Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:03636/04-Viseu
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/14/2012
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro
Descritores:FACTURAS FALSAS
ÓNUS DA PROVA
Sumário:No caso de facturas falsas à administração tributária compete fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, e só caso a faça, passa a competir ao contribuinte o ónus da prova da existência e dimensão dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito de dedução do imposto nos termos do art. 19.º do CIVA.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:C..., Lda.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
C…– CORTIÇAS E ROLHAS, LDA., contribuinte fiscal n.º 5…, com sede em Paços de Brandão, Santa Maria da Feira, não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação deduzida contra as liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) dos anos de 1997 e 1998, interpôs o presente recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
«A) Na impugnação apresentada, a recorrente começa por invocar vício de forma, por falta de fundamentação, decorrente do facto do relatório da fiscalização não se mostrar devidamente fundamentado quanto ao modo como procedeu à qualificação dos factos tributários que por via do recurso a correcções técnicas se não aceitou os valores declarados em sede de IVA pelo sujeito passivo nos exercícios de 1997 e 1998.
B) A decisão recorrida, como se extrai da sua leitura, é completamente omissa quanto a essa questão.
C) Deverá, assim, ser anulada a decisão recorrida, por completa ausência de pronúncia quanto ao invocado vício de forma, por falta de fundamentação.
D) A decisão enferma de erro de julgamento quanto à matéria de facto na medida em que o tribunal não valorizou devidamente a prova documental junta aos autos pela recorrente, dispensando a prova testemunhal, inflacionado o valor dos factos e dos juízos de valor constantes do relatório da inspecção, conferindo força probatória plena a informações oficiais, não devidamente fundamentadas, de acordo com critérios objectivos.
E) E fez ainda errada aplicação das regras do ónus da prova, porquanto, antes de se poder onerar a recorrente com a prova de que as facturas em causa correspondiam a transacções efectivas, era à administração tributária que cabia demonstrar que tais facturas diziam respeito a operações simuladas, ou que se verificava qualquer outra situação que pudesse fundar legalmente o recurso às correcções técnicas, necessidade essa de prova que decorre da lei e está de acordo com a regra geral de repartição do ónus da prova e com a presunção de veracidade das declarações dos contribuintes.
F) Sem bem atentarmos no relatório da inspecção junto aos autos relativamente aos exercícios de 1997 e de 1998 a Administração não verificou facto algum susceptível de por si ou acompanhados de outros elementos da escrita da impugnante fazer cessar a presunção de verdade de que goza a escrita da impugnante que se diz correcta e formalmente organizada.
G) O que a AT releva e a sentença confirma em sede de IVA é a mera convicção do agente fiscalizador exarada a folhas … dos autos no relatório onde afirma ser sua convicção que o fornecedor F… vendeu as facturas que a sociedade impugnante necessitava para titular as compras de cortiça que fez a outros sem liquidação de IVA.
H) O facto do técnico que elaborou o relatório não ter encontrado o fornecedor não permite concluir que não exerceu actividade nos exercícios em que foram emitidas as facturas, nem que não vendeu as rolhas documentadas pelas facturas constantes da escrita da impugnante.
I) A diferença no número de rolhas referida pelo técnico que elaborou o relatório não tem também por suporte qualquer documento, pelo que não pode merecer a credibilidade inabalável que lhe atribui a decisão recorrida.
J) Constata-se do exposto que do relatório de fiscalização não resultam factos indiciadores de simulação de vendas de cortiça à impugnante nos exercícios de 1997 e de 1998. Não logrou assim a Administração Tributária cumprir com o ónus de provar os pressupostos de facto que a legitimassem a corrigir o IVA desses exercícios, pelo que a sua actuação deve ter-se por ilegal.
L) Não foram dados como provados na sentença factos concretos suficientes para retirar a conclusão de que estavam reunidos os pressupostos para a não-aceitação da dedução do IVA constante das facturas do fornecedor F….
Deverá, assim, ser dado provimento ao presente recurso, anulando a decisão recorrida por omissão de pronúncia, ou por se concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas».
Não houve contra-alegações.
Neste Tribunal o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Questões a decidir:
-Saber se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia.
- Saber se o Tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto.
- Saber se a sentença recorrida errou o julgamento ao considerar que as facturas emitidas por F… não correspondem a transacções reais.
A questão do erro do julgamento da matéria de facto apenas será analisada se se mostrar pertinente para a decisão da última questão enunciada, tendo em conta as regras da repartição do ónus da prova.
II– FUNDAMENTAÇÃO
II.1. DE FACTO
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu deu como provada a seguinte factualidade:
«A) A Impugnante, sociedade por quotas do tipo familiar (marido e mulher) teve como actividade a produção e comercialização de rolhas e outros artigos de cortiça, comercialização de sacos de ráfia e fio e prestação de serviços nomeadamente de cozedura de cortiça, cfr. último § de fols. 27, correspondente a fls. 3 do Relatório de Inspecção (cuja cópia constitui fols. 25 e segs.), aqui dado por reproduzido, o mesmo se dizendo dos demais elementos infra referidos, Facto não contestado pela Impugnante;
B) A partir do período 98/03 a actividade da Impugnante começou a diminuir encontrando-se em 2000 praticamente inactiva, sendo nesse ano as únicas operações activas realizadas a venda de imobilizado; em 2001 as declarações periódicas foram enviadas a zeros; em 16-10-2001 foi apresentada declaração de cessação para efeitos de IVA, reportada a 2001/09/31 e, aquando da realização da acção inspectiva que decorreu entre 27-03-2002 e 08-07-2002 encontrava-se inactiva, vide fols. 2 a 4 do já aludido relatório e no demais idem anterior;
C) A acção inspectiva vinda de referir ocorreu a coberto da Ordem de Serviço n°31450 de 2002-03-06, “visou a análise do pedido de reembolso de IVA, no valor de 23 361 706$00 (116 527,69€), relativo ao período de 98/03. O motivo que a determinou foi o facto de se ter verificado tratar-se de um contribuinte indiciado em processo crime, por utilização de facturas com indícios de não corresponderem a verdadeiras transacções comerciais. Este reembolso está afectado por reportes de IVA desde o período de 97/02 existindo por isso, probabilidade de terem sido utilizadas facturas de fornecedores que constam do referido processo... “, cfr. fols 26;
D) No período abrangido pela inspecção, os anos de 97 a 2001, as aquisições da Impugnante “foram quase na totalidade oriundas do mercado nacional, enquanto que as suas vendas foram maioritariamente directamente para o mercado comunitário, daí a razão do seu crédito de imposto em relação ao IVA”, vide fols. 28;
E) Em sede de IVA esteve enquadrada no regime normal de periodicidade mensal até 31/12/2000 passando a periodicidade trimestral a partir dessa data, idem anterior;
F) No ano de 1997 os principais fornecedores da Impugnante foram Corticeira B… Lda.; S…; N…; Sociedade de Cortiças B…. e F…, cfr. fols. 32 e 33
G) A Inspecção solicitou à Impugnante que pedisse aos bancos fotocópias frente e verso dos cheques emitidos aos fornecedores ao que Ela respondeu: “... não nos é possível uma vez que a nossa empresa já está cessada, estando a conta bancária inactiva e sem saldo para tais despesas. Caso estejam interessados em suportar essas mesmas despesas, faremos o pedido ao banco.”. Dada a resposta “e os prazos a que nos encontramos vinculados, e tendo constatado, como adiante se verificará, que em 1997 não foi seguido o “esquema” financeiro que permitiu aos Inspectores Tributários... pôr em causa a veracidade das operações realizadas em 93, 94 e 95 {... o pagamento de facturas emitidas processava-se através da emissão por parte da C… Lda. de 1, 2 ou mais cheques por cada factura. Geralmente um dos documentos correspondia mais ou menos a 50% do IVA facturado (valor este que funcionava como comissão pelo ‘favor’ da emissão da factura simulada utilizada na Compra). Os valores do outro ou outros cheques, depois de descontados na Instituição bancária pelo “teórico beneficiário revertia novamente em “numerário” à “C…, Lda. “ Contabilisticamente a “C…, Lda. simulava o recebimento dos restantes valores excedentes à “comissão”, através da movimentação a crédito duma conta de “empréstimo de sócios” (suprimentos) - conta 255.1.02*3 - SARL Le Bouchon Europeen... }; no exercício de 1997, nos primeiros meses, embora a conta 255.1.02*3 tenha sido movimentada da mesma forma, o valor total do ano dos movimentos credores (42 695.000$00) foi bastante inferior ao montante dos fornecimentos efectuados pelos sujeitos passivos indicados na acção anterior, ... consultamos os processos existentes no arquivo da D Finanças de Aveiro, de cada um dos sujeitos passivos, entenda-se dos referidos fornecedores, e o sistema informático da DGCI, com o objectivo de avaliar a veracidade das transacções, vide fols. 32,33 e 38;
H) Relativamente aos ditos Fornecedores:
quanto ao N… não foi posta em causa a veracidade das vendas efectuadas.;
Quanto aos demais, á excepção de F…, concluiu a Inspecção que não tendo possibilidade de em tempo útil possuir por outras vias fotocópias dos cheques, frente e verso, não temos como contrariar a veracidade das transacções, cfr. fols 34 a 37;
I) No que respeita a F… Pinto a Inspecção relatou:
“Este contribuinte encontra-se cessado para efeitos de IVA desde 20-09-1997... e a partir do período 97/12T (inclusive) não enviou qualquer declaração periódica de IVA.
Foi objecto de acção inspectiva ... em relação aos anos de 94 e 95... No relatório ... é referido que houve um primeiro contacto com este contribuinte em 04/03/96, sendo a acção interrompida. Quando retomada, em 11/09/97, as pastas com os documentos dos anos de 95 e anteriores, tinham sido levantadas do gabinete de contabilidade que o apoiava, pelo próprio F…. Visitaram então as instalações fabris situadas em Paços de Brandão e encontraram-nas encerradas e sem vestígios de laboração há algum tempo.

Deslocámo-nos à morada indicada nas facturas, sede social do empresário e falámos com a sua sogra U…, que nos informou que F… não vive ali há muito tempo, desconhecendo o seu paradeiro. Informou-nos também que apesar da sua sede social ser naquela morada ele nunca laborou ali, indicando-nos o local onde este exerceu a sua actividade. Deslocámo-nos então a Paços de Brandão, local das instalações que tinham sido ocupadas por este contribuinte. Deparamo-nos com um pequeno pavilhão com indícios de não estar a ser utilizado há bastante tempo. Ouvimos o senhorio que em auto de declarações, em anexo n° 12, referiu que aquelas instalações tinham sido abandonadas por F… em Abril de 1996. Referiu também que a partir daquela data nunca mais viu este empresário, que se contava que o mesmo estaria em Espanha.
… notificamos o contribuinte em 13-06-2002, para este proceder à exibição da sua escrita no dia 28 de Junho de 2002. A carta enviada veio devolvida com a indicação “mudou-se”
Apesar de efectuarmos todas as diligências possíveis para encontrarmos este empresário não o conseguimos, tendo como única informação (do senhorio) que este em 1997 não trabalhava ali. A sua sogra, U…, apenas nos indicou este local como únicas instalações deste, o que nos leva a concluir que quando emitiu as facturas de 1997 já não se encontrava a laborar...”, vide fols. 35 e 36;
J) Atendendo, fundamentalmente ao referido em I) a Inspecção entendeu não deverem ser “considerado em 1997 os custos documentados pelas facturas emitidas por este sujeito passivo, no montante de Esc. 14 590 550$00 (72 777,36€), não sendo também aceite o IVA deduzido com base nestes documentos de Esc. 2 480 393$00 (12 373,15€), o que originou as liquidações em causa nestes autos, cfr. fols. 43, 44, 48 e 11;
K) As facturas referidas em J), mais a n° 268, foram processadas sob a forma legal, em conformidade com os requisitos do n° 5 do artigo 350 do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado e foram impressas em tipografias autorizadas, sob a forma legalmente instituída; o emitente emitiu também recibos sob a forma legal dando quitação aos valores facturados, à excepção da factura n° 277; com excepção das facturas n°s 264, 265 e 277, que não se sabe que meio de pagamento foi usado para as pagar, as demais constam pagas através de cheques, vide fols.158 a 187;
L) Relativamente ao financiamento da Impugnante a Inspecção concluiu: “Desagregando as contas “234 empréstimos” e a conta “25 - empréstimos de sócios” concluímos que o financiamento desta empresa passa apenas por duas entidades... SARL Le Bouchon Europeen e F…, tendo a evolução da conta de empréstimos a seguinte expressão: O saldo em 31-12-97 foi 340 963 300$00, no final de 98 atingiu 220 064 390$00, em 1999 foi de 196 264 390$00 e em 2000 atingiu o valor de 303 464 390$00. Até finais de 1997 o financiamento da empresa foi feito à custa dos suprimentos dos sócios, sendo a sociedade francesa (de que F… é representante legal) a que desempenhou o papel de financiadora. Os documentos que suportaram os movimentos a crédito nesta conta foram talões de depósito do banco relativos a entregas em numerário.
Em 31/12/97 é registado na contabilidade c transferência do crédito que a SARL Le Bouchon Europeen detém sobre a C… a favor de F… o único financiador da empresa no montante total de 342 924 300$20, ficando assim a partir desta altura F… o único financiador da empresa....
...desconhecemos qual a sua fonte de rendimentos uma vez que os que declara para efeitos fiscais são manifestamente insuficientes. Nos anos de 97 a 2001 ele e a esposa declararam de rendimentos brutos, Cat A/IRS, em €s 20 771,85; 24 291,34: 26 317,27; 27231,36 e 29583,71.
Estas contas de “empréstimos” são também movimentadas de acordo com as necessidades contabilísticas de evidenciar saldos “razoáveis” ou proceder a “acertos” nas contas. A ilustrar o que acabamos de referir veja-se o que aconteceu em 31-12-99 com o movimento interno n° 168 (anexo 18). Este lançamento teoricamente reflecte a “liquidação de um empréstimo” de F… no montante de 20 800 000$00, feito em “dinheiros” (através da conta Caixa). De facto se verificarmos o saldo da conta “Caixa “, caso este movimento não tivesse ocorrido, apresentaria em 31/12/99 um saldo devedor anormalmente elevado o que só por si indicia factos anómalos. Veja-se anexo 19.
Situação idêntica é a que ocorrem em 31/12/98 suportada no movimento interno n° 1664. Neste lançamento o que se pretende é que o saldo contabilístico da conta Bancos - “126 - BESCL “- seja igual ao saldo constante do extracto bancário desta conta para que haja conciliação entre as contas (anexo n°20), vide fols 27, especialmente o 3º § e fols. 37 a 39
M) A Inspecção realizou um controlo quantitativo de compras e vendas de produtos fabricados que lhe permitiu concluir:
Que em 1997 “o n° de rolhas compradas é superior ao n° de rolhas vendidas em 29 952 550 unidades. Neste ano apesar de não possuirmos inventário, que nos indique as quantidades de rolhas em existência final, para comparar com este n° o valor contabilizado da mesma é de 4 078 809$00, o que, como é obvio é impossível de corresponder à diferença encontrada. Anote-se que o preço médio das unidades compradas ronda os 1250$00/milheiro”, cfr. fols. 45;
N) Foi a Impugnante notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 60° da Lei Geral Tributária mas não exerceu o direito de audição, vide entre outros fols. 56
O) O prazo de pagamento voluntário das liquidações em causa nestes autos terminou em 30-11-2002, cfr. quadro constante de fols. 11;
P) A presente Impugnação foi deduzida no dia 28 de Fevereiro de 2003, vide carimbo aposto na primeira folha da PI,, ou seja a fols. 1 do processado.».
II.2. DE DIREITO
II.2.1. Nulidade por omissão de pronúncia
A recorrente começa por arguir a nulidade da sentença por omissão de pronúncia dizendo que «Na impugnação apresentada, a recorrente começa por invocar vício de forma, por falta de fundamentação, decorrente do facto do relatório da fiscalização não se mostrar devidamente fundamentado quanto ao modo como procedeu à qualificação dos factos tributários que por via do recurso a correcções técnicas se não aceitou os valores declarados em sede de IVA pelo sujeito passivo nos exercícios de 1997 e 1998.» e que «A decisão recorrida, como se extrai da sua leitura, é completamente omissa quanto a essa questão.».
Nos termos do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) a sentença é nula quando há falta de pronúncia sobre as questões que o juiz deva apreciar - também prevista no artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC).
O juiz deve conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – artigo 660.º, n.º 2 do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
Analisada a petição inicial verifica-se que esta termina com o pedido de anulação da liquidação, requerendo a impugnante que para esses efeitos seja ordenada «1. A declaração de nulidade do acto de lançamento e liquidação adicional de IVA referente aos exercícios de 1997 e 1998 por vício de forma (ausência de fundamentação subsistente e adequada) …».
Alega para tanto nesse articulado, em síntese, que «… do ponto de vista material, não se carreia no RELATÓRIO factos objectivos e concretos que justifiquem o juízo formado de que as facturas daqueles agentes são falsas/fictícias» e que «O relatório de exame desvirtua os princípios fundamentais de direito fiscal e só aparentemente contém os fundamentos da tributação (liquidação adicional de IVA) – o que consideram de meio de prova, carece de fundamentação e correspondência à realidade, o que constitui manifesto vício de forma, preterição de formalidades legais».
Parece-nos claro que a impugnante confundiu na petição inicial, e também agora em sede de recurso, a fundamentação formal com a fundamentação material.
Distinguindo a dimensão formal e a dimensão substancial do dever de fundamentação, Vieira de Andrade, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, 1991, p. 231, refere que a diferença está «em que o dever formal se cumpre pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis; enquanto a fundamentação material exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo» (sublinhado nosso).
Um acto está fundamentado (formalmente) quando permite dar a conhecer ao seu destinatário os motivos que determinaram a administração a decidir naquele sentido e não noutro. Saber se esses motivos são ou não suficientes ou se são ou não verdadeiros já tem a ver com a fundamentação material.
Ora, o recorrente não invoca na petição inicial que não sabe porque é que a administração tributária conclui pela falsidade das facturas. O que refere é que os elementos não chegam para suportar essa conclusão. Deste modo, não põe em causa a fundamentação formal, mas antes a fundamentação material. Apesar de invocar o vício formal, a matéria alegada não o consubstancia – e o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – artigo 664.º do Código de Processo Civil.
O que o Tribunal Tributário de 1ª Instância tratou foi exactamente da fundamentação material do acto, a matéria que a parte havia submetido à sua apreciação, embora apelidando-a, erradamente, como vimos, de vício de forma, não havendo assim omissão de pronúncia.
II.2.2. Erro no julgamento da falsidade das facturas
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu julgou improcedente a impugnação judicial apresentada pela recorrente relativamente às liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) dos exercícios de 1997 e 1998, correspondente a imposto deduzido indevidamente nos termos do n.º 3 do artigo 19.º do Código do IVA – imposto deduzido com base em facturas a que não correspondem operações reais.
A administração tributária concluiu que o imposto mencionado nas facturas emitidas por F… foi indevidamente deduzido pelo impugnante nos termos do n.º 3 do artigo 19º do Código do IVA, por a elas não corresponderem transacções reais, o que deu origem às liquidações impugnadas.
Dispõe o artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA que «Não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente».
A questão que agora se nos coloca no presente recurso é saber se o Tribunal recorrido errou o julgamento ao considerar que as facturas daquele emitente são falsas, no sentido de que não traduzem transacções reais.
Como tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal Central Administrativo Norte, quando a administração tributária desconsidera as facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (LGT), competindo à administração tributária, fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade.
Feita esta prova, passa a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção - cfr. Acórdãos do TCA Norte de 24-01-2008, processo n.º 01834/04 Viseu, de 24-01-2008, processo n.º 2887/04 Viseu, de 27-01-2011, processo n.º 455/05.7BEPNF e de 18-03-2011, processo n.º 456/05BEPNF.
De notar que a administração tributária não precisa de demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência daquele juízo (Acórdão do STA de 27-10-2004, processo n.º 810/04), invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas serem simuladas, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade – artigo 75.º da LGT.
O Tribunal recorrido considerou que a administração tributária havia carreado factos suficientemente indiciadores da falsidade das facturas apontando para as alíneas I, M, C, G, J, e L do probatório.
Acontece que para além do que consta da alínea I do probatório, as demais alíneas, todas elas partes do relatório da inspecção, não respeitam ao emitente da factura e não foram invocadas para demonstrar a falsidade das facturas.
Nesta alínea I do probatório, depois de a administração tributária referir que relativamente a outros emitentes «não temos como contrariar a veracidade das transacções» por não ter possibilidade de em tempo útil possuir por outras vias fotocópias dos cheques, frente de verso, consta como indicador da falsidade das facturas emitidas pelo F…:
- o contribuinte encontra-se cessado para efeitos de IVA desde 20-09-1997;
- a partir do período 97/12T (inclusive) não enviou qualquer declaração periódica de IVA;
- as pastas com os documentos de 1995 e anteriores foram levantadas do gabinete de contabilidade que o apoiava pelo próprio;
- As instalações fabris situadas em Paços de Brandão encontravam-se encerradas e sem vestígios;
- no local indicado como sede social indicado nas facturas a sogra informou que ele não vive ali há muito tempo desconhecendo o seu paradeiro;
- o senhorio referiu que as instalações tinham sido abandonadas por F… em Abril de 1996;
- e que a partir daquela data nunca mais viu o empresário, que se contava que estaria em Espanha;
- foi notificado o F… para proceder à exibição da sua escrita e a carta veio devolvida com indicação “mudou-se”.
Tais factos não são suficientemente indiciadores da falsidade das facturas, não têm força para, só por si, abalar a presunção da veracidade dos elementos da escrita da impugnante: eles resumem-se ao desconhecimento, na altura em que foi a fiscalização à impugnante (em 2002), do paradeiro do emitente das facturas, ao encerramento das instalações fabris do emitente das facturas – o que tendo em conta o tempo decorrido desde a emissão das facturas (1997 e 1998) não são elementos relevantes -, e à indicação do senhorio que o F…, em 1997, não trabalhava nas instalações por ele arrendadas. Ora, o facto de o emitente não trabalhar naquelas instalações (que haviam sido indicadas pela sogra) em 1997, não afasta a hipótese de o ter feito noutra(s).
Entendemos, assim, que ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal recorrido, a administração tributária não logrou demonstrar, como lhe competia, os pressupostos da sua actuação, havendo um manifesto défice investigatório, o que acarreta a ilegalidade das liquidações que terão de ser anuladas (decisão que torna inútil a apreciação do erro de julgamento da matéria de facto).
III – DECISÃO
Em conformidade como exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a impugnação procedente, anulando em consequência as liquidações impugnadas .
Sem custas.
Porto, 14 de Março de 2012
Ass. Paula Ribeiro
Ass. Fernanda Esteves
Ass. Álvaro Dantas