Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00731/18.9BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/31/2019
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:CONTRATO DE ARRENDAMENTO APOIADO; FORMA ESCRITA; ASSINATURA; FORMALIDADE ESSENCIAL; ARTIGO 364.°, N.°1, DO CÓDIGO CIVIL; DECRETO-LEI N.°321-B/90, DE 15.10 (REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO); SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DO ACTO DE DESPEJO; FUMUS BONI IURIS; ARTIGO 120º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:
1. A forma escrita e a assinatura de um contrato, incluindo um contrato público de arrendamento apoiado, é uma formalidade essencial, e não meramente probatória - artigo 364.°, n.°1, do Código Civil, e Decreto-Lei n.°321-B/90, de 15.10 (Regime do Arrendamento Urbano).
2. Não é provável, pelo contrário, o êxito de uma acção em que se pede a anulação da ordem de despejo de um locado habitado pela requerente em situação de facto, com base no contrato não assinado.
3. Nestas condições é de indeferir a providência cautelar para suspensão da eficácia da ordem de despejo, por falta do requisito “fumus boni iruris” – artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MLL
Recorrido 1:Município de C....
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar para Abstenção duma Conduta (CPTA) - Recurso jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

MLL veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 01.03.2019 pela qual foi julgada improcedente a providência cautelar destinada, no essencial, a suspender de imediato qualquer ordem de despejo da habitação social (casa n° 6) que a Requerente, ora Recorrente, e o respetivo agregado familiar ocupa no Parque N..., agora denominado CEH, sito na Estrada de C... em C…, e, em consequência foi o requerido, Município de C..., absolvido do pedido, por falta do requisito fumus boni iuris.
Invocou para tanto e em síntese que ao contrário do decidido se verificam todos os requisitos para o decretamento da providência requerida.
O Recorrido contra-alegou defendendo a manutenção de decisão recorrida.
O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido também de ser negado provimento ao recurso.
*
Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
*
I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1. A Recorrente é viúva e tem 60 (sessenta) anos de idade.
2. A habitação n° 6, do CEH, arrendada à Recorrente foi-o não só nos termos do Novo Regime do Arrendamento Urbano mas ainda por ser uma questão social de proteção e legalmente protegida aos mais necessitados,
3. Por ser a Recorrente cigana, não nos parece que a acção camarária levada a efeito pela Directora de Departamento o tenha feito por xenofobia e racismo.
4. A Recorrente pela posse e fruição da habitação, durante anos, só por si detém o contrato de arrendamento, ainda que não fosse escrito. Contudo,
5. A Recorrente está salvaguardada por contrato de arrendamento escrito, onde consta explicitamente o seu nome, ainda que não assinado, e determinado pela deliberação n° 283/2014, de 10.02, aprovado na Câmara Municipal de C...por unanimidade. Ora,
6. Era obrigação dos serviços da Câmara Municipal de C...cumprir com tal deliberação e com o deliberado, o que a senhora Directora de Departamento não fez, violando a lei.
7. A não aceitação da protecção cautelar põe em risco a vida e segurança da Recorrente e da sua família a cargo (menores de idade), por razões sociais imperiosas, tendo em conta anteriores acções comportamentais da Câmara Municipal de C..., ainda que goradas.
8. A providência cautelar deve ser decretada por reunir os requisitos cumulativos do artigo 120° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
*
II –Matéria de facto.
A decisão recorrida deu como indiciariamente provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:
A) Em 24.07.2010, entre o Município de C..., ora requerido, representado pelo Presidente da Câmara Municipal e MLL, aqui requerente, foi outorgado o documento com o título "Contrato de Comodato", o qual teve o seu início na mesma data, e cujo teor se considera integralmente reproduzido e que aqui se transcreve na parte relevante para a decisão:
"(...)
CLÁUSULA PRIMEIRA - O representado pelo primeiro outorgante é dono e legitimo possuidor do módulo de alojamento pré-fabricado n° 6, instalado no designado "Parque de N...s", localizado nos Campos do Boião, freguesia de Santa Cruz.
CLÁUSULA SEGUNDA - O primeiro outorgante, em nome e representação do Município de C..., cede gratuitamente à segunda outorgante, exclusivamente para utilização própria desta com fins habitacionais, a habitação referida na cláusula anterior.
CLÁUSULA TERCEIRA - O presente contrato tem efeito na data da sua assinatura e vigorará pelo prazo de um ano, contado daquela data.
CLÁUSULA QUARTA - Findo o comodato, a habitação objecto do presente contrato será restituída ao Município de C..., não podendo a comodatária exigir qualquer indemnização pelas benfeitorias entretanto efectuadas.
CLÁUSULA QUINTA - O objecto do presente contrato destina-se exclusivamente a ser utilizado como habitação da segunda outorgante.
CLÁUSULA SEXTA - A execução de quaisquer obras na habitação obedecerá à legislação em vigor e carece de autorização prévia da Câmara Municipal de C....
CLÁUSULA SÉTIMA - A habitação reverterá para o Município de C..., sem direito a qualquer indemnização e antes de decorrido o prazo referido na cláusula terceira, no caso de incumprimento deste contrato, designadamente se deixar de ser utilizada para o fim previsto na cláusula quinta.
CLÁUSULA OITAVA - As despesas com o consumo de água, energia eléctrica, gás, telefone e respectivos contratos de fornecimento, são encargo e responsabilidade da comodatária.
CLÁUSULA NONA - Entre outras, são obrigações especiais da comodatária, cujo incumprimento confere o direito à resolução deste contrato:
a) Facultar aos Serviços da Câmara Municipal de C...o exame do local objecto do presente contrato;
b) Não aplicar a habitação a fim diverso do estabelecido neste contrato;
c) Não fazer dela uma utilização imprudente;
d) Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do local objecto do presente contrato por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição contratual, subarrendamento ou arrendamento.”
(Cfr. documento junto a folhas 288 e 289 do processo administrativo).
B) Em 10.02.2014, em sede de Reunião Ordinária, a Câmara Municipal de C...aprovou por unanimidade, e em minuta, a deliberação n.° 283/2014 cujo teor se considera integralmente reproduzido e se transcreve na parte relevante para a decisão:
"Deliberação n.° 283/2014 (10/02/2014):
• Alterar o vínculo contratual com MLL, mediante a celebração de um contrato de arrendamento para a habitação sita no pré-fabricado n.° 6 do Parque N..., o qual, dada a sua extensão, fica apenso à presente ata, fazendo parte da mesma, pela renda mensal de 5€."
(Cfr. documento junto de fls. 38 a 42 do processo administrativo).
C) Em anexo à Deliberação n.° 283/2014 de 10.02.2014 transposta para a ata da Reunião Ordinária da Câmara Municipal de C...da mesma data, encontrava-se o instrumento com o título "Contrato de Arrendamento para Habitação", cujo teor se considera integralmente reproduzido.
(Cfr. documento junto a folhas 41 do processo administrativo).
D) Entre o Município de C... e MLL não chegou a ser outorgado por escrito o contrato constante do documento acabado de referir.
(Provado por acordo).
E) Em 07.11.2016, pela Divisão de Ação Social foi produzida a informação com a referência 38540/2014, constante de fls. 220 a 224, por meio da qual foi proposta a revogação da deliberação de Câmara n.° 283/2014 e a restituição da habitação, cujo teor se tem por integralmente reproduzido, e se transcreve aqui parcialmente o seguinte segmento:
"Atualmente a comodatária encontra-se desempregada, dispondo de tempo livre, pelo que deveria cumprir com o conjunto de obrigações constantes na Declaração de Compromisso, nomeadamente na realização das actividades de Limpeza do CAS, Limpeza do Exterior, Atelier de Artes Plásticas e Atelier de Costura, situação que não se verifica, pautando o seu comportamento pelo desinteresse na organização da sua vida.
Atendendo ao exposto é entendimento destes serviços que não estão reunidas as condições para proceder à assinatura do contrato de arrendamento aprovado em reunião de câmara de 10.02.2014.
Considerando que o contrato de comodato celebrado com a munícipe se encontra caducado desde 24.07,2011, de acordo com o disposto na Cláusula Quinta do Contrato de Comodato e do artigo 1129.° e alínea h) do artigo 1135° do Código Civil, é entendimento destes serviços que a comodatária proceda à restituição da habitação".
F) Em 21.11.2016, em sede de Reunião Ordinária, a Câmara Municipal de C..., com base na informação que antecede, emanou por unanimidade e em minuta a Deliberação n.° 2511/2016 cujo teor se considera integralmente reproduzido e se transcreve na parte relevante para a decisão:
"Deliberação n.° 2511/2016 (21/11/2016):
• Revogar a deliberação da Câmara Municipal n.° 283/2014 (10/02/2014), que aprovou a celebração de um contrato de arrendamento com MLL para habitação sita no pré-fabricado n.° 6 do Parque N..., atualmente designado CEH, e determinar a restituição da habitação nos termos do artigo 1129.° e da alínea h) do artigo 1135.° do Código Civil."
(Cfr. documento junto de fls. 19 a 24 do processo administrativo).
G) A Requerente tomou conhecimento da Deliberação n.° 2511/2016 mediante o envio de ofício por carta registada recebida por aquela em 2812.2016, com o seguinte teor:
"Serve o presente para informar que a Câmara Municipal de C..., na sua reunião de 21/11/2016, deliberou aprovar a restituição da habitação, tendo como fundamento a caducidade do contrato de comodato celebrado a 24/07/2011, entre a Câmara Municipal de C...e MLL, referente à habitação sita no CEH, casa n.° 6, de acordo com o disposto na Cláusula Quinta do Contrato de Comodato e do artigo 1129.° e alínea h) do artigo 1135.° do Código Civil. Assim, deverá V Ex.ª proceder à restituição da habitação no prazo máximo de 30 dias. No caso de incumprimento do referido prazo a Câmara agirá judicialmente.
Mais se informa que o processo se encontra disponível para consulta no departamento de Desenvolvimento Social e Ambiente (...)"
(Cfr. documento n.° 6 junto com a oposição).
H) No dia 21.04.2017 foi efectuada a entrega da habitação na presença da PSP e do Serviço de Polícia Municipal, da Directora do Departamento de Desenvolvimento Social e Ambiente e demais elementos dos Serviços de Habitação da Câmara que procederam à substituição da fechadura da porta da entrada da habitação, tendo sido efectuado o arrolamento dos bens ali existentes.
(Cfr. documento de fls. 173 a 175 do processo administrativo).
I) Em 27.04.2017, a ora Requerente intentou contra o Município uma providência cautelar, a qual correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra com o n.° 203/17.9BECBR-A, visando a "suspensão do despejo, por parte da Câmara Municipal, de C…, à casa n.° 6, do CEH, 3025-300 C…, mandando suspender o acto, condenando a Câmara Municipal a devolver a habitação à cidadã MLL, com entrega imediata no local, com hora e data marcada, até que seja decidido o processo à margem identificado, de anulação do acto administrativo ¬deliberação camarária n.° 2511/2016, de 21 de Novembro."
(Provado por consulta ao processo n.° 203/17.9BECBR-A via SITAF).
J) Por sentença proferida a 14/7/2017 foi julgada procedente a providência requerida e foi determinada a suspensão da eficácia da deliberação da Câmara Municipal n.° 2511, de 25/11/2016 e ordenada a devolução da casa de habitação à Requerente.
(Cfr. documento a fls. 408 a 419 do processo administrativo).
K) A ora Requerente intentou ação principal contra o Município de C..., acção administrativa que correu termos com o n.° de processo 203/17.9 CBR, pedindo que fosse "dado acolhimento ao recurso de anulação da deliberação camarária n.° 2511/16, de 21 de Novembro, da Câmara Municipal de C..., dando provimento ao recurso de anulação, condenando a Câmara Municipal a estabelecer um contrato de arrendamento entre ela e a cidadão MLL, para a habitação n.° 6 do CEH, com a renda mensal de 5, 00€ (cinco euros e zero cêntimos), como foi decidido pela deliberação camarária n.° 283/2014, de 10 de Fevereiro".
(Cfr. documento junto de fls. 112 a 114 do processo administrativo).
L) Nesta acção administrativa principal, a 05.02.2018 foi proferida sentença, já transitada em julgado, que julgou procedente a exceção dilatória de caducidade do direito de acção invocada pelo Município de C... e, em consequência, absolveu o mesmo da instância.
(Cfr. documentos juntos de folhas 101 a 110 do processo administrativo).
M) Nessa sequência, por despacho proferido a 14.05.2018 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra no âmbito do processo cautelar identificado com o n.° 203/17.9 CBR-A, já transitado em julgado e notificado a MLL através do seu mandatário mediante notificação de 15.05.2018, foi reconhecida a caducidade da providência cautelar determinada pela sentença já identificada, conforme documento que se dá por reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
(Cfr. documento junto de fls. 83 a 85 do processo administrativo).
N) Na sequência do reconhecimento da caducidade da providência cautelar, a Requerente, através do ofício n.° 19587, tomou conhecimento pelo Serviço da Polícia Municipal a 08.08.2018, que a Câmara Municipal de C...iria proceder à execução da deliberação n.° 2511/2016, de 21.11.2016, solicitando a restituição da habitação no prazo máximo de 30 dias contados da data da receção daquele ofício, sob pena do Município proceder à efetivação da restituição da habitação.
(Cfr. documento n.° 10 da oposição junto com o requerimento n.° 207823).
O) No dia 22.11.2018, a Câmara Municipal de C..., na presença da PSP, e do Serviço da Polícia Municipal visou efetivar a restituição da habitação.
(Cfr. documento junto a fls. 47 do processo administrativo).
P) Em 05.12.2018 a requerente efetuou junto da Caixa Geral de Depósitos um depósito no valor de € 5,00, identificando como sendo o mesmo a título de renda, relativo à casa 6, mais identificando como senhorio a Câmara Municipal de C....
(Cfr. documento B junto com a petição inicial).
Q) A petição inicial pela qual se iniciaram estes autos foi apresentada em 17.12.2018.
(Cfr. fls. 2 dos autos).
R) Nos autos da ação principal a que foi atribuído o n.° 26/19.0BECBR, a requerente peticiona que seja dado provimento à mesma, e em consequência, seja a entidade requerida intimada a:
"a) Suspender de imediato qualquer ordem de despejo da habitação social (casa n° 6) que a requerente e respetivo agregado familiar ocupa desde 10/02/2014, no Parque N..., agora denominado CEH, sito Estrada da C..., em C…;
b) A reconhecer que a questão de direito controvertida quanto à existência e validade do invocado "Contrato de Arrendamento para Habitação" aprovado por unanimidade pela Deliberação n.° 283/2014, de 10/02/2014 (V. Doc. A-1, em anexo), na ausência de acordo com a interessada, sob pena de nulidade e/ou ineficácia jurídica, tem natureza privada, está sujeita apenas à jurisdição cível e apenas poderá ser legalmente dirimida pelo Tribunal Judicial competente em razão da matéria; e,
c) Abster-se de promover o despejo da requerente da habitação social que ocupa e a que se reporta o invocado "Contrato de Arrendamento para Habitação" aprovado por unanimidade pela Deliberação n.° 283/2014, de 10/02/2014 (V. Doc. A-1, em anexo), sem prévia decisão judicial que conheça do presente litígio nos termos legais".
(Provado por consulta via SITAF ao Processo n.° 26/19.0 CBR).
*
III - Enquadramento jurídico.
A decisão recorrida tem, no essencial, o seguinte teor:
“(…)
Vem nos presentes autos MLL requerer a concessão de uma providência cautelar através da qual seja o requerente intimado a suspender imediatamente qualquer ordem de despejo da habitação que aquela ocupa no CEH de C…, bem como a abster-se de promover o despejo da requerente da referida habitação sem decisão judicial que conheça do litígio nos termos legais.
A tutela cautelar consubstancia um mecanismo que o sistema jurídico coloca ao serviço do direito a uma tutela jurisdicional efetiva [Cfr. artigos 20.° e 268.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP)], procurando evitar assim que "a demora razoável de uma ação judicial inutilize uma eventual sentença favorável ao autor, fazendo com que o tempo corra em prejuízo daquele que tem razão" (vide Rita Lynce de Faria, in "A irreversibilidade da tutela cautelar antecipatória", 2017, pág. 1). Conforme refere José Carlos Vieira de Andrade (in "A Justiça Administrativa", (Lições), 2015, 14.2 Edição, Almedina, pág. 289), "os processos cautelares visam especificamente garantir o tempo necessário para fazer Justiça. Mesmo quando não há atrasos, há um tempo necessário para julgar bem".
A figura da providência cautelar, que poderá ser de natureza antecipatória ou conservatória, encontra-se prevista nos artigos 112.° e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), destinando-se a garantir a utilidade da sentença final que venha a ser proferida no processo. Assume desse modo uma relação de dependência com a causa principal (Cfr. artigo 113.°, n.°1 do CPTA).
A tutela cautelar consiste assim, e antes de mais, numa regulação provisória de interesses, marcada pela caraterística da provisoriedade e temporalidade da sua decisão.
O decretamento da providência cautelar, nos termos do n.°1 do artigo 120.° do CPTA, está dependente de haver "fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente".
Decorre assim do referido normativo que a concessão da providência cautelar está pois sujeita, desde logo, à verificação de dois requisitos: o periculum in mora e a aparência do bom direito ou fumus boni iuris.
Importa pois a análise dos requisitos supra elencados, apreciando-se em primeiro lugar o requisito da aparência do bom direito, também designado de fumus boni iuris.
No que respeita a este requisito, que com a redação dada ao CPTA pelo Decreto-lei n.° 214-0/2015, de 2/10 passou a ter apenas uma formulação positiva (por oposição à redação do anterior 120.°, n.°1, al. b) do CPTA), impõe-se ao julgador a realização de um juízo sobre a possibilidade de sucesso do autor no processo principal, avaliando o grau de probabilidade de êxito da pretensão formulada por este. Atenta a natureza da tutela cautelar, em causa está um juízo meramente perfunctório, isto é, nas palavras de José Alberto dos Reis (in A Figura do Processo Cautelar, fis.72): "o tribunal, antes de emitir a providência, não se certifica, com segurança, da existência do direito que o requerente se arroga: limita-se a formar um juízo de verosimilhança, a verificar a aparência do direito (fumus boni iuris)".
Para fundamentar a verificação do requisito do fumus boni iuris alegou a requerente que, na sequência da Deliberação n.° 283/2014 passou a beneficiar de um contrato de arrendamento para habitação desde 10/02/2014, estando a sua resolução ou despejo sujeita ao regime legal decorrente dos artigos 1080.° e 1083.° e ss. do Código Civil e artigos 14.° e ss. do NRAU. A realização de despejo sem o cumprimento das aludidas normas configura uma situação ilegítima e ilegal. Concomitantemente, a atuação do requerido padece de nulidade por usurpação de poderes, ex vi o artigo 161.°, n.°1 e 2, als. a) a g) e/ou I) do CPA, configurando mesmo o crime de usurpação de coisa imóvel usurpação de funções e/ou violação de domicílio por funcionário. Por último, alega a requerente que a atuação do requerido viola o direito fundamental de acesso aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos através de um processo equitativo, para além de lhe negar os direitos fundamentais de habitação, reserva da vida privada e familiar e à proteção de quaisquer formas de discriminação, bem como desvio de poder. Cumpre apreciar
Conforme decorre do argumentário da requerente, esta imputa a uma "anunciada" atuação do requerido um conjunto de vícios consubstanciado na atuação ilegal e violadora dos direitos e normas legais elencadas, e cuja verificação assenta na alegada existência de um contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
Deste modo, o sucesso da pretensão da requerente passará desde logo pela existência do mesmo contrato.
Decorre da factualidade provada, que entre o Município de C... e a requerente em 24/07/2010 foi celebrado um contrato de comodato referente à habitação social — casa 6, sita no CEH (Cfr. al A) do probatório). Em 10/02/2014, através da Deliberação n.° 283/2014, a Câmara Municipal de C...deliberou proceder à alteração do vínculo contratual com a requerente, mediante a celebração de um contrato de arrendamento para habitação sita ria aludida casa 6, mediante o pagamento da renda mensal de €5,00 (Cfr. al. B) dos factos provados).
Resultou igualmente provado nos autos, que em 21/11/2016, a Câmara Municipal viria a deliberar revogar a Deliberação n.° 283/2014 e simultaneamente determinar a restituição da habitação nos termos do disposto no artigo 1129.°, e al. h) do artigo 1135.° do Código Civil (Cfr. ai. F) do probatório).
Pelas partes não se mostra questionada a natureza do contrato de comodato celebrado entre ambas. O dissídio inicia-se apenas com a Deliberação n.° 283/2014 a qual, no entender da requerente, fez nascer naquela data um contrato de arrendamento, o qual se mantém ainda hoje.
Importa assim fazer uma breve análise ao regime do arrendamento por forma a aferir, ainda que de modo perfunctório como pressupõe o tipo de ação em causa, se em face da factualidade apurada é possível concluir pela existência de um contrato de arrendamento.
Nos termos do artigo 1022.° do Código Civil, a locação "é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante remuneração", chamando-se de arrendamento quanto a mesma versar sobre imóvel.
No caso do arrendamento para habitação, prescreve o artigo 1069.° do Código Civil, que o mesmo "deve ser celebrado por escrito". A exigência de forma escrita de todos os arrendamentos urbanos foi introduzida com a publicação do Decreto-lei n.° 321-B/90, de 15/10 (Regime do Arrendamento Urbano).
Daqui decorre, nos termos do artigo 364.°, n.°1 do C.G., que a forma escrita do contrato de arrendamento tem uma natureza ad subtantiam e não ad probationem, não podendo ser substituída por outra prova de forma.
A tal não obsta a circunstância de o contrato poder ter sido celebrado ao abrigo do regime da renda apoiada, previsto no Decreto-lei n.° 166/93, de 7/05, ou ao abrigo do regime jurídico constante da Lei n.° 21/2009, de 20/05, vigente até à publicação do regime do arrendamento apoiado para habitação, aprovado pela Lei n.° 81/2014, de 19/12, porquanto, a ambos se mostrava aplicável o regime geral da locação civil, colmatado com as regras especiais do arrendamento urbano (no mesmo sentido vide "Arrendamento Social", CIJE - Centro de Investigação Jurídico-Económica Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Almedina, Coimbra, Novembro 2005", a pág. 34).
Conforme resulta da factualidade provada, não obstante a Deliberação n.° 238/2014, conforme reconhece a requerente, as partes não viriam a formalizar, mediante redução a escrito, a celebração do contrato de arrendamento em causa.
Falta assim desde logo um elemento essencial para a conclusão pela celebração do mesmo contrato. E neste ponto não colhe a argumentação da requerente, de que celebrado um contrato promessa de arrendamento, ocupada a coisa e paga a retribuição mensal, tal situação deve ser definida como contrato de arrendamento.
É que dos presentes autos mais não resulta que uma intenção de alterar o vínculo contratual existente mediante a celebração de um contrato de arrendamento, sem que as partes tivessem vindo a concretizar a referida intenção, o que ocorreria com a outorga do contrato.
Concomitantemente, não se mostrou igualmente provado que a fruição que a requerente fazia do imóvel ocorria mediante uma contraprestação, no valor da renda previamente aprovada. É que neste ponto, aquela apenas juntou comprovativo de depósito autónomo realizado em 05/12/2018, isto é, já após a realização pelo Município das diligências tendentes à recuperação do imóvel em causa. Não decorre pois dos factos apurados que após a Deliberação n.° 283/2014 se tivesse verificado a alteração do animus das partes relativamente à fruição feita pela requerente da habitação que já vinha ocupando ao abrigo do contrato de comodato, nomeadamente através de atos demonstrativos de se estar perante um contrato de arrendamento.
E não poderá ser entendido como tal o pagamento pela requerente das despesas de água e luz, pois que tal era desde logo uma obrigação do próprio contrato de comodato.
Por outro lado, é certo que, o contrato de comodato celebrado entre a requerente e o requerido em 24/07/2010, tinha a validade de 1 ano, caducando desse modo em 23/07/2011 e aquela se manteve a ocupar o imóvel. Todavia, como se deixou dito, tal verificou-se desde a data de 24/07/2011, bem antes do momento a partir do qual a requerente entende ter passado a beneficiar de um contrato de arrendamento que se mantém válido até hoje (10/02/2014).
Ponderada a factualidade provada, não é pois permitir concluir pela existência de um contrato de arrendamento em favor da requerente, no que concerne à habitação ocupada pela mesma na Casa 6 do CEH.
Não sendo possível concluir pela celebração de um contrato de arrendamento entre as partes, atenta a factualidade indiciariamente apurada, não se poderá igualmente concluir que o requerido estava sujeito ao regime legal do despejo previsto nos artigos 1080.° e 1083.° e ss. do C.G., bem como artigo 14.° do NRAU.
Acresce que, de acordo com o probatório, por intermédio da Deliberação n.° 2511/2016, a Câmara Municipal de C...decidiu revogar a Deliberação n.° 283/2014, mais determinando a restituição da habitação nos termos do disposto no artigo 1129.°, e artigo 1135.º, al. h) do C.C.
A Deliberação n.° 2511/2016 enquanto ato emanado no exercício de poderes jurídico-administrativos, dotado de efeitos externos, e produtor de efeitos jurídicos na esfera da requerente, era suscetível de ser impugnada, como o viria a fazer esta, nos termos do artigo 51.° do CPTA.
Todavia, conforme decorre da sentença proferida no Processo n.° 203/17.9BECBR, o Tribunal viria a concluir pela caducidade do direito de ação, ficando desse modo o ato em causa consolidado, produzindo os seus efeitos.
Estabelece o artigo 1135.° do C.C. que são obrigações do comodatário, nomeadamente, restituir a coisa findo o contrato (Cfr. al. h) do C.C.).
Conforme resulta da al. A) do probatório, o contrato de comodato entre as partes havia já caducado em 23/07/2011, pelo que nos termos do antedito artigo estava aquela obrigada a proceder a restituição do bem objeto do contrato. Foi com esse intuito que a requerente foi notificada para, no prazo de 30 dias, proceder à restituição do imóvel, sob pena da execução da deliberação (Cfr. al. G) do provatório). Com efeito, tendo a deliberação se consolidado na ordem jurídica, esta, enquanto ato administrativo que supra se caraterizou, está dotada de força executória, nos termos do artigo 175.° do CPA, podendo ser executada pela Administração, cumpridos que estejam os requisitos legais previstos nos artigos 175.° e seguintes.
Deste modo, não resultando dos autos a existência de um contrato de arrendamento celebrado entre a requerente e o requerido, e tendo-se consolidado a Deliberação 2511/2016, improcederá a alegação do vício de violação de lei, bem como de usurpação de poderes, vício esse não concretizado sequer pela requerente.
No que concerne à suscitada prática dos crimes de usurpação de coisa móvel, usurpação de funções, ou violação de domicílio por funcionário, previstos respetivamente nos artigos 215.0, 358.° e 378.° do Código Penal, a verificação destes teria como primeiro pressuposto a existência de um direito de propriedade da requerente sobre o bem em causa, o que manifestamente inexiste, não sendo sequer alegado pelas partes. Deste modo, a alegação da requerente é manifestamente improcedente.
Já no que concerne à alegação de que a atuação do requerido é violadora do direito fundamental de acesso aos Tribunais, esta terá forçosamente de improceder. Conforme se deixou dito, a requerente foi notificada da deliberação n.° 2511/2016 (Cfr. al. G) do probatório), tendo reagido judicialmente contra a mesma, e desse modo tido a oportunidade de ver os seus interesses tutelados. Ainda no caso de se vir efetivamente a verificar a execução daquela deliberação, sempre a ora requerente poderá obter a fiscalização da mesma pelos vícios próprios desta, não estando pois coartados os seus direitos de acesso aos Tribunais para proteção dos interesses protegidos através de um processo equitativo.
Alega igualmente a requerente que um eventual recurso à ação de direta por parte do Município será igualmente violador do princípio da legalidade, bem como dos direitos fundamentais à habitação, reserva da intimidade da vida privada e familiar, e proteção legal contra todas as formas de discriminação, sendo tal atuação geradora de nulidade nos termos do artigo 161.°, n.°1 e 2 do CPA, bem como de desvio de poder.
Todavia a alegação da requerente terá de improceder porquanto a mesma não logra demonstrar, ainda que indiciariamente, ser detentora de um título e direito a permanecer na habitação em causa, nomeadamente, mediante a celebração de contrato de arrendamento. Com efeito, tendo resultado demonstrado dos autos apenas a celebração de um contrato de comodato, cuja caducidade por seu termo já operou, esta deixou de ter causa legítima para continuar a fruir da habitação, cumprindo-lhe realizar a entrega da mesma após a notificação do ato administrativo no mesmo sentido. Deste modo, a exigência da restituição da habitação por parte do requerido encontra-se fundamentada no termo daquele contrato de comodato e execução da Deliberação n.° 2511/2016, já consolidada, não resultando da factualidade provada que tivesse na sua génese uma qualquer intenção discriminatória.
Sempre se refira, no que concerne ao direito à Habitação, este depende de concretização legislativa, sendo que a sua efetividade está depende da reserva do possível, não sendo pois o cidadão titular de um direito imediato a uma prestação efetiva o situação judicialmente exercitável por si só.
Deste modo, por tudo quanto se expôs, não se mostra provável que a pretensão formulada pela requerente no processo principal venha a ser julgada procedente, conforme o exige o artigo 120.°, n.°1 do CPTA para que possa ser determinada a providência cautelar que aquela pretende obter nos presentes autos, não se verificando o requisito do fumus boni iuris.
Conforme se deixou dito supra, o decretamento da providência cautelar está dependente da verificação cumulativa dos requisitos previstos no artigo 120.°, n.°1 e 2 do CPTA, pelo que, não se mostrando verificado um deles, terá a presente providência de improceder”.
A decisão recorrida mostra-se irrepreensível, acertada e exaustiva.
Determina o n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10 - com início de vigência em 01.12.2015:
“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as providências cautelares são adotadas quando haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”
Face ao teor actual deste preceito não há que distinguir agora entre providências conservatórias, como o pedido de suspensão da eficácia de um acto, e providências antecipatórias.
É necessário, além do mais, que seja “provável que a pretensão formulada ou a formular no processos principal venha a ser julgada procedente para que uma providência antecipatória possa ser concedida. Como, neste domínio, o requerente pretende, ainda que a título provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da sua pretensão deduzida no processo principal” Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 609.
No caso concreto não é provável que a pretensão formulada no processo principal venha a obter êxito.
Não foi celebrado um contrato de arrendamento a favor da Autora, no que concerne à habitação em apreço.
Face ao disposto no do artigo 364.°, n.°1, do Código Civil, a forma escrita do contrato de arrendamento tem uma natureza “ad subtantiam” e não “ad probationem, ou seja, é condição de validade do contrato de não mera prova da existência do mesmo, sendo que a forma escrita de todos os arrendamentos urbanos foi introduzida pelo Decreto-Lei n.° 321-B/90, de 15.10 (Regime do Arrendamento Urbano), como se decidiu.
Ora, como a própria Recorrente reconhece, o “contrato” de arrendamento que invoca como título para a ocupação da habitação em apreço, não se encontra assinado.
Não passa, portanto, de um modelo de contrato com o nome da ora Recorrente e não de um contrato efectivamente celebrado, inexistindo o elemento essencial para a mesma se vincular aos seus termos, a sua assinatura.
Por outro lado, consolidou-se na ordem jurídica a deliberação da Câmara Municipal de C...n.º 2511/2016, que revogou a deliberação n.º 283/2014, determinado a restituição da habitação nos termos do disposto no artigo 1129.º e artigo 1135.º, alínea h), do Código Civil.
Não se verifica, como decidido, o requisito fumus boni iuris, a aparência do bom direito. O que determina a improcedência da providência sem mais indagações, tal como decidido.
Isto tendo em conta que os requisitos para a suspensão da eficácia do acto são cumulativos, como é pacificamente aceite (neste sentido, o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 26.10.2012, no processo 01087/12.9 –A BRG e toda a jurisprudência aí citada).
***
IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantém a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Porto, 31.05.2019
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia
Ass. Conceição Silvestre