Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00336/01-A - Coimbra
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/30/2014
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:NULIDADE DA SENTENÇA
CADUCIDADE DA GARANTIA
DENÚNCIA DA GARANTIA
INTERESSE EM AGIR
DEFERIMENTO TÁCITO
Sumário:I. No processo judicial tributário, o vício de oposição entre os fundamentos e a decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Este vício tem como premissa a eventual violação do necessário silogismo judiciário que deve existir em qualquer decisão judicial, tendo lugar somente quando os fundamentos da sentença devam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou, pelo menos, diferente da que foi adoptada.
II. O interesse em agir consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
III. Tem interesse em agir a parte que formula pedido de reconhecimento de caducidade de garantia bancária, no âmbito da vigência do artigo 183.º-A do CPPT, mesmo após denúncia da mesma pela instituição bancária, se tiver em vista, nomeadamente, a manutenção da suspensão do processo de execução fiscal até à decisão final do pleito subjacente.
IV. Formando-se acto de deferimento tácito do pedido de reconhecimento de caducidade de garantia, estará sujeito ao regime de esgotamento do poder jurisdicional quanto à matéria sobre que recaiu o deferimento, por ser equivalente a uma decisão expressa de deferimento.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:S... - Serviço Municipalizado de Transportes Urbanos de ...
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:


I – Relatório

S... - Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de ..., por apenso ao processo de impugnação n.º 336/2001, requereram o reconhecimento da caducidade da garantia bancária que prestaram para assegurar a cobrança do tributo cuja liquidação impugnam e sustar a respectiva execução coerciva, enquanto corressem termos os autos principais.
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra foi proferida sentença, em 21/06/2012, que julgou verificar-se a excepção de ausência de interesse em agir por parte dos Requerentes, absolvendo da instância a Fazenda Pública, decisão com que os mesmos não se conformaram, tendo interposto o presente recurso jurisdicional.

Alegaram, tendo concluído da seguinte forma:

1. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida é ilegal por erro de julgamento, deferimento tácito do reconhecimento da caducidade da garantia, contradição e vício de fundamentação legal.
2. A decisão recorrida é ilegal por obscuridade da respectiva fundamentação legal, já que não só não se consegue compreender a mesma, na medida em que é referido “corpo do artigo” sem que se perceba ao que o mesmo se reporta,
3. para além de a fundamentação legal apresentada não conduzir a que exista falta de interesse de agir da Recorrente ou que tal conduza à absolvição da instância da Administração Fiscal.
4. Por outro lado, a decisão recorrida é ilegal por violação do disposto no art.666.° n.° 1 do CPC aplicável ex vi art.2º, al. e) do CPPT e dos nºs 4 e 5 do art. 183.º-A do CPPT, na redacção em vigor até 31/12/2006.
5. A decisão recorrida foi proferida mais de 30 dias após a apresentação do respectivo requerimento pela Recorrente, pelo que, se presumiu o respectivo deferimento tácito, no termo do referido prazo de 30 dias, isto é, em 30/3/2012 (nos termos dos n.° 4 e 5 do art. 183.°-A do CPPT, na redacção em vigor até 31/12/2006.
6. Com a decisão de deferimento tácito ficou esgotado o poder jurisdicional de decisão (nos termos do art. 666.° n.° 1 do CPC).
7. Logo, a decisão recorrida ao não reconhecer a caducidade da garantia e a absolver a Administração Fiscal da instância encontra-se a violar frontalmente as referidas disposições legais, o que deverá conduzir à sua anulação, reconhecimento da garantia e suspensão das execuções
8. Para além disso, a decisão recorrida é ainda ilegal por contradição e erro de julgamento.
9. A Sentença recorrida reconhece que a Recorrente se encontra presentemente a ser executada e que se verificam as condições para a caducidade da garantia bancária requerida,
10. porém, considera que a Recorrente não tem interesse em pedir o reconhecimento da caducidade da garantia, pois a mesma foi denunciada pela CGD.
11. Tal comporta uma nítida contradição.
12. Caso houvesse reconhecimento da caducidade da garantia a Recorrente não estaria a ser executada, pois mesmo após a denúncia da garantia pela CGD a execução encontrar-se-ia suspensa.
13. Logo é evidente o interesse em agir da Recorrente para conseguir a suspensão dos processos executivos sem a prestação de garantia de qualquer garantia.
14. Destarte, a decisão recorrida deverá ser anulada e a caducidade da garantia reconhecida, com efeito suspensivo das execuções.
TERMOS EM QUE DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, JULGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA ILEGAL, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE RECONHECENDO-SE A CADUIDADE DA GARANTIA, COM A SUSPENSÃO DA RESPECTIVA EXECUÇÃO.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir:

Se é causa de nulidade a contradição entre os factos e a decisão e se existe obscuridade na fundamentação da mesma;
Se ocorreu erro de julgamento quanto à decisão de verificação da excepção de “falta de interesse em agir”;
se se verifica violação do disposto no artigo 666.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, por se ter produzido deferimento tácito do pedido de reconhecimento da caducidade da garantia.


III – FUNDAMENTAÇÃO

III -1. O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão quanto à matéria de facto:

1. O processo principal, de que o presente é dependência, foi instaurado a 3 de Abril de 2001, cabendo-lhe o n.º 336/01 no extinto Tribunal Tributário de 1ª Instância de Coimbra, a que sucedeu este Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
2. Através dele os S... - Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de ... - impugnaram liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado referentes aos anos de 1997, 1998 e 1999, aí compreendidas as correspondentes de juros, que a Administração Tributária lhes havia elaborado, pedindo a sua anulação.
3. O processo principal correu seus termos e veio a ser nele proferida sentença a 9 de Janeiro de 2007, a qual foi todavia objecto de recurso que agora se encontra pendente no Tribunal Central Administrativo Norte, depois de remessa a título definitivo do Supremo Tribunal Administrativo para aqueloutro Tribunal Superior.
4. Os S... não procederam ao pagamento das dívidas de imposto e juros determinadas pelas liquidações impugnadas conforme referido nos pontos anteriores, pelo que no Serviço de Finanças de Coimbra 1 foi instaurado processo executivo, para sua cobrança coerciva, ao qual ali cabe o n°0728-01/102502.3.
5. Para sustar esse processo executivo enquanto corresse seus termos o processo principal referido nos pontos 1.-3., como garantia de cumprimento das quantias aí sob execução, adrede notificados no processo executivo, os S... prestaram a 19 de Janeiro de 2004 garantia bancária, a qual foi concedida pela Caixa Geral de Depósitos S.A., e que é identificada pelo n°9015/001513/887/0019 [hoje: n° 9015.003922.993], tendo-se por tal meio comprometido a entidade bancária até ao valor de €522.721,16, para satisfação das aludidas dívidas exequendas.
6. Aceite tal garantia pelo Órgão de Execução Fiscal, o processo executivo ficou suspenso da decisão a proferir no processo judicial.
7. A Caixa convencionou com os S... que a garantia mencionada perduraria por um ano a contar da data da sua prestação e renovar-se-ia automaticamente por iguais períodos, podendo ser denunciada por si, o que produziria efeitos a partir do termo do período que estivesse em curso, sob prévia comunicação quer àqueles Serviços, quer ao Órgão de Execução Fiscal.
8. Em 17 de Novembro de 2011 a Caixa Geral de Depósitos, S.A., comunicou a sua denúncia da garantia àquele processo executivo e, bem assim, aos S... e ao Município de Coimbra.
9. Na sequência do referido no ponto anterior, o processo executivo mencionado no ponto 4. deixaria de estar suspenso após 19 de Janeiro de 2012.
10. A 29 de Fevereiro de 2012 os S... suscitaram o presente incidente.

Por se mostrar pertinente para a decisão do recurso, nos termos do artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, adita-se a seguinte factualidade à decisão proferida sobre a matéria de facto:

11. O presente incidente de caducidade da garantia foi decidido no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra em 21/06/2012 – cfr. sentença recorrida.

III – 2. De Direito

Nas conclusões das alegações do recurso vem (implicitamente) arguida a nulidade da decisão recorrida, por oposição entre a matéria de facto e a decisão e suscitada a obscuridade da sua fundamentação de direito, nos termos do artigo 669.º, n.º 2 e n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC).
Refere-se que a sentença é contraditória com a matéria de facto, precisamente por deter interesse em agir, por estar sendo de novo objecto de execução.
Na decisão recorrida menciona-se que a caducidade de uma garantia como a que foi prestada, segundo o regime aplicável, ocorre após o decurso de certo período de tempo fixado pelo legislador como razoável – 3 anos por regra – para que no processo judicial seja proferida decisão, mas que tal não ocorre com culpa do administrado – artigo 183.º-A, n.º 1 -3 e 6, revogado, do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Assim, no caso concreto, ela verificou-se três anos volvidos sobre 03/04/2001 e, embora haja no regime em causa previsto um direito a indemnização associado à prestação de garantia, ele não era no caso formulado, pelo que, verificando-se, simultaneamente, que o instrumento contratual de prestação de garantia se extinguira já por força dos termos contratuais, antes mesmo de o incidente ter sido instaurado, ao pedido de declaração da caducidade não assiste qualquer interesse em actuá-lo judicialmente, posto não ser possível fazer assentar ou retirar um qualquer efeito jurídico benéfico ou prejudicial aos Serviços Recorrentes com a declaração judicial da caducidade da garantia. Daí a inutilidade do recurso ao processo e a consequente absolvição da instância da parte contrária – cfr. decisão do incidente.
Com efeito, considera-se haver oposição entre os fundamentos e a decisão quando os fundamentos da sentença devam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou, pelo menos, diferente da que foi adoptada (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30/04/2014, proferido no âmbito do processo n.º 07435/14), ou, como escreve Jorge Lopes de Sousa in CPPT anotado, Vol. II, Áreas Editora, 2011, pp. 361, oposição entre os fundamentos e a decisão «(…) ocorre quando os fundamentos invocados na decisão deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada na decisão».
A sentença/decisão pode padecer de vícios de duas ordens:
1-Por um lado, pode ter errado no julgamento dos factos e do direito e, então, a consequência é a sua revogação;
2-Por outro lado, como acto jurisdicional, pode ter atentado contra as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º, do Código de Processo Civil, na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26/6, à data da decisão artigo 668.º.
Nos termos do preceituado no citado artigo 668.º, n.º 1, alínea c) – actualmente, artigo 615.º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Encontramo-nos perante um corolário lógico da exigência legal de fundamentação das decisões judiciais em geral consagrado no artigo 158.º, agora artigo 154, nº. 1 do Código de Processo Civil. O vício em análise, o qual tem como premissa a eventual violação do necessário silogismo judiciário que deve existir em qualquer decisão judicial, terá lugar, como referimos, somente quando os fundamentos da sentença devam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou, pelo menos, diferente da que foi adoptada.
No processo judicial tributário o vício de oposição entre os fundamentos e a decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125.º, nº. 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
No caso sub judice, não vislumbramos que a sentença recorrida padeça da nulidade em análise. Concretizando, a decisão recorrida não comporta nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão, na medida em que, tendo decidido verificar-se falta de interesse em agir, dos factos provados não alcançou qualquer utilidade no recurso ao incidente ou qualquer efeito jurídico útil para os Serviços Recorrentes.
Em suma, não se vê que a sentença recorrida padeça de qualquer vício lógico na sua estrutura, que tenha por consequência a respectiva declaração de nulidade. Isto porque, nela se autonomiza e configura como interesse em agir um pedido de indemnização decorrente da caducidade da garantia; uma vez que o mesmo não foi formulado pelos Requerentes, num silogismo lógico, o tribunal concluiu inexistir necessidade de fazer uso do incidente. Quando muito, o juiz a quo não terá vislumbrado, em toda a sua amplitude, o interesse no uso do processo, podendo ocorrer um erro na subsunção dos factos ao direito ou nas conclusões de direito. No entanto, nesta situação, estamos reconduzidos ao primeiro vício que referimos: erro no julgamento.
Vejamos, agora, a suscitada obscuridade da fundamentação da decisão, no que tange à indicação, na parte dispositiva, de “corpo do artigo”, referido ao artigo 494.º do Código de Processo Civil.
Efectivamente, resulta do texto e do contexto da decisão que essa referência ao “corpo do artigo” é dirigida ao enunciado exemplificativo contido no artigo 494.º [“são dilatórias, entre outras, as excepções seguintes: (…)”].
A decisão recorrida inscreveu, processualmente, a detectada falta de interesse em agir no mencionado corpo do artigo 494.º, uma vez que, do ponto de vista processual, não existe uma positivação expressa no Código da qualificação desta excepção, tendo-se entendido, pela sua natureza, dada a relação com a necessidade de recurso à tutela judiciária de direitos e proximidade com os pressupostos processuais, que não deveria enquadra-se nas excepções peremptórias. Assim, assemelhou-se a falta de interesse em agir a uma excepção dilatória. É neste contexto que surge o significado de corpo do artigo 494.º do Código de Processo Civil, que se mostra claro, afastando qualquer possibilidade de dúvida ou obscuridade.
Face ao exposto, julgam-se improcedentes estes fundamentos do recurso.

Na decisão recorrida julgou-se ser impossível assentar ou retirar um qualquer efeito jurídico benéfico ou prejudicial aos Serviços requerentes com o pedido de declaração de caducidade da garantia, pelo que não teriam qualquer interesse em actuá-lo judicialmente. Em suma, foi decidido que da situação exposta nenhum direito, lesão, constrição ou minoração de direitos e interesses protegidos dos requerentes resulta – ou de outrem. Concluiu-se que a situação descrita configura uma ausência de interesse em agir, correspondente à concreta inaptidão do acto/omissão para causar lesão directa ou indirecta de um direito ou interesse protegido dos requerentes, que a situação descrita não detinha nem detém, não obviamente por si só considerada, mas no contexto oferecido quer pelo pedido formulado, em cotejo com a anterior denúncia da garantia.
Sustentam os Serviços Recorrentes ser evidente o seu interesse em agir através do pedido de reconhecimento da caducidade da garantia para conseguir a suspensão dos processos executivos sem a prestação de qualquer garantia.
Enquanto pressuposto processual, o interesse em agir – ou necessidade de tutela judiciária – (que se não confunde com a legitimidade) consiste na “(…) necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”, tendo o autor ou requerente interesse em agir ou interesse processual quando, face à situação de carência em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais (vide Antunes Varela, in Manual do Processo Civil, 2.ª edição, pag. 179).
Caracterizando-se o interesse em agir pela necessidade de fazer uso do processo, deverá ser apreciado pelo tribunal como questão prévia, no âmbito da análise dos pressupostos processuais.
Segundo tem vindo a ser entendido na doutrina e na jurisprudência, a falta desse pressuposto, ou seja, a falta de interesse em agir ou falta de interesse processual, constitui excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição da instância, tal como foi decidido pelo tribunal a quo (vide Abrantes Geraldes in Temas da Reforma de Processo Civil, 1.º vol., 2.ª edição revista e ampliada, pag. 264).
Assim, há falta de interesse em agir quando, entre o objecto da acção e o pedido formulado não existe uma situação de conflitualidade sobre o direito, uma situação de incerteza objectiva e grave sobre o direito de que o autor se arroga.
O interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, na real precisão de utilizar a arma judicial, representando o interesse em utilizar a acção judicial e em recorrer ao processo respectivo, para se ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária; sem o que a actividade jurisdicional seria exercitada em vão.
Mas, aquela necessidade de se socorrer das vias judiciais não deve ser considerada como a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas, também não bastará uma necessidade de satisfação de um mero capricho ou de um puro interesse subjectivo de obter uma decisão judicial. O que se exige é que, por força dele, exista uma necessidade justificada, razoável fundada de lançar mão do processo (cfr. Antunes Varela, in Manual do Processo Civil, 2.ª edição, pág. 183).
Ora, tendo em conta o que se disse supra, esquematicamente, sobre o interesse em agir, verifica-se que nos presentes autos estão presentes os seus pressupostos. Os Serviços Recorrentes pretendem que o tribunal reconheça que a garantia que prestaram caducou, pedido este suficientemente objectivado, já que o resultado pretendido se subsume à manutenção da suspensão dos respectivos processos de execução fiscal; reconhecimento esse a que a Fazenda Pública se opõe por, à data da apresentação do presente incidente, a garantia em causa se encontrar denunciada pelo banco; não podendo ser declarada a caducidade de uma garantia que já não existe desde 29/02/2012. Com este incidente os Recorrentes não revelam um mero capricho em obter uma decisão e a necessidade do mesmo mostra-se justificada, razoável e fundada; tanto mais que a declaração da caducidade da garantia não é proferida oficiosamente, tendo de ser requerida pelo interessado ao tribunal.
Vejamos.
Dispõe o artigo 169.º, n.º 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) que a execução ficará suspensa até à decisão do pleito em caso de reclamação graciosa, impugnação judicial ou recurso judicial que tenham por objecto a legalidade da dívida exequenda desde que tenha sido constituída garantia nos termos do artigo 195.º ou prestada nos termos do artigo 199.º ou a penhora garanta a totalidade da quantia exequenda e do acrescido, o que será informado no processo pelo funcionário competente.
Esta suspensão está também prevista genericamente no artigo 52.º da Lei Geral Tributária para os casos de pagamento em prestações, reclamação, recurso, impugnação da liquidação e oposição à execução que tenham por objecto a ilegalidade ou inexigibilidade da dívida exequenda.
Por outro lado, preceitua o artigo 103.º, n.º 4 do Código de Procedimento e Processo Tributário (na redacção da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho, aplicável ao caso subjudice) - que a impugnação tem efeito suspensivo quando, a requerimento do contribuinte, for prestada garantia adequada, no prazo de 10 dias após a notificação para o efeito pelo tribunal, com respeito pelos critérios e termos referidos nos n.ºs 1 a 5 e 9 do artigo 199.º.
Da conjugação destas normas podemos concluir, com segurança, que esta garantia, prestada para obter o efeito suspensivo da impugnação, valerá até à decisão final do pleito, entendendo-se por decisão final do pleito o trânsito da decisão final do processo de impugnação, ainda que seja interposto recurso judicial da decisão do tribunal de 1ª instância, ou, em caso de impugnação administrativa, quando se formar o chamado caso decidido ou resolvido, o que ocorre quando a decisão da Administração Tributária deixar de ser contenciosamente impugnável com fundamento em vícios geradores de anulabilidade - cfr., neste sentido, na doutrina, João António Valente Torrão, no seu Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, pag. 474, Rui Duarte Morais, in A Execução Fiscal, pag. 80, e Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e Processo Tributário anotado, vol. III, pag. 220.
Ora, se esta garantia, prestada para obter o efeito suspensivo da impugnação judicial, vale até ao trânsito da decisão final do processo de impugnação, não há razões para se considerar que o mesmo não suceda nas situações em que, estando já instaurado o processo executivo, a garantia tenha caducado por facto não imputável ao impugnante.
Aliás, só este entendimento se concilia com a ratio do instituto da caducidade da garantia, que se prende com a necessidade de acautelar e proteger os contribuintes da demora excessiva das decisões, quer na fase administrativa, quer na fase judicial.
É isso mesmo que decorre do fim visado pelo legislador ao elaborar a norma do artigo 183.º-A, n.º 1 do Código de Procedimento e Processo Tributário (redacção da Lei nº 30-B/2002, aplicável ao caso subjudice), que prevê a possibilidade de caducar a garantia que tivesse sido efectivamente prestada, por atraso na decisão do processo de reclamação graciosa ou nos processos de impugnação judicial ou de oposição à execução, mantendo-se, contudo o efeito suspensivo da execução.
Com efeito, com o intuito de «responsabilizar a administração e os tribunais na condução célere e expedita do processo» e de prevenir a «imposição ao contribuinte de um encargo oculto por razões que lhe são alheias (Proposta de Lei nº 53/VIII que esteve na origem da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.)» o legislador aditou ao Código de Procedimento e Processo Tributário o artigo 183.º-A, cuja redacção, alterada pela Lei n.º 30-B/2002, aplicável ao caso subjudice era a seguinte:
«1- A garantia prestada para suspender a execução em caso de reclamação graciosa, impugnação judicial, recurso judicial ou oposição caduca se a reclamação graciosa não estiver decidida no prazo de um ano a contar da data da sua interposição ou se na impugnação judicial ou na oposição não tiver sido proferida decisão em 1.ª instância no prazo de três anos a contar da data da sua apresentação.
2 - Os prazos referidos no número anterior são acrescidos em seis meses quando houver recurso a prova pericial.
3 - O regime do n.º 1 não se aplica quando o atraso resulta de motivo imputável ao reclamante, impugnante, recorrente ou executado.
4 - A verificação da caducidade cabe ao tribunal tributário de 1.ª instância onde estiver pendente a impugnação, recurso ou oposição, ou, nas situações de reclamação graciosa, ao órgão com competência para decidir a reclamação, devendo a decisão ser proferida no prazo de 30 dias após requerimento do interessado.
5 - Não sendo proferida a decisão referida no número anterior no prazo aí previsto, considera-se tacitamente deferido o requerido.
6 - Em caso de caducidade da garantia, o interessado será indemnizado pelos encargos suportados com a sua prestação, nos termos e com os limites previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 53.º da lei geral tributária».
Permitia-se assim ao interessado obter a declaração de caducidade da garantia, sem perder o efeito suspensivo da execução, se a reclamação graciosa em que fosse discutida a legalidade da liquidação não fosse decidida no prazo de um ano ou o processo de impugnação judicial em que fosse discutida essa legalidade ou de oposição à execução fiscal não fossem decididos, em 1ª instância, no prazo de três anos.
Nessas situações, em que se enquadra, aliás, o caso em apreço, o processo de execução fiscal continua suspenso, mesmo sem garantia, até ao momento em que estaria se a garantia se mantivesse, ou seja, até à decisão do pleito - cfr., adoptando este entendimento, Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., vol. III, pags. 341-342.
O que bem se compreende, pois o regime da caducidade da garantia estabelecido no artigo 183.º-A, nº 1 do CPPT é sancionatório da morosidade na decisão do procedimento tributário e do processo judicial pelas entidades competentes, sem deixar de salvaguardar, num justo equilíbrio, a sua não aplicação, quando o atraso resultar de motivo imputável ao reclamante, impugnante, recorrente ou executado - cfr. n.º 3 do artigo 183.º-A do CPPT.
Este périplo sobre os efeitos da caducidade da garantia revelam claramente o interesse dos Serviços Recorrentes no pedido de reconhecimento da mesma pelo tribunal.
O equívoco na decisão recorrida prende-se com a relevância da data em que este pedido de reconhecimento foi efectuado: após a denúncia da garantia pelo banco.
Não podemos olvidar, como ressalta do texto do n.º 1 do artigo 183.º-A do CPPT, que a caducidade da garantia é um efeito automático do decurso dos períodos nele referidos sem que seja proferida decisão no processo administrativo ou judicial, limitando-se o tribunal a verificar a caducidade, como se estabelece no n.º 4. Por isso, a intervenção do tribunal é meramente declarativa e não constitutiva – cfr. Jorge Lopes de Sousa, obra citada, em anotação ao artigo 183.º-A do CPPT.
A própria decisão recorrida refere-se à caducidade, pois estando em causa uma impugnação judicial apresentada em 03/04/2001, que foi objecto de decisão em primeira instância em 09/01/2007, é manifesto ter ocorrido há muito tempo a caducidade da garantia prestada.
Com a revogação do artigo 183.º-A do CPPT, operada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, deixaram de caducar as garantias prestadas em que não se tivesse completado o prazo necessário para ocorrer a caducidade. Ou seja, se no momento da entrada em vigor da lei nova não ocorreu ainda a caducidade, os requisitos para a sua ocorrência, ou não, são regulados pela lei nova.
No entanto, na situação em análise, estamos perante um caso em que os requisitos para ocorrer a caducidade se preencheram antes da revogação do artigo 183.º-A, pelo que continua a ser possível declarar a caducidade, uma vez que se trata de uma situação constituída ao abrigo da lei antiga.
Considerando que a impugnação judicial foi deduzida em 03/04/2001, é claro verificar-se a caducidade da garantia prestada.
Atentos os pressupostos previstos no artigo 183.º-A do CPPT, a caducidade em apreço operou-se na vigência do mesmo.
Vejamos.
Dispõe o n.º 1 do artigo 183.º-A do CPPT que a garantia prestada para suspender a execução caduca se na impugnação não tiver sido proferida decisão em 1.ª instância no prazo de três anos a contar da data da sua apresentação.
Efectivamente, nos presentes autos, somente foi proferida sentença em 1.ª instância em 09/01/2007.
Por outro lado, a letra da lei é clara no sentido de o prazo de três anos se contar a partir da interposição da impugnação, pelo que o segundo requisito também está presente.
Por último, na medida em que a impugnação judicial foi apresentada em 03/04/2001, dúvidas não restam que o prazo de três anos já decorreu, tendo a garantia prestada caducado em 03/04/2004.
Todo o exposto para concluir que a garantia em causa já havia caducado quando, em 17 de Novembro de 2011, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. comunicou a sua denúncia da garantia àquele processo executivo e, bem assim, aos S... e ao Município de ....
Como já mencionámos, a declaração da caducidade da garantia não é proferida oficiosamente, tendo que ser requerida pelo interessado, no caso de se tratar de processo judicial, ao tribunal. Mas recorda-se que o tribunal se limita a verificar a caducidade, sendo a sua intervenção meramente declarativa.
De todo o modo, na data em que os Recorrentes pedem, através do presente incidente, o reconhecimento da caducidade da garantia, tinham interesse no mesmo, tinham interesse em agir, porque, em 29/02/2012, a decisão proferida em 09/01/2007, no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 336/01, ainda não tinha transitado em julgado; pois tinha sido objecto de recurso, à data pendente no Tribunal Central Administrativo Norte – cfr. pontos 3. e 10. da factualidade apurada.
Ora, os Recorrentes mantinham interesse, até à decisão do pleito, que os processos de execução fiscal continuassem suspensos – cfr. efeitos da declaração de caducidade da garantia expostos supra.
Terminado o período de suspensão, a execução fiscal prosseguirá, no caso de improcedência total ou parcial da impugnação, na respectiva medida, ou terminará no caso de procedência total.
Assim, revela-se o interesse em agir da parte dos Serviços Recorrentes, motivo pelo qual o recurso há-de proceder.

Existindo interesse em agir, cabe, ainda, por último, consideradas as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso, verificar se se produziu deferimento tácito do pedido de reconhecimento da caducidade da garantia, uma vez que os Recorrentes apontam para a violação do disposto no artigo 666.º, n.º 1 do CPC, actual artigo 613.º.
A decisão sobre o requerimento tem de ser proferida no prazo de 30 dias e, se o não for, considera-se tacitamente deferida a pretensão de caducidade da garantia – cfr. artigo 183.º-A, n.º 4 e 5 do CPPT.
Este prazo conta-se nos termos do artigo 144.º do Código de Processo Civil (artigo 138.º do novo CPC), por força do disposto no artigo 20.º, n.º 2 do CPPT, pois o processo de execução fiscal tem natureza judicial na sua totalidade (artigo 103.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária). Assim, este prazo suspende-se em período de férias judiciais e, se terminar durante elas ou em sábado, domingo, feriado ou dia em que tenha sido concedida tolerância de ponto, o seu termo transfere-se para o primeiro dia útil subsequente – cfr. Jorge Lopes de Sousa, in obra citada, em anotação ao artigo 183.º-A do CPPT.
Assim, o prazo de 30 dias para ser proferida decisão sobre o pedido de declaração de caducidade da garantia conta-se da data da apresentação do requerimento do interessado, independentemente de ser ou não necessário realizar quaisquer diligências para apurar se decorreu o prazo de caducidade.
Nesta conformidade, tendo o requerimento deste incidente sido apresentado em 29/02/2012 e tendo sido proferida decisão sobre o mesmo em 21/06/2012, é evidente o decurso do prazo de 30 dias sem que tenha sido proferida decisão; considerando-se o requerimento tacitamente deferido.
A formação de deferimento tácito equivale a uma decisão expressa de deferimento do requerimento de declaração de caducidade da garantia e o juiz deve declará-lo, oficiosamente ou a requerimento do interessado.
O juiz a quo, ao invés de expressamente declarar ter-se formado deferimento tácito, optou por absolver a Fazenda Pública da instância.
Efectivamente, como bem apontam os Serviços Recorrentes, sendo este deferimento tácito equivalente a uma decisão expressa de deferimento, estará sujeito ao regime de esgotamento do poder jurisdicional quanto à matéria sobre que recaiu o deferimento – cfr. artigo 666.º, actual 613.º do CPC.
Logo, o tribunal a quo não podia, por estar esgotado através da decisão tácita o poder jurisdicional, sem que tenha sido impugnado o tacitamente decidido, reapreciar se o pedido deveria ou não ser deferido e corrigir o eventual erro do deferimento tácito, substituindo-o por outra decisão, como ocorreu na situação em análise – cfr. Jorge Lopes de Sousa in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, vol. II, Áreas Editora, 2007, páginas 254 e 255.
Nesta conformidade, também por este motivo, o presente recurso merece provimento.

Conclusões/Sumário

I. No processo judicial tributário, o vício de oposição entre os fundamentos e a decisão, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artigo 125.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Este vício tem como premissa a eventual violação do necessário silogismo judiciário que deve existir em qualquer decisão judicial, tendo lugar somente quando os fundamentos da sentença devam conduzir, num processo lógico, a uma decisão oposta ou, pelo menos, diferente da que foi adoptada.
II. O interesse em agir consiste na necessidade de se usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.
III. Tem interesse em agir a parte que formula pedido de reconhecimento de caducidade de garantia bancária, no âmbito da vigência do artigo 183.º-A do CPPT, mesmo após denúncia da mesma pela instituição bancária, se tiver em vista, nomeadamente, a manutenção da suspensão do processo de execução fiscal até à decisão final do pleito subjacente.
IV. Formando-se acto de deferimento tácito do pedido de reconhecimento de caducidade de garantia, estará sujeito ao regime de esgotamento do poder jurisdicional quanto à matéria sobre que recaiu o deferimento, por ser equivalente a uma decisão expressa de deferimento.

IV - Decisão

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

Sem custas.

D.N.
Porto, 30 de Outubro de 2014
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Fernanda Esteves