00, por se este reputar inteiramente ajustada às particularidades do caso concreto à luz da jurisprudência que se vem de enunciar.
44. De facto, a indemnização por danos não patrimoniais, para constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, não meramente simbólica ou miserabilista.
45. Deve, portanto, ser alterada a decisão recorrida no que respeita ao montante indemnizatório atribuído a título de danos morais [de 7,500,00 € para 25.000,00 €].
46. Resta-nos, pois, a questão de saber se o Tribunal Recorrido omitiu [ou não] pronúncia sobre a determinação dos danos patrimoniais “presentes e futuros” requerida em sede de ampliação do pedido.
47. A solução é negativa.
48. Na verdade, e como se colhe grandemente da motivação de direito supra transcrita, o Tribunal recorrido sopesou as datas do acidente [22.09.2009] e de consolidação das lesões sofridas [01.07.2010], tendo assentado um período de nove meses sem exercício da atividade profissional por parte do Autor, em função do que computou a existência de um prejuízo patrimonial de € 5,013,00, necessariamente temperado com o valor das prestações sociais entretanto auferidas, cifradas em € 2,954,88.
49. Como está bom de ver, no juízo que se vem de expor mostra-se claramente integrada a ponderação dos danos patrimoniais reclamados nos autos a título de falta de retribuição remuneratória.
50. É certo que tal ponderação teve por base a data de consolidação das lesões sofridas [01.07.2010] e não os períodos temporais indicados pelo Recorrente, ademais e especialmente, em sede de ampliação de pedido.
51. Mas esse é o “ponto de partida e de saída” emergente do probatório coligido nos autos, não sendo, por isso, de convocar qualquer outra abordagem neste domínio.
52. De resto, e quanto aos invocados danos patrimoniais “futuros”, a matéria de facto dada como provada também não legitima a referência a qualquer elemento no sentido da sua existência, o que faz atravessar a tese do Recorrente de qualquer sustentáculo.
53. De modo que não há como concluir que o Tribunal Recorrido incorreu em omissão de pronúncia no patamar convocado pelo Recorrente.
54. Concludentemente, é de conceder parcialmente provimento ao presente recurso.
* *

V – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em:
(i) CONCEDER PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Município ...;
(ii) CONCEDER PARCIALMENTE PROVIMENTO ao recurso interposto por AA;
E, em consequência,
(iii) REVOGAR a decisão judicial recorrida nos segmentos decisórios visados em ambos recursos, e JULGAR PARCIALMENTE PROCEDENTE a presente ação, CONDENANDO-SE A RÉ Companhia de S..., S.A. a pagar ao Autor, aqui Recorrente, a quantia única de € 27, 308.03 [€ 2508,03 (danos patrimoniais) + € 25,000,00 (danos morais) – € 200,00 (franquia)], acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Custas do recurso interposto pelo Município ... pela Seguradora Recorrida.
Custas da ação e do recurso interposto por AA pelo Autor/Recorrente e Ré/Recorrida, na proporção do decaimento, ficando estes, porém, exonerados do pagamento da taxa de justiça que seria devida pelo impulso processual nesta instância de recurso, por não ter contra-alegado.
Registe e Notifique-se.
* *
Porto, 24 de fevereiro de 2023,


Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia