Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00098/06.8BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:06/23/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Carlos de Castro Fernandes
Descritores:IRC; CLÁUSULA ANTI-ABUSO; RECURSO MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I – Nos termos do n.º 1 do art.º 685.º-B do anterior CPC, era ónus do Recorrente quando impugnasse a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considerasse incorretamente julgados, assim como os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

II – O artº.59º, do C.I.R.C., na redação dada pela Lei 30-G/2000 (cláusula anti abuso) pressupõe que não serão dedutíveis fiscalmente as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a entidades residentes num território com um regime fiscal claramente mais favorável a não ser que o contribuinte demonstre que estão cumpridos dois requisitos:
a) que os custos inscritos são relativos a operações efetivamente realizadas,
b) e que as operações não têm um carácter anormal, ou que o montante nelas em causa não é exagerado.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:I., LDA
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
*

I – A Representação da Fazenda Pública – RFP (Recorrente) veio interpor recurso contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual se julgou procedente a impugnação deduzida por I., Lda. (Recorrida) contra a liquidação de IRC do ano de 2003.

No presente recurso, a Recorrente formula as seguintes conclusões:
I
A acima identificada impugnante, veio apresentar impugnação judicial, nos termos dos arts. 992 e seguintes do CPPT, requerendo a anulação da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) relativa ao exercício de 2003, melhor identificada nos autos.
II
A liquidação impugnada teve na sua origem numa acção de inspecção, realizada pelos Serviços de Inspecção Tributária, da Direcção de Finanças de Braga, no âmbito da qual foram desconsiderados os custos suportados com a intermediação de contratos de venda, relativamente aos quais não existiam documentos externos que comprovassem a existência dos mesmos.
III
No que ao exercício de 2003 respeita, e como tais custos tiveram como beneficiária a "C., Ltd", empresa sediada num dos Paraísos Fiscais listados na Portaria 1272/2001, de 9/11, os custos com comissões foram desconsiderados, atento o disposto no art. 59º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC).
IV
O M. Juiz "a quo", deu como provados os factos enunciados sob os ns.2 1 a 12 da douta sentença recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, tendo concluído, com base nos mesmos, e depois de analisada a prova documental e testemunhal, que a impugnante conseguiu provar que os custos que não foram aceites pela IT (relativos a comissões) correspondiam a operações reais.
VI
Ora, é entendimento da Fazenda Pública, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que a douta sentença recorrida enferma de errada interpretação dos factos, e consequente aplicação da lei, senão vejamos,
VII
Tal como é referido na douta sentença recorrida, a questão que se coloca é a de saber se a prova apresentada pela impugnante é suficiente para comprovar se os custos desconsiderados pela IT, correspondem ou não a operações reais. Entende a FP que não, pelos motivos que passamos a explanar.
VIII
A ora impugnante, e como já foi referido, foi objecto de uma acção inspectiva, no âmbito da qual foram desconsiderados os custos suportados com a intermediação de contratos de venda, relativamente aos quais não existiam documentos externos que os comprovassem, atento o disposto no art. 59º do CIRC.
IX
O art. 59º do CIRC dentro das chamadas medidas anti-abuso, tenta controlar a deslocalização de rendimentos para países com regime fiscal claramente mais favorável. os designados paraísos fiscais, estabelecendo que não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo provar, conforme dispõe o nº 1 do artigo, que:
• correspondem a operações efectivamente realizadas
• não têm um carácter anormal
• não são de montante exagerado
X
Nos termos do nº 4, devem os sujeitos passivos comprovar que as condições exigidas no nº 1 do citado artigo se verificam.
XI
Trata-se de uma situação de inversão do ónus da prova, pelo que cabia à impugnante provar a veracidade das operações realizadas.
XII
No caso em apreço, a relação comercial que a impugnante alega ter efectivamente existido trata-se de um serviço de um comissionista sediado nas Ilhas Virgens e que terá realizado o serviço de angariação de clientes no território brasileiro.
XIII
Ora, um vulgar serviço de angariação de clientela implica, desde logo, a realização de inúmeras diligências quer preparatórias quer no decurso da relação comercial, tais como envio de fax's, cartas, e-mail's, estabelecimento de acordo quanto aos termos e condições da relação comercial a estabelecer, termos e condições que é usual reduzir a escrito para salvaguarda dos interesses de cada uma das partes.
XIV
Documentos que nunca foram apresentados pela impugnante, e que a existir a referida relação comercial, não seriam difíceis de juntar.
XV
Por outro lado, a própria impugnante no decurso da acção inspectiva, aquando da resposta à notificação para vir exercer o direito de audição do projecto de Relatório de Inspecção Tributária (de acordo com o disposto no art. 60º da Lei Geral Tributária e 60º do RCPIT) referiu a existência de um contrato escrito entre as partes (cr. documento que se encontra junto ao autos a fls. do processo administrativo):
" ... como tal apenas queremos fazer prova de que os custos deverão ser aceites, pois temos documentos que comprovam a veracidade dos mesmos assim como o contrato entre ambas as partes que a gerência possui.
Pretendemos para os custos em causa fornecer contrato existente entre as partes, assim como toda a facturação subjacente aos mesmos."
XVI
Contrato escrito cuja existência foi, inclusive, confirmada pelas testemunhas S. (cujo depoimento ficou gravado na cassete nº 1, lado A, das 14 rotações até às 1590 rotações) e S. (cujo depoimento ficou gravado na cassete nº 1, lado A, das 1591 até às 618 rotações do lado B), funcionárias da impugnante.
XVII
Tendo, no entanto, sido desmentida a sua existência pela testemunha N. (cujo depoimento ficou gravado na cassete nº 1, lado B, das 619 rotações até às 2315 rotações), que referiu que nunca houve qualquer contrato escrito com a impugnante.
XVIII
E mais tarde pela própria impugnante, após ter sido notificada pelo tribunal para juntar aos autos o contrato celebrado entre ela e a "C., ltd",
XIX
Situação que não se compreende e que não se pode deixar de estranhar e que desde logo coloca em causa quer a veracidade das vendas em causa nos autos, bem como dos depoimentos prestados em sede de inquirição de testemunhas.
XX
De referir, ainda, que a impugnante além dos documentos acima referidos poderia ter junto aos autos as facturas emitidas pelo comissionista (que existirão a ser verdade a relação comercial que invoca), o que também não fez.
XXI
Por último, não podemos deixar de mencionar, a reserva apontada no ponto 7 da Certificação Legal de Contas para o exercício de 2003, elaborada a 13.09.2004, em que foram postos em causa os encargos em questão (cfr. informação prestada pelos Serviços de Inspecção Tributária, datada de 16.10.2006, que se encontra junta aos autos a fls...). que a seguir transcrevemos: ... nas rubricas "Fornecimentos e Serviços Externos" e "Custos extraordinários - Correcções relativas a exercícios anteriores" os montantes de, aproximadamente, 149.000Euros e 176.000Euros, respectivamente, relativos a diversos encargos com comissões de intermediação em vendas realizadas no período de 2000 a 2003. Contudo, não obtivemos suficiente documentação que nos permitisse analisar a razoabilidade daqueles encargos.
XXII
Face ao exposto e atenta a prova documental e testemunhal constante dos autos, apresentada pela impugnante, entende a FP, que não poderia ter sido dado como provado o facto enunciado sob o n.º7, bem como os factos enunciados sob os ns.º 8, 9 e 10, caso estes se reportem à relação comercial dada como provada no facto n.º 7.
XXIII
Assim, ao decidir como decidiu o M.mo Juiz "a quo" fez uma errada apreciação da prova produzida nos autos e consequentemente aplicação da lei.
Termina a Recorrente pedindo a revogação da sentença recorrida, julgando-se a presente impugnação improcedente.

A Recorrida, apesar de regularmente notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.
*

O distinto Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal elaborou parecer no sentido da improcedência do presente recurso (cf. fls. 369 a 370 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
*

Com a concordância dos MMs. Juízes Desembargadores Adjuntos, dispensam-se os vistos nos termos do art.º 657.º, n. º 4, do Código de Processo Civil ex vi art.º 281.º do CPPT, sendo o processo submetido à Conferência para julgamento.
-/-

II - Matéria de facto indicada em 1.ª instância:

1. A impugnante foi notificada pela AF em 19/10/2995 da liquidação de IRC referente a 2003 no valor de € 95.559,30, conforme notam de fls. 38 e 39, com limite de pagamento a 21/11/2005.
2. A impugnante foi objecto de uma acção inspectiva, com início a 14/12/2004 e termo a 11/3/2005 (fls. 53), com base na ordem de serviço nº 01200400287, relativa aos exercícios de 2001 a 2003.
3. Consta do relatório:
“... O sujeito passivo contabilizou como comissões na intermediação de contratos de venda, nas seguintes contas, sem que esteja na posse de documentos externos para documentar tais custos. De referir também que durante a inspecção foram solicitados os documentos em falta, contratos, entrega da Mod. 130 e Certificados dos domicílios fiscais dos beneficiários dos rendimentos, não sendo entregue qualquer documento até ao presente.
Relativamente ao exercício de 2003, tais custos; tem como beneficiário “C., Ltd” – Tortola – Ilhas Virgens – empresa sediada num dos Paraísos Fiscais listados na Portaria 1272/2001 de 9/11, pelo que ao abrigo do artigo 59º do CIRC, não são aceites como custos para efeitos fiscais, sem prejuízo da retenção na fonte devida;
Assim, os valores que a seguir se transcrevem, serão “acrescidos aos lucros tributáveis respectivos.
...
Exercício 2003
Conta 697 – C. 11/03 176.181,17
Conta 622283 - ” “ 12/03 148.737,58
3)
Da mesma forma, os valores atrás referidos estão sujeitos à retenção na fonte (IRC), no momento do pagamento ou da sua colocação à disposição, segundo artº 80º do CIRC.
...
Exercício 2003
Valor pag. Comissão Data Retenção
C.- 101.279,68 10/2003 15.191,95
M.- 4.393,53 6/2003 659,03
Total 15.850,98
...
4. A AF, após algumas correcções efectuadas pelo sujeito passivo, procedeu à correcção da matéria tributável, em 324.918,75 (fl.s 53).
5. A impugnante foi notificada para audição prévia, bem como posteriormente do relatório de inspecção, conforme fls. 58 ss.
6. No exercício do direito de audição a impugnante remeteu as facturas a que se reportam as comissões em que é beneficiária “C., Ltd”.
7. A impugnante exporta bacalhau para o Brasil, tendo como intermediários (comissionistas) C. e N., pelo menos desde 97, auferindo esta uma comissão de 3% sobre as vendas. Em 2000 aqueles comissionistas passaram a trabalhar sobre outra firma, a C., passando a facturar à impugnante em nome desta.
8. A “C., Ltd.” enviou à impugnante quatro “debit notes”, no valor de USD 21.461,88, USD 96.199,65, USD 88.159,05 e USD 187.855,57, respectivamente em 07/08/2003 (as duas primeiras), 18/11/2003 e 07/04/2004, a título de comissões dos anos de 2000 a 2003 referentes às exportações desses anos para o Brasil, a que respeitam as facturas ali discriminadas, (Docs. 2, 3, 4 e 5 com a petição)
9. A impugnante só efectua o seu pagamento aos comissionistas depois de receber dos seus clientes.
10. A impugnante procedeu às transferências que resultam dos docs. 6 a 13 da P.i..
11. Dou por reproduzido o teor das facturas (fornecimentos para o Brasil) constantes de fls., 78 ss.
12. A impugnante não procedeu à retenção de IRC relativamente às comissões.
*
Relativamente à motivação da decisão da matéria de facto, decidiu-se na sentença recorrida que:
«Não se provaram quaisquer outros factos.
Quanto aos factos provados, a convicção do tribunal alicerçou-se no teor dos documentos juntos aos autos, designadamente os referidos nos próprios factos e na prova testemunhal.
S., que trabalha para a impugnante, confirmou as exportações para o Brasil, e serem contactos, representantes no Brasil o C. e N., confirmado a comissão de 3% e que a empresa destes passou a ser a Continental. Não justificou o porquê da espera até 2003. Referiu os pagamentos. A Susana, também empregada da impugnante confirmou tal matéria. Referiu o conhecimento de exportações para o Brasil desde 97. Referiu-se à existência de um contrato. O N. referiu manter contactos comerciais com impugnante há cerca 10 anos, ele e irmão. Confirmou o valor da comissão, sendo normal neste negócio. Referiu haver contrato informal, nunca assinaram contrato. Referiu só receberem as comissões após pagamento pelos clientes, e que vendas eram efectuadas a uma média de um ano e referiu-se a facturas com atraso.»
*

Ao abrigo do disposto no art.º 662.º CPC e tratando-se de prova documental conhecida das partes e não infirmada, adita-se oficiosamente à matéria de facto que:

10.A – As transferências bancárias referidas no n.º 10 têm como emitente a Impugnante (Recorrida) e como beneficiária a «C., Lda.» tendo ocorrido nos anos de 2003, 2004 e de 2005, tendo sido feitas em dólares americanos (USD) (cf. docs. n.º 6 a 13 juntos com a p.i. e a fls. 14 a 31 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
11.A – A Impugnante (Recorrida) emitiu em 2003 as faturas (designadas como «invoice») e as ordens de compra (designadas como «purchase order»), relativas à venda de bacalhau, nestas últimas figurando como entidades compradoras entidades sitas no Brasil e como agente («agent») a «C., Limited» (cf. docs. a fls. 105 a 109, 111 a 171 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
13 – Os serviços da AT emitiram em 18.05.2005 a liquidação de IRC do exercício de 2003, conjuntamente com a «demonstração de acerto de contas», esta com data limite de pagamento a 21.11.2005, no montante de € 113.012,28, nela figurando como entidade responsável pelo pagamento a Impugnante (Recorrida) (cf. docs. a fls.38 e 39 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
14 – A «C., Limited», emitiu a seguinte «declaração»:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(cf. doc. a fls. 9 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
15 – A p.i. do presente meio processual deu entrada na 1.ª Repartição do SF de Vila Nova de Famalicão em 12.01.2006 (cf. fls. 3 a 32 dos autos – paginação do processo em suporte físico).
-/-

III – Questões a decidir.

No presente recurso, cabe aferir das questões suscitadas pela ora Recorrente no presente recurso e delimitadas no seu âmbito pelas respetivas conclusões, traduzindo-se estas, em síntese, no erro de julgamento de facto e de direito imputado à sentença recorrida.
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IV – Do direito

Constitui objeto do presente recurso a sentença proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, na qual se julgou totalmente procedente a impugnação intentada pela ora Recorrida (I., Lda.) contra a liquidação de IRC referente ao exercício de 2003.

A liquidação supra referida resultou de uma ação inspetiva promovida pelos serviços da AT e da qual resultou a aplicação de correções técnicas, designadamente as aqui em causa e referentes ao exercício de 2003, referentes à contabilização como custos de comissões de intermediação de venda, tendo estas como beneficiária a sociedade «C., Limited», sita nas Ilhas Virgens, território então considerado pela AT como pertencente a um paraíso fiscal incluído na listagem constante da Portaria n.º 1272/2001, de 09.11. Com efeito, no relatório de inspeção que sustenta a liquidação de IRC a que se faz alusão nos presentes autos, considerou-se não serem de considerar como custos os montantes referentes às sobreditas comissões, ao abrigo do que dispunha o art.º 59.º do CIRC.

Primeiramente e antes de emergirmos nas questões suscitadas no presente recurso, cabe ter presente qual o quadro normativo em que o mesmo se movimenta, tendo presente que o presente meio processual foi deduzido em 12.01.2006 e que a sentença ora recorrida foi proferida em 29.05.2009.

Ora, na sua essência o regime de recursos de decisões jurisdicionais proferidas pelos tribunais tributários está, globalmente, sujeito o regime de recursos em sede processual civil, sem prejuízo das especialidades normativamente previstas no próprio CPPT (cf. art.º 281.º do CPPT). Assim, o regime de recurso em processo civil foi objeto de sucessivas alterações legislativas tendo, mais recentemente, culminado com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. Porém, nos termos do artigo 7.º deste diploma legal, no que diz respeito às ações intentadas antes de 01.01.2008 e cujas decisões objeto de recurso sejam anteriores 01.09.2013, aplica-se o regime de recursos do anterior Código do Processo Civil (CPC).

Por isso, na presente situação é ainda aqui aplicável o regime do antigo CPC atento o disposto no art.º 7.º da Lei 41/2013, de 26 de junho e tendo em conta da data de entrada do presente processo (12.01.2006) e a data de prolação da sentença recorrida (29.05.2009).

IV.1 – Do invocado erro de julgamento de facto.

No presente recurso, a ora Recorrente insurge-se contra a factualidade dada como provada na sentença recorrida, mais concretamente nos aí enunciados números 7 a 10 dos factos provados. Assim, sustenta a ora Recorrente que apontada factualidade ali descrita dever-se-ia dar como não provada, assim se corrigindo o juízo feito sobre a matéria de facto feito na sentença apelada.

Deste modo, dispunham os artigos 522.º-C e 685.º-B do antigo CPC, na redação ainda aqui aplicável que:
Artigo 522.º-C
Forma de gravação
1 - A gravação é efectuada, em regra, por sistema sonoro, sem prejuízo do uso de meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor.
2 - Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.

Artigo 685.º-B
Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto
1 - Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
4 - Quando a gravação da audiência for efectuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, as partes devem proceder às transcrições previstas nos números anteriores.
5 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º-A.

Passemos, então, a analisar as questões que a Recorrente nos traz no presente recurso na parte incidente sobre a matéria de facto, tendo presente que atendendo a que lida a motivação e as conclusões do presente recurso, se pode concluir que aquela cumpre o respetivo ónus processual de alegação no que tange a este item recursivo.

Assim, em suma, a Recorrente invoca, global mas também especificadamente, que da prova documental que indica resultariam não provados os factos descritos nos pontos 7 a 10 da matéria de facto assente na sentença recorrida.

Ora, para o efeito, a Recorrente alega que inexistiria prova documental que atestasse a realização dos negócios em questão e que se consubstanciariam em comunicações escritas e termos de acordos das relações comerciais descritas e relativos às vendas efetuadas com a intervenção da citada e suposta agente («C., Lda.»).

Assim, efetivamente quanto a este ponto recursivo é um facto que não ficaram documentalmente demonstradas as referidas operações nos termos aqui invocados, ou seja, não há prova documental consubstanciada em mensagens trocadas por escrito via fax ou correio eletrónico, ou sequer ficou demonstrada a existência de um contrato de agência reduzido a escrito. Porém, não se pode descurar que foram juntas aos autos todo um conjunto de documentos, constituídos por ordens de compra, faturas e ordens de pagamento e transferências bancárias que titulam as ora controversas transações e nas quais a aludida agente surge como beneficiária das comissões em causa, assim como dos correspetivos pagamentos. Por outro lado, a segunda testemunha ouvida (Sra. S.), cujo depoimento foi objeto de audição nesta instância (aliás, como os demais depoimentos), afirmou que os contactos feitos com a referida agente eram feitos quer na pessoa do Sr. N., quer na pessoa do Sr. C., via telefónica, o que pode indiciar que não seria sempre usada a forma escrita na preparação dos contratos a celebrar.
Contudo a omissão de tais documentos, não é motivo suficiente para se não dar como provado os factos inscritos sob o n.º 7 e aqui questionados pela Recorrente, uma vez que a demais prova documental e testemunhal produzida nestes autos permite concluir nos apontados termos.

Por outro lado, a ora Recorrente afirma que não há prova do suposto contrato de agência que teria celebrado entre a Recorrida e a sobredita «C., Lda.»). Com efeito, escutados os depoimentos das testemunhas aqui ouvidas, vislumbramos algumas contradições entre os mesmos. Efetivamente, quer a primeira, quer a segunda depoentes, afirmaram que existiria um contrato assinado pela Recorrida e pela sua aludida agente, sendo que, em sentido diametralmente oposto se pronunciou o representante da «C., Lda.» (3.ª testemunha ouvida). Assim, esta última testemunha foi perentória ao afirmar que inexistia um contrato de agência reduzido a escrito, tendo apenas assumido a emissão de uma declaração que se encontra a fls. 9 dos autos e que constitui o doc. n.º 1 junto com a p.i.. No entanto, a referida contradição diz unicamente respeito à circunstância de ter sido (ou não) reduzido a escrito o referido contrato de agência. Não houve qualquer divergência quanto à existência do referido contrato e quanto ao montante percentual das comissões de venda. Por outro lado, à luz, por exemplo, da legislação nacional (parte embebida de fonte comunitária), o contrato de agência não tem sequer que estar obrigatoriamente reduzido a escrito para ser válido e eficaz (cf. Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho e as suas sucessivas alterações).

Por isso e por estas razões, também não se vislumbra que tenha que ser alterada a aludida matéria de facto considerada como provada na sentença apelada.

Por fim a ora Recorrente afirma que na informação dos serviços de Inspeção Tributária, datada de 30.10.2006 (e não 16.10.2006, como lapso afirma), constaria que a certificação legal de contas da ora Recorrida teria denotado que quanto às “… comissões de intermediação em vendas realizadas no período de 2000 a 2003…”, não se teria obtido “…suficiente documentação que nos permitisse analisar a razoabilidade daqueles encargos…” (cf. informação dos serviços da AT a fls. 278 a 279 dos autos – paginação do processo físico). Porém, a ora Recorrente parece olvidar-se que a sobredita informação foi produzida após a emissão da liquidação impugnada e, como tal, não constitui fundamento que se deva naquela incorporar e aqui considerar como tal. Por outro lado, o próprio teor da informação em causa assenta em informação de terceiros, não tendo sido atestado diretamente pelos serviços da AT o que nela vai dito. Acresce que, mesmo a dita referência ao que terá sido enunciado na certificação legal de contas tem um teor algo vago, e não concluiu pela ausência de documentos referentes para a contabilização das comissões, mas para uma sua aparente insuficiência (sendo este, reitere-se, um conceito vago e impreciso, mas que, todo modo, nunca incorporaria a total ausência de documentos justificadores da existência e pagamento das comissões à agente aqui em causa).

Por isso, em síntese, não perfilhamos o entendimento da ora Recorrente quanto ao imputado erro de julgamento de facto no que tange aos factos descritos nos números 7 a 10 da matéria de facto inserta na sentença recorrida, sendo que, assim e neste conspecto, terá que improceder o presente recurso.

IV.2 – Das demais questões suscitadas no presente recurso.

Neste recurso e se bem o interpretamos, a Recorrente insurgir-se-á quanto ao entendimento que se fez quanto ao ónus da prova na presente situação.

Assim, como se refere no acórdão do TCAS de 19.02.2015, proferido no recurso n.º 08126/14 (in www.dgsi.pt):
“[…] Dir-se-á, antes de mais, que é hoje pacífico que as leis fiscais se interpretam como quaisquer outras, havendo que determinar o seu verdadeiro sentido de acordo com as técnicas e elementos interpretativos geralmente aceites pela doutrina (cfr.artº.11, da L.G. Tributária; artº.9, do C.Civil; José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Editorial Verbo, 4ª. edição, 1987, pág.335 e seg.; J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pág.181 e seg.; Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, II, Cadernos de C.T.Fiscal, nº.174, 1996, pág.363 e seg.).
Consagrava o artº.59, do C.I.R.C., o procedimento de pagamento a entidades não residentes e sujeitas a um regime fiscal privilegiado (cfr.artº.65, do C.I.R.C., actualmente em vigor).
O citado artº.59, do C.I.R.C., na redacção derivada da Lei 30-G/2000, de 29/2 (redacção aplicável ao caso “sub judice” - artº.12, do C.Civil), estatuía:
Artº.59
(Pagamentos a entidades não residentes sujeitas a um regime fiscal privilegiado)
1 - Não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável, salvo se o sujeito passivo puder provar que tais encargos correspondem a operações efectivamente realizadas e não têm um carácter anormal ou um montante exagerado.
2 - Considera-se que uma pessoa singular ou colectiva está submetida a um regime fiscal claramente mais favorável quando o território de residência da mesma constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português.
(…)
Da exegese da norma deve concluir-se que não são dedutíveis fiscalmente as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a entidades residentes num território com um regime fiscal claramente mais favorável a não ser que o contribuinte demonstre que estão cumpridos dois requisitos, que são:
1-Estarmos perante operações efectivamente realizadas;
2-Que não têm um carácter anormal ou que o montante em causa não é exagerado.
Estamos perante norma anti-abuso específica, criada com o objectivo de combater a fraude e evasão fiscal, dada a sua cada vez maior dimensão internacional, resultante da crescente internacionalização das empresas, da maior mobilidade das pessoas e dos capitais e do próprio desenvolvimento das técnicas utilizadas para o efeito, tudo conforme se retira do exame do preâmbulo do Dec. Lei 37/95, de 14/2, diploma que introduziu este normativo no ordenamento jurídico português, para o efeito se invertendo o ónus da prova que passa a onerar o sujeito passivo nos termos do nº.1 do preceito (cfr.artº.344, do C.Civil; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 14/11/2013, proc.5555/12; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O controlo e combate às práticas tributárias nocivas, C.T.F. nº.409/410, pág.119 e seg.; J. L. Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra Editora, 2006, pág.202 e seg.).
No seu nº.2, o preceito consagra índices ou pressupostos que à Administração Fiscal cumpre demonstrar querendo accionar a norma (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.): quando o território de residência da pessoa singular ou colectiva constar da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças ou quando aquela aí não for tributada em imposto sobre o rendimento idêntico ou análogo ao IRS ou ao IRC, ou quando, relativamente às importâncias pagas ou devidas mencionadas no número anterior, o montante de imposto pago for igual ou inferior a 60% do imposto que seria devido se a referida entidade fosse considerada residente em território português (cfr.ac.S.T.A-2ª.Secção, 15/3/2006, rec. 1078/05; ac.S.T.A-2ª.Secção, 28/5/2008, rec.188/08; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 21/4/2009, proc.2892/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 14/11/2013, proc.5555/12).
Revertendo ao caso dos autos, fez a Fazenda Pública prova dos pressupostos para accionar a norma sob exegese, visto que os pagamentos em causa foram efectuados, durante o ano de 2006, pela impugnante a entidades com sede em países com um regime de tributação privilegiado conforme a Portaria 150/2004, de 13/2 (em concreto, as Ilhas Maurícias constam sob o nº.46 da lista de países constantes da mencionada portaria e as Ilhas Britânicas sob o nº.81 da mesma lista), diploma este que veio estabelecer quais os países ou territórios que devem ser qualificados como “paraísos fiscais” ou sujeitos a regimes de tributação privilegiados, como se pode colher do seu preâmbulo.
Aqui chegados, haverá que saber se a sociedade impugnante/recorrida cumpriu com o ónus da prova que lhe incumbia nos termos do nº.1, do preceito.
A introdução da solução da inversão do ónus da prova ora em exame foi adoptada por inspiração do artº.238-A, do Côde Géneral des Impôts francês. Trata-se da aplicação da regra de não aceitação de encargos dedutíveis quando em causa estão pagamentos efectuados a pessoas singulares ou sociedades instaladas em paraísos fiscais, a menos que o sujeito passivo faça prova dos vectores supra identificados:
1-Estarmos perante operações efectivamente realizadas;
2-Que não têm um carácter anormal ou que o montante em causa não é exagerado.
Desde logo, se deverá referir que não exige a lei qualquer formalismo nestas provas, assim vigorando quanto às mesmas o sistema da prova livre e podendo socorrer-se o sujeito passivo de todos os meios de prova permitidos pela lei (cfr.v.g.artº.352 e seg. do C.Civil).
No que diz respeito à prova da veracidade da operação não bastará a exibição de documentos escritos, nomeadamente contratos celebrados entre as partes, já que estes se presumem simulados, nem a demonstração do pagamento do preço, pois tal não é posto em causa. O que deve ser objecto de prova é antes a efectiva prestação de serviços, ou o recebimento de um empréstimo, ou seja, o facto comercial que esteve na origem do pagamento do mesmo preço que surge como custo a deduzir em sede de I.R.C. Já quanto à prova da inexistência do carácter anormal ou exagerado das despesas esta deve passar pela demonstração de que o contrato, cuja veracidade se provou, se apresenta equilibrado. Para esse efeito, o sujeito passivo deverá demonstrar qual a importância real das vantagens auferidas pelo contrato em causa, tal como fazer prova que os encargos estabelecidos constituem a justa remuneração dessas vantagens, mormente, por comparação com os custos de serviços análogos no mercado (cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O controlo e combate às práticas tributárias nocivas, C.T.F. nº.409/410, pág.125 e 126; Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-Abuso no Direito Tributário - Contributos Para a Sua Compreensão, Almedina, 2004, pág.92 e 93). […]”

Na presente situação e fazendo nossos os fundamentos do acórdão supra citado, atenta a prova colhida nos autos, de natureza documental e testemunhal, podemos concluir que a mesma não se quedou pela aferição da regularidade formal e do suporte documental em causa, antes se expandido para a prova testemunhal que, com suporte nos intervenientes dos negócios em questão, deram conta da veracidade e efetiva realização das operações aqui em causa e dos custos em que a Recorrida com eles incorreu com a sua agente. Por outro lado, os termos contratuais acordados no citado contrato de intermediação de vendas ou se preferirmos, de agência, apelam para um montante da comissão cobrada que se não nos afigura como exagerado. Acresce ainda que tal montante só era disponibilizado após o pagamento feito pelos clientes angariados pela agente («C., Limited»), o que indicia a veracidade do vínculo estabelecido entre aquela e a ora Recorrida. Mais se diga que tal contrato veio num devir de um constante e longo relacionamento comercial existente entre a Recorrida e a «C., Lda.», constituindo operações regulares e normais incluídas no âmbito da atividade corrente da Recorrida.

Deste modo, não vislumbramos que na presente situação, a sentença recorrida tenha feito uma errónea ponderação do ónus da prova aqui em causa, pelo que também neste ponto, terá que improceder o presente recurso.
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Assim, nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC, formula-se o seguinte sumário:

I – Nos termos do n.º 1 do art.º 685.º-B do anterior CPC, era ónus do Recorrente quando impugnasse a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considerasse incorretamente julgados, assim como os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

II – O artº.59º, do C.I.R.C., na redação dada pela Lei 30-G/2000 (cláusula anti abuso) pressupõe que não serão dedutíveis fiscalmente as importâncias pagas ou devidas, a qualquer título, a entidades residentes num território com um regime fiscal claramente mais favorável a não ser que o contribuinte demonstre que estão cumpridos dois requisitos:
a) que os custos inscritos são relativos a operações efetivamente realizadas,
b) e que as operações não têm um carácter anormal, ou que o montante nelas em causa não é exagerado.
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V – Dispositivo

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, em negar provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas pela Recorrente (por totalmente vencida).
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Porto, 23 de junho de 2021

Carlos A. M. de Castro Fernandes
Manuel Escudeiro dos Santos
Bárbara Tavares Teles