Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01759/15.6BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/20/2016
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Esperança Mealha
Descritores:CAUTELAR; PERICULUM IN MORA; JUÍZO DE PONDERAÇÃO
Sumário:I – A prova do baixo rendimento do agregado familiar num determinado ano é insuficiente, por si só, para se poder concluir que há fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o Recorrente visa assegurar no processo principal onde procura invalidar o ato que lhe aplicou pena disciplinar de demissão.
II – Mesmo que se tivesse por verificado o periculum in mora para o Recorrente, sempre se mostraria necessário recusar a providência à luz do n.º 2 do artigo 120.º do CPTA, atenta a superioridade dos prejuízos invocados pelo Recorrido, traduzidos em efeitos nefastos ao nível da disciplina, dos comportamento exigíveis aos elementos de uma força de segurança e do espírito de corpo da Polícia de Segurança Pública.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:ORVM
Recorrido 1:o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:Maioria
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte
1. Relatório
ORVM interpõe recurso jurisdicional da sentença do TAF de Mirandela que indeferiu a providência cautelar requerida pelo Recorrente contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, com vista à suspensão de eficácia do despacho que determinou a aplicação da pena disciplinar de demissão.

O Recorrente apresentou alegações, concluindo nos seguintes termos que delimitam o objeto do recurso:

1 - O tribunal a quo não se debruça sobre os fundamentos do periculum in mora, no caso concreto.

2 – A decisão de demissão acarreta, efetivamente, a impossibilidade de o requerente poder contribuir para o seu sustento, agora que se encontra em situação de liberdade condicional e procura retomar o curso normal da sua vida enquanto cidadão consciente das suas obrigações.

3 - O ato impugnado ao impossibilitar que o requerente possa recuperar o rendimento do seu trabalho irá, com certeza, dificultar o seu processo de ressocialização agora iniciado.

4 - Os danos que o não decretamento da providência cautelar causará ao requerente serão de difícil reparação e irão juntar-se a uma injusta condenação penal.

5 - O tribunal a quo não se debruça sobre o essencial da “aparência do direito” invocada pelo requerente e fundamenta a sua decisão em normas que não se aplicam ao caso concreto.

6 - Ao invés do tribunal a quo se pronunciar sobre a duração máxima do procedimento disciplinar, que é o que está em causa, o tribunal a quo vem pronunciar-se sobre a prescrição do direito de instauração do procedimento disciplinar.

7 - O tribunal a quo, explanando o regime de prescrição de instauração do procedimento criminal estabelecido no Código Penal, conclui que “(…) aos crimes por que o Requerente foi condenado corresponde o prazo de prescrição de 5 anos (…) pelo que o procedimento disciplinar ainda não se encontra prescrito”.

8 - O requerente não invoca a prescrição do direito à instauração do procedimento disciplinar, mas sim a violação do prazo máximo de duração do procedimento disciplinar, que é um prazo bem diferente e que pretende salvaguardar o direito do arguido de ter uma decisão célere acerca dos factos de que vem acusado disciplinarmente. Já depois de iniciado o procedimento disciplinar.

9 - O RD/PSP não remete para o Código Penal ou para o Código do Processo Penal a fixação do prazo máximo de duração do procedimento disciplinar, como o faz para o prazo de prescrição de instauração do procedimento disciplinar, quando estamos perante infrações disciplinares que constituem ilícito penal.

10 – Pelo que, nos termos do artigo 66.º do RD/PSP, em caso de omissão, a primeira instância a que se recorre é o Estatuto Disciplinar, fixado na Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro.

11 - O processo disciplinar que aplica ao requerente pena de demissão encontra-se prescrito, já que decorreram mais de 18 meses entre o início do mesmo e a sua decisão final.

12 - Após a entrada em vigor do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, dezoito meses é o prazo a ter em conta conforme Acórdão do STJ, proferido em 27 de setembro de 2011.

13 - O Estatuto é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, independentemente da modalidade de constituição do respetivo vínculo, dispondo-se no seu artigo 6.º, n.º 6, que o “procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.”

14 - Contados os 18 meses sobre a data de instauração do procedimento de inquérito que faz parte integrante do procedimento disciplinar, a decisão final do referido procedimento teria que ter sido proferida e notificada ao requerente até 27 de julho de 2010, o que não aconteceu.

15 - O procedimento disciplinar prescreveu nos termos referidos, dado que nos termos do artigo 66.º, do Regulamento Disciplinar da PSP, se aplicam, subsidiariamente, ao procedimento disciplinar instaurado ao requerente as disposições vertidas no Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local.

16 - Estão, assim, criadas as condições para que se produza o juízo de prognose que revele a probabilidade de ser dada razão ao requerente na causa principal e, deste modo, assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo.

17 - O ato que determinou a demissão do requerente padece do vício de violação de lei, nos termos conjugados dos artigos 6.º, n.º 6, da Lei n.º 58/2008 de 9 de setembro e da alínea d), do n.° 2, do artigo 133.°, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que estamos perante um ato manifestamente ilegal.

18 - Torna-se, assim, evidente a existência de fumus boni iuris do pedido a formular no processo principal, devendo por isso ser adotada a providência aqui solicitada, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.

19 - No caso de se entender de forma diferente, mesmo assim deve ser decretada a providência ao abrigo da alínea b), do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, por ter ficado provada a existência de fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e não é manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular nesse processo.


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O Recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:

1.ª – Bem andou a douta sentença recorrida ao recusar a adoção da providência cautelar de suspensão de eficácia da decisão de aplicação da pena disciplinar de demissão ao Recorrente, por não estar preenchido o requisito fumus boni iuris, uma vez que não se verifica a sua manifesta ilegalidade invocada pelo ora Recorrente.

2.ª - Efetivamente o procedimento disciplinar não prescreveu.

2.ª (sic) – Por se verificar lacuna do RD/PSP quanto ao prazo limite para a duração do procedimento disciplinar, concluiu o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 160/2003, publicado no D.R., 2.ª Série, n.º 79, de 2 de abril de 2004, que o caso análogo para integração dessa lacuna deveria colher-se da previsão do n.º 3 do referido artigo 121.º do Código Penal.

3.ª – A sentença recorrida referiu esta norma ao decidir que não prescreveu o procedimento disciplinar, enquanto prazo limite desde o início do procedimento até à prolação da decisão final e não se pronunciou apenas sobre o prazo de prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar.

4.ª – Pelo que não assiste razão ao Recorrente quando alega que o tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão de direito por si alegada.

5.ª – A infração disciplinar em causa constitui também ilícito criminal, cujo prazo de prescrição é de 5 anos, de conformidade com o artigo 118.º do Código Penal.

6.ª – Nestas condições, o direito de instaurar o procedimento disciplinar prescreve decorridos cinco anos sobre a data em que a infração foi cometida, nos termos do artigo 55.º do RD/PSP e o procedimento disciplinar – enquanto o prazo limite para ser proferida decisão final – prescreve decorridos sete anos e meio (5+2,5), contados da data em que se iniciou o processo (n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal).

7.ª – Registe-se que, posteriormente ao Parecer n.º 160/2003 da PGR, veio o Decreto-Lei n.º 58/2008, de 9 de setembro, a prever de forma idêntica no que respeita ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, fixando o prazo de prescrição do procedimento disciplinar em 18 de meses, que corresponde ao prazo de prescrição do direito de instaurar o procedimento disciplinar acrescido de metade.

8.ª – A sentença recorrida faz correta avaliação do requisito, pois que cabe ao Requerente comprovar a verificação do periculum in mora, sendo que no caso presente não o demonstrou.

9.ª - Continuando no recurso a fazer considerações genéricas sobre a sua “reinserção na vida ativa” e que “o ato impugnado acarreta a impossibilidade de o requerente poder contribuir para o sustento do seu agregado familiar”.


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O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, nomeadamente, por considerar que o Recorrente não alegou nem concretizou os factos que consubstanciam o periculum in mora.

O Recorrido, notificado do parecer, veio manter o alegado em sede de contra-alegações.


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2. Factos

2.1. A decisão recorrida julgou indiciariamente provados os seguintes factos:
1. O Requerente é agente da P.S.P – facto não controvertido;
2. Pelas 18.34 h do dia 25/7/2008 ABG formula junto Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, 4ª Divisão Policial – Calvário, 30ª Esquadra – Lapa, a denúncia de consta de fls. 41, que aqui se reproduz, com o seguinte destaque: “ Hoje, pelas 17h30 (…) o lesado circulava no exterior do mesmo eléctrico (n.º 25.º da Carris), pendurado junto à porta do lado direito a testemunha circulava. // Nesse momento, o referido eléctrico imobiliza-se na paragem (…) e surgem dois elementos policiais, de nomes N... e M... (…) e retiram o lesado da parte exterior do eléctrico, sendo que em ato continuo o fazem entrar no interior do carro patrulha e transportam-no para o local de ocorrência.// Uma vez no interior da Esquadra, estes dois elementos policiais, encaminham o lesado para o interior de uma sala adjacente ao hall de entrada (…)//
Nesse momento e pro recusar a despir as cuecas, é de imediato agredido a soco pelos dois elementos policiais, que o atingem na cara, nomeadamente na zona imediatamente abaixo das orelhas, no lábio superior esquerdo, na face esquerda, também na zona abdominal direita, que lhe causam dores fortes. // De imediato o lesado corre em direção à porta da sala, com o intuito de fugir, mas é agarrado e puxado para trás, sendo novamente agredido e atirado ao chão. Nesse momento surgem mais dois elementos policiais, dos quais o lesado não sabe o nome, sendo um deles ficou junto da porta da sala e o outro agrediu-o com vários pontapés. // Perante isto, o lesado acaba por se despir na totalidade, sendo completada a revista.// (…) Cinco minutos depois, os elementos policiais
N... e M... dizem ao lesado para se vestir e para abandonar a Esquadra, o qual de imediato o faz (…)”
3. Por despacho de 27 de Janeiro de 2009 o Sr. Ministro da Administração Interna (de fls. 219 do processo administrativo) instaurou ao Requerente processo disciplinar;
4. Esse processo disciplinar teve na sua base o Processo de Averiguações PND-49/2008, instaurado por despacho de 29 de Julho de 2008 do Sr. Subinspector Geral da Administração Interna, exarado sobre notícia publicada nessa mesma data pelo “Diário de Noticias” relativa a alegadas agressões a cidadão alemão cometidas por agentes da Esquadra da P.S.P das M..., Lisboa – Fls. 1 e 219 do PA;
5. O referido Processo de Averiguações foi concluído com o Relatório datado de 9 de Dezembro de 2008, de fls. 202 a 215 do PA, tendo o Instrutor proposto a instauração de procedimento disciplinar ao agente ORVM, por entender, pelos elementos disponíveis, "(...) que a condução a instalações policiais, do cidadão, ABG, sem uma correta informação detentiva, não se insere nas medidas cautelares de polícia, consagradas no Código Penal e na Constituição da República Portuguesa."
6. O arguido, aqui Requerente foi devidamente notificado da instauração do procedimento disciplinar tendo sido ouvido em auto de interrogatório - de fls. 261 - entendeu não prestar quaisquer declarações;
7. Por despacho de 17 de Dezembro de 2010 - de fls. 308 a 313 - propôs o Instrutor que o procedimento disciplinar fosse suspenso até à conclusão dos Autos de Processo-Crime pendentes nos serviços do Ministério Público junto do DIAP de Lisboa e respeitantes aos mesmos factos;
8. Referia o Instrutor que, relativamente a tais factos - agressão física perpetrada na pessoa do ofendido - decorriam diligências investigatórias nos serviços do Ministério Público junto do DIAP e que, apesar da independência entre os dois procedimentos - criminal e disciplinar - face às limitações indiciárias do processo disciplinar, existia um especial interesse na referida suspensão a operar ao abrigo dos números 1 e 3 do artigo 37.° do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública (RDPSP), aprovado pela Lei n." 7/90, de 20 de Fevereiro;
9. A proposta do Instrutor foi acolhida por despacho do Sr. Ministro da Administração Interna de 25 de Junho de 2010, de fls. 317, o qual foi devidamente notificado ao arguido e respectivo mandatário - de fls. 320 e 322;
10.Em 24 de agosto de 2008 foi proferido no Processo 438/08.5SGLSB-01 do DIAP de Lisboa, despacho final de acusação do ora Requerente - de fls. 325 a 338 do processo administrativo - imputando-lhe a prática em co-autoria material e em concurso efetivo de: Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.°, n.º1, 145.°, n.º 1, aI. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.°, n.º 2, aI. h) do Código Penal; Um crime de coação grave, p. e p. pelos artigos 154.°, n.º 1 e 155.°, n.º 1, aI. d) do Código Penal; e um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.° do Código Penal;
11. Por Acórdão da 5.º Vara Criminal de Lisboa de 12 de Julho de 2011, O Tribunal Colectivo deliberou julgar procedente a acusação, condenando o ora Requerente pela prática dos crimes referidos no artigo anterior, aplicando-lhe a pena, em cúmulo jurídico, de 4 (quatro) anos de prisão - de fls. 344 a 364 do processo administrativo;
12.Recorreu do referido Acórdão para o Tribunal da Relação de Lisboa que manteve a decisão do Tribunal "a quo" - de fls. 379 a 396 do processo administrativo;
13.A decisão judicial transitou em julgado em 15 de Janeiro de 2013 - de fls. 397 do processo administrativo;
14.Por despacho de 15 de Fevereiro de 2013 do Sr. Ministro da Administração Interna, foi reaberto o procedimento disciplinar - de fls. 406 do processo administrativo;
15.Após novas diligências processuais - de fls. 407 a 460 - o Instrutor deduziu acusação em 3/9/2013, contra o arguido agente ORVM, que consta de fls. 461 a 467/v, a qual se dá aqui por totalmente reproduzida;
16. Na acusação são indicadas as circunstâncias atenuantes previstas nas alíneas b) - o bom comportamento anterior e h) - a boa informação de serviço do superior hierárquico de que depende, todas do art.º 52.º n.º 1, do RDPSP; e, como circunstâncias agravantes, foram indicadas as previstas nas alíneas d) - infracção cometida em ato de serviço ou por motivo do mesmo, e) - infracção cometida em conluio com outros, f) – infracção comprometedora da honra, do brio, do decoro profissional ou prejudicial à ordem ou ao serviço e i) acumulação de infracções, todas do art.º 53.º, n.ºs 1 e 4, do RDPSP, inexistindo circunstâncias dirimentes da responsabilidade disciplinar;
17. O arguido e o seu ilustre mandatário, foram notificados da acusação em, respectivamente, 9/9/2013 e 10/9/2013 - de fls. 481 e 474/v do processo administrativo - constando da mesma a descrição dos factos que fundamentam a proposta da aplicação da sanção disciplinar, contendo as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que foram praticados, os preceitos e as penas aplicáveis, cumprindo esta peça o disposto no artigo 80.º do RDPSP;
18.O arguido, através do seu ilustre mandatário, apresentou a sua defesa - de fls. 491 a 501 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzida – onde arrolou testemunhas, requereu a acareação do participante ABG com testemunhas que indicou, e requereu a reconstituição dos factos;
19.O Instrutor ouviu as testemunhas indicadas - diligências de folhas 507 a 560 do processo administrativo, que aqui se reproduzem, com o seguinte destaque: “ A sala operacional dista cerca de 5 metros da sala onde o depoente se encontrava e não era possível alguém gritar ou sequer falar mais alto, sem que o depoente ouvisse. Ora nesse dia não ouviu qualquer grito ou som que indicasse a mera possibilidade de alguém estar a ser agredido ou coagido na sala operacional. Também não ouviu qualquer pessoa a pedir socorro, o que necessariamente teria ouvido, se tal sucedesse. (…) ” – Depoimento de MPSC, agente principal da PSP”; “(…) Durante o tempo em que esteve na secretaria não ouviu gritos, pedidos de socorro ou outro qualquer som que revelasse a mínima possibilidade de alguém estar a ser agredido ou coagido no interior da esquadra. Esclarece que as instalações da esquadra eram, à data, de apenas um piso, com todas as salas muito próximas, razão, pela qual não era possível alguém gritar ou sequer falar mais alto, sem que o depoente ouvisse (…)” – Depoimento de JPTH, agente principal da PSP; “(…) Durante esse período (das 17.00 h às 17.30h em que esteve na sala de policiamento de proximidade a qual estaria no máximo cerca de 10 metros da sala operacional) não ouviu gritos, pedidos de socorro ou outros sons susceptíveis de revelar que alguém estivesse a ser agredido ou coagido, nem ouviu ruídos reveladores que alguém estivesse a fugir da mesma sala. Se tal tivesse sucedido seguramente teria ouvido, mesmo porque as paredes eram em placas de gesso e o som emitido pelo rádio de serviço ao dispor do graduado de serviço era audível em toda a esquadra (…) ” – Depoimento de PFPC, agente da PSP”; “(…) Durante o período em que esteve na esquadra viu chegar os dois agentes policiais acompanhados por um individuo que falava alemão, os quais entraram para o interior de uma sala situada ao lado do hall de entrada.//Depois de os Agentes passarem por si ainda esteve na Esquadra pelo menos vinte minutos. Durante esse período não ouviu gritos, pedidos de socorro ou qualquer outro som que revelasse a mera possibilidade de alguém estra a ser agredido, coagido ou que tentasse “fugisse” da mesma sala. Ouviu várias vozes provenientes da sala onde se encontravam os Agentes, mas em tom de voz normal.// Decorridos dez ou quinze minutos, no máximo, o individuo que falava alemão saiu da sala e da própria esquadra dirigindo-se para o exterior, acompanhado por um Agente que já não sabe identificar. (…) A instâncias do Ilustre Mandatário, respondeu que quando viu o individuo sair da esquadra o mesmo não apresentava lesões físicas nem vestígios de ter sido agredido e que o Agente que o acompanhou regressou ao interior da esquadra de imediato (…)” – Depoimento de JCGMS, empresário, que “esclareceu que no dia e questão, estava no interior da Esquadra do Bairro Alto a fim de falar “como” chefe C... ou com o Chefe A... a respeito de questões relacionadas com a segurança do comércio no mesmo bairro”; “(…)esclareceu que desde que o suspeito subiu as escadas da esquadra até que saiu do seu interior acompanhou, sem embargo de não ter saído do gabinete do graduado de serviço, o serviço dos colegas e não presenciou qualquer agressão ou coação perpetrada contra a pessoa do suspeito. Nunca os dois colegas ou outros agrediram ou coagiram o suspeito, nem ouviu o mesmo pedir auxílio ou gritar por socorro. Esclarece que estava sentado acerca de dois metros e meio da sala onde estavam os dois colegas e o individuo suspeito e não ouviu qualquer ruído ou som que minimamente revelasse que alguém estava a ser agredido ou coagido. Tudo o que ouviu foi os seus dois colegas a solicitar ao suspeito que se despisse a fim de ser revistado (…)” – Depoimento de DLA, agente da PSP, “graduado de Serviço”;
20. Já no que concerne à reconstituição dos factos, após diversa troca de correspondência entre o Instrutor e o ilustre advogado do arguido, concluiu-se que não ocorreria, porquanto no local onde funcionava a Esquadra à data dos factos, funcionava agora um Hostel, tendo havido alteração das salas, além de tal reconstituição não poder ocorrer em virtude de aquele estabelecimento se encontrar com muita ocupação e, finalmente, porque a testemunha ABG não compareceu, o que conduziu a que o arguido prescindisse da diligência – Fls. 573 a 641 e 663 a 724 do processo administrativo;
21. Concluída a instrução do processo disciplinar, o Instrutor elaborou Relatório Final em 4/3/2015, que se dá por reproduzido - de fls. 725 a 749 do processo administrativo - dando como assente a factualidade descrita nos artigos 1.° a 49.° da acusação ( cfr. Ponto 6 do Relatório “ Factualidade assente”), com o seguinte destaque: “ (…) existência de duas posições com interesses antagónicos e inconciliáveis entre si no que concerne à prova pessoal; de um lado temos alguns elementos da Polícia de Segurança Pública, no qual se integra o arguido, que negam a existência das agressões ao ABG e, do outro lado, temos o próprio ABG, o qual confirma as agressões de que foi alvo e o tratamento que recebeu no interior da Esquadra das M... (...) a valoração da prova de matriz pessoal não corresponde a uma mera operação aritmética em que se deve dar como provada a versão que recolher a maior quantidade de confirmações. A verdade pode vir apenas de uma pessoa que afirma contra a maioria. Por isso mesmo, o decisor tem de se socorrer de elementos objectivos que permitam aquilatar a verosimilhança dos depoimentos/interrogatórios. (…)//O estado físico do ABG antes de entrar na Esquadra era o comum, ou seja sem apresentar ferimentos físico, nem mazelas de outra natureza. Tal é confirmado pelo próprio e pela testemunha RG (…) //Ora, as fotografias de fls. 117 a 122 não deixam margem para dúvida em relação ao estado físico do ABG após sair da Esquadra, o mesmo apresentavam diversos hematomas e escoriações (…) o estado físico (…) quando saiu da Esquadra e exposto nas fotografias é confirmado pelo depoimento da testemunha RG, pela ficha clinica do Hospital de São José, pela perícia médico-legal realizada no âmbito do processo penal no qual o arguido foi condenado pela prática dos mesmos factos e, bem assim, do relatado pelo subchefe no auto de denúncia de fls. 41 (…) também a médica que tratou o ofendido confirmou as suas lesões (cfr. fls. 191) //“ (…) nenhum dos agentes policiais, incluindo o arguido, afirmou que no interior da esquadra estava um civil (…) Da duas uma, ou a testemunha está a mentir ou, na verdade, esteve na Esquadra em outro dia (…) / Em relação aos factos (…) não podemos deixar de afirmar que, uma vez consubstanciada a falta de verdade dos depoimentos e interrogatórios dos elementos policiais, resta o depoimento de ABG e da RG, aos quais cumpre reconhecer credibilidade e verosimilhança. (…)// 10. PROPOSTA // d) Em consequência, plicar-se ao arguido (…) a pena de demissão, nos termos do disposto nos arts. 25.º, n.º1, al, g), 47.º, n.º1 e 49.º, n.º 1, als a) e d) do Regulamento Disciplinar da Polícia de Segurança Pública”;
22. Por despacho de 20/5/2015 proferido pela Srª. Ministra da Administração Interna o Requerente foi punido com a pena disciplinar de demissão – Fls. 766 a 769 do PA.
23. Em 2014 o rendimento anual do agregado familiar do Requerente foi de 6.175,80 € - doc. n.º 2 da PI

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2.2. E considerou não provado o seguinte:
a) Que aquele rendimento não permite ao Requerente viver condignamente;
b) Que só é possível viver condignamente se retomar a sua atividade profissional de Agente da PSP.
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2.3. Por se tratar de matéria provada nos autos por documento e relevante para a decisão, adita-se o seguinte facto:
24. Em 20.08.2015, a Ministra da Administração Interna emitiu resolução fundamentada, ao abrigo do artigo 128.º/1 do CPTA, na qual consta, além do mais, o seguinte:
O Agente da Polícia de Segurança Pública, ORVM, por acórdão transitado em julgado em 15 de janeiro de 2013 (...) foi condenado como coautor material da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, um crime de coação grave e um crime de abuso de poder, na pena de 4 (quatro) anos de prisão efetiva, em cumula jurídico. // A circunstância de ter sido condenado criminalmente e de tal facto não ser ignorado socialmente exige uma atitude consequente da parte do membro do Governo responsável pelas forças de segurança, a qual, neste caso, impõe que se não interrompa a execução da pena disciplinar. // Com efeito, a PSP é uma estrutura hierarquizada, atendo o relevo das atribuições que cumpre prosseguir, motivo pelo qual, o pessoal policial deve dedicar-se ao serviço com toda a lealdade, zelo, competência, integridade de caráter e espírito de bem servir, utilizando e desenvolvendo de forma permanente a sua aptidão, competência e formação profissional (...). // (...) fácil será perceber que é expectável que um Agente da PSP, atentas as solicitações que lhe são exigidas, por força das suas funções, tenha que estar apto a corresponder de forma profissional e isenta, cumpridora dos seus deveres, no exercício das suas funções, não podendo com a sua conduta atentar contra o que são as regras estabelecidas, pelo que adotando comportamentos menos corretos e passíveis de sanção disciplinar, é imperioso que seja responsabilizado pelos seus atos.// Mas não só. Sobre o Agente da PSP recaem elevadas expectativas porque a sua imagem é escrutinada pela sociedade em geral, não podendo ser transmitida uma ideia de impunidade dos comportamentos censuráveis levados a cabo pelos Agentes que compõem as Forças de Segurança.// Pelo que condutas menos dignas perpetradas por Agentes de autoridade, pela gravidade que representam, têm que ser rechaçadas, porque a um nível interno é expectável que a sua conduta seja apta a corresponder às elevadas solicitações que lhe são exigidas por força da sua função, criando confiança na sua atuação, mas também, porque a um nível externo importa passar uma imagem de retidão, idoneidade e transparência no tratamento daqueles que são um dos garantes do Estado de Direito, motivo pelo qual o diferimento da execução, atendendo aos factos provados, seria gravemente prejudicial para o interesse público.” (doc. fls. 119 e s. dos autos).

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3. Direito

A sentença recorrida indeferiu a providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho da Ministra da Administração Interna que aplicou ao Recorrente a pena disciplinar de demissão, em síntese, por ter considerado que não era manifesta ou ostensiva a procedência da pretensão do requerente, não podendo a providência ser decretada com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA/2004; e que também não estava demonstrado o periculum in mora necessário ao decretamento da providência com fundamento na alínea b) do mesmo preceito legal, na medida em que o requerente apenas provou que o rendimento do seu agregado familiar no ano de 2014 fora de €6.175,80, mas não alegou quaisquer factos que pudessem levar a concluir pela dificuldade que envolverá o restabelecimento da situação que deveria existir, caso o processo principal lhe seja favorável, designadamente, os relativos aos rendimentos do agregado familiar e às respetivas despesas.

Quanto à “aparência do direito”, o Recorrente alega que o tribunal não se pronunciou sobre a questão que suscitou, que era a da ultrapassagem da duração máxima do procedimento disciplinar, e não a questão da prescrição do direito de instauração do procedimento disciplinar.

Constata-se que, embora o tribunal recorrido se tenha debruçado mais demoradamente sobre a questão da prescrição do direito de instaurar procedimento disciplinar, não deixou de se referir, ainda que muito sucintamente e não separando totalmente as duas questões, ao problema da duração máxima do procedimento, tendo afirmado a este respeito que o Regulamento Disciplinar da PSP (RDPSP) é o que se aplica ao caso dos autose não, como o requerente defende o Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas e em especial o art. 6.º, n.º 6”; e que “a prescrição do procedimento terá sempre lugar quando, desde o seu início, e ressalvando o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade – pelo que o procedimento disciplinar ainda não se encontra prescrito”.

Independentemente disso, o que é determinante para o problema em apreço é saber se a questão da duração máxima do procedimento disciplinar tem, no caso em apreço, uma resposta manifesta e (quase) inequívoca de modo a permitir concluir que o ato disciplinar de demissão é manifestamente ilegal e que se mostra evidente a procedência da pretensão principal do Recorrente, de invalidação desse ato.

Ora, a resposta não pode deixar de ser negativa.

A questão colocada pelo Recorrente, quanto à alegada ultrapassagem da duração máxima do procedimento disciplinar, não tem uma resposta clara e imediata, mas antes exige uma análise jurídica que é incompatível com o critério de evidência previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA/2004. Basta dizer, que nem sequer é indiscutível ou inequívoco qual o quadro jurídico que rege essa situação e, consequentemente, qual o prazo aplicável: se o previsto no artigo 6.º/6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, como defende o Recorrente; ou se deve considerar-se haver uma lacuna a este respeito no RD/PSP, que deve ser integrada por analogia, com a norma do artigo 121.º/3 do Código Penal, como defendido pelo Recorrido, na linha do entendimento vertido no no parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 160/2003. Além de que também é necessário verificar se tal prazo está sujeito causas de suspensão e/ou interrupção e verificar se as mesmas ocorreram no caso.

Bem andou, por isso, a decisão recorrida quando concluiu não estarem verificadas as condições para decretar a providência ao abrigo do artigo 120.º/1-a) do CPTA/2004.

No que respeita ao requisito do periculum in mora, o Recorrente não atacou a decisão recorrida em termos que pudessem permitir extrair conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido. Desde logo, porque o Recorrente não impugnou a matéria de facto provada e não provada, limitando-se a repetir conclusões genéricas e não concretizadas sobre os prejuízos que o não decretamento da providência lhe irá alegadamente causar.

Não há dúvida que o rendimento do agregado familiar do recorrente respeitante a 2014 é um rendimento baixo. Contudo, este facto, por si só, é insuficiente para se poder concluir que há fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o Recorrente visa assegurar no processo principal. Ora, nada mais se provou a respeito dos eventuais prejuízos (económicos ou outros) que o não decretamento da providência pode acarretar para o Recorrente (nomeadamente, nada se provou quanto ao “processo de ressocialização” a que o recorrente alude nas alegações), pelo que a conclusão pretendida pelo Recorrente, de que estaria demonstrada essa dificuldade de reintegração da sua esfera jurídica no plano dos factos, caso venha a obter ganho de causa na ação principal, constituiria, neste caso, um juízo meramente especulativo, sem apoio na matéria de facto provada.

Mas ainda que assim não fosse – ou seja, mesmo que se pudesse dar como verificado o periculum in mora para o Recorrente – sempre a providência teria que improceder à luz do juízo de ponderação que se teria que fazer entre o interesse do Recorrente em suspender o ato disciplinar e continuar em funções, e o interesse público invocado pelo Recorrido.

Na verdade, quer na oposição pedido cautelar, quer na resolução fundamentada, o Recorrido invocou o “grave prejuízo para o interesse público, traduzido em nefastos efeitos ao nível da disciplina e do espírito de corpo, princípios nobres e basilares de uma Força de Segurança, caraterizada pela exigência e máximo rigor na conduta dos seus elementos, como é o caso da PSP”.

No caso, é um facto incontornável que o Recorrente foi condenado a pena efetiva de prisão pela prática, em coautoria material, dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, de coação grave e de abuso de poder.

Como se conclui no Acórdão deste TCAN de 19.02.2016, P. 02417/15.7BEPRT (que apreciou situação de facto idêntica à que nos ocupa), “(…) a um agente da Polícia de Segurança Pública é exigível um comportamento exemplar no exercício das suas funções. Se para um qualquer cidadão a prática dos factos pelos quais foi condenado o requerente têm de ser considerar graves, muito mais o é para um agente da PSP, a quem compete prevenir a criminalidade e a prática de quaisquer atos contrários à lei. O poder vir a exercer o seu trabalho, nesta fase, quer para o público em geral, quer para dentro da corporação, era estar a dar uma imagem negativa do funcionamento dos serviços, aliada a uma eventual imagem de impunidade resultante de determinados comportamentos considerados graves.

Pelo que, mesmo que se tivesse por verificado o periculum in mora para o Recorrente, sempre seria de dar preponderância aos superiores prejuízos invocados pelo Recorrido, com a consequente necessidade de recusar a providência, à luz do n.º 2 do artigo 120.º do CPTA.

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4. Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Porto, 20.05.2016
Ass.: Esperança Mealha
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Rogério Martins (Vencido quanto ao "periculum in mora”, conforme declaração que segue)

Voto de vencido:

Discordo do fundamento apresentado, em primeira linha, para o indeferimento da providência e para a negação de provimento ao recurso jurisdicional, a falta de demonstração do periculum in mora.
Essencialmente pelas razões adiantadas no acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte de 19.02.2016, no processo 02415/15.7 PRT, de que fui relator, que teve subjacente a mesma situação de facto mas no processo disciplinar relativo a outro agente da Polícia de Segurança Pública.
Está em causa afastamento do serviço e a perda total de vencimento.
Existe desde logo a situação de facto, irreversível, de o agente estar a afastado do serviço até à decisão do processo principal, o que é, entendo, claramente uma situação de facto consumado.
Por outro lado, terá de viver num determinado período de tempo sem contar com o seu vencimento, tendo de se socorrer, de acordo com a normalidade, à ajuda de terceiros, pois na situação de grave crise de emprego em que nos encontramos, não será fácil, acabado de sair da prisão, encontrar com novo emprego, pelo que sofrerá prejuízos de difícil reparação, a dificuldade em prover ao seu próprio sustento e conseguir um nível de vida digno.
Face ao exposto, apenas indeferiria a providência e negaria provimento ao recurso com fundamento na ponderação de interesses, dando prevalência ao interesse público em jogo, invocado na resolução fundamentada que justificou a imediata execução do acto.
Porto, 20 de Maio de 2016
Rogério Martins