Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02699/09.3BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/14/2014
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:ERRO SOBRE PRESSUPOSTO FACTO
MATÉRIA DE FACTO CONTROVERTIDA
ERRO JULGAMENTO FACTO
Sumário:I. O julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa considerando, mormente, toda a realidade factual relevante para apreciação de todos os fundamentos de ilegalidade invocados, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.
II. Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objeto da ação, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e selecionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão impugnatória formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória [arts. 511.º, n.º 1 CPC/2007, 87.º e 90.º do CPTA], seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida [arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC/2007, e 90.º do CPTA] e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto [arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC/2007, 91.º e 94.º do CPTA].
III. Através da remissão operada pela parte final do n.º 2 do art. 90.º do CPTA mostram-se hoje afastadas as limitações de instrução probatória e de meios de prova legalmente admissíveis no contencioso administrativo e que existiam no anterior contencioso já que as ações administrativas especiais previstas e reguladas no CPTA passaram, nesse âmbito, a ser disciplinadas pelo regime decorrente dos arts. 410.º a 526.º do CPC/2013 [anteriores arts. 513.º a 645.º do CPC/2007], atribuindo-se ao julgador administrativo poderes de controlo e de instrução nesse mesmo domínio.
IV. O juiz administrativo confrontado com a falta de acordo das partes quanto à dispensa da prova e com a existência de factualidade controvertida relevante para a decisão da causa deve, em sede de despacho saneador e apesar da falta expressa de referência à aplicação do CPC na tramitação da fase de saneamento e condensação, atualmente denominada de “gestão inicial do processo e da audiência prévia”, proceder à fixação do objeto do litígio e definir aquilo que são os temas da prova tal como determina o art. 596.º do CPC/2013 à luz das várias soluções plausíveis de direito.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:JT..., Projectos e Construção Civil, Lda.
Recorrido 1:Ministério da Economia e Inovação
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
“JT..., PROJECTOS E CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA.”, devidamente identificada nos autos, inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Penafiel, datada de 07.03.2013, proferida na ação administrativa especial pela mesma instaurada contra o “MINISTÉRIO DA ECONOMIA” [doravante «ME»] [anteriores “MINISTÉRIO DA ECONOMIA E DO EMPREGO” e “MINISTÉRIO DA ECONOMIA, DA INOVAÇÃO E DO DESENVOLVIMENTO” - cfr. leis orgânicas dos XVIII e XIX Governos Constitucionais (DL n.º 321/2009, de 11.12 e DL n.º 86-A/2011, de 12.07) e leis orgânicas aprovadas, respetivamente, pelo DL n.º 11/2014, de 22.01, pelo DL n.º 126-C/2011, de 29.12 e pelo DL n.º 208/2006, de 27.10] e que julgou improcedente a sua pretensão de anulação da decisão de 08.07.2009, comunicada pelo ofício DGIC/DRF-FS datado de 27.07.2009, que determinou a restituição do montante de 5416,44 € relativa ao projeto n.º 00/22566.
Formula a A. aqui recorrente nas respetivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem [cfr. fls. 318 e segs. - paginação processo suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário]:
...
A - O R. imputou à A. a existência de duas sobreposições ao nível de formador na formação que fazia parte do curso de Qualificação de Recursos Humanos - Prime, aprovado por decisão notificada à A. em 14.06.2007.
B - A A. impugnou expressamente essa imputação não só quando notificada para se pronunciar, nos termos dos arts. 100.º e 101.º do CPA (audiência prévia), mas também quando impugnou a decisão respetiva com a propositura da presente ação, juntando documentos, quer naquela, quer nesta, impugnação.
C - A Administração (o R.) até admite a razão da A., e, portanto, a não existência de tais sobreposições, mas não toma em consideração os documentos juntos na resposta à notificação referida na conclusão anterior, por os considerar extemporâneos, assim admitindo, formalmente, tais ditas sobreposições.
D - A A. na petição inicial da ação impugna, juntando documentos comprovativos da sua alegação, a existência de tais sobreposições, alegando exaustivamente as razões da não verificação das mesmas, razões comprovadas pelos documentos juntos ao articulado referido.
E - O Tribunal, ora recorrido, não curou de averiguar das razões invocadas pela A., nem da documentação pela mesma apresentada, e louvando-se apenas na alegação da Administração (R.), entendeu dar como provados os factos invocados pela dita Administração, fazendo tábua rasa do alegado pela A. e da documentação por ela junta.
F - Ora a A. na resposta à notificação que lhe foi feita no âmbito da audiência prévia, e ao abrigo do n.º 3 do art. 101.º do CPA, juntou os documentos já referidos, pelo que, nos termos esse normativo e dos princípios do Estado de Direito e do contraditório, à dita Administração, incumbia a obrigação de analisar os mesmos e apurar da verdade ou não das aludidas sobreposições, obrigação que não cumpriu minimamente, limitando-se a considerá-los tardiamente apresentados.
G - Na presente ação interposta por violação dessa obrigação, e salientando-se comprovadamente, como dito atrás, a não existência de tais sobreposições, pediu-se a anulação da decisão de cancelamento do financiamento e da devolução da importância já entregue, uma vez não existir a imputada irregularidade.
H - A sentença recorrida, seguindo o entendimento da Administração, não analisa as razões alegadas pela A. e os respetivos documentos juntos, e, apesar do próprio art. 90.º do CPTA impor ao juiz o dever de tudo fazer para apurar a «verdade material», não se quedando pela mera verdade formal, e, portanto, dá como provadas as imputadas sobreposições, com manifesta violação desse art. 90.º, que inclusivamente até manda aplicar o Código de Processo Civil.
I - Ora, do alegado e comprovado pela A., face aos documentos juntos aos autos, resulta que efetivamente não ocorreram essas imputadas sobreposições, e que a formação foi real e efetivamente realizada, pelo que a sentença recorrida decidiu erradamente ao dar como provadas as sobreposições.
J - Pelo que tem, nessa medida, de ser revogada e face a essa revogação, e não se provando as sobreposições, deve o pedido formulado na ação ser julgado procedente e, em consequência, anulada a decisão impugnada na ação.
K - Se, porém assim se não entender, e antes se vier a entender não poderem tais documentos serem considerados apenas por se considerar tardia a sua junção, como sustentado pelo R., deve então, e mesmo assim, a decisão impugnada ser anulada por evidente violação do princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no n.º 2 do art. 266.º da CRP e n.º 2 do art. 5.º do CPA.
L - Uma vez que o cancelamento do financiamento e a devolução da reduzida quantia já entregue é uma sanção manifestamente desproporcionada à junção tardia de tais documentos.
M - Assim, sendo manifesta a violação dos arts. 100.º e 101.º n.º 3 do CPA, 90.º do CPTA e mesmo n.º 2 do art. 266.º da CRP e n.º 2 do art. 5.º do CPA, deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, julgado totalmente procedente o pedido da A. formulado na petição inicial …”.
O R., ora recorrido, notificado apresentou contra-alegações [cfr. fls. 337 e segs.], tendo concluído que:

1. Dá-se por reproduzida a sentença por ser a mais adequada e melhor resposta para o recurso, bem como reproduzida a contestação do MEE por se aplicar inteiramente o alegado.
2. Todos os documentos instruídos até à decisão foram juntos ao procedimento foram analisados para a decisão, e devidamente ponderados. Não só não se prova o contrário como a recorrente sustenta, (Concl K) como tal se prova no «P.A.» e se encontra provado na sentença.
3. Pelo instrutor e pelo decisor administrativo foram cumpridos os preceitos legais cujo incumprimento a recorrente pretende: art. 100.º,101.º do CPA. O tribunal também cumpriu o art. 90.º do CPTA.
4. É falso o pretexto inventado pela recorrente de que houve uma junção tardia de documentos que não foram ponderados para a decisão. Nem se trata de junção tardia, nem de não consideração de documentos, para a decisão administrativa impugnada.
A instrução não beliscou a imparcialidade e o interesse público e os outros princípios constantes do art. 266.º da CRP, bem como os preceitos legais, como é a do caso.
5. A ação discute apenas a invalidade do ato decisor impugnado ao tempo da decisão administrativa. A validade do ato afere-se pelo cumprimento da legalidade ao tempo do ato impugnado. Tempus regit actum. Desinteressam pretensos documentos novos alegadamente juntos aos autos judiciais.
6. O ato impugnado tem como pressupostos de facto não a realidade material mas a realidade declarada, ou melhor, as declarações.
E isso basta-lhe. Porque a irregularidade está nas incorreções declarativo/formais que se provam pelas declarações em si e o efeito de falta de fé que causaram. E não numa incorreção material como a recorrente pretende. A falta de correspondência (ou correspondência) material entre o declarado e o ocorrido não chega a ser relevante quando desde logo o declarado, as declarações não oferecem condições de confiança e fidedignidade exigidas para o financiamento - que se baseia na confiança das declarações.
Ou seja, basta que as declarações em cuja confiança e garantia de fidelidade (fidedignidade) o subsidio se baseia - por notoriamente não ser exequível às autoridades administrativas estarem presentes em cada projeto financiado e observarem e controlarem diretamente in locu cada curso, de todos os inúmeros promotores - deixem de merecer essa confiança e a fidedignidade pressuposta.
7. Nas circunstâncias do caso a que foi aplicado o art. 23.º n) da Port. 799-B/2000, para conferir a legalidade do ato, a sentença recorrida só tinha que relevar e apreciar o que foi e deveria ser pressuposto de facto do ato: o conjunto das declarações sobre o processo formativo. Tanto bastava para se aplicar aquela norma e consequentemente revogar a aprovação do financiamento.
Pelo que também não errou na seleção e julgamento da matéria de facto relevante. Ateve-se, e bem, ao que foi eleito pela lei para relevar prejudicialmente em primeira linha na decisão administrativa.
8. A sentença não dá por provado mais do que foi declarado no procedimento. Ou seja, as declarações emitidas sucessivamente no procedimento. A sentença não dá como provadas as sobreposições materiais que a recorrente quer ver negadas, mas sim as declarações sobre essas sobreposições, e constata que as mesmas se verificaram no procedimento. O que é objetivo, e só veio ser confirmado por novas declarações contraditórias que a promotora veio juntar a posteriori para compor o antes declarado. Se uma declaração não merecem definitivamente crédito não há razão para que outras provindas do mesmo interessado, e depois de lhe ser comunicado o óbice, beneficiem da presunção de crédito.
9. Como as declarações da promotora sobre o processo formativo, independentemente da realidade dos cursos ter ocorrido, se revelam, até pela incoerência, inexatas ou incompletas ou desconformes, havia que revogar o financiamento e a aprovação do projeto de financiamento, se, como aconteceu, no juízo insindicável do decisor afetassem de modo substantivo a justificação do subsídio.
11. A atribuição do financiamento baseia-se nas declarações, na confiança e fidedignidade das declarações do promotor. Estas são os seus primeiros pressupostos de facto. Caso sejam inexatas, incompletas ou deficientes, a realidade de facto torna-se irrelevante, por logo se terem prejudicado as condições maxime de confiança exigidas e em que se justificava o subsídio.
12. Verificaram-se desconformidades, deficiências e inexatidões sobre o processo formativo da A. Constam da matéria provada da sentença e do «P.A.».
Essas irregularidades segundo o critério judicialmente insindicável da administração afetam «de modo substantivo a justificação do subsídio recebido e a receber».
Pelo que a sentença aplicou bem a lei.
13. A incompletude de declaração é algo puramente formal, assim como a inexatidão. E se as declarações, independentemente da realidade dos cursos terem ocorrido, forem inexatas ou incompletas ou desconformes (formalmente desconformes ou entre si) de modo que no entender do Gestor afetem substantivamente a justificação do subsídio há que revogar o financiamento e a aprovação do projeto de financiamento.
14. Se de facto as sobreposições ocorreram ou não, tornou-se irrelevante. O que é prejudicialmente relevante é se sobre o processo formativo ocorreram declarações inexatas, incompletas ou desconformes sobre o processo formativo que afetem de modo substantivo a justificação do subsídio.
E a este respeito o tribunal só pode concluir que ocorreram as referidas inexatidões desconformidades e deficiências sobre o processo formativo. Respeitando aliás a aplicação pelo órgão administrativo a partir da sua margem de discricionariedade.
15. Tinha o tribunal a quo que respeitar a margem de liberdade administrativa no juízo de que essas inexatidões, incompletudes e desconformidades existiam com o âmbito que lhes reconheceu, e que afetam de modo substantivo a justificação do subsídio.
Há reserva de administração quanto a essa margem de liberdade na concretização e aplicação da previsão do art. 23.º, n.º 1 n) da Port. 799-B/2000.
16. O referido art. 23.º, n.º 1 n) tem caráter vinculativo: Uma vez encontrando-se preenchida a sua previsão por a administração preenchendo os conceitos indeterminados constatar os factos e entender que afetam «de modo substantivo a justificação do subsídio recebido e a receber» a aplicação da estatuição da norma determina a revogação, exclui a competência do aplicador em optar por outra solução.
Tal como se prevê no art. 23.º, n.º 1 n) da Port. 799-B/2000 todos esses pressupostos determinam, sem margem de liberdade ou possibilidade de aplicação de outra norma menos gravosa, a revogação da aprovação do financiamento concedido.
17. Não há violação dos princípios da proporcionalidade porque é a lei que vincula a verificação discricionária dos pressupostos da previsão do art. 23.º n) da Port. 799-B/2000 à revogação da aprovação do pedido de financiamento.
18. É a lei que estatui a revogação face àquela previsão: face à gravidade e seriedade dos interesses em causa por estarem em causa dinheiros públicos sem reembolso, e sua dependência do rigor das declarações. Não a redução. Tem que se cumprir, sem qualquer liberdade de aplicação de outras normas, que necessariamente têm a sua previsão excluída do universo do art. 23.º n.º 1 n) da Port. 799-B/2000.
19. Não sendo a norma inconstitucional, nem como tal arguida, não dá margem para aplicação do princípio da proporcionalidade ou outro.
20. O princípio da separação de poderes não permite que o tribunal critique o critério da norma. E a sua aplicação. A administração não tem liberdade para deixar de aplicar esta norma, nem o tribunal poderá deixar de impor a aplicação da norma uma vez preenchida a sua previsão de acordo com os critérios administrativos legalmente determinados.
21. Pelo que se conclui que a sentença recorrida não merece crítica, antes o sentido da sua decisão é inevitável e conforme à lei …”.
A Digna Magistrada do Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificada nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA, não emitiu qualquer parecer ou pronúncia [cfr. fls. 357 e segs.].
Colhidos os vistos legais juntos dos Exmos. Juízes-Adjuntos foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que se, pese embora por um lado, o objeto do recurso se ache delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos arts. 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do CPTA, 05.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º do CPC/2013 [na redação introduzida pela Lei n.º 41/013, de 26.06 - cfr. arts. 05.º e 07.º, n.º 1 daquele diploma -, tal como todas as demais referências de seguida feitas relativas a normativos do CPC] [anteriores arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 685.º-A, n.º 1 todos do CPC - na redação introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24.08] “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem” em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto ainda que a declare nula decide “o objeto da causa, conhecendo de facto e de direito” reunidos que se mostrem no caso os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas.
As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida ao julgar totalmente improcedente a pretensão deduzida pela A. incorreu ou não em erro de julgamento de facto e de direito, por errada interpretação e aplicação do disposto, nomeadamente, nos arts. 90.º CPTA, 266.º, n.º 2 da CRP, 05.º, 100.º, 101.º, n.º 3 do CPA [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Para a análise do litígio em discussão resultou como assente na decisão judicial recorrida o seguinte quadro factual:
I) A A. apresentou a sua candidatura para financiamento à formação profissional no âmbito do "Programa de Incentivos à Modernização da Economia" - PRIME -, recebendo o n.º 00/22566 (cfr. fls. 23 dos autos);
II) A candidatura supra referida foi aprovada pelo despacho do Gestor do «PRIME», de 28.05.2007 (cfr. fls. 23 dos autos);
III) Em 25.09.2008, foi elaborada no «IAPMEI» a Proposta n.º 1314/2008, com o seguinte teor (por excerto):
...
1. Dados Cronológicos
Entrada da Candidatura - 08/08/2006
Homologação (12 Decisão) - 30/11/2006
Homologação (22 Decisão) - 28/05/2007
Aceitação do TA - 25/07/2007
Entrada do PPS - 12/05/2008
2. Factos Relevantes
Em sede de análise do PPS após o cruzamento das folhas de sumários e presenças dos vários cursos do plano de formação do projeto referido em epígrafe e o cruzamento das folhas de sumários e presenças deste projeto com as folhas de outros projetos, verificámos a existência de sobreposição ao nível do formador:
- No dia 1 de março de 2008, o formador AM... da A... ministrou das 14h00 às 16h00 a ação 1 do curso 3 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa JT... - PROJECTOS E CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA. e a ação 2 do curso 2 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa EDS - E... DOURO SUL, LDA. (ANEXO I);
- No dia 17 de março de 2008, o formador AM... da A... ministrou das 18h30 às 20h30 a ação 1 do curso 3 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa JT... - PROJECTOS E CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA. e das 18h00 às 20h00 a ação 1 do curso 2 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa EDS - E... DOURO SUL, LDA. (ANEXO II) ...” (cfr. fls. 833 a 840 do «P.A.»);
IV) Pelo ofício do «IAPMEI», com registo de saída n.º 00058315, de 22.10.2008, a A. foi notificada para audiência prévia da intenção dos serviços do R. em revogar a decisão de aprovação do financiamento ao projeto identificado no ponto I) deste probatório (cfr. fls. 39 e 40 dos autos);
V) A A., em sede de audiência prévia, apresentou a seguinte pronúncia (por excerto):
... A entidade formadora (A... - Consultoria e Formação, Lda.) e o formador AM... foram contatados no sentido de tentarmos apurar o que terá conduzido a esta formalização errada da formação.
Concluímos, então, que a formação se encontrava inicialmente agendada para essas datas e horários. No entanto, o formador solicitou à A... que as mesmas fossem alteradas por já ter assumido outros compromissos profissionais nas referidas datas. Para tal, procedeu ao preenchimento do impresso designado por «Pedido de Substituição de Horário» (anexos II e III). Como o formador elabora sempre os Planos de Sessão antes das ações de formação terem início, as datas e horários que constavam dos mesmos eram o dia 01/03/2008, das 14h às 16h e dia 17/03/2008, das 18h30 às 20h30. E, por lapso, no momento em que solicitou a alteração do horário não procedeu à retificação dos respetivos Planos de Sessão.
Sendo assim, facilmente nos apercebemos de que o lapso aconteceu no momento em que o formador teve que passar a informação constante do Plano de Sessão para a folha de presença e sumários.
O formador não terá colocado a data e horário efetivo da formação mas antes aqueles que constavam do Plano de Sessão que foi elaborado inicialmente.
Sendo assim, as datas efetivas da formação são o dia 01 de março de 2008, das 10h às 12h e o dia 17 de março de 2008, das 21 h às 23h, respetivamente.
Acresce que a A..., na qualidade de entidade formadora, perante a alteração do cronograma elaborou um «Registo de Ocorrências» (anexo IV) do qual consta o registo desta alteração, nomeadamente, a data e horário em que a formação foi efetivamente realizada … - cfr. fls. 42 e 43 dos autos;
VI) Em 24.06.2009, foi elaborada no «IAPMEI» a Proposta n.º 1850/2009, com o seguinte teor (por excerto):
...
Situações identificadas
Sobreposição de formador:
. No dia 1 de março de 2008, o formador AM... , da A..., ministrou das 14h00 às 16h00 a ação 1 do curso 3 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa JT... - PROJECTOS E CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA. e a ação 2 do curso 2 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa EDS - E... DOURO SUL, LDA.;
. No dia 17 de março de 2008, o formador AM... , da A..., ministrou das 18h30 às 20h30 a ação 1 do curso 3 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa JT... - PROJECTOS E CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA, e das 18h00 às 20h00 a ação 1 do curso 2 «Sensibilização para a Qualidade» na empresa EDS - E... DOURO SUL, LDA.
(...)
- Análise da Alegação do Promotor
É do conhecimento generalizado de todos os intervenientes na gestão de planos de formação que os mesmos são dinâmicos e dificilmente se realizam tal e qual como previsto havendo necessidade de se adequarem as atividades formativas com as disponibilidades dos diferentes intervenientes e o IAPMEI não questionou tal facto. Todavia, tal não justifica as situações verificadas no projeto em análise, sendo certo que, independentemente da necessidade de adequar as sessões formativas às necessidades da empresa, as folhas de sumários e presenças deverão espelhar a realidade efetiva a todos os níveis - seja ao nível dos formandos e formadores intervenientes, ao nível dos conteúdos abordados, da duração, e também do horário e das datas de realização - não havendo qualquer razão plausível que justifique o facto de as folhas de presença/sumários não refletirem a verdade material das sessões que as mesmas visam retratar. Assim, estes elementos têm de transmitir informação fiável e fidedigna, salientando-se que os mesmos são assinados quer pelos formandos quer pelos formadores.
Ora, o promotor justifica as sobreposições detetadas invocando, precisamente, erros de registo nas folhas de sumário e presenças, em resultado da necessidade de alterar o horário das sessões em causa. Acrescente-se ainda, relativamente ao mencionado «registo de ocorrências», que, para além de não explicar os referidos erros, não foi enviado ao IAPMEI na altura própria, isto é, conjuntamente com a principal documentação comprovativa da formação ministrada, nomeadamente as folhas de sumário e presenças.
Refira-se, a propósito, que o legislador consagrou como um dos motivos de revogação da decisão de aprovação do pedido de financiamento a prestação de declarações inexatas, incompletas e desconformes sobre o processo formativo, introduzindo limites aos fundamentos dessa revogação de forma a assegurar o princípio da proporcionalidade, não se penalizando, de igual forma, projetos com irregularidades com impactos distintos. Ora, no caso em apreço, o erro que se verifica entre os dados das folhas de sumários e de presença, em termos de dias e horários de formação, e a formação que o promotor apresenta como ministrada situa-se acima dos 2%, i.e., acima do limiar de fiabilidade aceitável no âmbito das intervenções estruturais.
A Decisão da CE acerca das Orientações Relativas ao Encerramento das Intervenções dos Fundos Estruturais, refere como limite máximo de admissão de erros 2% das despesas controladas. Pese embora esta orientação esteja definida no nível de controlo macro - Relatórios de Execução dos Programas considerando que o que está em causa é a informação que irá integrar o relatório global de encerramento, há que garantir a uniformidade de procedimentos. Assim, o erro máximo admissível, apurado com base no volume de formação, para os projetos em fase de encerramento não pode ser superior a 2% assumindo-se que, acima deste limiar, os projetos não obedecem a parâmetros de fiabilidade aceitáveis no âmbito das intervenções estruturais.
3. Conclusão
Face ao atrás exposto, o projeto em apreço, incorre de um erro, entre os dados das folhas de sumários e de presença, em termos de dias e horários de formação, e a formação que o promotor apresenta como ministrada, que se situa acima dos 2%, i.e., acima do limiar de fiabilidade aceitável no âmbito das intervenções estruturais.
Assim, as alegações apresentadas pelo promotor, não juntam ao processo elementos suficientes para alterar a anterior proposta de rescisão contratual, entendendo-se que não foram contraditados de forma fundamentada todos os fundamentos de revogação anteriormente evocados, pelo que propomos a manutenção da anterior proposta de revogação da decisão de aprovação do pedido de financiamento, de acordo com o previsto na alínea n) do n.º 1 do art. 23.º da Portaria 799-B/2000, com a consequente descativação do incentivo atribuído no valor de 24.588,42 € e restituição de verbas já auferidas no montante de 5.416,44 € ...” - (cfr. fls. 820 a 823 do «P.A.»);
VII) Sobre a Proposta acima referida e sobre a Informação Interna n.º 212/GPF/UFET/2009, de 07.07.2009, o Gestor do «COMPETE» proferiu em 08.07.2009 o seguinte despacho: «Revogo as decisões de aprovação, nos termos e com os fundamentos expostos» - (cfr. fls. 28 e 29 dos autos) – ATO ADMINISTRATIVO IMPUGNADO.
«»
3.2. DE DIREITO
Considerada a factualidade supra fixada importa, então, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.
ð
3.2.1. DA DECISÃO JUDICIAL RECORRIDA
O TAF de Penafiel em apreciação da pretensão formulada pela aqui recorrente veio a considerar não enfermar o ato impugnado das ilegalidades que lhe foram assacadas pelo que julgou totalmente improcedente a ação.
ð
3.2.2. DA TESE DA RECORRENTE
Contra tal julgamento e face aos termos das alegações e respetivas conclusões se insurge a A. no que tange ao juízo de improcedência efetuado sustentando que, no caso, o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento [facto/direito] dada a incorreta interpretação e aplicação do disposto, nomeadamente, nos arts. 90.º CPTA, 266.º, n.º 2 da CRP, 05.º, 100.º, 101.º, n.º 3 do CPA.
ð
3.2.3. DO MÉRITO DO RECURSO
I. Centrando, desde logo, a nossa atenção na impugnação do julgamento de facto realizado e quadro factual tido por apurado importa, desde logo, ter presente que a este Tribunal assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal “a quo” desde que ocorram os pressupostos vertidos nos arts. 712.º do CPC/2007 [atual art. 662.º do CPC/2013] e 149.º do CPTA, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objeto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.
II. O julgador deve proceder ao julgamento de facto selecionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa considerando, mormente, toda a realidade factual relevante para apreciação de todos os fundamentos de ilegalidade invocados, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.
III. Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objeto da ação, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e selecionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão impugnatória formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória [arts. 511.º, n.º 1 CPC/2007, 87.º e 90.º do CPTA], seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida [arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC/2007, e 90.º do CPTA] e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto [arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC/2007, 91.º e 94.º do CPTA].
IV. Ou, para utilizar a atual terminologia do CPC/2013, importa que se haja procedido à definição/identificação do objeto do litígio e à enunciação dos “temas da prova” [art. 596.º do referido Código - conceito que pressuporá na sua base apenas realidade factual controvertida tanto mais que a instrução, incidindo sobre aqueles temas e portanto num enquadramento tendencialmente “menos limitador”, prende-se ainda assim com a demonstração da veracidade ou não de determinados factos alegadamente ocorridos de cuja reconstituição do processo histórico se pretende obter e aos quais partes, testemunhas, perícias e documentos, respetivamente, são ouvidos, prestam depoimentos, incidem, respondem ou demonstram - cfr., entre outros, arts. 410.º, 420.º, 423.º, n.º 1, 452.º, n.º 2, 454.º, 466.º, 475.º, n.º 1, 516.º, n.ºs 1 e 2 do CPC/2013] considerando também sempre as várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa.
V. Não pode o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa considerando os vários fundamentos de ilegalidade invocados e sob pena de ilegalidade por preterição das mais elementares regras, suprimir ou omitir qualquer daquelas fases processuais precludindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de ação ou de defesa.
VI. Note-se que face ao nosso sistema probatório o juiz administrativo no julgamento de facto detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos objeto de discussão em sede de julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
VII. Este sistema não significa minimamente puro arbítrio por parte do julgador já que este pese embora livre no seu exercício de formação da sua convicção não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.
VIII. Importa ter presente que com a Lei n.º 15/2002, que aprovou o CPTA, se procedeu à revogação dos diplomas que disciplinavam a tramitação, poderes instrutórios e de julgamento nos processos do anterior contencioso, mormente, os normativos que nos mesmos regulavam tais matérias e fases [v.g., arts. 12.º e 24.º da Lei Processo Tribunais Administrativos (abreviadamente «LPTA») (aprovada pelo DL n.º 267/85), 817.º , 845.º e 847.º do Código Administrativo (aprovado pelo DL n.º 31.095, de 31.12.1940) e 20.º da Lei Orgânica Supremo Tribunal Administrativo (vulgo «LOSTA») (aprovado pelo DL n.º 40.768, 08.09.1956)].
IX. Assim, passou a disciplinar-se no art. 90.º do CPTA que no “caso de não poder conhecer do mérito da causa no despacho saneador, o juiz ou relator pode ordenar as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade” [n.º 1], podendo o juiz/relator “indeferir, mediante despacho fundamentado, requerimentos dirigidos à produção de prova sobre certos factos ou recusar a utilização de certos meios de prova quando, o considere claramente desnecessário, sendo, quanto ao mais, aplicável o disposto na lei processual civil no que se refere à produção de prova” [n.º 2].
X. Nessa medida e através da remissão operada pela parte final do n.º 2 do citado preceito mostram-se hoje afastadas as limitações de instrução probatória e de meios de prova legalmente admissíveis no contencioso administrativo e que existiam no anterior contencioso já que as ações administrativas especiais previstas e reguladas no CPTA passaram, nesse âmbito, a ser disciplinadas pelo regime decorrente dos arts. 410.º a 526.º do CPC/2013 [anteriores arts. 513.º a 645.º do CPC/2007], atribuindo-se ao julgador administrativo poderes de controlo e de instrução nesse mesmo domínio, quer em 1.ª instância quer mesmo em sede de recurso jurisdicional [cfr. arts. 90.º, n.º 1 e 149.º, n.º 2 ambos do CPTA], o que aporta claras consequências para e no julgamento de facto a realizar [cfr. arts. 91.º do CPTA, 653.º e 655.º do CPC/2007 - 607.º, n.ºs 4, 5 e 6 do CPC/2013] e mais amplamente, no nosso entendimento, no objeto do processo e da pronúncia a emitir.
XI. Neste domínio da instrução e da prova cumpre, ainda, ter presentes os princípios da investigação [do inquisitório ou da verdade material - cfr. arts. 06.º e 411.º do CPC/2013], da aquisição processual [cfr. art. 413.º do CPC/2013], da universalidade dos meios de prova [o qual só sofre compressão por força de limitação dos meios de prova decorrente de proibições de prova determinadas por normas constitucionais, mormente, relativas a direitos, liberdades e garantias] e, bem assim, o da livre apreciação das provas [cfr., nomeadamente, os arts. 83.º, n.º 4 do CPTA e 607.º, n.º 5 do CPC/2013], princípios esses que se mostram válidos e plenamente operantes no nosso contencioso administrativo vigente.
XII. Detendo o julgador administrativo, de harmonia com os normativos enunciados, amplos poderes inquisitórios em matéria de investigação e de instrução probatória o mesmo poderá ter em consideração os elementos probatórios que se mostrem constantes do processo administrativo/instrutor, enquanto lastro documental à sua disposição, sem que daí derive ou possa derivar qualquer entendimento que limite ou condicione a possibilidade do autor apresentar ou indicar e produzir outros meios de prova com os quais vise contraditar os pressupostos factuais nos quais se estribou o ato administrativo impugnado.
XIII. Note-se que o processo administrativo/instrutor, mormente, documentos e depoimentos/declarações nele prestados ou insertos, enquanto prova documental não possui ou lhe pode ser conferido ou reconhecido um qualquer valor probatório acrescido face ou no confronto com outros meios de prova legalmente admitidos no processo judicial, valendo, assim, em pleno as regras decorrentes dos arts. 341.º e segs. do Código Civil, 653.º e 655.º do CPC/2007 -607.º, n.º 5 do CPC/2013.

XIV. Com efeito, o teor ou conteúdo do processo administrativo/instrutor não faz fé em juízo e a sua valoração como meio de prova não pode implicar uma ofensa ao princípio da igualdade de armas entre as partes.
XV. Atente-se que o respeito pelo princípio da separação de poderes não impede o julgador administrativo de apreciar e julgar da exatidão de determinada realidade factual que se mostra controvertida e na qual a Administração assenta a sua decisão.
XVI. De facto, se é para nós certo que o julgador administrativo não pode substituir-se à Administração na formulação de valorações que envolvam ou se prendam com juízos sobre a conveniência e/ou a oportunidade do exercício de determinados aspetos do poder administrativo, aquilo que em geral se denomina de “discricionariedade administrativa”, temos, ao invés, que não se enquadra naquele juízo a apreciação da exatidão ou veracidade da referida factualidade.
XVII. É que na fixação dos factos que funcionam como pressupostos das decisões/pronúncias administrativas a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa já que não nos situamos no domínio da “discricionariedade administrativa”, pelo que nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação face àquele que foi adotado pela Administração, mormente, por reputar existir uma situação ilegalidade objetiva material relativa aos pressupostos de facto, ou seja, por insuficiência probatória e erro na valoração e fixação do quadro factual tida por apurado em sede de procedimento administrativo.
XVIII. Por outro lado, temos para nós que inexistem hoje, como vimos, quaisquer limitações de instrução e de prova salvo as restrições decorrentes de proibições de prova determinadas por normas constitucionais, mormente, relativas a direitos, liberdades e garantias, não sendo hoje mais legítimas a justificação de decisões que deneguem o acesso à prova e, mais vastamente, à defesa e igualdade de armas, denegação essa que se traduz e redunda num claro "deficit" do direito à tutela jurisdicional efetiva e na infração dos comandos constitucionais constantes, mormente, dos arts. 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP.
XIX. Tal como afirma Michelle Taruffo “… o direito a apresentar todas as provas relevantes constitui parte essencial das garantias gerais sobre a proteção do direito defesa, pois a oportunidade de provar os factos nos quais assentam as pretensões das partes é condição necessária da efetividade de tais garantias (…). (…) o direito a apresentar todos os meios de prova relevantes que estejam ao alcance das partes é um aspeto essencial do direito de ação e deve reconhecer-se como pertencendo às garantias fundamentais das partes …” [in: “La Prueba”, 2008, pág. 56 - tradução livre nossa].
XX. De referir, ainda, que, face ao que se mostra disciplinado em sede da tramitação da ação administrativa especial no art. 87.º do CPTA, o juiz administrativo confrontado com a falta de acordo das partes quanto à dispensa da prova e com a existência de factualidade controvertida relevante para a decisão da causa deve, em sede de despacho saneador e apesar da falta expressa de referência à aplicação do CPC na tramitação da fase de saneamento e condensação, atualmente denominada de “gestão inicial do processo e da audiência prévia”, proceder à fixação do objeto do litígio e definir aquilo que são os temas da prova tal como determina o art. 596.º do CPC/2013 à luz das várias soluções plausíveis de direito, preceito este que importa convocar e aplicar para assegurar uma regular e adequada tramitação do referido meio processual.
XXI. Será sobre os factos alegados pelas partes ponderadas e consideradas as regras e ónus probatórios a atender ao caso [cfr. arts. 342.º e segs. do CC, 513.º, 514.º, 515.º, 523.º, 552.º, 554.º, 568.º, 578.º e 638.º do CPC/2007 - 410.º, 412.º, 413.º, 423.º, 452.º, 454.º, 466.º, 475.º, 516.º todos do CPC/2013] que irá ou deverá incidir a prova carreada para os autos ou oficiosamente determinada pelo julgador, ressalvados os factos que, nos termos do art. 412.º do CPC/2013 [art. 514.º CPC/2007] não careçam de alegação ou de prova, na certeza de que na enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova não poderá o julgador administrativo deixar de ter em linha de conta aquilo que constitui o objeto do processo, a causa de pedir e o pedido deduzido.
XXII. Aqui chegados importa reverter ao caso “sub judice” e aferir da procedência dos fundamentos de recurso invocados neste segmento.
XXIII. E analisando estes refira-se, desde já, que assiste razão à recorrente não podendo o tribunal ”a quo” confrontado com a existência de realidade fáctica relevante para a decisão e que é controvertida entre as partes proferir julgamento nos termos em que o fez preterindo/omitindo, então, as fases da condensação [despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e de base instrutória] e da instrução [com a indicação e realização das diligências probatórias requeridas e/ou determinadas oficiosamente pelo tribunal incidindo sobre a aludida factualidade controvertida].
XXIV. Na verdade, temos que a factualidade invocada e na qual se estriba a pretensão impugnatória da A. quanto à ilegalidade relativa a pretenso erro sobre os pressupostos de facto [cfr., entre outros, arts. 28.º, 29.º, 38.º, 39.º a 44.º da petição inicial] revela-se como controvertida por contraditada válida e legitimamente na contestação apresentada e inserta a fls. 58 e segs. dos autos pelo R., aqui recorrido [cfr., nomeadamente, arts. 15.º e segs. daquele articulado].
XXV. Assim, presente que o despacho saneador no segmento que não fixou ao tempo a denominada “base instrutória” e que não determinou a abertura de produção de prova não forma caso julgado; que o julgador não poderá deixar de fazer uso, se necessário, dos poderes decorrentes à data dos arts. 88.º do CPTA e 508.º, n.º 3 do CPC [atual art. 590.º, n.ºs 2, al. b), 3, 4 e 6 do CPC/2013]; e que, como referimos, existe factualidade invocada na qual se estriba a pretensão impugnatória da A. que se mostra controvertida, por contraditada válida e legitimamente na contestação; então não poderia ter sido antecipado o julgamento da pretensão com preterição ou omissão das fases processuais acima aludidas e, dessa forma, postergar claramente os direitos de ação legalmente conferidos à A..
XXVI. Daí que tendo presente que a decisão judicial recorrida não supriu e corrigiu a omissão havida em sede de saneamento processual e que na mesma não se cuidou da factualidade em referência relevante para a decisão da causa, impõe-se, face ao exposto, concluir no sentido de que a decisão judicial recorrida errou no julgamento feito por que proferido antes de tempo e com preterição de regras processuais e de ónus probatório, pelo que na procedência do recurso jurisdicional “sub judice” cumpre anular o julgamento efetuado com todas as legais consequências, mostrando-se precludido/prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Conceder provimento ao recurso jurisdicional “sub judice” e revogar, com a motivação antecedente, a decisão judicial recorrida, com as legais consequências;
B) Determinar a remessa dos autos ao TAF de Penafiel para prosseguimento dos mesmos nos seus ulteriores desde a fase da gestão inicial do processo, mormente, com fixação do objeto do litígio e temas da prova, instrução probatória e julgamento da ação, se a tal nada entretanto obstar.
Custas nesta instância a cargo do R./recorrido, sendo que na fixação da taxa de justiça, não revelando os autos especial complexidade, se atenderá ao valor decorrente da secção B) da tabela I anexa ao Regulamento Custas Processuais (doravante RCP) [cfr. arts. 527.º, 529.º, 530.º, 531.º e 533.º do CPC/2013 (anteriores arts. 446.º, 447.º, 447.º-A, 447.º-D, do CPC/07), 04.º “a contrario”, 06.º, 12.º, n.º 2, 25.º e 26.º todos do RCP - tendo em consideração o disposto no art. 08.º da Lei n.º 07/12 e alterações introduzidas ao referido RCP -, 189.º do CPTA].
Valor para efeitos tributários: 5.416,44 € [cfr. art. 12.º, n.º 2 do RCP].
Notifique-se.
D.N..
Restituam-se, oportunamente, os suportes informáticos que hajam sido gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator [cfr. art. 131.º, n.º 5 do CPC/2013 “ex vi” art. 01.º do CPTA].
Porto, 14 de março de 2014
Ass.: Carlos Carvalho
Ass.: Ana Paula Portela
Ass.: Fernanda Brandão