Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00366/12.0BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/21/2016
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Esperança Mealha
Descritores:ACIDENTE EM SERVIÇO; ILEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário:O Estado (e não a CGA) tem legitimidade para ser demandado numa ação de indemnização emergente de acidente em serviço (militar), quando nessa ação o autor não invoca o âmbito da proteção do Decreto-Lei n.º 503/99, nem visa obter uma pensão ou outra prestação aí contemplada para os casos de incapacidade permanente, mas antes alega uma causa de pedir fundada nos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito e pede uma indemnização para ressarcimento de um conjunto de danos, que vão para além daquela incapacidade.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MCTF
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte
1. MCTF interpõe recurso jurisdicional do despacho saneador-sentença do TAF de Mirandela que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva e, em consequência, absolveu o réu da instância, no âmbito da ação administrativa comum intentada pela Recorrente contra o ESTADO PORTUGUÊS, na qual peticiona indemnização por danos alegadamente sofridos na sequência de acidente ocorrido durante o cumprimento do serviço militar.

A Recorrente apresentou alegações, concluindo nos seguintes termos que delimitam o objeto do recurso:

1 – Constituindo o acidente sofrido pela Autora, em violação das regras legais, um ato material ilícito, imputável aos serviços e/ou agentes do lesante, a título de mera culpa, o Estado Português é obrigado a indemnizar a lesada pelos danos resultantes da violação dos seus direitos, pelo que o Tribunal " a quo «violou o disposto no artigo 483º, nº 1, do Código Civil.

2 - O Tribunal " a quo" violou o disposto nos artigos 9º e 10º do CPTA pois a legitimidade das partes pode ser referida à relação jurídica objeto do pleito e determina-se averiguando quais são os fundamentos da ação e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos.

3 - O Tribunal " a quo" violou o disposto no artigo 30º Código de Processo Civil, pois devem ser considerados titulares do interesse relevante para o feito da legitimidade, os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pela Autora.

4 - Nos presentes autos, verificam-se, no caso, todos os requisitos ou pressupostos da obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil extracontratual, do Réu por atos de gestão pública: a) Que os atos materiais sejam praticados por órgãos e/ou agentes da Administração Pública, no exercício das suas funções e por causa delas; b) O facto ilícito; c) A culpa; d) Os danos; e) O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o prejuízo.

5 - Mal andou o Tribunal " a quo" em fundamentar a alegada ilegitimidade por aplicação ao presente caso do D.L. 503/99, de 20 de novembro - ver Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 02-05-2006.

6 - Se a ação fosse intentada contra a CGA, esta viria invocar a sua própria ilegitimidade, que poderia ser considerada procedente e a CGA julgada parte ilegítima, bastando, para tal, invocar os fundamento que foram invocados pelo Ministério de Defesa, sendo certo que esta apenas está obrigada a prestar uma pensão e não a indemnização pelos danos causados a título de culpa ou negligência, o que levaria a um «non liquet».

7 - Contrariamente ao referido pelo Tribunal " a quo", o D.L. 503 / 99, de 20 de Novembro, e, consequentemente, a CGA não é responsável pelos danos peticionados pela Autora, pois, em caso de responsabilidade extracontratual do Estado, não lhe compete ressarcir o lesado em tudo o que ultrapasse o disposto nos citados normativos legais.

8 - Ora, no caso em apreço, tratando-se de um processo para efetivação de responsabilidade civil, objetiva, a ação deve ser proposta contra o Estado, que é a parte detentora de personalidade jurídica e, por equiparação da lei processual civil, de personalidade judiciária, e não contra o Ministério, que é um órgão do Estado.

9 - Tendo em conta a causa de pedir e os pedidos formulados, a não ser aceite como parte legítima o Estado Português, a sentença será contra o mesmo inexequível, e, logo, o pedido fundado em responsabilidade extracontratual do Estado fará letra morta, ficando o particular impedido de responsabilizar o Estado Português pelos danos causados.

10 - Com a decisão proferida pelo Tribunal " a quo" foram violados os artigos 212º, nº 3, 268º, nº 4 e nº 5 e 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP), e o artigo 2º, nº 1, do CPTA.

11 - Assim, o direito de acesso aos tribunais, a que se refere o nº 1 do artigo 20º da Lei Fundamental, inclui, desde logo, o direito de ação e de acesso a tribunais - órgãos independentes e imparciais - (Acórdão nº 363/04, processo nº 834/03), o direito a um processo, o direito a decisão sobre a causa e o direito à execução da decisão.

12 - Ainda que o Tribunal " a quo" tivesse considerado não ter legitimidade passiva, sob pena de se cair num "non liquet", sempre deveria ter convidado a parte a suprir a alegada ilegitimidade, chamando a CGA à ação, em cumprimento do disposto nos artigos 4º, 5º e 6º do C.P.C..

13 - Assim, deveria ter o Tribunal "a quo" considerado improcedente a invocada exceção dilatória e, em consequência, ter mandado prosseguir a presente ação, sendo o Estado Português considerado parte legítima.

14 - Portanto, a douta sentença recorrida tem de ser substituída por outra que julgue improcedente a exceção, e, em consequência, se considere o Réu, aqui Apelado, como parte legítima, prosseguindo os presentes autos os seus termos legais, pelo que a douta sentença saneador violou, nesta parte, o disposto no artigo 615º, 1, do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal “a quo” está obrigado e limitado pelos factos articulados pelas partes (artigo 5º do C.P.C.), violando também o disposto nos artigos 552º, 578º, 577º, 609º e no artigo 15º, todos do Código de Processo Civil, e seus basilares princípios.

*
O representante do Ministério Público junto do tribunal recorrido contra-alegou em representação do Recorrido, concluindo o seguinte:
Bem andou o Mmo juiz a quo ao se decidir pela ilegitimidade passiva do Estado acabando a absolvê-lo da instância;Com o que o recurso terá de ser julgado improcedente.
***
2. O despacho saneador-sentença recorrido tem o seguinte teor, na parte relevante:
“Da impropriedade do meio processual
Nesta parte, sustenta o Réu que configurando a Autora o facto como acidente, acidente em serviço, como configura na petição inicial, os trâmites processuais terão que ser outros. A eventual reparação por incapacidade ou desvalorização permanente deve ser efetuada nos termos do Decreto-lei 503/99 e através da Caixa Geral de Aposentações.
A Autora, em resposta, aduz que o Réu pretende invocar uma situação de ilegitimidade passiva. Neste âmbito, refere que tem que ser presente a Junta Médica para confirmação como grande deficiente das forças armadas e que à cautela já requereu a aplicação do referido diploma legal junto do Centro Nacional Proteção Contra Riscos Profissionais, o qual respondeu que não é competência sua e que, por tal, o processo deve ser encaminhado para as entidades competentes para tratar dos acidentes em serviço, de acordo com o Decreto-lei 503/99.
Analisada a alegação de ambas as partes, é forçoso reconhecer, desde já, que a invocação do Réu vai no sentido de ilegitimidade passiva e não de impropriedade processual.
Veja-se que o Réu não diz, sequer, qual a forma de processo adequada, a verificar-se a invocada impropriedade processual, apenas sustentando a aplicação de um diploma legal diverso e a indicando a Caixa Geral de Aposentações como entidade competente para a sua aplicação.
Posto isto, ter-se-á que apreciar a ilegitimidade passiva. Antes de mais, a legitimidade deverá ser aferida nos estritos termos em que o autor, no articulado inicial, delineou o interesse em demandar e o interesse em contradizer, pelo que a ocorrência deste pressuposto é independente da existência real dos factos constitutivos do interesse alegado.
Dispõe o artigo 10º do C.P.T.A. que:
1. Cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.”.
Tendo em conta a relação material controvertida tal qual é configurada pela Autora, o seu pedido de indemnização assenta na ocorrência de um acidente de serviço. Acidente esse que ocorreu quando realizava exercícios a coberto da sua atividade profissional.
Portanto, na verdade, a Autora não estabelece a relação material controvertida com o Réu Estado Português mas com a sua entidade empregadora, não imputando ao Estado Português, propriamente dito, qualquer relação com o sucedido e que originará o direito de indemnização.
Acresce que a Autora acaba por assumir, em sede de réplica, que será de aplicar o Decreto-lei 503/99 (ponto 11 da réplica). Ora, deste diploma resulta que os processos ressarcitórios devidos a acidente de serviço competem à Caixa Geral de Aposentações.
Mais a mais, o documento junto com a réplica vai no mesmo sentido e a Autora assume, até, que o procedimento tendente à determinação da incapacidade ainda não terminou (cfr. pontos 10 da réplica), o que conduz a que se conclua que ainda não está estabilizada a relação material controvertida.
Deste modo, não tendo sido estabelecida a relação material controvertida com o Estado Português, mas antes com a entidade empregadora, conclui-se pela ilegitimidade passiva daquele. E não se diga que a entidade a demandar é o Ministério, porquanto o diploma legal que se aplica à presente situação determina que tal compete à Caixa Geral de Aposentações.
Pelo exposto, julgo procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, absolvendo o Réu da instância.”

A questão a decidir no presente recurso resume-se a saber se, tal como decisão o tribunal recorrido, a presente ação administrativa comum visa o exercício de um direito de indemnização fundado em acidente de serviço, regulado pelo Decreto-Lei n.º 503/99, na qual devia ser demanda a Caixa Geral de Aposentações, não sendo o Estado parte da relação material controvertida e, como tal, não tendo legitimidade para ser demandado; ou se, como pretende a Recorrente, está em causa uma ação emergente de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, na qual o demandado deve ser o Estado.

Do teor da petição inicial extrai-se que a seguinte alegação, relevante para determinar o pedido e a causa de pedir da ação e, consequentemente, responder ao problema em apreço:

− a Autora celebrou, em 13.09.2004, contrato para prestação de serviço com o Ministério da Defesa Nacional e exerceu, na categoria de Praças do Exército, funções correspondentes à especialidade de 031 I-Atirador;

− a Autora pede uma indemnização para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais que alegadamente sofreu em consequência de acidente ocorrido, em 19.12.2005, durante o cumprimento do serviço militar, quando, em se encontra em manobras em Espanha, num exercício conjunto com o Exército Espanhol em Valladolid;

− alega que, quando realizava “tiro instintivo” e efetuava o exercício “queda na máscara” (que consiste em marcha normal, seguida de queda com arma e posição de tiro) bateu com o cotovelo direito no chão e deslocou o úmero;

− requereu a fixação do grau de incapacidade de que ficou a padecer e foi avaliada por uma Junta Especial de Recurso que, em 09.11.2007 conclui que “mantém a situação clínico-militar anterior, ou seja, incapaz para o serviço militar e pata para o trabalho e para angariar meios de subsistência”;

− no processo de averiguações por acidente, que decorreu no Regimento de Infantaria n.º 13, concluiu-se que o acidente foi “resultante do exercício das suas funções e por motivo do seu desempenho”;

− o acidente causou-lhe, além do mais, sequelas, passíveis de valorização médico-legal, através da atribuição de uma Incapacidade Permanente Parcial, tendo a Junta Médica de recurso do Exército considerado, em 27.06.2012, que a Autora é “incapaz de todo o serviço militar apta para o trabalho com 5% de desvalorização”;

− considera que o Estado Português violou deveres de cuidado, uma vez que aos instrutores incumbia o dever de verificarem se o local oferecia qualquer risco de perigo e conclui que estão reunidos os pressupostos da sua responsabilidade civil por facto ilícito, previstos, à data, no Decreto-Lei n.º 48051;

− peticiona uma indemnização no valor total de €39.110,99 para ressarcimento de danos morais (€16.00), dano estético (€2.500), quantum doloris (€5.000), incapacidade permanente profissional (€15.000), despesas médicas e outras (€39.110,99); mais peticionou as quantias que se vierem a apurar em liquidação de sentença, para o “caso de a IPP a determinar pelos Serviços de Medicina Legal e o quantum doloris e dano estético forem mais graves do que se encontra peticionado.

Resulta da alegação da Autora/Recorrente que a presente ação visa o pagamento de uma indemnização pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente que sofreu em 19.12.2005, durante o cumprimento do serviço militar, na vigência do contrato para prestação de serviço que celebrou com o Ministério da Defesa Nacional.

A provar-se o alegado pela Autora/Recorrente, estaremos perante um acidente sofrido quando a autora detinha a categoria de militar e no decurso e por causa do cumprimento dessas funções e do qual terá resultado, para a lesada, uma incapacidade permanente parcial, entre outros danos.

Nos termos do disposto no artigo 55.º do Decreto-Lei n.º 503/99, o Capítulo IV deste diploma – onde se estabelecem as regras sobre a responsabilidade da Caixa Geral de Aposentações – “aplica-se aos militares das Forças Armadas, incluindo os que se encontram no cumprimento do serviço militar obrigatório”. Ou seja, tal regime aplica-se ao pessoal militar e militarizado, responsabilizando a CGA pela reparação das situações de incapacidade permanente, matéria versada no citado capítulo IV daquele diploma legal (cfr. artigos 34.º e s.).

Como se conclui nos Acórdãos do STA de 07.05.2003, P. 0204/02, “Tratando-se de acidente ocorrido em serviço, numa missão de lançamento de pessoal, em pára-quedas, por militar que prestava serviço, em regime de contrato, e não se tendo verificado qualquer conduta ilícita e culposa por parte dos agentes do Estado, a indemnização a que o recorrente possa ter direito em consequência de sequelas resultantes do acidente situa-se no âmbito da proteção prevista na lei para os acidentes em serviço apenas podendo relevar em sede de uma eventual pensão por invalidez.” (no mesmo sentido, v. o Acórdão do STA, de 07.05.2003, P. 0204/02). E como foi salientado no Acórdão deste TCAN de 06.03.2015, P. 00431/13.6BECBR, “[N]os artigos 5.º, n.º 3 e 34.º, n.ºs 1 e 4, do Decreto-Lei n.º 53/99, de 20 de novembro, o legislador criou expressamente um regime específico relativamente à Caixa Geral de Aposentações, no que concerne à competência, avaliação, reparação, atribuição e pagamento, quando estejam em causa situações relacionadas com incapacidade permanente e morte do trabalhador.

Sendo a Caixa Geral de Aposentações uma pessoa coletiva de direito público (cfr. sucessivamente os Decretos-Lei n.ºs 277/93, 84/2007 e 131/2012) distinta do Estado, em princípio, é a referida CGA que deve ser demandada nas ações que visem o pagamento de uma pensão ou outras prestações devidas por incapacidade permanente resultante de acidente em serviço, nos termos regulados no citado Decreto-Lei n.º 503/99.

Acontece que, no caso vertente, o pedido e a causa de pedir – tal como configurados pela Autora/Recorrente na sua petição inicial – não se fundamentam no âmbito da proteção prevista nesse Decreto-Lei n.º 503/99 (causa de pedir), nem visam obter uma pensão ou outra prestação aí contemplada para os casos de incapacidade permanente (pedido). Na presente ação, a causa de pedir invocada pela Autora assenta nos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas por ato ilícito (que expressamente invoca) e o pedido é um pedido indemnizatório para ressarcimento de um conjunto de danos, que embora incluindo os decorrentes da referida incapacidade, vão para além desta e que, tal como alegado pela Recorrente, se fundamentam na atuação dolosa ou negligente de uma entidade pública (Ministério da Defesa Nacional).

Assim sendo, são partes na relação material controvertida, tal como configurada na petição inicial (ou seja, assente em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito), a Autora e o Estado, nos termos previstos no artigo 11.º do CPTA.

Não pode, por isso, manter-se a decisão recorrida. Questão diversa, que aqui não cumpre apreciar (porque não foi tratada na decisão recorrida nem se inclui no objeto do presente recurso), é a de saber se a petição inicial contém alegação suficiente, de facto e de direito, para sustentar o referido pedido de indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual do estado por ato ilícito.

Pelo que procede o recurso, devendo ser julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva do Estado.


***

3. Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, julgar improcedente a exceção de ilegitimidade passiva do Estado e ordenar o prosseguimento dos autos, se a tanto nada mais obstar.

Custas pelo Recorrido.

Porto, 21.04.2016
Ass.: Esperança Mealha
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Migueis Garcia