Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00894/10.1BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/09/2019
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Rosário Pais
Descritores:IMPUGNAÇÃO; COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA; IRS; MATÉRIA DE FACTO; INSPEÇÃO TRIBUTÁRIA; CREDENCIAÇÃO; RENDIMENTO LITIGIOSO; REGIME SIMPLIFICADO DE TRIBUTAÇÃO
Sumário:
I) A infração das regras da competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr. artigos 16.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º do C.P.P.T).
II) Para aferir da competência do tribunal em razão da hierarquia há que atender aos fundamentos do recurso, que devem constar das conclusões das respetivas alegações.
III) Se nessas conclusões ou nas concomitantes alegações se invoca factualidade não relevada na sentença recorrida, a decisão do recurso cabe ao Tribunal Central Administrativo.
IV) A inspeção tributária pode ter em conta documento (contrato de agência) referente a ano anterior aos exercícios inspecionados quando tal documento seja materialmente indissociável da decisão judicial que fixou o quantum do rendimento litigioso e objeto da tributação.
V) Deve ser qualificado como rendimento litigioso, nos termos do artigo 62.º do CIRS, aquele que depende de decisão judicial para determinação dos respetivos titular ou valor.
VI) O rendimento litigioso é englobado na declaração de rendimentos do ano em que transite em julgado a decisão que ponha termo ao litígio.
VII) Por força do n.º 6 do artigo 28.º do CIRS, na redação vigente até 31.12.2006, se num único exercício for ultrapassado, em montante superior a 25%, o limite de 99.759,98€, a partir do período de tributação seguinte a tributação faz-se pelo regime da contabilidade organizada. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:JMLMC
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Votação:Unanimidade
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no qual considera que o thema decidendum, tal como delimitado pelo Recorrente, não implica ou exige o ulterior conhecimento e/ou alteração da matéria fáctica dada como assente pelo tribunal a quo que, assim, se mostra definitivamente fixada e conclui que o presente recurso, versando exclusivamente matéria de direito, deverá ser conhecido pelo STA.
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Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1. RELATÓRIO
1.1. JMLMC, melhor identificado nos autos, interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, proferida em 29.09.2018, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra os atos de liquidação de IRS dos anos de 2006 e 2007.
1.2. O Recorrente terminou as respetivas alegações formulando as seguintes conclusões:
«a) - Porque a ação de fiscalização se desenvolveu com a análise de documentos relativamente ao ano de 2002, com aproveitamento do seu conteúdo para a tributação levada a cabo para os anos de 2006 e 2007 sem que para tal houvesse a competente credenciação, tal procedimento, constitui vícios de incompetência e de preterição e formalidade legais, conduz à anulação das liquidações efetuadas.
Mesmo que assim se não entenda, o que por hipótese meramente académica se admite:
b) – Dado que relativamente ao ano de 2006 não foi exercida qualquer atividade enquadrável na categoria B de IRS, não poderá ser fixado qualquer rendimento, pelo que a liquidação efetuada quanto a esse ano deve ser anulada;
c) – Já quanto ao ano de 2007, uma vez que deve ser enquadrado no regime simplificado de tributação em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 28º do Código do IRS, o rendimento líquido desta categoria será tão somente de € 6.944,26,
Porque só assim se fará justiça.»
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1.3. Não foram apresentadas contra alegações.
*
1.4. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o douto parecer de fls. 150 a 154, no qual considera que o thema decidendum, tal como delimitado pelo Recorrente, não implica ou exige o ulterior conhecimento e/ou alteração da matéria fáctica dada como assente pelo tribunal a quo que, assim, se mostra definitivamente fixada e conclui que o presente recurso, versando exclusivamente matéria de direito, deverá ser conhecido pelo STA.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir pois que a tanto nada obsta.
*
2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir, a título prévio, da competência hierárquica deste Tribunal para conhecer do presente recurso.
Na improcedência desta exceção, em face das conclusões formuladas pelo Recorrente, competirá ao Tribunal apreciar se a sentença:
- enferma de erro de julgamento ao considerar que não se verificam os vícios de incompetência e preterição de formalidade essencial;
- violou o disposto no artigo 3.º, n.º 6, do CIRS vigente antes da entrada em vigor do artigo 26.º, n.º 2, da Lei n.º 32-B/2002, de 30/12, por estarem em causa rendimentos provenientes de serviços prestados em 2002;
- enferma de erro de julgamento por, relativamente ao ano de 2007, o Recorrente dever ser enquadrado no regime simplificado de tributação.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. DE FACTO
3.1.1. A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
«3.1. Com interesse para a decisão a proferir, julgam-se provados os seguintes factos:
1. Em 22.05.2002 a sociedade CCPR, Lda., na qualidade de primeira outorgante, e o Impugnante, na qualidade de segundo outorgante, assinaram um acordo escrito, que denominaram de "Contrato de Agência", mediante o qual este se comprometeu a promover, por conta e em nome daquela, a celebração de contratos de compra e venda de 23 viaturas de salvamento e socorro com o Serviço Nacional de Bombeiros e Associações Humanitárias de Bombeiros. - cfr. fls, 15/19 do processo administrativo apenso.
2. Do referido contrato constam, entre outras, as seguintes cláusulas:
"PRIMEIRA
1 - O segundo outorgante obriga-se a promover em nome e por conta da primeira, a celebração de contratos de compra e venda dos seus veículos com o Serviço Nacional de Bombeiros e associações humanitárias de bombeiros recomendadas pelo mesmo no decurso das negociações com esta entidade.
2 - As viaturas a que se refere o presente contrato, são vinte e três viaturas de socorro e salvamento, (…)
TERCEIRA
1 - Por todos os contratos promovidos e celebrados, durante a vigência do presente contrato de agência, a comissão de venda do segundo outorgante será de 20% o que representa um valor unitário por viatura de Catorze mil duzentos e oitenta e cinco Euros e cinquenta e sete cêntimos (14285.57) a receber em numerário, ou no total das 23 viaturas um valor global de Trezentos e vinte oito mil quinhentos e sessenta e oito Euros e quinze cêntimos (328568.15€), a receber em numerário
(. . .)
QUINTA
1 - O presente contrato tem o seu início de vigência em 04 de Junho de 2002 e vigorará até 31 de dezembro de 2002.
(…) ".
3. Em setembro de 2002 a sociedade CCPR, Lda. pagou ao Impugnante a quantia de 58 094,78 €.
4. O Impugnante intentou contra a sociedade CCPR, Lda. uma ação declarativa requerendo a condenação daquela no pagamento da quantia de 284758,95 €. - cfr. fls. 35 a 43 dos autos.
5. O processo correu termos pelo Tribunal da Comarca de Aveiro tendo em 03.10.2006 o Supremo Tribunal de Justiça proferido acórdão, transitado em julgado, que condenou a sociedade CCPR, Lda. a pagar ao Impugnante a quantia de 113.332,18 €, acrescida do IVA (19%) e juros vencidos e vincendos. - cfr. fls. 21/39 do processo administrativo apenso, cujo teor se tem por reproduzido.
6. Em 13.02.2017 a sociedade CCPR, Lda. pagou ao ora Impugnante a quantia de 204 913,60 €. - cfr. fls. 44 do processo administrativo apenso.
7. Com base na Ordem de Serviço n.º OI200802679, de 26.11.2008, dos Serviços de Inspeção e Prevenção Tributária da Direção de Finanças de Aveiro, o Impugnante foi objeto de uma ação inspetiva externa, de âmbito parcial (IVA e IRS) que incidiu sobre o ano de 2006 e 2007. - cfr. fls. 55 dos autos.
8. Através do ofício n.º 8400386, de 15.01.2010, remetido por carta registada, foi o Impugnante notificado do projeto de relatório e respetivos anexos e para, querendo, exercer o direito de audição. - cfr. fls. 66 do processo administrativo apenso.
9. O Impugnante exerceu o direito de audição. – cfr. fls. 13 do processo administrativo apenso.
10. Em 09.02.2010 foi elaborado o relatório que consta de fls. 1/13 do processo administrativo apenso, que se dão por reproduzidas e do qual consta, entre o mais, o seguinte:
[imagem indisponível]
11. As conclusões do relatório de inspeção tributária foram sancionadas superiormente. - cfr. fls. 1 do processo administrativo apenso.
12. Na sequência do procedimento inspetivo foram emitidas as liquidações adicionais de IRS referentes aos anos de 2006 e 2007, no montante global de 49 077,95 €. - cfr. fls. 29/34 dos autos.
3.2. Factos não provados:
Para além dos referidos supra, não foram provados outros factos com relevância para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto dada como provada:
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada resultou dos elementos especificamente identificados em cada um dos pontos do probatório, resultando essencialmente da análise crítica dos documentos constantes dos autos e do processo administrativo apenso.».
3.1.2. Por se afigurar necessário para a boa decisão da causa e dado que os autos reúnem os pertinentes elementos probatórios, no uso da faculdade que nos é conferida pelo artigo 662.º do CPC, procedemos ao seguinte aditamento à matéria de facto provada:
13. Em 11.12.2006 foi apresentado o requerimento para a execução da decisão final proferida no processo referido no ponto 5. dos factos provados – cfr. último parágrafo da página 9 do relatório inspetivo.
Estabilizada a matéria de facto, podemos avançar para a apreciação do mérito do presente recurso.
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3.2. De Direito
3.2.1. Como já foi mencionado, importa previamente apreciar a incompetência hierárquica deste Tribunal para conhecer do presente recurso.
Segundo dispõe o artigo 16.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT, a infração das regras da competência em razão da hierarquia e da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, a qual é do conhecimento oficioso e pode ser arguida pelos interessados ou suscitada pelo Ministério Público, ou pelo Representante da Fazenda Pública até ao Trânsito em julgado da decisão final.
A incompetência absoluta do Tribunal configura uma exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito e dá lugar à absolvição da instância da recorrida (artigos 96.º, 577.º, alínea a) e 576.º, n.º 2 do CPC). Só assim não sucederá se, como resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 2, do CPPT, o interessado requerer a remessa do processo para o Tribunal competente no prazo de 14 dias a contar da notificação da decisão que declare a incompetência hierárquica.
De acordo com os artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), ambos do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e o artigo 280.º, n.º 1, do CPPT, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria de contencioso tributário, cabe à Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria a apreciar for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Esta é pois uma exceção à competência generalizada dos Tribunais Centrais Administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» - cfr. artigo 38.º, alínea a), do ETAF.
Para aferir da competência em razão da hierarquia dos Tribunais Centrais e do Supremo Tribunal Administrativo, há que olhar para as conclusões da alegação do recurso e verificar se, em face das mesmas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva atividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, seja por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, seja porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, seja ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos – cfr., entre outros, os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
– de 16 de Dezembro de 2009, proferido no processo n.º 738/09, publicado no Apêndice ao Diário da República de 19 de Abril de 2010 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2009/32240.pdf), págs. 2052/2057, também disponível emhttp://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/faa144134d6efbf5802576a30041135b?OpenDocument;
– de 21 de Abril de 2010, proferido no processo n.º 189/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Março de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32220.pdf), págs. 670/674, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8445188eb602055b80257711005292ba?OpenDocument.) e
- de 09.04.2014, proferido no processo n.º 0161/14, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/67cb7748b40b0b3880257cbd004e4227?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1.
No caso vertente, da leitura das conclusões de recurso que acima ficaram transcritas e delimitam o âmbito e o objeto do presente recurso, resulta que as questões suscitadas pelo Recorrente se prendem com a ocorrência dos vícios de incompetência e de preterição de formalidades legais das liquidações impugnadas, por falta de credenciação para a análise dos documentos relativos ao exercício de 2002, inexistência de facto tributário no ano de 2006, por não ter sido exercida qualquer atividade nesse ano, e erro de julgamento por não ser aplicável o artigo 62.º do CIRS, bem como o excesso do rendimento líquido do ano de 2007 porque, neste ano, o Recorrente devia ter sido enquadrado no regime simplificado de tributação.
Pese embora o Recorrente não coloque em crise o julgamento de facto realizado pelo Tribunal a quo, o certo é que invoca factualidade (inexistência de atividade e proveitos no ano de 2006, alegada no ponto 30 das alegações) que não foi contemplada na sentença recorrida. Para além disto, a decisão de mérito deste recurso implica a determinação da data (pelo menos do ano) do trânsito em julgado do acórdão do STJ que fixou o quantum do crédito do ora Recorrente / do rendimento coletável, a qual não resulta nem pode ser inferida da matéria de facto julgada provada na 1.ª instância.
Deste modo, entendemos que a decisão a proferir nestes autos não é meramente de direito, pelo que este TCAN é competente para apreciar o presente recurso.
3.2.2. Na conclusão a), sustenta o Recorrente que, em virtude de ação de fiscalização se ter desenvolvido com a análise de documentos relativos ao ano de 2002, com aproveitamento do seu conteúdo para a tributação levada a cabo para os anos de 2006 e 2007 sem que para tal houvesse a competente credenciação, tal procedimento constitui vício de incompetência e de preterição de formalidades legais que conduz à anulação das liquidações efetuadas.
Relativamente a esta questão, o Tribunal a quo efetuou o seguinte julgamento:
«Compete ao órgão da Administração Tributária que determinar a realização do procedimento de inspeção estabelecer o seu âmbito e a respetiva extensão. Nos termos do artigo 14.° do R.C.P.I.T., o procedimento de inspeção tributária pode ser geral e polivalente ou, então, parcial e univalente. O âmbito define o limite material do procedimento, isto é, define qual ou quais os tributos que podem ser alvo dos atos de inspeção tributária. A extensão do procedimento de inspeção dirige-se aos limites temporais que podem ser abrangidos pela acção de inspeção tributária, isto é, refere-se à determinação do período ou períodos de tributação/ano ou exercício que podem ser incluídos na ação de inspeção tributária.
Nos termos do disposto no artigo 14.°, n.º 3 do R.C.P.I.T., quanto à extensão o procedimento pode abranger um ou mais períodos de tributação.
A classificação e a definição do procedimento inspetivo quanto ao seu âmbito e extensão assume uma relevância incontornável no seu desenvolvimento, uma vez que irá balizar os limites à prática dos atos inspetivos, ao delimitar o objeto do procedimento e os respetivos poderes investigatórios dos funcionários encarregues de cada inspeção em concreto (cfr. JOAQUIM FREITAS ROCHA, JOÃO DAMIÃO CALDEIRA COIMBRA, Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária Anotado e Comentado, Coimbra Editora, pág. 89).
Segundo o preceituado no artigo 15.° do R.C.P.I.T., os fins, o âmbito e a extensão do procedimento de inspeção podem ser alterados durante a sua execução mediante despacho fundamentado da entidade que o tiver ordenado, devendo ser notificado à entidade inspecionada.
Com efeito, como referem JOAQUIM FREITAS ROCHA, JOÃO DAMIÃO CALDEIRA in op. Cit. "Quer o princípio da verdade material, quer o princípio do inquisitório comportam a consequência de que a definição do âmbito e extensão do procedimento não se cristaliza nem se mostra imutável, na medida em que o mesmo pode, destes pontos de vista, sofrer alterações. Na realidade, resultaria incompreensível que, após a fixação da duração material e da duração do procedimento, este não pudesse ser alterado, face a novos dados e face à concreta configuração empírica que a situação objeto de inspeção reflete. Tal significaria seguramente uma limitação desadequada e desproporcional dos poderes administrativos e, tão ou mais importante do que isso, uma violação dos princípios supra referidos, admitindo-se que a administração não estaria obrigada a, por todos os meios, apurar a verdade material. ".
Volvendo ao caso em apreço, estão em causa rendimentos do ano de 2006 e juros percebidos no ano de 2007, motivo pelo qual a ação teve como âmbito temporal o ano de 2006 e depois estendeu-se ao ano de 2007.
É certo que a prestação de serviços remonta ao ano de 2002, ano que em foi celebrado o contrato de agência, todavia, como melhor se verá infra, os rendimentos dizem respeito ao ano de 2006. Com efeito, como é referido no relatório de inspeção, a ação surgiu no seguimento de uma informação prestada pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa que alertavam para o facto do Impugnante, através da interposição duma ação judicial contra a empresa CCPR, Lda. ter sido ressarcido, por condenação desta no pagamento de determinados montantes relativos a comissões e intermediação, acrescidos de IVA e de juros vincendos.
Nestes termos, sendo os rendimentos tributados dos anos de 2006 e 2007, e tendo a ação inspetiva como âmbito temporal os referidos anos, não se verifica o vício imputado pelo Impugnante.».
Ora, nesta parte, o Recorrente não imputa qualquer vício ou erro à sentença recorrida, limitando-se a repetir o que alegou na petição inicial. Ainda que seja admitir que o Recorrente imputa, implicitamente, erro de julgamento à sentença recorrida, o certo é que esta decidiu em conformidade com a factualidade assente e o direito aplicável, pelo que nenhuma censura merece.
Acresce, no entanto, dizer que, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RCPITA, «O procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributárias, a verificação do cumprimento das obrigações tributárias e a prevenção das infrações tributárias.».
Facilmente se intui que a observação das realidades tributárias implica a verificação dos elementos, por regra documentais, que evidenciam tais realidades, sendo que esses elementos tanto podem respeitar ao ano inspecionado como a outros exercícios.
O facto de a ação inspetiva assentar em prova documental respeitante a ano anterior ao inspecionado não implica que se considere extravasada a respetiva extensão (ou âmbito temporal) e, consequentemente, a credenciação dos inspetores tributários, exceto se daí resultar alguma alteração à matéria coletável desse ano anterior (como decorre do acórdão do STA de 10.05.2017, proc. 0699/16, disponível em www.dgsi.pt), o que não se verifica no caso presente.
É ainda mister salientar que, no caso vertente, a necessidade de análise do contrato de agência outorgado e executado ano de 2002 resultava implícita da ordem de serviço n.º OI200802679, emitida na sequência de informação prestada pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa que «alertava para o facto do Dr. JC, através de uma acção judicial contra a empresa “CCPR, Lda”, ter sido ressarcido, por condenação desta, no pagamento de determinados montantes relativos a comissões de intermediação, acrescida de IVA e de juros vencidos.».
É que a dita condenação ocorreu por acórdão do STJ datado de 03.10.2006, proferido no âmbito de ação judicial intentada pelo ora Recorrente contra a referida empresa em face do litígio suscitado em torno dos valores a pagar ao primeiro por força daquele contrato de agência.
A realidade tributária a observar e a consequente obrigação tributária seriam, portanto, as resultantes do acórdão proferido pelo STJ em 3.10.2006 (que dirimiu a controvérsia sobre o quantum do direito do Recorrente) e do contrato de agência que constituía o seu objeto. Nesta medida, o contrato de agência, embora executado no ano de 2002, é materialmente indissociável da decisão do STJ que pôs termo ao aludido litígio e, por isso, não podia deixar de ser tido em conta na fixação do conjunto dos rendimentos do ano de 2006.
Concluímos, assim, pelo acerto da decisão recorrida nesta parte e consequente improcedência da conclusão a) das alegações de recurso.
3.2.3. Na conclusão b) sustenta o Recorrente que não tendo sido exercida, no ano de 2006, qualquer atividade enquadrável na categoria B de IRS, não poderá ser fixado qualquer rendimento e, nas antecedentes alegações, esclarece que a norma a aplicar ao presente litígio seria a constante do n.º 6 do artigo 3.º do CIRS na sua redação anterior à introduzida pelo artigo 26.º, n.º 2 da Lei n.º 32-B/2002, de 30/12, pelo que o momento a considerar para efeito de tributação seria o da data em que os rendimentos foram colocados à disposição do Recorrente, ou seja o ano de 2007. Entende o Recorrente que «é irrelevante o chamamento à colação do artigo 62.º do Código do IRS porquanto o recebimento dos valores determinados em sede de Acórdão do STA foram recebidos em data posterior à do seu trânsito em julgado, ou seja já no ano de 2007 como ficou demonstrado, ano em que tais rendimentos deveriam ser tributados por força do nº 6 do artigo 3º do Código do IRS na sua redação anterior à introduzida pelo artigo 26º nº 2 da Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro.».
Do assim alegado resulta patente que a discordância do Recorrente quanto ao decidido em 1.ª instância resulta do facto de os rendimentos apenas terem sido colocados à sua disposição no ano de 2007.
Sucede que é irrelevante a data em que rendimentos em questão foram colocados à disposição ou efetivamente recebidos pelo Recorrente, sendo de confirmar a sentença recorrida quer quanto à qualificação do crédito à comissão como litigioso e quer quanto à aplicabilidade do artigo 62.º do CIRS.
Vejamos porquê:
Em primeiro lugar, se atentarmos no teor do acórdão do STJ em referência, facilmente concluímos que existia, de facto, litígio relativamente ao quantum das comissões devidas. Transcrevemos, a este propósito, das páginas 1 e 2 do mencionado aresto (cfr. fls. 7 e 8 do anexo I ao relatório da inspeção tributária), o seguinte:
«Citada regularmente a R. contestou, referindo que, na ocasião em que subscreveu o contrato invocado pelo A., encontrava-se numa difícil situação, em decorrência do investimento que tinha feito para aquisição dos componentes que constituíam os veículos em causa e posterior montagem, uma vez que o SNB não recebeu esses mesmos veículos, por entender que não cumpriam o caderno de encargos do respectivo concurso, ficando portanto a suportar os encargos resultantes desse negócio.// O A. conhecendo a situação da R., e insinuando-se junto do gerente e de sua família, protestando beneficiar de determinados conhecimentos referiu então que conseguiria proceder à venda desses mencionados veículos, com o recebimento imediato, circunstância que fez com que a R. viesse a aceitar tal prestação do primeiro, na tentativa de salvar a empresa da falência, subscrevendo o contrato que o A. apresentou preenchido como exigência das pessoas que possibilitariam o negócio, e que não admitiriam qualquer alteração, confiando nas promessas que lhe foram feitas.// Após a tomada de posse do novo presidente do SNB a situação alterou-se totalmente a favor da R., que passou a conseguir a venda das viaturas através de conversações entre o gerente desta e as diversas associações de bombeiros, realizando-se os contratos independentemente da colaboração do A., que fez crer àquela que a mudança de atitude do SNB se devia à sua interferência, sem que os veículos fossem pagos à vista mas de acordo com o programa normal de pagamentos estabelecido entre o SNB e as instituições.// Por entender configurar o contrato outorgado entre as partes um negócio usurário, pretende a sua anulação, com a condenação do A. na devolução da quantia recebida de € 58.094,78, ou, pelo menos, modificado segundo juízos de equidade, reduzindo-se a comissão devida ao A. para 5%. (…)».
Deste excerto resulta evidente que, embora o aqui Recorrente apenas pretendesse discutir o incumprimento da obrigação de pagamento das comissões acordadas, a ali R. questionou o dever de pagar tal quantia, no todo ou em parte, requerendo a respetiva redução, no que viria a obter sucesso. Dúvidas não podem, então, subsistir em como o crédito reclamado pelo ali A. era litigioso.
Em segundo lugar, o artigo 62.º do CIRS (na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, portanto, vigente no ano de 2002) expressava que «Se a determinação do titular ou do valor de quaisquer rendimentos depender de decisão judicial, o englobamento só se faz depois de transitada em julgado a decisão, e opera-se na declaração de rendimentos do ano em que transite.».
Como já ficou consignado no ponto 13 dos factos provados, por nós aditado, o requerimento para a execução da decisão proferida na ação intentada pelo aqui Recorrente foi apresentado em 11.12.2006, o que nos permite inferir (por força do artigo 47.º do CPC anterior, segundo o qual a sentença só constitui título executivo depois de transitada em julgado) que tal decisão transitou em julgado ainda no ano de 2006.
Por último, cumpre salientar que nunca esteve em questão que a tributação aqui em causa quanto ao ano de 2006 resultasse de rendimentos provenientes do exercício de atividade nesse ano, mas antes da fixação, por decisão transitada em julgado nesse mesmo ano, do quantum do crédito até então litigioso. Assim sendo, é igualmente irrelevante a alegada inexistência de atividade no ano de 2006, pelo que não importa fixar qualquer factualidade a esse respeito.
Concluímos, então, que atento o facto, indubitável, de o rendimento a tributar ser litigioso (dada a controvérsia quanto à correspondente obrigação e quantum, que resulta evidente da posição da devedora na ação judicial intentada pelo aqui Recorrente) e a circunstância de no ano de 2006 ter transitado em julgado o acórdão do STA que pôs termo a tal litígio, bem andou a ATA em tributar no ano de 2006 o rendimento em causa e o Tribunal a quo em manter a consequente liquidação.
3.2.4. Finalmente, na conclusão c), o Recorrente sustenta que devia ser enquadrado no regime simplificado de tributação, em obediência ao n.º 2 do artigo 28.º do CIRS, pelo que o rendimento desta categoria será tão somente de €6.944,26.
Quanto a esta questão entendeu a Meritíssima Juíza a quo o seguinte:
«Segundo o preceituado no artigo 28.°, n.º 2, do CIRS ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua atividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior qualquer dos seguintes limites: a) volume de vendas 149739,37 €; b) valor ilíquido dos restantes rendimentos desta categoria 99 759,58 €.
O n.º 6 por sua vez dispõe que cessa a aplicação do regime simplificado quando algum dos limites a que se refere o n.º 2 foi ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou se o for num único exercício em montante superior a 25% desse limite, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se faz a partir do período de tributação seguinte ao da verificação de qualquer desses factos.
Foi o que sucedeu no caso concreto. Em 2006 o Impugnante teve correções nos seus rendimentos no montante de 176 826,02 E (vide quadro de pág. 13 do relatório inspeção tributária), que ultrapassam os 25% de 99 759,58 € (124 699,48 €). Nestes termos, no ano de 2007 o Impugnante fica sujeito ao regime de contabilidade organizada.».
E também nesta parte se impõe confirmar a sentença recorrida.
Sob a epígrafe “Formas de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais” dispunha o artigo 28.º do CIRS, na redação vigente até 31/12/2006, do seguinte modo:
«1 - A determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, salvo no caso da imputação prevista no artigo 20.º, faz-se:
a) Com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado;
b) Com base na contabilidade.
2 - Ficam abrangidos pelo regime simplificado os sujeitos passivos que, no exercício da sua actividade, não tenham ultrapassado no período de tributação imediatamente anterior qualquer dos seguintes limites: (Redacção do DL 211/2005-07/12)
a) Volume de vendas: € 149 739,37;
b) Valor ilíquido dos restantes rendimentos desta categoria: € 99 759,58.
3 - Os sujeitos passivos abrangidos pelo regime simplificado podem optar pela determinação dos rendimentos com base na contabilidade. (Redacção do DL 211/2005-07/12)
4 - A opção a que se refere o número anterior deve ser formalizada pelos sujeitos passivos: (Redacção do DL 211/2005-07/12)
a) Na declaração de início de actividade;
b) Até ao fim do mês de Março do ano em que pretendem utilizar a contabilidade organizada como forma de determinação do rendimento, mediante a apresentação de declaração de alterações.
5 - O período mínimo de permanência no regime simplificado é de três anos, prorrogável automaticamente por iguais períodos, excepto se o sujeito passivo comunicar, nos termos da alínea b) do número anterior, a opção pela aplicação do regime de contabilidade organizada.
6 - Cessa a aplicação do regime simplificado quando algum dos limites a que se refere o n.º 2 for ultrapassado em dois períodos de tributação consecutivos ou se o for num único exercício em montante superior a 25% desse limite, caso em que a tributação pelo regime de contabilidade organizada se faz a partir do período de tributação seguinte ao da verificação de qualquer desses factos.
7 - Os valores de base necessários para o apuramento do rendimento tributável são passíveis de correcção pela Direcção-Geral dos Impostos nos termos do artigo 39.º, aplicando-se o disposto no número anterior quando se verifiquem os pressupostos ali referidos.
8 - Se os rendimentos auferidos resultarem de serviços prestados a uma única entidade, o sujeito passivo pode optar pela tributação de acordo com as regras estabelecidas para a categoria A, mantendo-se essa opção por um período de três anos.
9 - Sempre que, da aplicação dos indicadores de base técnico-científica a que se refere o n.º 1 do artigo 31.º, se determine um rendimento tributável superior ao que resulta dos coeficientes estabelecidos no n.º 2 do mesmo artigo, ou se registe qualquer alteração ao montante mínimo de rendimento previsto na parte final do mesmo número, pode o sujeito passivo, no exercício da entrada em vigor daqueles indicadores ou da alteração do referido montante mínimo de rendimento, optar, no prazo e nos termos previstos na alínea b) do n.º 4, pelo regime de contabilidade organizada, ainda que não tenha decorrido o período mínimo de permanência no regime simplificado. (Redacção dada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro)
10 - No exercício do início de actividade, o enquadramento no regime simplificado faz-se, verificados os demais pressupostos, em conformidade com o valor anual de proveitos estimado, constante da declaração de início de actividade, caso não seja exercida a opção a que se refere o n.º 2 do presente artigo.
11 - Se, tendo havido cessação de actividade, esta for reiniciada antes de 1 de Janeiro do ano seguinte àquele em que se tiverem completado 12 meses, contados da data da cessação, o regime de determinação dos rendimentos empresariais e profissionais a aplicar é o que vigorava à data da cessação. (Aditado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro)
12 - O referido no número anterior não prejudica a possibilidade de a DGCI autorizar a alteração de regime, a requerimento dos sujeitos passivos, quando se verifique ter havido modificação substancial das condições do exercício da actividade. (Aditado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro)
13 - Exceptuam-se do disposto no n.º 11 as situações em que, por imposição legal, o sujeito passivo se encontre obrigado a possuir contabilidade organizada e aquelas em que o reinício da actividade venha a ocorrer depois de terminado o período mínimo de permanência. (Aditado pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro)».
Ora, verificando-se que no ano de 2006 o rendimento ilíquido do Recorrente foi fixado em 176.826,02€, o qual excede em mais de 25% o valor de 99.759,58€ (99.759,58€ + 25% =124.699,22€), por imperativo legal, no ano de 2007, a tributação tinha que ser feita com base na contabilidade e, já não, com base nas regras decorrentes do regime simplificado.
Improcede, pois e também, a conclusão c) das alegações de recurso.
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E assim formulamos as seguintes conclusões:
I) A infração das regras da competência em razão da hierarquia determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr. artigos 16.º, n.ºs 1 e 2, e 18.º do C.P.P.T).
II) Para aferir da competência do tribunal em razão da hierarquia há que atender aos fundamentos do recurso, que devem constar das conclusões das respetivas alegações.
III) Se nessas conclusões ou nas concomitantes alegações se invoca factualidade não relevada na sentença recorrida, a decisão do recurso cabe ao Tribunal Central Administrativo.
IV) A inspeção tributária pode ter em conta documento (contrato de agência) referente a ano anterior aos exercícios inspecionados quando tal documento seja materialmente indissociável da decisão judicial que fixou o quantum do rendimento litigioso e objeto da tributação.
V) Deve ser qualificado como rendimento litigioso, nos termos do artigo 62.º do CIRS, aquele que depende de decisão judicial para determinação dos respetivos titular ou valor.
VI) O rendimento litigioso é englobado na declaração de rendimentos do ano em que transite em julgado a decisão que ponha termo ao litígio.
VII) Por força do n.º 6 do artigo 28.º do CIRS, na redação vigente até 31.12.2006, se num único exercício for ultrapassado, em montante superior a 25%, o limite de 99.759,98€, a partir do período de tributação seguinte a tributação faz-se pelo regime da contabilidade organizada.
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4. Decisão
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em julgar improcedente a exceção de incompetência material deste TCAN suscitada pelo DMMP e em julgar o presente recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Porto, 9 de maio de 2019
Ass. Maria do Rosário Pais
Ass. Cristina da Nova
Ass. Ana Paula Santos