Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00459/12.3BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/28/2014
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
ACTOS NULOS / ACTOS ANULÁVEIS
PRAZO CADUCIDADE
Sumário:1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
2. São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção.
3. A forma de invalidade da nulidade reveste de natureza excepcional porquanto o regime regra é o da anulabilidade.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:EAT e Outro(s)...
Recorrido 1:Município de Góis
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:
I
RELATÓRIO
1. EAT...- e outros -, identif. nos autos, inconformados, vieram interpor o presente recurso jurisdicional da decisão do TAF de Coimbra, datada de 9/6/2013, que, no âmbito da acção administrativa especial [onde peticionava que fosse declarado inválido, nulo e ineficaz, o processo de licenciamento e consequentemente o Alvará n.º 6, emitido em 21/04/2011 e aprovado por despacho de 4/3/2011 da C.M. de Góis, atentos os vícios de violação de lei, de forma e desvio de poder, requerendo, desde logo, que fosse ordenada a imediata demolição das obras ilegalmente executadas], julgando procedente a excepção dilatória de caducidade do direito de acção, absolveu da instância o Réu/recorrido MUNICÍPIO de GÓIS.
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2. No final das suas alegações, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
"1. Os recorrentes atribuíram vícios vários ao despacho do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Góis, de 4/3/2011, violando normas imperativas, não só de natureza civil (C. Civil, arts. 1346º e 1347º) bem como do Regulamento Municipal e o próprio Plano Director Municipal do concelho de Góis, então em vigor, cuja sanção é a nulidade e ineficáciacomo então se defendeu (arts. 16º e 17º da p.i.) - e não a simples anulação, ao contrário do que se afirma na sentença recorrida.
2. Nos arts. 18º e 19º da p.i., os recorrentes invocaram que as obras ilegais e o consequente licenciamento limitaram o exercício do direito de gozo, uso e fruição do seu prédio, além de outros direitos, designadamente, de vistas, segurança e de privacidade.
3. E, no seu art. 30º, dizem os recorrentes que os seus direitos de gozo, uso e fruição do seu direito de propriedade, de vistas, de segurança e privacidade – como direitos fundamentais – merecem a tutela do direito.
4. Assim, invocaram os A.A. a nulidade e a ineficácia da licença atribuída pelo R., para “legalização” das obras ilegais, a que respeita o Alvará nº 6, de 21/4/2011, ofendendo, designadamente, com tal licenciamento, os arts. 24º, nº1, al. a); 68º, alínea a) e 122º do Regime Jurídico da Urbanização e Construção (RJEU) e, portanto, do 133º do CPA.
5. Na resposta às excepções (art. 1º), entretanto recusada a fls…, os recorrentes identificaram os seus direitos violados: privação de luz natural com escuridão durante o dia, do ambiente sadio, do equilíbrio urbano, da privacidade e da segurança.
6. Os direitos invocados pelos recorrentes, além de poderem deter natureza privada, integram a categoria de direitos de personalidade e são de natureza pública, sendo do interesse público não só a sua titularidade como ainda o respectivo exercício, além de que, as normas que os tutelam são também de direito público.
7. Sobre esta questão, consta do processo a posição do Provedor de Justiça, no Ofício com Refª R: 3108/10, a fls. 120 / 121, para o qual se remete: “…2- Verifica-se, no entanto, que a construção no prédio reclamado não cumpre o afastamento previsto no art. 73º do RGEU em relação ao muro edificado no limite do mesmo…
3. Com efeito, entende a jurisprudência (1) e doutrina (2), as normas do RGEU não disciplinam relações de vizinhança, antes tutelam primacialmente interesses públicos, relacionados com a salubridade das edificações. O que se pretende com estes limites de afastamento é assegurar que a integração de um novo edifício no conjunto edificado ou que se prevê edificar seja feito de modo a não prejudicar a qualidade de vida no interior, garantindo um ambiente urbano sadio e equilibrado. Trata-se, pois, de um interesse público fundamental, na esfera da protecção ambiental da saúde pública, e não apenas um critério funcional de ordenamento do território, mas de aproveitamento dos solos e da paisagem urbana”.
8. Logo, a douta sentença sub judicio, ao entender que os A.A. não concretizaram os factos que suportaram a violação dos arts. 1346º e 1347º do C. Civil, e os termos em que se reflectiriam em termos de direito público,… e a questão do distanciamento entre as construções, também por tal razão, não fez correcta interpretação e aplicação das normas invocadas pelos recorrentes e outras que podiam ter sido supridas “ex officio”, pelo que deve ser revogada.
9. Além disso, os recorrentes invocaram, designadamente no art. 12º da sua p.i., que o sr. M... (vizinho) procedera à ampliação do seu prédio existente através da construção de: sapatas, pilares, placas de betão armado e paredes de alvenaria, rebocos, pinturas e acabamentos, e, bem assim, a construção de um forno e churrasqueira…, juntando, inclusive, várias fotografias, para as quais se remete.
10. Finalmente, é do domínio público e resulta da experiência comum que tanto um forno como uma churrasqueira, tal como previsto no art. 1346º do C.Civil, emitem fumos, fuligem, vapores, cheiros e calores para os prédios vizinhos, prejudicam, por isso, o descanso, a saúde e a segurança das pessoas, em qualquer momento em que são utilizados…
11. Estas normas são de natureza imperativa e reconhecem verdadeiros direitos de personalidade, tutelados pela lei e pela CRP, conforme art. 266º, nº2, da CRP e arts. 3º e 133º, 2, d), do CPA (arts. 16º e 24º da p.i.).
12. Pelo que, atenta a referida nulidade do acto, não ocorreu a caducidade invocada na douta sentença recorrida, pelo que deve a acção, tempestivamente instaurada, ser considerada procedente e provada, e a Ré condenada no pedido formulado.
13. Para tanto, deve ser promovida, ainda, a intervenção contra-interessado, vizinho, M..., nos termos do art. 88º do CPTA".
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3. Notificadas as alegações apresentadas pelos recorrentes, supra referidas, veio o recorrida Município de Góis apresentar contra alegações, que concluiu do seguinte modo:
"1. Verifica-se que a douta sentença apreciou todas as questões suscitadas pelos Autores recorrentes, desqualificando as alegadas nulidades dos actos administrativos.
2. Na óptica do Tribunal, as eventuais irregularidades e violações da lei alegadas pelos recorrentes, não integram nenhum dos vícios plasmados nas diversas alíneas do art. 133º do Código de Procedimento Administrativo.
3. Também a violação dos artigos 1346º e 1347º do C. Civil, não está demonstrada e nem suportada por factos que apontem no sentido inequívoco de violação de normas do direito público do urbanismo.
4. Conclui o Tribunal, na sentença recorrida, que os actos administrativos praticados no desenvolvimento do processo, e que foram sendo do conhecimento dos Autores, ora recorrentes, são decisões, quando muito anuláveis.
5. Não tendo os recorrentes, em tempo oportuno, impugnado tais actos, considerou o Tribunal que o direito de impugnação já havida caducado há muito tempo à data da entrada da presente acção, absolvendo, e bem da instância, o Réu Município".
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4. A Digna Procuradora Geral Adjunta, neste TCA, notificada nos termos do art.º 146.º do CPTA, pronunciou-se fundamentadamente - fls. 156/157 - pela negação de provimento ao recurso.
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5. Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos recorrentes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, ns, 3 a 5 e 639.º , todos do Código de Processo Civil - Lei 41/2013, de 26/6 - art.º 5.º, n.º1 - “ex vi” dos arts.1.º e 140.º, ambos do CPTA.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA de FACTO
São os seguintes os factos fixados na sentença recorrida:
1. Os Autores, meeira e herdeiros, na herança aberto por óbito de Francisco Luís Tavares, são proprietários, sem distinção de parte ou direito, do prédio urbano sito no lugar de Cortes, freguesia de Alvares, do concelho de Góis, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 2604 e descrito na conservatória competente sob o n.º 4149 (Doc. 1 a 5 anexos à P.I.)
2. Por despacho de 4 de Março de 2011, a Câmara Municipal de Góis deferiu o pedido de licenciamento de apresentado por M... (Artigo 25.º da contestação).
3. Com data de 21 de Abril de 2011, a Câmara Municipal de Góis emitiu o alvará de licença de construção n.º 6/2011, em nome de M... (fls.87 do P.A.).
4. Em data anterior a 5 de Julho de 2011, os Autores tiveram conhecimento do Aviso colado junto à obra em questão, tornando público que a Câmara Municipal de Góis havia emitido o alvará de licença referido no ponto anterior (artigos 13.º e 14.º da P.I.).
5. O pedido deu entrada em Juízo em 16 de Julho de 2012.
2. MATÉRIA de DIREITO
Assente a factualidade apurada, cumpre, agora, entrar na análise do objecto do recurso jurisdicional, o qual se objectiva (atenta a fase processual), apenas em apreciar se alguma das invalidades imputadas à decisão impugnada importa a nulidade – tese dos recorrentes – ou antes e apenas a mera anulabilidade – tese do recorrida e sustentada na decisão judicial que cumpre aqui apreciar – pois que se se concluir que estamos apenas e só perante invalidades que importam a mera anulabilidade a acção interposta mostra-se extemporânea, porquanto apresentada além de três meses, contados do conhecimento que os AA./recorrentes tiveram do Aviso colado junto à obra em questão, tornando público que a Câmara Municipal de Góis havia emitido o alvará de licença.
Antes de mais, atentemos nas normas legais processuais com interesse para a decisão dos autos.
Estipula o art.º 58.º do CPTA, com a epígrafe “Prazos”, que:
“1 – A impugnação de actos nulos ou inexistentes não está sujeita a prazo.
2 - Salvo disposição em contrário, a impugnação de actos anuláveis tem lugar no prazo de:
a) Um ano, se promovida pelo Ministério Público;
b) Três meses, nos restantes casos.
3 – A contagem dos prazos referidos no número anterior obedece ao regime aplicável aos prazos para a propositura de acções que se encontram previstos no Código de Processo Civil …”
Por sua vez, o art.º 133.º do CPA, sob a epígrafe “actos nulos”, refere que são “… nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade ...” (nº-. 1), sendo “… designadamente, … nulos: a) Os actos viciados de usurpação de poderes; b) Os actos estranhos às atribuições dos ministérios ou das pessoas colectivas referidas no artigo 2.º em que o seu autor se integre; c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime; d) Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental; e) Os actos praticados sob coacção; f) Os actos que careçam em absoluto de forma legal; g) As deliberações de órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos; h) Os actos que ofendam os casos julgados; i) Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente …” (n.º 2) - sublinhado nosso.
Por seu turno, no art.º 134.º do mesmo Código prevê-se que o “… acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade” (n.º 1), que a “… nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal …” (n.º 2).
E no art.º 135.º, sob a epígrafe de “actos anuláveis”, estipula-se que são “… anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção.”
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Refere-se no Ac. deste TCA – N, de 26/6/2008, in Proc. 255/04, com manifesto interesse para o caso dos presentes autos:
“ … Tal como sustenta Freitas do Amaral a “validade” “… é a aptidão intrínseca do acto para produzir os efeitos jurídicos correspondentes ao tipo legal a que pertence, em consequência da sua conformidade com a ordem jurídica …” (in: “Curso de Direito Administrativo”, vol. II, págs. 342 e segs.).
Daí que enunciando a lei, quanto aos actos administrativos em geral, determinados requisitos a sua não verificação em concreto por referência a cada acto gera o desvalor da “invalidade”, a qual, seguindo de novo a doutrina daquele Professor, é “… a inaptidão intrínseca para a produção de efeitos, decorrente de uma ofensa à ordem jurídica …”.
Como também afirma J.C. Vieira de Andrade [em “Validade (do acto administrativo)” in: DJAP, vol. VII, pág. 582] a “… validade diz respeito a momentos intrínsecos, pondo a questão de saber se o acto comporta, ou não, vícios ou malformações, em face das normas que estabelecem os termos em que é possível a produção de efeitos jurídicos por via de autoridade...”.
Na sequência da lição deste Autor (in: ob. cit., págs. 583 e segs.), bem como de Freitas do Amaral (in: ob. cit., págs. 342 e segs.), a apreciação da validade de um determinado acto afere-se por referência ao sujeito que o pratica [conformidade com as normas referentes às suas atribuições e com as suas competências legais (quer quanto aos poderes em razão da matéria e do lugar, quer se em concreto está legitimado para os exercer)], ao objecto mediato [este tem de ser possível física e juridicamente, determinado ou identificável, bem como terá de ser idóneo em termos de adequação do objecto ao conteúdo e deve estar legitimado para suportar os efeitos do acto], ao procedimento, à forma, ao fim, ao conteúdo e decisão (visando o acto a produção de efeitos jurídicos numa situação concreta aqueles efeitos têm de ser determinados ou compreensíveis, possíveis e lícitos) e à vontade.
Ora os vícios susceptíveis de afectarem o acto administrativo não geram todos os mesmos desvalores, isto é, não conduzem todos às mesmas consequências.
Para além da controvérsia e do carácter controvertido quanto à caracterização do desvalor da “inexistência”, mormente, quanto à sua existência e interesses como desvalor, quanto ao seu reconhecimento e consagração legal no nosso ordenamento (cfr., entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa em “Inexistência jurídica” in: “DJAP”, vol. V, págs. 231 e segs.; Freitas do Amaral in: ob. cit., págs. 413 e segs.), temos que a doutrina e a jurisprudência têm feito a distinção de dois tipos fundamentais de invalidade, a nulidade e a anulabilidade.
A regulamentação legal relativa à matéria das formas de invalidade constava anteriormente dos arts. 363.º e 364.º do Código Administrativo, sendo que, posteriormente e face ao regime legal supra reproduzido, passou a constar dos arts. 88.º e 89.º da LAL/84 e tem hoje regime geral vertido nos arts. 133.º a 136.º do CPA.
Apreciemos, agora, de “per si” cada uma daquelas formas de invalidade.
A nulidade constitui a forma mais grave de invalidade, tendo como elementos caracterizadores o facto do acto ser “ab initio” totalmente ineficaz não produzindo qualquer efeito (cfr. n.º 1 do art. 134.º do CPA), ser insanável quer pelo decurso do tempo, quer por ratificação, reforma ou conversão (cfr. n .º 2 do art. 134.º e n.º 1 do art. 137.º ambos do CPA), ser susceptível de impugnação a todo o tempo e perante qualquer tribunal, bem como ser conhecida a todo o tempo por qualquer órgão administrativo, sendo que o reconhecimento da nulidade tem natureza meramente declarativa (cfr. art. 134.º, n.º 2 do CPA), bem como confere aos particulares o direito de desobediência e de resistência passiva perante execução de acto nulo.
Já a anulabilidade reveste um desvalor menos gravoso, possuindo como traços essenciais o facto de o acto anulável ser juridicamente eficaz e produzir todos os seus efeitos até ao momento em que ocorra a sua anulação ou suspensão (cfr. n.º 2 do art. 127.º do CPA “a contrario”), de ser susceptível de sanação pelo decurso do tempo, por ratificação, reforma ou conversão (cfr. arts. 136.º, n.º 1, 137.º, n.º 2 e 141.º todos do CPA), de ser obrigatório para os particulares enquanto não for anulado, de carecer de impugnação num prazo certo e determinado ou fixado por lei (cfr. arts. 136.º, n.º 2 do CPA, e 58.º do CPTA), de o pedido de anulação de determinado acto administrativo ter de ser deduzido apenas perante um tribunal administrativo [cfr. art. 136.º, n.º 2 do CPA], sendo que a sentença que procede ao reconhecimento da anulabilidade do acto possui natureza constitutiva.
No nosso ordenamento jurídico-administrativo a forma de invalidade da nulidade reveste de natureza excepcional porquanto o regime regra é o da anulabilidade (cfr. art. 135.º do CPA) (cfr., por todos, Freitas do Amaral in: ob. cit., págs. 408/409).
Refere a este propósito J.C. Vieira de Andrade (in: ob. cit., págs. 586/587) que num “… sistema de administração executiva, como o português, a generalidade da doutrina está de acordo em que a anulabilidade constitui a «invalidade-regra», em função das ideias de estabilidade (das relações jurídicas criadas pelos actos ou à sombra deles) e de autoridade (mas não já de «presunção de legalidade»), do acto administrativo – para uns porque a nulidade só existe nos casos expressamente previstos na lei; para outros, porque o regime da nulidade só se aplica em casos de vícios particularmente graves …” (cfr., também, o mesmo Autor em “Nulidade e anulabilidade do acto” in: CJA n.º 43, JAN/FEV 2004, págs. 41 a 48, em especial, págs. 46/47, bem como Freitas do Amaral in: ob. cit., pág. 409).
Daí que os casos de nulidade no nosso ordenamento são aqueles que vêm estabelecidos no art. 133.º do CPA, normativo este que encerra em si, para além duma remessa para o que se mostre fulminado em lei especial com o desvalor da nulidade, um enunciado genérico que contém a lista das nulidades.
E reportando-se ao regime decorrente do citado art. 133.º refere Marcelo Rebelo de Sousa (em “Inexistência jurídica” in: “DJAP”, vol. V, pág. 242) que “… o Código aponta para as seguintes inovações, no domínio que nos importa:
1.º Suprime a figura da nulidade por natureza, ao englobá-la na cláusula geral do n.º 1 do art. 133.º;
2.º Define de tal modo a nulidade que praticamente cobre todas as situações que a doutrina e a jurisprudência consideravam de inexistência jurídica do acto administrativo.
Tomando esta segunda inovação, vemos que a nulidade passa a corresponder à falta de qualquer dos elementos essenciais do acto. Definindo Diogo Freitas do Amaral – principal autor material ou informal do Código – elementos de molde a abarcar o que outros sectores da doutrina (em que nos integramos) qualificam de pressupostos, e parecendo ser esse o sentido vazado no Código, na previsão do art. 133.º n.º 1 caberiam a falta de sujeito (órgão administrativo), de competência em termos de função do Estado e de competência absoluta, e de susceptibilidade de actuação imputável a órgão da Administração (isto é, por titulares devidamente investidos e preenchendo os requisitos de tal imputação).
Por outras palavras, acarretariam nulidade todos os casos de inidentificabilidade orgânica mínima, bem como os de inidentificabilidade material mínimas (enumerados no n.º 2) …”.
Da leitura do dispositivo em referência resulta, assim, para além duma enumeração exemplificativa das situações geradores de nulidade (cfr. o seu n.º 2 quando se emprega a expressão “designadamente”), uma enumeração genérica de duas situações geradoras igualmente do desvalor da nulidade (cfr. o seu n.º 1), ou seja, por um lado, temos aquelas situações em que por lei especial é fulminado um acto com tal forma de invalidade e, por outro, temos as situações em que um acto é nulo por lhe faltarem os “elementos essenciais”.
Atente-se, por outro lado, que dúvidas não existem quanto à previsão legal da al. d) do n.º 2 do art. 133.º do CPA que a mesma é extensível à violação de direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP, bem como aos direitos de carácter análogo àqueles insertos no próprio texto constitucional, ou em norma de direito internacional ou comunitário ou ainda em lei ordinária (cfr. J.C. Vieira de Andrade in: "Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", págs. 87 e segs.; J.M. Cardoso da Costa em "A hierarquia das normas constitucionais a sua função na protecção dos direitos fundamentais" in: BMJ n.º 396, pág. 93; M. Esteves de Oliveira, Pedro C. Gonçalves e J. Pacheco Amorim in: "Código do Procedimento Administrativo", 2.ª edição actualizada, revista e aumentada, pág. 646).
Utilizando a expressão de J.M. Cardoso da Costa temos que o legislador terá pretendido tutelar com o disposto no art. 133.º, n.º 2, al. d) do CPA o "núcleo duro" da CRP (cfr. citado autor in: loc. e pág. citados supra).
Defendem J.M. Santos Botelho, A. Pires Esteves e J. Cândido de Pinho em sede de interpretação da expressão "conteúdo essencial de um direito fundamental" utilizada no normativo a que vimos fazendo alusão que ali se consagra uma formulação absoluta e restrita dos direitos fundamentais, sendo "… absoluta na medida em que sanção da nulidade afectará todos os actos administrativos..." e "... restrita já que não será qualquer lesão que será apta a gerar tal nulidade, mas, apenas, a que afecte o conteúdo essencial…" (in: "Código do Procedimento Administrativo", 5.ª edição, pág. 799, nota 36),
Refira-se, ainda, que na previsão em análise estão ainda abrangidos os actos administrativos não só os que violam pelo seu conteúdo ou motivação esse direito fundamental mas também aqueles em cujo procedimento se postergam direitos dessa mesma natureza dos interessados.
Caso a violação do direito fundamental não atinja o seu "conteúdo essencial" ou o seu "núcleo duro", então a sanção adequada será a anulabilidade...".
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Resulta ainda do disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. a) do Dec. lei 555/99, de 16712 (alterado e republicado pela Lei 60/2007, de 4/9) - RJUE - que:
"São nulas as licenças, a admissão de comunicações prévias ou as autorizações de utilização previstas no presente diploma que:
a) Violem o disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença de loteamento em vigor".
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Revertendo para o caso dos autos, tendo presentes as considerações supra, em sede de nulidades/anulabilidades, analisada a petição inicial e as conclusões das alegações do recurso jurisdicional que nos vem dirigido (conjugadas com as contra alegações), verifiquemos da validade dos argumentos dos recorrentes em defesa da sua tese.
Nos autos, está em causa o acto de licenciamento a favor de contra interessado --- identificado na p.i. - M... - mas não demandado como contra interessado, nem citado --- deferido pela CM de Góis e que os recorrentes, por entenderem que violam os seus direitos, vêem questionando, quer junto do Município de Góis, quer junto da Provedoria de Justiça e agora judicialmente.
Mas, como infra veremos, sem razão, em termos formais [pois que se o licenciamento concedido viola (ou não) quaisquer direitos os interesses legalmente protegidos dos AA./recorrentes é questão que apenas seria analisada em sede de conhecimento de mérito que, a vingar a tese da extemporaneidade da presente AAE, não poderá ser conhecida].
Quanto às invalidades imputadas ao acto recorrido.
Atentemos, antes de mais, na p.i., articulado onde os AA./Recorrentes devem alegar os factos e as razões de direito que consubstanciam a causa de pedir - cfr. al. g) do n.º 2 do art.º 78.º do CPTA.
Consta da petição inicial - com relevo para a análise desta questão - :
- art.º 16.º - "... as obras de construção, levadas a efeito no ... prédio do dito sr. M..., confinante com o dos AA., com a distância de cerca de 15 cm. deste - e não de 1, 80 m ... violam as normas legais, de natureza civil (arts. 1346º e 1347º do Código Civil) e administrativa, incluindo o Regulamento Municipal e o próprio Plano Director Municipal (PDM) de concelho de Góis, então em vigor".
- art.º 17 - " E, ao autorizar e aprovar tais obras, o Despacho ... violou as referidas normas de natureza imperativa, pelo que é ilegal, nulo e de nenhum efeito".
- art.º 18.º - "Além disso, as referidas obras de construção civil e o consequente licenciamento municipal, limitando injustificadamente o exercício do direito de gozo, uso e fruição do prédio dos AA., ofendem ainda os seus direitos de vistas, de segurança e, bem assim os da sua privacidade, legalmente protegidos que merecem a tutela do direito".
- art.º 19.º - "Consequentemente, é nula e de nenhum efeito a licença ... designadamente, dos arts. 68.º, alínea a) e 122.º do Regime Jurídico da Urbanização e Construção (RJUE) e 133.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)".
- art.º 24.º - "O acto de licenciamento das obras em questão padece dos vícios de violação de lei (Por erro nos seus pressupostos de facto e por inobservância do dever de audiência prévia - art.º 100.º do CPA - e de desvio de poder (art.º 24.º, n.º 1, alínea a) do RJUE").
- art.º 25.º - "Houve, assim, por parte do Município de Góis ofensa do princípio da legalidade (arts. 2.º e 262.º, n.º2 da Constituição da R.P. e art.º 3.º do CPA".
- art.º 26.º - "Nos termos do art.º 24.º, n.º 1, al. a) do RJUE, o Presidente da C.M. deve indeferir os pedidos de licenciamento de obras no caso de desrespeito por normas legais e regulamentares aplicáveis, como no caso sub judice."
- art.º 29.º - "Sendo o direito de audiência prévia um direito fundamental, a sua violação implica a nulidade do acto, concretamente, da licença e alvará atribuídos ao já referido, M... (art.º 133.º, n.º2, al. d) do CPA".
- art.º 30.º - " E a violação do direito essencial também constitui violação ao art.º 62.º da CRP".
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A decisão do TAF de Coimbra, justificou a sua decisão com base na seguinte argumentação:
"... Todavia, os Autores, notificados para o exercício do direito de contraditório nos termos do disposto na al. a do n.º 1 do art.º 87.º do CPTA, não apenas com o escopo de prevenir a surpresa da decisão, mas sobretudo, para lhes possibilitar a possibilidade de discutir a solução hipotética adiantada, abstiveram-se de enquadrar legalmente as alegadas violações do Plano Director Municipal.
Por outro lado, a alegada preterição do pretenso dever de audiência prévia, apenas determina a nulidade dos actos, nos casos em que assuma uma dimensão qualificada como direito de defesa, tal como assevera a mui digna Procuradora da República no douto parecer que ofereceu, constituindo nos demais casos, tal como acontece com o vício de desvio de poder, mera causa de anulação nos termos do art.º 135.º do CPA.
...
Por último, como assinala a digna Procuradora da República “tendo invocado a violação do disposto nos arts. 1346.º e 1347.º do Código Civil (epigrafados, respectivamente, de “emissão de fumo, produção de ruídos e factos semelhantes” e de “instalações prejudiciais”) verifica-se que, não só não concretizaram os factos que a suportassem, como, sobretudo, se e em que termos se reflectiriam em termos de direito público do urbanismo, único que subordina o licenciamento impugnado (sempre sem prejuízo de direitos de terceiros privados), o mesmo valendo para a questão do distanciamento entre as construções.
Assim, não logrando os Autores imputar eficazmente, ao acto impugnado, vício cuja eventual procedência fosse susceptível – em abstracto - de produzir a respectiva declaração de nulidade, dispunham do prazo de três meses para promover a impugnação judicial, segundo prescreve a al. b) do n.º 2 do art.º 58.º do CPTA - uma vez que não foi alegada a ocorrência de qualquer das circunstâncias a que se refere o n.º 4 da mesma norma – contados nos termos do art.º 144.º do CPC (n.º 3 do art.º 58.º citado), no mínimo, a partir de 5 de Julho de 2011 - data em que alegam ter o seu ilustre mandatário remetido ao presidente da Câmara denúncia da pretensa ilegalidade.
O referido prazo de três meses, convertido em 90 dias por força da interposição do período de férias judiciais de verão, completou-se no dia 19 de Novembro de 2011.
A acção deu entrada em juízo no dia 16 de Julho de 2012, muito além do referido prazo legal".
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No que concerne à alegada violação de normas tais como os arts. 1346.º e 1347.º do Cód. Civil, 24.º, n.º1, al. a) e 122.º do RJUE, o direito de vistas, segurança e privacidade, privação de luz natural, ambiente sadio, equilíbrio urbano, a sua alegada violação, nos termos em que foram alegados na p.i., não são de modo nenhum de molde a pôr em causa a essencialidade do seu direito de propriedade, dos elencados direitos de personalidade, de molde a que o seu âmago, a sua esfera essencial, seja posta em causa.
Assim, esta alegada violação importa, sem controvérsia, como consequência para as invalidades arguidas, apenas a mera anulabilidade, pelo que nos dispensamos de outras repetições e considerações.
Refira-se que, se na p.i., os AA./Recorrentes apenas reputam, directamente à violação do dever de audiência prévia, a nulidade do acto de licenciamento - cfr. art.º 29.º, supra transcrito -, nem sequer tal violação é reafirmada nas conclusões das alegações de recurso jurisdicional, sendo certo, porém, que mesmo a verificar-se esta reincidência alegatória, nem assim se concluiria pela declaração de nulidade do acto, por via dessa invalidade, pois que tal violação não importaria essa grave consequência.
Quanto à ilegalidade derivada da infracção ao disposto no art.º 68.º, n.º 1, al. a) do Dec. lei 555/99, de 16712 (alterado e republicado pela Lei 60/2007, de 4/9) - RJUE - já teria de se considerar que, a existir a sua violação, se verificaria a nulidade da decisão impugnada e, por isso, nessa parte, seria tempestiva a acção.
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Porém, os AA./Recorrentes em artigo algum da p.i. - e mesmo, a serem formalmente válidas, mesmo em sede de alegações jurisdicionais - factualizam qualquer circunstância que demonstre, em termos abstractos, a violação de qualquer norma do disposto em plano municipal de ordenamento do território, plano especial de ordenamento do território, medidas preventivas ou licença de loteamento em vigor; aliás, nenhuma norma é sequer concretizada, quer em termos fácticos, quer mesmo em termos jurídicos.
Ou seja, que norma do RPDM, medida preventiva, licença de loteamento ou que factos se verificam que demonstrem essa violação?
Em parte alguma dos autos é sequer alegado.
Assim, é manifesta a falta de alegação de invalidades que importem a declaração de nulidade e sem elas torna-se inevitável o naufrágio da acção, desde logo em fase de saneamento.
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Por todo o exposto e sem necessidade de outros considerandos, é manifesta a improcedência de qualquer um dos argumentos alinhados pelos recorrentes nas suas alegações, pelo que importa a manutenção da sentença recorrida.
III
DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a sentença recorrida.
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Custas pelos recorrentes.
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Notifique-se.
DN.
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Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art.º 131.º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil, “ex vi” do art.º 1.º do CPTA).
Porto, 28 de Março de 2014
Ass.: Antero Pires Salvador
Ass.: Carlos Carvalho
Ass.: Ana Paula Portela