Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01836/13.8BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/28/2014
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:PROCEDIMENTO CAUTELAR SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
CRITÉRIOS DECISÃO
ATO FIXAÇÃO HORÁRIO TRABALHO
ART. 120.º, N.º 1, AL. A) CPTA
Sumário:
I. O juízo de «evidência» inserto na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA é tributário duma ideia de clareza e de caráter inequívoco para um qualquer jurista, realidade essa de que são nítido exemplo as três situações enunciadas naquela alínea, ou seja, a existência de ato idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo, a aplicação de norma já anteriormente anulada e o ato manifestamente ilegal.
II. Tratam-se, pois, de situações em que o triunfo da pretensão deduzida ou a deduzir na ação administrativa principal se revela ou afirma no caso como patente, notório, visível e com grande grau de previsibilidade de vir a ocorrer, mercê da semelhança ou paralelo com os julgados invalidatórios anteriores e, bem assim, da natureza ostensiva e grosseira da ilegalidade cometida.
III. Estamos, nessa medida, em presença de critério excecional que abrange apenas as situações em que é mais do que provável que a pretensão do requerente venha a ser julgada procedente, situações de nulidade evidente ou de ilegalidade grosseira, em que se impõe e exige, sem a necessidade de aferição de quaisquer outros requisitos, a decretação da tutela cautelar enquanto meio de reposição ainda que provisório da legalidade.
IV. A evidente procedência da pretensão/ação administrativa principal terá de ser efetuada quando estamos em presença de pretensões impugnatórias à luz das ilegalidades que se mostram assacadas ao(s) ato(s) administrativo(s) em crise tal como se apresenta(m) no requerimento inicial que deu início ao processo cautelar e prova de factualidade que as integre ou preencha.
V. Tal caráter manifesto da ilegalidade conducente à evidente procedência não se compadece, assim, com aturados trabalhos de análise e de subsunção jurídica que é trazida a juízo pelas partes, nem pode derivar duma análise aprofundada de várias posições doutrinais ou jurisprudenciais que as partes tragam aos autos para fazer valer a sua pretensão.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:STAL - Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local
Recorrido 1:Município de Fafe
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
“SINDICATO TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO LOCAL”[doravante «STAL»], devidamente identificado nos autos, inconformado veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Braga, datada de 18.12.2013, que indeferiu a providência cautelar que o mesmo havia deduzido contra o “MUNICÍPIO DE FAFE” [doravante «MdF»), igualmente identificado nos autos, não suspendendo a eficácia do despacho de 27.09.2013 proferido pelo Presidente da C.M. Fafe que procedeu à alteração do período normal do horário de trabalho.
Formula o aqui recorrente nas respetivas alegações [cfr. fls. 66 e segs. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário], as seguintes conclusões que se reproduzem:
...
A) Vem este recurso interposto da aliás douta sentença que indeferiu a presente providência cautelar conservatória com o fundamento de não se verificarem os requisitos para o seu decretamento, quer os requisitos previstos na al. a) quer os da al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA;
B)Salvo melhor opinião, afigura-se que a sentença recorrida não fez a melhor interpretação e aplicação das referidas determinações legais;
C) Está em causa a suspensão da eficácia do despacho do Presidente da Câmara Municipal de Fafe, datado de 27 de setembro de 2013, elaborado ao abrigo da Lei 68/2013, de 29 de agosto, nomeadamente ao abrigo do disposto dos arts. 2.º e 10.º da mesma lei, despacho esse que procedeu à alteração do período normal do horário de trabalho de 35 horas semanais e 7 horas diárias para 40 horas semanais e 8 horas diárias;
D) Pelas razões jurídicas expostas em 5 da alegação, sufragadas pelos Exmºs. Senhores Conselheiros do Tribunal Constitucional, que aqui se dão por reproduzidas, a norma do art. 2.º, interpretada com a do art. 10.º, da Lei n.º 68/2013, de 29 de agosto, é inconstitucional por violação, além do mais, do direito à contratação coletiva reconhecido pelo art. 56.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa;
E) Esta conclusão é, como refere o Exmº. Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro (cfr. ponto 5.1 supra), a que encontra mais consistente suporte nos fatores objetivos de interpretação das leis;
F) O ato administrativo impugnado, cuja suspensão da eficácia é requerida, tendo sido proferido em cumprimento daquelas normas inconstitucionais, é claramente ilegal, não podendo ser mantida a sua execução;
G) Face ao referido nas conclusões D e F, é legítimo considerar-se, à luz da melhor interpretação jurídica, que é evidente a procedência da pretensão a formular na ação administrativa especial do ato administrativo em causa, com vista à anulação desse mesmo ato;
H) Nestas circunstâncias, legitima-se e impõe-se o decretamento da providência requerida, ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA;
I) Quando assim se não entenda, deve a providência requerida ser decretada ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 daquele art. 120.º;
J) Com efeito, o autor alegou os prejuízos de difícil reparação - alguns deles de impossível reparação - referidos em 7.2 supra e que aqui se dão por reproduzidos, sofridos e a sofrer pelos associados do Requerente com a execução do despacho impugnado;
K) Tais factos, que consubstanciam os aludidos prejuízos, ou decorrem da lei ou são factos notórios, cuja prova é dispensada nos termos do art. 412.º do C.P.C.;
L) Os prejuízos decorrentes da execução do ato impugnado sofridos pelos associados do Requerente no âmbito da sua vida familiar e pessoal, por terem acontecido e continuarem a acontecer são irreparáveis, o que traduz uma situação de facto consumado (e não apenas do seu receio);
M) Esta situação impõe também o decretamento da providência requerida com dispensa dos prejuízos de difícil reparação, nos termos da citada al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA;
N) Julgando, como julgou, a decisão recorrida, salvo o merecido respeito, não fez correta interpretação e aplicação dos arts. 56.º, n.º 3 da CRP, 412.º do C.P.C. e 120º., n.º 1, als. a) e b) do CPTA, devendo ser revogada e ser decretada a providência cautelar requerida de suspensão da eficácia do ato administrativo impugnado e atrás referido na conclusão C ...”.
Termina pugnando pelo provimento do recurso e que seja “… decretada a providência cautelar requerida …”.
O ente requerido, ora recorrido, notificado não apresentou contra-alegações [cfr. fls. 86 e segs.].
O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 146.º e 147.º ambos do CPTA veio apresentar parecer/pronúncia no qual conclui pela improcedência do recurso jurisdicional [cfr. fls. 98/103], posicionamento esse que objeto de contraditório não mereceu qualquer resposta [cfr. fls. 104 e segs.].
Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. e) e 2 do CPTA, foi o processo submetido à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente sendo certo que se, pese embora por um lado, o objeto do recurso se ache delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos arts. 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do CPTA, 05.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º do CPC/2013 [na redação introduzida pela Lei n.º 41/013, de 26.06 - cfr. arts. 05.º e 07.º, n.º 1 daquele diploma -, tal como todas as demais referências de seguida feitas relativas a normativos do CPC] [anteriores arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 685.º-A, n.º 1 todos do CPC - na redação decorrente do DL n.º 303/07, de 24.08] “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal “ad quem” em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto ainda que a declare nula decide “o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito” reunidos que se mostrem no caso os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.
As questões suscitadas e de que cumpre decidir resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida ao julgar improcedente a pretensão cautelar formulada incorreu em erro de julgamento dada a infração, mormente, do disposto nos arts. 56.º, n.º 3 da CRP, 412.º do CPC/2013, 120.º, n.º 1, als. a) e b) do CPTA [cfr. respetivas alegações e conclusões supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Resulta da decisão recorrida como assente a seguinte factualidade:
I) Em 24.9.2013 a Divisão de Gestão de Recursos Humanos, Ação Social e Educação da Câmara Municipal de Fafe proferiu a seguinte informação:



- cfr. doc. de fls. 30 e segs. dos autos.
II) Em 27.09.2013 a Chefe da Divisão de Gestão de Recursos Humanos, Ação Social e Educação da Câmara Municipal de Fafe proferiu a seguinte informação:

- cfr. doc. de fls. 29 dos autos.
III) Em 27.09.2013 o Presidente da Câmara Municipal de Fafe apôs despacho, sob a informação referida no ponto anterior, de “Consideram-se aprovados - cfr. doc. de fls. 29 dos autos.
«»
3.2. DE DIREITO
Presente o quadro factual antecedente cumpre, agora, entrar na análise das questões suscitadas em sede desta instância de recurso jurisdicional “sub judice”.
ð
3.2.1. DA DECISÃO JUDICIAL RECORRIDA
O TAF de Braga em apreciação das questões e da pretensão cautelar deduzida pelo requerente, aqui recorrente, contra o R.do «MdF», na qual se peticionava a suspensão de eficácia do despacho de 27.09.2013 proferido pelo Presidente da C.M. Fafe que procedeu à alteração do período normal do horário de trabalho, concluiu “in casu” que, tratando-se de pretensão cautelar conservatória, não estavam reunidos/preenchidos os requisitos enunciados pelo art. 120.º do CPTA [no caso os requisitos do “fumus boni iuris” - da al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA - e do “fumus non malus iuris” - da al. b) do n.º 1 do mesmo normativo], termos em que negou a tutela cautelar peticionada.
ð
3.2.2. DA TESE DO RECORRENTE
Argumenta este que a decisão judicial ora sindicada é ilegal por haver incorrido em infração, nomeadamente, do disposto nos arts. 56.º, n.º 3 da CRP, 412.º do CPC/2013, 120.º, n.º 1, als. a) e b) do CPTA, já que entende estarem preenchidos os requisitos/critérios nele enunciados do “fumus boni iuris” [da al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA] e do “periculum in mora” [da al. b) do n.º 1 do mesmo normativo], termos em que pugna pela procedência do recurso jurisdicional e decretamento da pretensão cautelar deduzida.
ð
3.2.3. DO OBJETO DO RECURSO JURISDICIONAL
I. Passemos, então, à análise do acerto ou não da decisão judicial recorrida, presente que a discordância quanto à mesma se reconduz ao juízo de improcedência no quadro das als. a) e b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
II. É comummente aceite e sabido que o legislador através da reforma operada pelo CPTA procurou evitar que o tardio julgamento do processo principal pudesse determinar a inutilidade da sua decisão ou fosse responsável pela colocação do interessado numa situação de facto consumado ou numa situação em que o volume ou a qualidade dos prejuízos sofridos inviabilizasse a possibilidade de reverter à situação que teria se a ilegalidade não tivesse sido cometida.
III. Daí que e de molde a evitar a verificação ou produção de tais perigos, assegurando dessa maneira a utilidade da sentença, veio no art. 112.º do CPTA a consagrar-se ou a autorizar-se o decretamento de medidas cautelares enquanto medidas destinadas a garantir que a decisão a proferir no processo principal possa produzir os efeitos que lhe são próprios e, dessa forma, repor a legalidade ofendida.
IV. Previu e exigiu o legislador, todavia, que o decretamento de tais providências esteja sujeito ao preenchimento dos pressupostos fixados no art. 120.º do mesmo código, mormente, o da al. a) do n.º 1 do citado preceito aqui em questão face aos termos das alegações de recurso jurisdicional centradas em grande medida no requisito do “fumus boni iuris” tanto para mais que a julgadora “a quo” na sua pronúncia
o desatendeu, sendo que quanto aos requisitos constantes da al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA julgou verificado o do “fumus non malus iuris”, mas já não o do «periculum in mora».
V. Como vimos sustentando neste normativo do CPTA autonomizam-se as situações de providências dirigidas contra atos/normas manifestamente ilegais, por si ou por referência a atos/normas idênticos já anteriormente anulados, declarados nulos ou inexistentes e contra atos de aplicação de normas já anulados.
VI. E o seu decretamento é quase automático na medida em que assenta em requisitos objetivos, fazendo apelo a um critério de evidência, que incorpora, em simultâneo, a salvaguarda do interesse público [sob a forma do princípio da legalidade - a Administração não deve praticar tais atos] e a tutela dos interesses privados [particular tem direito a que a sua situação seja legalmente apreciada e conformada].
VII. Segundo é defendido por J.C. Vieira de Andrade o “… juiz tem agora o poder e o dever de, ainda que em termos sumários, avaliar a probabilidade da procedência da ação principal, isto é, em regra, de avaliar a existência do direito invocado pelo particular ou da ilegalidade que ele diz existir, ainda que esteja em causa um «verdadeiro» ato administrativo. (…) O papel que é dado ao fumus boni iuris (ou ‘aparência do direito’) é decisivo, desde logo porque parece ser, em princípio, o único fator relevante para a decisão de adoção da providência cautelar em caso de evidência da procedência da pretensão principal, designadamente por manifesta ilegalidade do ato. (…) Note-se, porém, que o critério legal é o do caráter evidente da procedência da ação - e não, por exemplo, no caso dos meios impugnatórios, o da evidência do vício …” [in: “A Justiça Administrativa (Lições), 12.ª edição, págs. 310 e 311].
VIII. E efetivamente o cerne deste critério centra-se na expressão «evidente procedência da pretensão» enquanto reportada à invocada posição jurídica subjetiva alegada ou a alegar no processo principal, sendo que o julgador cautelar é convocado para a emissão dum juízo procedência ou concludência sobre mesma sem que isso envolva, ainda assim, uma decisão sobre o mérito da causa.
IX. Se é certo que, por regra, a demonstração do «bonus ius» em termos cautelares se basta com o «fumus», enquanto juízo de verosimilhança a obter de modo sumário [«summaria cognitio»] o que ocorre é que neste critério de decisão o legislador, ao introduzir e exigir ao juízo cautelar o atributo qualificado da evidência da «procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal», acaba por aproximar muito o juízo cautelar do juízo de mérito da ação principal.
X. Nessa medida, face ao tipo de juízo cautelar em questão temos que pelo grau de exigência colocado na sua decretação, mercê dum «aproximar» a decisão cautelar da decisão principal quanto a um juízo de mérito, dúvidas não temos de que só em casos extremos e excecionais será possível afirmar-se, com segurança, que a procedência da ação principal é de tal modo evidente que não há razão para deixar de conceder a providência.
XI. Se é certo que no caso o uso da expressão «evidente» na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA não terá os precisos contornos que emergem doutros domínios do saber e conhecimento como é o caso, por exemplo, da filosofia, em que quererá significar o aparecer do que é verdadeiro em termos de certeza absoluta, duma realidade indubitável, temos, no entanto, que tal expressão importará ser compatibilizada com aquilo que constituem os juízos feitos no domínio da ciência jurídica, em particular, os do julgador.
XII. E neste domínio a convicção não é uma convicção de certeza absoluta, mas apenas uma convicção de probabilidades, sendo que a distinção entre os juízos cautelar e de mérito na ação principal passa por uma diferente intensidade dessa convicção.
XIII. Daí que a medida de probabilidade e convicção exigida ao julgador cautelar no seu juízo decisório terá de ser diferente da que se exige na mesma tarefa ao julgador no processo principal.
XIV. Na verdade, enquanto na ação principal se exige um alto grau de probabilidade de verificação do facto [a denominada certeza subjetiva], nos processos cautelares basta-se com o «fumus boni iuris» invocado ou a invocar na ação principal, num juízo de mera verosimilhança que se carateriza por um menor grau de probabilidade [ainda que sério e fundado] da verificação da existência do facto e da violação do direito/interesse legalmente protegido.
XV. Será, pois, por referência a esse menor grau de probabilidade que se deve formar e reconduzir a convicção do conceito de «evidência» da procedência da pretensão formulada ou a formular na ação principal previsto no normativo em referência de molde a que enquanto juízo que não tem o sentido de «certeza relativa» [próprio da ação principal], nem o de «mera previsibilidade» [que carateriza o exigido nas providências antecipatórias], ou ainda o de «juízo de viabilidade» [que norteia este requisito nas providências conservatórias], seja caraterizado como um «juízo de notoriedade e visibilidade» mercê de se revelar como facilmente conhecido, apreensível e verificável pelos intervenientes processuais.
XVI. Tal juízo de «evidência» é, assim, tributário duma ideia de clareza, dum caráter inequívoco para um qualquer jurista, realidade essa de que são nítido exemplo as três situações enunciadas na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA [ou seja, a existência de ato idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo, a aplicação de norma já anteriormente anulada e o ato manifestamente ilegal], consubstanciando as mesmas situações em que o triunfo da pretensão deduzida ou a deduzir na ação administrativa principal se revela ou se afirma, no caso, como patente, notório, visível e com forte ou intenso grau de previsibilidade de vir a ocorrer, mercê da semelhança ou paralelo com os julgados invalidatórios anteriores e, bem assim, da natureza ostensiva e grosseira da ilegalidade cometida.
XVII. Estamos, nessa medida, na presença de critério excecional que abrange apenas as situações em que é mais do que provável que a pretensão do requerente venha a ser julgada procedente, de situações de nulidade evidente ou de ilegalidade grosseira, em que se impõe e exige, sem a necessidade de aferição de quaisquer outros requisitos, a decretação da tutela cautelar enquanto meio de reposição, ainda que provisório, da legalidade e, mais latamente, do Direito.
XVIII. Note-se, por outro lado, que nesta sede quanto à situação de manifesta ilegalidade a aferição da evidente procedência da pretensão/ação administrativa principal terá de ser efetuada quando estamos em presença de pretensões impugnatórias à luz das ilegalidades que se mostram assacadas ao ato administrativo em crise tal como se mostra alegado no requerimento inicial do processo cautelar e da prova de factualidade que as integre ou preencha.
XIX. Tal caráter manifesto da ilegalidade não se compadece, assim, com aturados trabalhos de análise e de subsunção jurídica que é trazida a juízo pelas partes, nem pode derivar duma análise aprofundada de várias posições doutrinais ou jurisprudenciais que as partes tragam aos autos para fazer valer a sua pretensão.
XX. A mesma tem de se apresentar ou como não contestada/aceite pela contraparte, ou, então, de se revelar de forma inequivocamente simples, de modo a que lançando-se mão de conceitos jurídicos igualmente simples se possa concluir pela evidência da pretensão.
XXI. É que a providência cautelar não se destina a definir em termos finais as pretensões que as partes trazem a juízo, mas, ao invés, e, como supra fomos referindo, a acautelar essas pretensões da eventual perda que possa ser originada pela demora da decisão do processo principal, pelo que, nessa medida, a apreciação da pretensão que constitui o objeto do processo principal deve ser feita em termos sumários, meramente perfunctórios, de modo a que se possa proferir uma decisão no mais curto espaço de tempo e sem invadir ou esgotar aquilo que é ou constitui o objeto do processo principal.
XXII. Como se sustentou no acórdão do STA/Pleno de 11.12.2007 [Proc. n.º 0210/07 in: «www.dgsi.pt/jsta»] “… o acento tónico na «evidência» da «procedência da pretensão» formulada ou a formular no processo principal … deve ser notória e visível sem necessidade de qualquer elaborada indagação. Só pode ser considerado evidente, como nele se escreveu, o «que se constata de maneira imediata e manifesta. Há uma diferença irredutível entre captar imediatamente uma evidência e realizar uma demonstração tendente a captá-la, pois esta supõe o recurso a definições, divisões ou argumentações que possibilitem e suportem a captação de uma realidade que não era patente». (…) … o preceito em questão «sugere logo que o deferimento imediato do meio cautelar, aí previsto, há-de resultar de ilegalidades patentes e flagrantes, capazes de convencer primo conspectu, e sem necessidade de um laborioso discurso coadjuvante, da procedência da ação principal»” [cfr. igualmente, mais recentemente, os Acs. STA de 09.12.2009 - Proc. n.º 0799/09, de 18.03.2010 - Proc. n.º 0105/10, de 25.08.2010 - Proc. n.º 0637/10, de 27.07.2011 - Proc. n.º 0520/11, de 25.09.2012 - Proc. n.º 0588/12, 26.09.2012 - Proc. n.º 0720/12, de 06.11.2012 - Proc. n.º 0855/12, de 30.01.2013 - Proc. n.º 01253/12 in: «www.dgsi.pt/jsta»; Acs. TCAN de 25.01.2013 - Proc. n.º 02253/10.7BEBRG-A, de 25.01.2013 - Proc. n.º 00372/12.4BEVIS, de 25.01.2013 - Proc. n.º 00762/12.2BEAVR, de 08.02.2013 - Proc. n.º 02104/11.5BEBRG, de 31.05.2013 - Proc. n.º 00019/13.1BEMDL, de 25.11.2013 - Proc. n.º 02853/12.0BEPRT in: «www.dgsi.pt/jtcn»].
XXIII. E no acórdão daquele mesmo Supremo Tribunal de 19.12.2012 [Proc. n.º 01053/12 consultável no mesmo sítio] afirmou-se que “… é mister que o juízo de prognose se funde em algo já evidente ou manifesto, isto é, em algo que, sem recurso a complexos ou questionáveis esforços argumentativos, se capte quase «de visu». O que, contudo, também não significa que só seja evidente ou manifesto o que se deteta num primeiro olhar, ao modo da intuição sensível. Na verdade, o êxito ou o malogro do processo principal não deixarão de ser evidentes ou manifestos por se concluírem a partir dum discurso argumentativo - pois o exercício do direito faz-se por raciocínios. O que se exige, para que se diga que se atingiu um estado de evidência, é que tal discurso seja claro e sólido, eliminando quaisquer dúvidas. Todavia, há que admitir que a quantidade e a complexidade dos raciocínios utilizados, por aumentarem o risco da insinuação de erros, não são um «iter» muito apropriado à colheita de evidências. Decerto que, para tanto, o essencial é que o processo discursivo que as atinge seja objetivo e seguro; mas é inegável que sê-lo-á tanto mais quanto maior for a sua simplicidade …”.
XXIV. Por último e na caraterização da al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA atente-se, ainda, na argumentação expendida no acórdão do STA de 06.12.2012 [Proc. n.º 0913/12 consultável no mesmo sítio] de que uma “… coisa evidente é uma coisa que não necessita de demonstração ou, apropriando-nos duma expressão popular, é «uma coisa que entra pelos olhos dentro». E, porque assim, sempre que para se chegar a uma conclusão sejam necessários diversos e complexos raciocínios é porque a mesma não é evidente. Se o fosse, essa evidência seria imediatamente apreensível e tais raciocínios seriam dispensáveis …”.
XXV. Tecidos estes considerandos de enquadramento jurídico, mormente, quanto ao âmbito da previsão do art. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA, cumpre, agora, reverter para o caso em apreciação e avaliar da procedência da argumentação expendida pelo recorrente.
XXVI. Ora o juízo cautelar feito pela Mm.ª Juiz “a quo” quando reportado à manifesta ou evidente procedência da pretensão enquanto estribada nos fundamentos de ilegalidade que se mostram invocados nos autos no requerimento inicial [cfr., em especial, os arts. 07.º a 32.º do articulado inicial - infração, mormente, do disposto nos arts. 135.º do Regime Contrato Trabalho Funções Públicas (vulgo RCTFP); 02.º da CRP (violação dos princípios da proibição do retrocesso social, da segurança e da confiança legítima) e 59.º e 67.º, n.º 2, al. c) da CRP (direito à justa retribuição, ao repouso e ao limite da jornada trabalho, à conciliação da atividade profissional com a vida familiar e valorização profissional); 126.º do RCTFP; do princípio da proporcionalidade (arts. 18.º, n.º 2, 266.º, n.º 2 e 272.º, n.º 2 todos da CRP)], afigura-se-nos não padecer do erro de julgamento que lhe é atribuído [cfr., neste sentido, em caso em tudo similar e cujo entendimento aqui se passa a reiterar, o Ac. do TCAN de 28.02.2014 - Proc. n.º 1701/13.9BEBRG - inédito].
XXVII. Com efeito, presente todo o quadro factual e normativo trazido à colação pelo requerente cautelar, aqui recorrente, posicionamento que sobre o mesmo se mostra veiculado pelo ente público requerido, não se tem como adquirido que, no caso, ocorra uma situação de evidência de procedência da pretensão formulada ou a formular no processo principal “… designadamente por estar em causa a impugnação de ato/norma manifestamente ilegal, de ato de aplicação de norma já anteriormente anulada ou de ato/norma idêntico a outro já anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente …” [al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA].
XXVIII. É que, desde logo, nada foi alegado ou provado quanto ao ato em crise assentar em ato já anteriormente invalidado, não se vislumbrando que tenha havido ato idêntico anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente
XXIX. E, por outro lado, não se descortina que o ato suspendendo padeça de ilegalidades que sejam manifestas ou inequivocamente evidentes no sentido de conduzirem à “evidência evidente” da procedência da ação principal, porquanto é controvertida a sua apreciação entre as partes e a sua verificação inequívoca não resulta ou não é fruto dum juízo de certeza racional e objetivo visto envolver, pela natureza das questões em discussão [em termos fácticos/jurídicos], um juízo de perceção ou de “impressão do julgador” cautelar que não é inequívoco e/ou unívoco no seu segmento decisório.
XXX. Com efeito, atente-se que no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 794/2013, datado de 21.11.2013, convocado em sede de alegações pelo recorrente, não foi firmada decisão no sentido da declaração da inconstitucionalidade das normas do art. 02.º, em articulação com os arts. 10.º, 03.º, 04.º e 11.º todos da Lei n.º 68/2013, porquanto não foi esse o entendimento maioritário firmado pelo Coletivo de Juízes daquele Tribunal.
XXXI. De referir, desde logo que a motivação colhida nos e dos vários votos de vencido daquele acórdão não contende com os fundamentos de ilegalidade que o recorrente havia invocado no requerimento inicial e nos quais aquele tinha estribado a sua pretensão cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo em crise como se pode conferir pela leitura e análise daquele articulado.
XXXII. Por outro lado, o facto da questão em discussão haver dividido aquele Tribunal com posicionamentos e leituras divergentes sobre a sua conformidade constitucional e que se concretizaram na emissão de vários votos de vencido é a prova inequívoca da manifesta falta de evidência da procedência da pretensão formulada ou a formular na ação administrativa principal em decorrência duma ilegalidade manifesta.
XXXIII. Os factos, o quadro e comandos normativos ali expressos [na sua devida concatenação com o demais quadro legal vigente neste âmbito] não resultam, assim, como inequívoca, ostensiva e grosseiramente infringidos a ponto de existir uma patente, notória e grande previsibilidade de vir a ocorrer a procedência da pretensão assim estribada naquelas ilegalidades.
XXXIV. As exigências que “in casu” se mostram necessárias em termos da tarefa do julgador cautelar de ponderação das ilegalidades em crise à luz do regime jurídico em presença tendentes à emissão dum juízo de evidência da procedência da pretensão principal não são, no caso concreto, compatíveis ou compagináveis com o tipo de juízo decorrente da citada al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
XXXV. O que para a economia desta decisão importará referir e considerar é que, na situação “sub judice”, a solução daquelas questões jurídicas estará longe de uma posição pacífica, unívoca, sendo, por conseguinte, desejável que tal discussão/julgamento se realize no quadro da decisão definitiva estabilizada na ação administrativa principal e no recurso jurisdicional que, eventualmente, possa e venha a ser interposto da decisão a proferir naqueles autos, sendo os mesmos a sede própria para um juízo sobre a procedência dos fundamentos de ilegalidade invocados e reiterados perante esta instância que não os autos cautelares, termos em que soçobra a pretensa infração ao disposto nos arts. 120.º, n.º 1, al. a) do CPTA e 56.º, n.º 3 da CRP.
XXXVI. Assente que se mostra que a adoção de providência cautelar pretendida não tem enquadramento na al. a) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA prevêem-se no mesmo normativo e para o segmento da pretensão em presença com caráter conservatório um distinto grupo de condições de procedência que se mostram consagrados nos n.ºs 1, al. b) e 2, aí se enunciando condições de procedência que, embora com diferentes cambiantes, se podem reconduzir: a) A duas condições positivas de decretamento [«periculum in mora» - receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente; e «fumus boni iuris» (“aparência do bom direito”) - reportado ao facto de não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou de que inexistam circunstâncias que obstem ao conhecimento de mérito - “fumus non malus iuris]; e, b) A um requisito negativo de deferimento que assenta numa ponderação de todos os interesses em presença [públicos e/ou privados] - proporcionalidade dos efeitos da decisão de concessão ou da sua recusa.
XXXVII. Face ao dissídio que constitui objeto de apreciação cumpriria, então, à luz do alegado/invocado nas alegações centrar nossa atenção na análise do requisito do «periculum in mora».
XXXVIII. Ocorre, todavia, que visto o dissídio objeto de apreciação decorrente dos fundamentos/motivações de recurso apresentados, o recorrente não “ataca” devidamente a decisão judicial impugnada no segmento em que se pronunciou sobre os requisitos previstos na al. b) do n.º 1 do art. 120.º do CPTA.
XXXIX. Com efeito, não faz sentido criticar aquela decisão quanto a alegado julgamento de inverificação do requisito do “periculum in mora” porquanto o mesmo nem sequer foi objeto de apreciação naquela decisão visto que a julgadora cautelar, centrando a análise “fumus non malus iuris”, entendeu que este requisito não estava preenchido ou verificado.
XL. E quanto a este efetivo julgamento o recurso jurisdicional que nos se mostra dirigido é totalmente omisso, inexistindo qualquer impugnação do aludido segmento decisório que, assim, se mostra transitado.
XLI. Daí que não demonstrado o requisito do “fumus non malus iuris”, juízo que se mostra firmado e como tal insuscetível de ser sindicado por este Tribunal, torna-se ocioso ou inútil a análise dos demais requisitos exigidos legalmente para o decretamento da providência requerida, pelo que esta sempre teria de ser indeferida por ausência de verificação dos requisitos cumulativos para a sua decretação.
XLII. Improcede, por conseguinte e sem necessidade de outros considerandos, a argumentação/pretensão do recorrente neste segmento tanto mais que dirigida a alegado erro de julgamento assacado a juízo de inverificação do requisito do “periculum in mora” que inexistiu na decisão judicial impugnada, o que se impõe concluir com todas as legais consequências.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar total provimento ao recurso jurisdicional “sub judice” e manter, pela motivação antecedente, o juízo de improcedência da pretensão cautelar com todas as legais consequências.
Não são devidas custas dada a isenção de goza o requerente cautelar, aqui recorrente [cfr. arts. 04.º, n.ºs 1 e 2 RCP, 310.º, n.º 3 1.ª parte do RCTFP e 189.º do CPTA].
Notifique-se.
D.N..
Restituam-se, oportunamente, os suportes informáticos que, eventualmente, hajam sido gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator [cfr. art. 131.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA].
Porto, 28 de março de 2014
Ass.: Carlos Carvalho
Ass..: Ana Paula Portela
Ass.: Fernanda Brandão