Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte | |
Processo: | 00332/01-Coimbra |
Secção: | 2ª Secção - Contencioso Tributário |
Data do Acordão: | 03/14/2013 |
Tribunal: | TAF de Coimbra |
Relator: | José Maria da Fonseca Carvalho |
Descritores: | FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DAS CORRECÇÕES DA MATÉRIA COLECTÁVEL EM SEDE DE IRC. |
Sumário: | I – A legitimidade de actuação da Administração tem consagração constitucional e o exercício dos seus poderes deve reflectir-se num procedimento reflexivo em que os actos, contratos e regulamentos, apareçam dotados de racionalidade. II- É através desse procedimento que se respiga a maior ou menor relevância dos argumentos e a capacidade de aceitação postergando-se o azar a intuição o capricho e a arbitrariedade. III- Em sede administrativa a finalidade do procedimento não é a realização do direito ou o factor de persuasão de terceiro sobre a veracidade dos factos. A finalidade do procedimento é legitimar no terreno dos factos a resolução administrativa. Por isso, tendo a inspecção tributaria elaborado dois relatórios de fiscalização, um relativo a actividade da contribuinte mulher e outro respeitante à actividade do contribuinte marido para valoração da fundamentação das correcções das liquidações em causa impendia sobre o Tribunal o dever de analisar criticamente todos os factos constantes dos dois relatórios em presença. IV – Tendo apenas considerado os factos de um dos relatórios e fundamentado a sua decisão relativamente a ambos os cônjuges nesse relatório e não ponderando os factos do outro existe erro de julgamento sobre a matéria de facto pelo que a sentença não pode proceder.* * Sumário elaborado pelo Relator. |
Recorrente: | Fazenda Pública |
Recorrido 1: | M... |
Decisão: | Anulada a sentença e ordenada a baixa à 1ª Instância |
Aditamento: |
Parecer Ministério Publico: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório 1— Maria… e marido, Joaquim…, impugnaram as liquidações adicionais do IRS e respectivos juros compensatórios dos anos de 1995 e 1996, no montante global de 6.644.533$00 ou € 33.142,79.
2 – Na sua petição, os impugnantes referem-se a “correcções técnicas” e a “correcções apuradas a título de métodos indirectos”, remetendo exclusivamente para o Relatório da Inspecção elaborado em “2 de Setembro de 1999” (art. 1º p.i.), que não juntaram aos autos;
3 – Alegaram que as correcções técnicas incidem sobre o lucro tributável fixado pela Comissão de Revisão (art. 92º LGT), cuja acta n.º 018-A/LGT, de 29/5/2000, padece do vício de falta de fundamentação (art. 5º a 17º p.i.);
4 – A acta em causa, na parte transcrita no art.º 12º da p.i., refere-se claramente às correcções efectuadas ao “sujeito passivo Joaquim…” e “ao sujeito passivo Maria…”, sem que aos autos juntassem cópia dos respectivos Relatórios ou, ao menos, os identificassem;
5 – Subsidiariamente, os impugnantes alegaram que “o acto de fixação da matéria colectável respeitante às correcções técnicas do sujeito passivo Maria… sofre de erro nos pressupostos de facto”, que enunciaram (art.º 18º a 28º p.i.);
6 – À semelhança do que fizeram em relação às correcções técnicas, os impugnantes também imputaram às correcções indirectas o vício de falta de fundamentação, transcrevendo no art.º 35º da p.i. passagens da referida acta nas quais se alude às correcções efectuadas no ano de 1995 ao “sujeito passivo Joaquim…” e aos anos de 1995 e 1996 do “sujeito passivo Maria…”;
7 – A invocação destes vícios sempre foi absolutamente desacompanhada dos Relatórios das inspecções que originaram tais correcções e sem qualquer preocupação de os distinguir ou identificar. Também, jamais os impugnantes referiram ter apresentado, cada um por si, Reclamações para a Comissão de Revisão, identificando o respectivo âmbito. Pelo contrário, inculcaram, talvez negligentemente, a ideia de que apenas existia um único procedimento;
8 – Estes factos, só por si, induziram em erro a Representação da Fazenda Pública e o Tribunal que não se aperceberam da existência de dois relatórios distintos: a) - um, datado de 17/9/1999, relativo às correcções técnicas aos anos de 1995 e 1996 e por métodos indirectos ao ano de 1995, quanto à actividade de comércio a retalho de carne exercida pelo sujeito passivo JOAQUIM…; b) - outro, datado de 2/9/1999, relativo às correcções técnicas aos anos de 1996 e por métodos indirectos aos anos de 1995 e 1996, quanto à actividade de comércio a retalho de roupas e calçado exercida pelo sujeito passivo MARIA…;
9 - A douta sentença recorrida anulou integralmente as liquidações do IRS de 1995 e 1996, identificando como impugnante, talvez por lapso, apenas a Maria…;
10 - Sendo certo que, no momento da decisão apenas constava dos autos a cópia do Relatório relativo às correcções efectuadas à actividade de Joaquim… e cópia da referida acta n.º 018-A/LGT, elaborada no âmbito do procedimento de revisão solicitado NOS TERMOS DO ART.º 91º DA LGT por ambos os impugnantes.
11 – Deste procedimento veio a resultar uma única liquidação de IRS abrangendo a totalidade dos rendimentos familiares fixados para cada um dos anos;
12 – Outro facto que também não contribuiu para alertar e esclarecer o Tribunal decorreu de a Acta n.º 018-A/LGT, ser única e não esclarecer claramente que: a) – O Sujeito passivo Joaquim… apresentou reclamação da fixação de IRS com recurso a métodos indirectos, relativamente ao ano de 1995; b) – O sujeito passivo Maria… apresentou reclamação relativa ao IVA, mas não o fez relativamente ao IRS;
13 - A douta sentença recorrida reconheceu a procedência do pedido por entender que a Acta em causa não estava devidamente fundamentada;
14 – Todavia, pelos factos acima descrito, esta decisão não levou em conta que a Acta apenas “fixou” a matéria colectável resultante das correcções por métodos indirectos relativas à actividade do sujeito passivo JOAQUIM…, e apenas relativamente ao ano de 1995, porque só essa foi objecto do pedido de revisão;
15 – Logo, a douta decisão, tal qual como está redigida, não poderia julgar procedente a impugnação na parte relativa ao IRS de 1996 com o fundamento que utilizou;
16 – É verdade que as correcções técnicas, levadas em conta na Acta para efeitos da determinação do rendimento global do agregado familiar relativo a cada um dos anos, podem ser agora impugnadas na medida em que se encontram englobadas nas respectivas liquidações;
17 – Todavia, quanto a elas a acção não poderá proceder com base na falta de fundamentação da Acta n.º 018-A/LGT, já que não é aqui que se encontram os fundamentos da decisão de corrigir e a respectiva quantificação (esses encontram-se exclusivamente no Relatório respectivo);
18 – Consultados os Relatórios verifica-se que as correcções se encontram devidamente fundamentadas e que a contabilidade não merece a presunção de verdade de que gozava inicialmente;
19 – Na realidade, os próprios impugnantes reconhecem fragilidades da contabilidade que procuram justificar invocando alegadas avarias da máquina registadora ou lapsos que não valorizam;
20 – Por outro lado, nunca o pedido poderia proceder com o invocado fundamento de falta de fundamentação da Acta da Comissão de Revisão por duas razões principais:
21 – Primeira _ o procedimento de revisão em causa, efectuado no ano 2000, decorreu NOS TERMOS DO ART.º 91º DA LGT, a pedido expresso dos interessados;
22 – Ora, nos termos do disposto no art.º 3º do Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, que aprovou a LGT (), não há dúvidas de que o regime aplicável ao presente caso é o do art.º 91º e 92º da LGT;
23 – No procedimento em causa foi obtido acordo entre os peritos (cfr. Acta n.º 018-A/LGT, de 29/5/2000), de que resultam 2 efeitos recíprocos: a) - pela parte da AT, o tributo será necessariamente liquidado com base na matéria tributável acordada (n.º 3 do art.º 92º LGT); b) - por parte do contribuinte, não poderá impugnar com os fundamentos que neste caso utilizou (n.º 4 do art.º 86º LGT).
24 – Segunda _ O procedimento de revisão previsto na LGT assenta num debate contraditório entre o perito indicado pelo contribuinte e o perito de administração tributária e visa o estabelecimento de um acordo, nos termos da lei, quanto ao valor da matéria tributável a considerar para efeitos da liquidação (n.º 1 do art.º 92º LGT)
25 – Sendo certo que os peritos gozam hoje de ampla igualdade de direitos, apenas atribuindo a lei ao perito da administração tributária a incumbência de conduzir o procedimento (n.º 2 do art.º 92º), com poderes para fazer a visada “transacção preventiva” prevista no art.º 1250º CC, a qual deverá ter forma escrita;
26 – O documento escrito que formaliza tal transacção é a designada “acta”, que é um instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos procedimentais a cuja lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige e assina, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido durante o debate (cfr. art.º 99º C.P.Penal). São, portanto repositórios ou memórias de acto colegial guardadas em forma escrita (Esteves de Oliveira, CPA. Almedina, fls. 579);
27 – A Acta não é, portanto, um documento cuja “autoria” ou “propriedade” se possa imputar exclusivamente a uma das partes em contraditório. TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE A SENTENÇA RECORRIDA SER REVOGADA, COM O QUE SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA! * Os impugnantes apresentaram as suas contra-alegações.
* O Exmo. Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser anulada a sentença sob recurso e ordenada a baixa à 1ª instância. * Colhidos os vistos cumpre decidir: * Foi a seguinte matéria de facto que o Tribunal “ a quo” deu como provada: A – Factos provados 1.A escrita da impugnante foi objecto de inspecção que iniciou em 17/9/99 com referência aos anos de 1995 e 1996 relativamente aos impostos: IRS e IVA; 2.A referida inspecção conclui ter havido omissões aos proveitos nos anos em análise, em face dos valores apurados através do tickets de fitas de máquina anexo III; 3.Além destes desvios verificou a inexistência de apuros nos meses de Janeiro, Fevereiro e quase todo o mês de Março nos respectivos anos em apreciação, nas fitas é verificável a datação manual e falta de identificação do sujeito passivo; 4. Por tudo isto os valores declarados foram corrigidos com recurso a métodos indiciários, como melhor consta do respectivo relatório que aqui se dá por reproduzido; 5. Discordando dos resultados do relatório da inspecção, reclamou para a Comissão de Revisão, reuniu-se a comissão em 29/5/00, tal como consta da respectiva acta de fls. 67 dos autos, que aqui se dá por reproduzida, no âmbito da qual se chegou a acordou do seguinte modo:« (…) Relativamente ao sujeito passivo Joaquim…: Ano de 1996: - Manter as correcções propostas. Neste exercício apenas houve correcções de natureza meramente aritméticas. Ano de 1995: - Considerar para este exercício uma margem de comercialização idêntica à de 1996, ou seja 69,2% sobre o custo. Assim: 7.546.126$00 x 1,692 = 12.768.045$00
Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) em falta, calculado proporcionalmente: I.V.A. = 2.071.905$00 x 28.728500 2.799.785$00 I.V.A. = 21.260$00 Relativamente ao sujeito passivo Maria..: 1. A filial de Estarreja funcionou apenas temporariamente em virtude da pessoa que assegurava o funcionamento da mesma, Sr.ª D.., mãe da reclamante, sofrer de doença cardíaca e estar incapaz para exercer funções laborais (foi anexo ao processo declaração médica); 2. A margem bruta sobre o custo (CEV) para os exercícios de 1995 e 1996, foi de 100%, após correcções operadas às compras. (Refere-se que o vogal da reclamante, propôs inicialmente que esta margem fosse de 75%, tendo posteriormente, após debate contraditório, acordado com a margem sobre o custo de 100%), resultando assim acréscimo do CEV (custo das existências vendidas) respectivamente no montante de 1.395.757$00 e 3.411.008$00; 3. O valor das vendas para ambos os exercícios é de igual montante, tomando-se como referência as vendas totais acordadas para 1996; 4. As vendas totais acordadas para 1996 correspondem às vendas declaradas na escrita do sujeito passivo, acrescidas das correcções aritméticas propostas no relatório, ou seja: 14.172.892$00 + 8.136.130$00 = 22.309.022$00
B – Factos não provados: Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa. * Pronunciando-se sobre a falta de fundamentação da decisão da Comissão de Revisão a Mª Juíza considerou que o acordo exarado pela Comissão de Revisão, não transmite de forma clara e compreensível o motivo que determinou a margem de comercialização do contribuinte Joaquim… e o valor das vendas na parte respeitante à Alice e com base na falta de fundamentação julgou procedente a impugnação judicial. A Fazenda Pública não se conforma com esta decisão e como se vê do teor das suas alegações e conclusões do recurso considera que as correcções e liquidações adicionais em causa não tiveram em conta todos os factos apurados pela fiscalização e constantes do relatório da Inspecção Tributária e o lucro tributário fixado pela Comissão de Revisão. Sucede que o Tribunal “a quo” levou ao probatório da sentença o relatório final da Fiscalização que contem dois relatórios, cada um deles relativo à actividade exercida por cada um dos contribuintes. Mas o Tribunal, na sua decisão, tomou apenas em conta o relatório datado de 02 Setembro de 1999 em que o sujeito passivo é Maria…, onde se efectuaram correcções por métodos indirectos aos anos de 1995 e 1996, mas não considerou, como devia, o relatório datado de 17/09/1999 relativo à actividade de Joaquim… onde se efectuaram correcções por métodos indirectos mas, apenas relativamente ao ano de 1995. Ora a decisão da Comissão de Revisão ponderou os dois relatórios da Inspecção dai que sentença devesse ponderar igualmente esses dois relatórios. Não o tendo feito a sentença enferma de erro de julgamento sobre a matéria de facto e não pode por isso manter-se. Como se vê da sentença recorrida a Mª Juiz “a quo” julgou procedente a impugnação judicial com o fundamento de falta de fundamentação das liquidações em causa. A Fazenda Pública não concorda com tal decisão e entende que as liquidações se encontram bem fundamentadas já que dos relatórios da Inspecção se pode sem esforço ver as razões de direito e de facto que determinaram a Administração Fiscal a corrigir e presumir por métodos indirectos os rendimentos e lucro tributável em causa. Importa então tecer algumas considerações sobre o dever de fundamentação do acto tributário. No sentido de combater a arbitrariedade, de proceder racionalmente e de acordo com a lei e melhor ponderar a decisão o artigo 268 da Constituição da República impõe à Administração Pública, a fundamentação de todos os actos lesivos dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Num sistema constitucional como aquele em que vivemos a legitimidade tem corpo de norma e alma de razão, pelo que importa que os poderes da Administração Pública devam reflectir-se num procedimento reflexivo, em que os actos contratos e regulamentos apareçam dotado de racionalidade. E se é verdade que mesmo assim não está garantido totalmente o resultado o certo é que desta forma se dificulta a transgressão do princípio que interdita a arbitrariedade dos poderes públicos. De facto nada há mais alheio à imparcialidade e objectividade e coerência racional dos facto que o procedimento encerra que o nu decisionismo do titular do poder. Neste sentido veja-se David Blanquer in Curso de Derecho Administrativo III páginas 141. Com o procedimento reflexivo onde se respiga a maior ou menor relevância dos argumentos e a sua capacidade de aceitação afasta-se o azar a intuição o capricho e a arbitrariedade. E a melhor e mais eficaz forma de travar a arbitrariedade é o controlo dos factos determinantes do seu exercício. A motivação externa exige a prova suficiente dos factos que fundamentam a decisão do poder público e a comprovação da coerência racional destes factos com a decisão que a Administração Pública adopta. Em sede administrativa a finalidade do procedimento não é a realização do direito ou a persuasão de terceiro sobre a veracidade dos factos, a verdadeira finalidade do procedimento é legitimar no terreno dos factos a resolução administrativa. O procedimento administrativo permite verificar a existência do facto ou factos e ainda a sua veracidade bem como a sua ponderação e valoração. Mas a livre valoração das provas exige como contrapartida a exteriorização do fundamento que legitima o juízo sobre as provas apresentadas. Num regime democrático e constitucional a força ou obrigatoriedade das decisões da Administração Pública não deriva apenas da origem das mesmas ou seja não basta a legitimidade do título, exige-se também a legitimidade do exercício plasmada na motivação. No caso dos autos constata-se, que a Mª Juiz não atendeu a todas as provas que o procedimento da fiscalização e das liquidações comportavam apenas teve em conta os factos constantes de um dos relatórios e extrapolou até para um exercício que esse relatório não comportava. A decisão de não ter ponderado todos os elementos de prova e todos os factos devidos enferma necessariamente de erro de julgamento. Importa assim que a Mª Juiz amplie a sua ponderação e a valoração de todos os factos em presença. Face ao exposto acordam os Juízes deste TCA Norte, em anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para que ampliando a matéria de facto decida depois em conformidade. Sem custas Notifique e registe Porto, 14 Março de 2013 Ass. José Maria da Fonseca Carvalho |