Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00072/01 - COIMBRA
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/02/2005
Relator:Dulce Neto
Descritores:RECURSO APLICAÇÃO COIMA - LEI Nº 51-A/96, 09/12 - CRIME E CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
Sumário:1. Nos casos em que o mesmo facto é susceptível de integrar responsabilidade criminal e responsabilidade contra-ordenacional fiscal, mas em que não chega a ser recebida a acusação no processo penal, torna-se inaplicável o disposto nos artigos 82º do DL nº 433/82, 231º e 193º al. d) do CPT e art. 61º al. d) do RGIT.
2. O disposto na Lei nº 51-A/96, de 9.12 é apenas aplicável aos crimes fiscais nela previstos, não sendo admissível a sua interpretação extensiva ou analógica, pelo que não pode aplicar-se a contra-ordenações fiscais.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Ministério Público recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Mmº Juiz do T.A.F. de Coimbra que julgou procedente o recurso judicial que a sociedade “L.., S.A.” interpusera da decisão administrativa de aplicação de coima pela prática de uma infracção prevista pelo art. 26º nº 1 do CIVA e punida pelo art. 29º nºs 2 e 9 do RJIFNA.
Terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
1. À Sociedade “L.., S.A.”, foi aplicada uma coima, pela prática de factos que integram a contra-ordenação referenciada nos autos.
2. Não se conformando com o despacho através do qual foi aplicada aquela coima, a dita sociedade interpôs dele recurso contencioso para este tribunal, pedindo a respectiva anulação, alegando, para o efeito, além do mais, que é estranho ao objecto deste recurso, alegando, em síntese que, mostrando-se aqueles factos susceptíveis de integrar o crime de abuso de confiança fiscal e tendo-se extinto a sua responsabilidade criminal em virtude de ter, entretanto, aderido ao regime de regularização de impostos em atraso, previsto no DL nº 124/96, de 10.8, tal como foi declarado num inquérito que decorreu termos do DIAP de Coimbra, para conhecer daquele eventual crime, tal extinção de responsabilidade criminal determina, por consumpção, a extinção da responsabilidade contra- ordenacional.
3. A Srª Juíza recorrida, invocando as normas constantes dos artigos 82º do DL nº 433/82, de 27/10, 231º e 193º alínea d), ambos do CPT, 61º, alínea d) do RGIT e 2º e 3º do DL nº 51-A/96, de 9/112, decidiu julgar extinto o procedimento contra-ordenacional em causa, desse modo dando provimento ao aludido recurso contencioso “por força da conjugação de todos os supra-mencionados preceitos legais”.
4. Sucede, por um lado, que a decisão a proferir neste processo, nada tem a ver com a proferida no inquérito crime, desde logo porque o objecto deste processo é diverso do do citado inquérito, pois diversos são os factos que originaram os mesmos, circunstância que, de per si, põe desde logo em crise a conexão que, de forma ilegal se estabeleceu entre ambos.
5. Mas, ainda que assim se não entendesse, sempre se deveria concluir, por outro lado, que as normas, aludidas na conclusão 3ª são inaplicáveis “in casu”.
6. Efectivamente, no que concerne às normas constantes dos nºs. 1 dos artigos 82º do DL nº 433/82 e 213º do CPT – onde se preceitua que a “decisão da autoridade (...) que aplicou a coima caduca quando o arguido for condenado em processo criminal pelo mesmo facto” – são as mesmas inaplicáveis ao caso em apreço, desde logo porque a citada sociedade não chegou sequer, a ser objecto de qualquer acusação, pelo que não poderia ter sido condenada, como efectivamente não foi.
7. Também as normas dos artigos 193º, alínea d) do CPT e 61º, alínea d) do RGIT – onde se dispõe que o procedimento contra-ordenacional se extingue em resultado do recebimento de acusação em processo crime – se não aplicam neste caso, visto que, como atrás se referiu, nem sequer foi deduzida acusação, no supra-citado inquérito.
8. Finalmente, para decidir como decidiu, a Srª Juíza “ a quo” também aplicou, ao caso objecto destes autos, as normas dos artigos 2º e 3º da Lei 51-A/96, de 9.12, sustentando, para o efeito, que “embora não contendo uma referência expressa aos procedimentos contra-ordenacionais estes preceitos, na medida em que se aplicam os crimes fiscais e ao processo penal, devem aplicar-se igualmente ao processo “sub judice”, por maioria de razão, na medida em que o mais engloba o menos”.
9. E não observou, como devia, o consignado no artigo 1º da mesma Lei que é imperativo ao preceituado, e inequivocamente, que tal diploma só é aplicável “aos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e frustração de créditos fiscais” e não também às contra-ordenações sendo certo que, se o legislador quisesse que tal diploma abrangesse, também, estas, tê-lo-ia referido expressamente, ao invés de restringir a sua aplicação aqueles crimes. Efectivamente, tratando-se de norma excepcional, e especial, é insusceptível de aplicação analógica ou, sequer, de interpretação extensiva.
10. Em conclusão, a Srª Juíza violou, e por erro de aplicação e de interpretação, as normas referenciadas na conclusão 3ª bem assim a constante do artigo 1º da lei nº 51-A/96, por se tratar unicamente de um diploma aplicável a certos crimes fiscais e não também às contra-ordenações.
11. Daí que a decisão recorrida deva ser revogada e substituída por douto acórdão, através do qual se negue provimento ao recurso contencioso interposto pela mencionada sociedade.
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O recorrido apresentou contra-alegações para pugnar pela manutenção do julgado e, ainda, para sustentar que a decisão de aplicação da coima é nula por não conter os elementos que contribuíram para a fixação da coima aplicada, não tendo sequer referenciado a situação económica do agente, nulidade que, por ser de conhecimento oficioso e cognoscível até que seja proferida decisão definitiva deve ser apreciada e decidida pelo tribunal de recurso.
Por decisão proferida a fls. 71/73 o S.T.A. declarou-se incompetente, em razão da hierarquia, para o conhecimento do recurso, na consideração de que este não versava exclusivamente matéria de direito, declarando competente para o efeito este T.C.A.N.
Colhidos os legais vistos, cumpre decidir.
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Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
- a) - Foi levantado o auto de notícia de fls. 2, em 12/11/96, que aqui se dá por reproduzido e condenada a recorrente, por decisão de 04/12/00, na coima de 210.000$00 (duzentos e dez mil escudos) por não ter entregue a prestação tributária do IVA de Fevereiro de 1996, no montante de 1.053.547$00, cujo prazo de pagamento terminou em 30/04/96 – cfr. fls. 2 e 9.
- b) - Em 04/12/96 a recorrente requereu o pagamento das dívidas ao abrigo do regime do DL nº 124/96, de 10 de Agosto, sendo que o plano de pagamento prestacional ao Estado foi deferido por despacho de 17/04/97 – cfr. fls. 22 dos autos.
- c) - A recorrente foi notificada para efeitos do artigo 199º do CPT em 14/02/97 – cfr. fls. 4 dos presentes autos.
- d) - O imposto foi pago em 31/03/00, ao abrigo do DL nº 124/96 – cfr. fls. 8.
- e) - O processo crime foi arquivado em 12/05/00 – cfr. fls. 27.
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Tal como resulta da leitura dos autos, à sociedade “L.., S.A.”, foi aplicada uma coima de 210.000$00 pela prática de uma infracção prevista pelo art. 26º nº 1 do CIVA e punida pelo art. 29º nºs 2 e 9 do RJIFNA, consubstanciado no facto de não ter entregue a prestação tributária do IVA de Fevereiro de 1996.
Não se conformando com essa decisão, a dita sociedade interpôs recurso para o TAF de Coimbra, pedindo a respectiva anulação com fundamento, além do mais, na circunstância de os factos que lhe são imputados serem susceptíveis de integrar o crime de abuso de confiança fiscal e de a respectiva responsabilidade criminal já se ter extinto em virtude de ter aderido ao regime previsto no DL nº 124/96, de 10.8, pelo que igualmente se teria de considerar extinta a sua responsabilidade contra- ordenacional.
A sentença recorrida acolheu essa tese e, invocando os artigos 82º do DL nº 433/82, de 27/10, 231º e 193º al. d) do CPT e arts. 61º al. d) do RGIT e 2º e 3º do DL nº 51-A/96, julgou extinto o procedimento contra-ordenacional.
Posto que, tal como resulta do teor das conclusões de recurso, o Ministério Público não se conforma com o decidido, a questão que importa conhecer traduz-se em saber se a decisão de julgar extinto o procedimento contra-ordenacional tem ou não apoio legal nos citados normativos, o que passa ainda por saber se à responsabilidade contra-ordenacional e respectivo procedimento é ou não aplicável a Lei nº 51-A/96.
O art. 82º do DL nº 433/82, de 27/10 e o art. 231º do CPT dispõem que a decisão da autoridade fiscal que aplicou a coima caduca quando o arguido for condenado em processo criminal pelo mesmo facto. E o art. 193º al. d) do CPT e 61º al. d) do RGIT estabelecem que o procedimento por contra-ordenação se extingue com a acusação recebida em procedimento criminal.
Ora, tal como já foi decidido no Acórdão deste TCAN proferido em 12/05/05, no Processo nº 67/01, em que interviemos como 2ª Adjunta (e que tratou situação idêntica em processo contra-ordenacional instaurado contra a mesma arguida) tais normais são inaplicáveis ao caso, dado que, como ficou como provado na alínea e) do probatório, o processo crime instaurada contra a arguida foi arquivado, não tendo havido acusação nem condenação.
Por outro lado, quanto ao art. 2º da Lei nº 51-A/96, e tal como a jurisprudência tem salientado uniformemente, este é apenas aplicável a crimes fiscais e não a contra-ordenações fiscais (cfr., entre tantos outros, os Acs. do STA de 10/11/99, no Proc. nº 23.675; de 12/01/00, no Proc. nº 23.621; de 15/06/00, no Proc. nº 24.927; de 4/10/00, no Proc. nº 24.947; de 8/11/00, no Proc. nº 25453; de 28/02/01, no Proc. nº 25.725; de 21/02/01, no Proc. nº 25.761; e Acórdãos do TCA de 29/09/98, no Proc. nº 690/98; de 25/05/00, no Proc. nº 3426/00; de 21/05/02, no Proc. nº 6437/02; de 8/10/02, no Proc. nº 6681/02).
Com efeito, a Lei nº 51-A/96 amnistiou, de acordo com a sua letra, crimes fiscais, mas não contra-ordenações.
E porque as leis da amnistia, pela sua excepcionalidade, não devem interpretar-se extensivamente, não é lícito ao intérprete, com o argumento ad maiori ad minus, ler na lei “responsabilidade criminal e contra ordenacional” onde o legislador escreveu apenas “responsabilidade criminal”.
Por outro lado, e tal como foi já reconhecido pela Tribunal Constitucional (Acórdão de 12/04/00, no Proc. nº 438/99, publicado no D.R. de 3/11/00, II Série, pág. 17945), essa interpretação da lei não colide com o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade perante a lei previsto no artigo 13º da CRP.
Efectivamente, o princípio da igualdade não veda a realização de distinções pela lei, apenas proíbe a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias (como as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as exemplificativamente indicadas no nº 2 do art. 13º da CRP), ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Ou seja, porque o princípio da igualdade impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que for diferente, não proíbe as distinções de tratamento materialmente fundadas, mas tão só as distinções arbitrárias e carecidas de fundamento racional (cfr., entre muitos outros, o Acórdão do TC nº 1188/96, publicado no DR, II Série, de 13/02/97). Ora, face à distinta e diversa natureza do ilícito criminal e do ilícito de mera contra ordenação, bem como aos interesses públicos em jogo no regime próprio de cada um desses ilícitos, não se pode afirmar que estejamos perante realidades essencialmente iguais que reclamem tratamento igual.
Deste modo, procedem as conclusões da alegação do recurso interposto pelo Ministério Público, sendo de revogar a decisão que julgou extinta a responsabilidade contra-ordenacional da sociedade arguida.

Em face disso, torna-se necessário analisar a questão colocada pela recorrida nas respectivas contra-alegações, traduzida na invocação da nulidade da decisão administrativa de aplicação da coima por não conter os elementos que contribuíram para a fixação desta, em virtude de se tratar de questão de conhecimento oficioso, cognoscível até que seja proferida decisão definitiva, em harmonia com o disposto nos arts. 79º e 63º do RGIT.
Não lhe assiste, porém, qualquer razão.
A coima aplicada (210.000$00) situa-se no limite mínimo legal, tendo-se levado em conta nessa fixação, tal como consta da decisão administrativa, os factos constantes do auto de notícia e o teor da informação prestada (a fls. 8) nos termos do art. 190º do CPT, designadamente o facto de o imposto em causa (IVA) ter sido pago em 31/03/00 ao abrigo do DL nº 124/96.
Quanto à falta de referência à situação económica ela não constitui nulidade, já que é à arguida que cabe demonstrar essa situação sempre que a autoridade administrativa não puder apurá-la por falta de apresentação de defesa pela arguida, como é o caso dos autos. E, de qualquer modo, essa falta de concreta referência à situação económica da arguida é indiferente para caso, já que insusceptível de a lesar, pois que a coima foi fixada no limite mínimo legal.
Termos em que se impõe manter coima aplicada à sociedade recorrida pela autoridade administrativa.
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Nestes termos, acorda-se em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, mantendo-se, por consequência, a coima aplicada à sociedade recorrida pela autoridade administrativa.
Custas pela recorrida em ambas as instâncias, fixando-se nesta a taxa de justiça em duas UC.
Porto, 02 de Junho de 2005.
(Dulce Manuel Conceição Neto)
(José Maria Fonseca Carvalho)
(João António Valente Torrão)