Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01045/13.6BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/12/2019
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:DOMÍNIO PÚBLICO; DESCLASSIFICAÇÃO;
Sumário:
1 – Estando demonstrada a ancestralidade da natureza e uso do caminho público em causa, o que não é equivalente a uma antiguidade de séculos, mas singelamente a «desde que há memória», a sua integração no domínio privado, ainda que da Junta de Freguesia, passaria necessariamente por um complexo processo de desclassificação, tendente a viabilizar, designadamente, a transação do imóvel em questão, uma vez que os bens do domínio público não são transacionáveis.
2 – O facto da população não utilizar intensivamente um determinado caminho público, não resulta daí automaticamente a sua desafetação tácita da dominialidade pública e integração no património privado do ente público.
3 - Tendo o tribunal entendido como razoável que o controvertido caminho integrará o domínio público há pelo menos setenta anos, parece razoável que tal possa significar que o referido prazo possa ser entendido como “imemorial”, sendo que nenhum dos proprietários dos prédios adjacentes possui título de propriedade que integre a referida faixa. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:MAOF
Recorrido 1:BHS
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do não provimento dos presentes recursos
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
MAOF e a Junta de Freguesia de SG, devidamente identificadas nos autos, no âmbito da ação administrativa comum/Ação Popular, intentada por BHS, tendente ao reconhecimento de parcela de terreno identificada, como pertencente ao Domínio Público, inconformadas com a Sentença proferida em 14 de Janeiro de 2019, no TAF de Braga, que julgou a Ação totalmente procedente, declarando o referido caminho como pertencente ao Domínio Público, vieram, separadamente, a interpor recursos jurisdicionais da referida Sentença.
*
Formula a aqui Recorrente/MA nas suas alegações de recurso, apresentadas em 15 de fevereiro de 2019, as seguintes conclusões:
1. Ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 140.º, n.º 1, 141.º, n.º 1, 142.º, n.º 1 e 144.º, n.ºs 1 e 4 do CPTA e do art.º 644.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 140.º, n.º 3 do CPTA, vem o presente recurso interposto da douta sentença de 14/01/2019;
2. São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público;
3. Tempos imemoriais são os “tempos não alcançados pela memória das pessoas vivas, direta ou indiretamente, por tradição oral dos seus antecessores”, isto é, “o tempo passado que já não consente a memória humana direta de factos relativos ao início daquele uso”;
4. Tendo entendido o Tribunal a quo (a nosso ver erradamente, como infra se alegará), que “Há mais de setenta anos que o caminho se encontra aberto à passagem da população” (alínea D) dos factos julgados provados), necessariamente teria a ação de improceder, pela não verificação do requisito do uso imemorial;
5. Porquanto, “mais de setenta anos” não nos remete (nem de perto, nem de longe) para um período temporal que não seja alcançável pela memória das pessoas vivas, quer direta, quer indiretamente, por tradição oral dos antecessores;
6. Sem prescindir e por mera cautela, a Contrainteressada impugna a decisão da matéria de facto das alíneas a), b), c), d), e), f), g), i), k), l), o), p), q) e r), por entender que a prova produzida não permitia outra decisão, que não a seguinte:
A-) PROVADO APENAS QUE no Lugar de V..., da freguesia de SG, do concelho de Fafe, existe uma parcela de terreno entre propriedade da contrainteressada MA e do seu irmão;
B-) NÃO PROVADO.
C-) NÃO PROVADO.
D-) NÃO PROVADO.
E-) PROVADO APENAS QUE a referida parcela de terreno permite o acesso ao prédio da Contrainteressada e do irmão desta;
F-) NÃO PROVADO.
G-) NÃO PROVADO
I-) NÃO PROVADO.
K-) PROVADO APENAS QUE encontrando-se no Lugar de V..., o Autor pode aceder à respetiva propriedade pela N... ou pela Rua da B...;
L-) NÃO PROVADO.
O-) NÃO PROVADO.
P-) NÃO PROVADO.
Q-) PROVADO APENAS QUE existe uma ramada que ocupa parcialmente o espaço aéreo da parcela de terreno descrita em A-).
R-) NÃO PROVADO.
7. Referindo-se à prova testemunhal (quer a do A., quer a das Rés, quer a da Contrainteressada), o Tribunal a quo concluiu que existiram “insanáveis contradições dos depoimentos das Testemunhas, que evidenciaram ter interesse no desfecho da causa, por razões de natureza pessoal (familiar ou de amizade) ou política”, e que, “Pese embora todas as Testemunhas demonstrarem conhecimento direto dos factos, nenhum depoimento revelou total sinceridade, isenção ou desinteresse no desfecho da causa, tanto mais que o Tribunal detetou muitas contradições nos depoimentos prestados e várias contradições entre os depoimentos”;
8. Sendo ao A. que competia provar os pressupostos da existência do caminho público que vem descrito na Petição Inicial (art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil) e não sendo a prova testemunhal (quer a do A., quer a das Rés, quer a da Contrainteressada) merecedora credibilidade, impunha o art.º 414.º do CPC que a dúvida se resolvesse contra a parte a quem os factos aproveitam (isto é, contra o A.);
9. A prova judicial deve ser unívoca (e não equivoca), sendo que a mera possibilidade do contrário torna a prova insuficiente, como nos dá conta, além do mais, o disposto no artigo 346.º do Código Civil;
10. As leis da natureza não consentem que o Tribunal, através da inspeção judicial, conclua que “há mais de setenta anos que o caminho se encontra aberto à passagem da população” (alínea D), que dava “acesso a várias propriedades, pertencentes ao Autor, à contrainteressada MA, ao irmão da contrainteressada” (alínea E), “a outros prédios situados no “Baldio de V... – Monte P...” (alínea F) e ainda que “antes do alcatroamento da N..., o caminho aqui em discussão era o único acesso ao prédio no qual reside, atualmente, o Autor, bem como às propriedades situadas no «Monte P...» (alínea I)”;
11. O auto de inspeção judicial a que alude o art.º 493.º do CPC serve para as partes ficarem cientes daquilo que, na perspetiva do julgador, se pode constatar, ou não, no local inspecionado, servindo, ainda, para relembrar o julgador, na ocasião em que procede à elaboração da decisão relativa à matéria de facto, daquilo que constatou na diligência, para o correlacionar com os restantes elementos probatórios, sendo, ainda, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elemento relativo a essa diligência que possibilita ao Tribunal “ad quem” aferir, em conjugação com os restantes elementos de prova, do acerto da valoração probatória de que resultou essa decisão;
12. Do auto de inspeção judicial não consta que a parcela em discussão nos autos tenha uma largura irregular, de aproximadamente dois metros, tenha uma extensão, aproximadamente, de trinta metros, permita acesso pedonal, seja em terra batida e se encontre devidamente demarcada e calcada e que existiam muros que impedem o acesso;
13. Há manifesta incongruência e desconformidade entre o vertido na ata de inspeção judicial de 11 de Junho de 2018 e o vertido na douta sentença recorrida quanto àquilo que terá resultado de tal diligência e, por inerência, com o julgado provado nas alíneas a), b), c), d), e), f), g), i), k), l), o), p), q) e r);
14. Em virtude do julgamento proferido na 1.ª Instância, mormente, no que foi vertido na douta sentença recorrida (imediatamente após cada um dos factos que o Tribunal julga provados), a Contrainteressada vê-se forçada a proceder, no presente recurso, à junção de documentos (art.º 651.º, n.º 1 do CPC) – fotografias da parcela em discussão nos Autos, para dúvidas não subsistam sobre aquilo que era percetível pelo julgador aquando da inspeção judicial, designadamente, uma escadaria em pedra (e não um “caminho calcado”), de largura muito inferior a 2m.
15. O depoimento de VMAS foi totalmente contrariado pelo depoimento da testemunha AJOM, pois enquanto aquele afirmou que ordenava a este que limpasse a parcela em discussão nos Autos, este nega que alguma vez o tenha feito e sequer tenha recebido tal ordem;
16. O depoimento de PMNC mostrou-se parco em razão de ciência, pois apenas foi ao local 2 ou 3 vezes e nunca passou na parcela em discussão nos Autos;
17. No mais, as testemunhas arroladas pelo A. são a “família O…”, que como se concluiu e até foi vertido na motivação, está totalmente incompatibilizado com a Contrainteressada e com o atual Presidente da Junta de Freguesia de SG, denotando interesse direto no desfecho da causa;
18. A testemunha MO, além de diversas contradições, evidenciou estar totalmente incompatibilizado com a Contrainteressada e com o atual Presidente da Junta de Freguesia de SG, denotando interesse direto no desfecho da causa, pelo que não foi sincero, espontâneo e nem isento;
19. O requerimento de 22/11/2018 é demonstrativo disso mesmo, uma vez que a referida testemunha, depois ter tomado conhecimento da inspeção judicial e das várias soluções de resolução amigável sugeridas pela própria Mm.ª Juiz a quo no local, ousou dirigir ao Ministério Público do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga uma carta que pretendia ser “anónima”, na qual, além de atacar o Tribunal e os esforços que este fez no sentido da resolução amigável do litígio, difama a Contrainteressada e o senhor Presidente da Junta de Freguesia de SG;
20. Apesar disso, a testemunha MO acabou por admitir que o “Caminho de SL” era pela Rua da B..., que sempre existiu, mas que a parcela em discussão permitia encurtar distâncias;
21. A testemunha AO, irmão de MO, contrariou o depoimento deste último, pois afirmou que o seu irmão já não chegou a frequentar a escola de S. L…;
22. Também AO admitiu que existia um outro caminho que dava acesso ao “Monte P...”, precisamente a Rua da B..., que na altura não tinha ainda este nome;
23. Concomitantemente, AO, entrando em contradição com todas as demais testemunhas, até contra o julgado provado na douta sentença recorrida, afirmou que na parcela em discussão nos autos, passavam carros de bois;
24. A testemunha CB, esposa da testemunha AO, admitiu também que sempre existiu um outro caminho na continuação da Rua da B..., seguindo em frente e a subir, embora “fugindo” à questão do destino desse caminho;
25. A testemunha MLG, esposa da testemunha MO, admitiu também a existência do referido caminho, na continuação da Rua da B..., seguindo em frente e a subir, acabando por reconhecer no final do seu depoimento que o mesmo dava para o “Monte P...” e para a casa do A.;
26. MCGR, habitante do Lugar de V..., na freguesia de SG (o Lugar em causa nos Autos), explicou pormenorizadamente que caminhos existiam no local, quer para acesso ao “Monte P...”, quer para acesso a SL, quer para acesso à habitação do A., a saber:
a. A parcela em discussão nos Autos, era um “borda”, ou um “terreno descaído” até difícil de transpor, e nunca foi utilizada pela população para se deslocarem a SL, ao Monte P... ou à casa do A.;
b. A mãe da Contrainteressada vendia sardinhas e o povo, quando ia lá comprar, não entrava na parcela em discussão nos autos sem chamar por ela e pedir autorização;
c. A população, para se deslocar a SL, ao Monte P... ou à casa do A. utilizava a Rua da B... (antigamente denominada “Caminho da C...”), que segue pelas traseiras dos prédios da Contrainteressada e do próprio A., com largura suficiente para permitir a passagem de carros de bois e que, embora com alguma inclinação, encontra-se pavimentada com paralelo;
d. No “Monte P...” só se extraíam matos, pelo que a população tinha de ter forma de carregar aqueles matos em veículos de tração animal, que não podiam passar por outro sítio a não ser pelo Caminho da C... (hoje Rua da B...);
e. O A. para ir e vir do trabalho deslocava-se de mota e utilizava o caminho de SL, uma vez que trabalhava no lugar da P… e tal caminho ia ter direto àquele lugar;
27. O depoimento de MCGR é corroborados pelos depoimentos das testemunhas FFO e GGS;
28. Este Venerando Tribunal pode e dever fazer o seu próprio julgamento da matéria de facto, procurando, de forma livre, a sua própria convicção e assim verdadeiramente concretizando o princípio do duplo grau de jurisdição;
29. E pelos fundamentos e meios de prova supra descritos, este Venerando Tribunal ad quem não tem condições para acompanhar e nem manter a decisão da matéria de facto vertida na douta sentença recorrida, que deve ser alterada nos termos supra indicados na conclusão 6.ª;
30. O assento de STJ de 19 de Abril de 1984, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, deve ser interpretado restritivamente, no sentido da publicidade do caminho exigir a sua afetação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objetivo a satisfação de interesses coletivos de certo grau de relevância;
31. Para se decidir da relevância dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, é necessário alegar e apurar o número normal de utilizadores e o fim visado por estes, por forma a verificar qual a sua importância, à luz dos costumes coletivos e das tradições da comunidade
32. Afigura-se-nos, sem necessidade mais considerandos, que a ação terá de improceder na medida em que o A. não provou, como lhe competia, que a parcela em discussão nos Autos fosse utilizada pela população do Lugar de V... para satisfazerem interesses coletivos com certo grau de relevância;
33. E muito menos provou o A. que tal pretensa utilização fosse imemorial;
34. Sem prescindir, o mesmo Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que o Assento deverá ser restritivamente interpretado de modo a evitar atribuir a qualificação de caminho público a simples atravessadouros;
35. O atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédio(s) particular(es), cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado;
36. Sempre que o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajetos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383.º do Código Civil;
37. No caso dos Autos, da prova produzida resultou que a população do Lugar de V..., da freguesia de SG, para se deslocar a SL, ao Monte P... ou à casa do A. utilizava primordialmente a Rua da B... (antigamente denominada “Caminho da C...”), que segue pelas traseiras dos prédios da Contrainteressada e do próprio A., com largura suficiente para permitir a passagem de carros de bois e que, embora com alguma inclinação, encontra-se pavimentada com paralelo;
38. Sendo este caminho, aliás, o único que permitira a passagem de veículos de tração animal para se retirarem os matos extraídos do Monte P...;
39. Mais resultou da prova que, mais recentemente, além do “Caminho da C...” (ou Rua da B...), os mesmos locais são ainda servidos pela N..., com piso betuminoso;
40. E é circunstância insofismável e confirmada por todas as testemunhas (incluindo as do A.) que, mesmo sem a parcela em discussão nos Autos, não existe e nem nunca existiu um único prédio ou local do Lugar de V... ou da freguesia de SG que não tenha (ou não tivesse) acesso a pé e com veículos de tração animal e mecânica, quer através da Rua da B..., quer através da mais recente N...;
41. Como tal, ainda que este Venerando Tribunal ad quem conclua que alguma utilização era dada pela população do Lugar de V... à parcela em discussão nos autos (o que não se concebe e nem concede), a prova produzida não permite concluir que fosse mais do que um “atalho”, uma “alternativa pedonal”, um “carreiro pedonal”, um “caminho tosco” existente nos prédios da Contrainteressada e do irmão, que em determinadas circunstâncias poderia encurtar distâncias;
42. Estando os atravessadouros abolidos, nos termos do art.º 1383.º do Código Civil, a ação teria necessariamente de improceder;
43. A douta sentença recorrida violou o art.º 414.º do CPC, o Assento do STJ, de 19-04-1989 e os art.ºs 1383.º e 1384.º do Código Civil.
Termos em que deve a presente apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida e julgada a ação totalmente improcedente, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs Venerandos Desembargadores, a habitual Justiça.”
*
Formulou a aqui Recorrente/Junta de Freguesia nas suas alegações de recurso, apresentadas igualmente em 15 de fevereiro de 2019, as seguintes conclusões:
a) Questão prévia: do excesso de pronúncia
1- No processo civil, vigorando o princípio do dispositivo, o juiz está impedido de levar em consideração factos que não foram alegados pelas partes (art.5º do CPC);
2- O Tribunal só pode decidir as questões que as partes lhe submetam. – Artigo 3.º e 608.º, nº2 do C. P. Civil.
3- Cabe às partes alegar nos articulados os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. - Artigos 5º n.1 do C. P. Civil.
4- O excesso de pronúncia verifica-se quando o Tribunal conhece, isto é, aprecia e toma posição (emite pronúncia) sobre questões de que não deveria conhecer, designadamente porque não foram levantadas pelas partes e não eram de conhecimento oficioso.
5- A nulidade da sentença por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no art.608º, nº2, 2º parte do CC, nos termos do qual "não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".
6- No caso dos autos, o facto I) «Antes do alcatroamento da N..., o caminho aqui em discussão era o único acesso ao prédio no qual reside, atualmente, o Autor, bem como às propriedades situadas nos “Monte P...”», que foi considerado provado pela Exmª Juiz “a quo” não foi efetivamente alegado pelo Autor.
7- Conclui-se, por isso, que a Exmª Juiz “a quo” excedeu-se na pronúncia que lhe é permitida sobre os factos, dando como provados factos que não foram alegados, tendo depois configurado uma relação jurídica diversa daquela que foi invocada pelo Autor na sua petição inicial e na qual o mesmo fundamentou a sua pretensão.
8- Ou seja, o Tribunal Recorrido introduziu oficiosamente na sentença proferida os aludidos factos essenciais não alegados pelo Autor, factos que não são do conhecimento oficioso do Tribunal;
9- Tais factos essenciais (introduzidos oficiosamente pelo Tribunal e que deles não pode oficiosamente conhecer) que não foram tidos em conta pelas partes (já que não constam de qualquer articulado ou despacho); que deles não tiveram conhecimento a não ser na sentença porque nela inclusos; que pelas partes não foram discutidos e, como tal, não foram sujeitos ao contraditório; que não são factos instrumentais nem notórios; que não constam dos temas de prova do despacho saneador nem dos articulados das partes;
10- Às partes não foi facultado conhecimento nem tomada de posição quanto a esses factos nem a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se sustentou antes desta ser proferida.
11- Assim, deve a sentença ser declarada nula, com fundamento em excesso de pronúncia, nos termos do disposto no art.615º, nº1, al. d) do CPC, para os devidos e legais efeitos.
12- Ainda, o Tribunal recorrido fez errada interpretação e aplicação do Direito, violando, entre outros, os seguintes artigos, regras e princípios legais: artigo 5º, 411º, 552º, 552º, nº1, al. d), 572.º, al. b) e 583.º, n. º1, todos do C. P. Civil.
b) Do Recurso da matéria de direito:
13- A questão discutida nos presentes autos, prende-se em saber se em face da matéria de facto apurada e dada como assente se pode concluir, como concluiu o tribunal a quo, que o trato de terreno em litígio é um caminho público.
14- A recorrente entende que não e, salvo o devido respeito por opinião em contrário, entende que o Tribunal a quo, fez um errado julgamento da questão, tendo feito uma errada aplicação do direito aos factos.
15- A questão da dominialidade de determinados acessos gerou acesa controvérsia, apenas serenada (mas não totalmente resolvida) com a prolação do Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que fixou a seguinte doutrina: "são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”.
16- De acordo com a jurisprudência que entretanto pacificamente se firmou nos nossos tribunais superiores deve o referido Assento ser interpretado restritivamente, no sentido de que a publicidade dos caminhos exigirá ainda a sua afetação a utilidade pública, isto é, que a sua utilização tenha por objetivo a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância.
17- Acontece que a relevância deste uso coletivo só poderá levar a que um caminho seja qualificado como público se o fim visado por essa utilização comum tiver como destino a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais, uma vez que só aquela faz surgir o interesse público necessário para integrar o uso público relevante.
18- Assim, "(...) para se decidir da relevância necessária dos interesses públicos a satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes, à luz dos seus costumes coletivos e das suas tradições e não de opiniões externas", conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2004 (in CJ STJ, ano XII, tomo I, págs.19/23).
19- Diz-se ainda neste Acórdão: "Se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respetivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais.".
20- Acontece que, a qualificação de um caminho como público, pode, igualmente resultar do facto de ele ter sido construído ou legitimamente apropriado por pessoa coletiva de direito público, que o afetou à satisfação do interesse coletivo nos termos acima expostos, independentemente de essa afetação ser ou não imemorial.
21- No caso dos autos e com pertinência para a questão, resultou como provado que:
D) Há mais de setenta anos que o caminho se encontra aberto à passagem da população;
E) Dando acesso a várias propriedades, pertencentes ao Autor, à Contrainteressada MA, ao irmão da Contrainteressada;
F) Permite ainda o acesso a outros prédios situados no “Baldio de V... – Monte P...”.
22- Acresce que, não se provou que o caminho em causa tenha sido construído e mantido pelo Município ou pela Freguesia, sendo certo que, nem o Município, nem a Junta de Freguesia o consideraram pertencente ao seu domínio, como decorre da contestação apresentada, não reconhecendo a existência de qualquer caminho público no lugar melhor identificado nos arts.1º e 2º da petição inicial.
23- Com efeito, nunca existiu por parte de nenhuma pessoa coletiva de direito público, qualquer afetação, pois nem o Município, nem a Junta de Freguesia, exerceram qualquer ato de administração que tivesse determinado a sua abertura e utilização, consagrando tal via ao uso público, sendo certo que, nunca foram efetuadas quaisquer obras de beneficiação, manutenção ou conservação do aludido caminho, para servir os interesses da população em geral.
24- Pelo que, desde logo, fica vedada a possibilidade de ser declarada a publicidade do dito caminho por esta via, uma vez que, não ficou demonstrado que o caminho foi construído ou produzido por pessoa coletiva de direito público.
25- Por outro lado, da relatada factualidade a ponderar, não se vê como dela extrair estarmos perante o caminho que satisfaça um interesse coletivo, para mais relevante, com os contornos que deixámos precisados.
26- Um dos requisitos para que um caminho seja considerado público, é que o fim visado com a utilização de tal caminho não seja a soma de um conjunto de interesses individuais, mas que o mesmo seja relevante e seja comum à generalidade dos seus utilizadores, de modo a que se possa concluir pela sua afetação pública, o que não sucede no caso dos autos.
27- Porquanto, o facto de tal caminho se encontrar aberto à passagem da população, tal não pode deixar de ser considerado em função da finalidade ou destino dos prédios a que por esse caminho se acede.
28- De facto, os caminhos apenas podem ser considerados públicos quando estão na disponibilidade imediata e indiscriminada do público. São "destinados ao uso de toda a gente", como escreve C. Gonçalves Rodrigues, "Da Servidão Legal de Passagem", Almedina, 1962, p. 218.
29- Ora, o público é caracterizado pela indiscriminação.
30- Ao invés de um uso alargado, visando a satisfação de um interesse comunitário, estamos antes em presença de um caminho que se limita a permitir o acesso a propriedades agrícolas, pertença de quatro proprietários (sendo certo que, ninguém vai para o “Monte P...”), assim denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de caráter meramente privatístico.
31- Não existe um uso intensivo, generalizado e comum às populações.
32- Não existe atualmente um interesse objetivo do público em geral, não existe um fim comum a uma generalidade de utilizadores, não existe um destino comum que vise a satisfação de uma utilidade publica, mas a soma de utilidades individuais dos proprietários dos prédios confinantes que utilizam o caminho de terreno em causa para fins exclusivamente pessoais e egoísticos.
33- Ora, só se poderia sustentar a existência de um caminho público se existisse um fim comum a uma generalidade de utilizadores e o destino dessa utilização fosse a satisfação de uma utilidade pública e não a soma de utilidades individuais, o que como vimos não acontece.
34- Acresce que, o aludido caminho nem sequer tem utilidade para a vida rural da zona, nem para as atividades lúdicas e de trânsito mais genéricas.
35- Com efeito, não se demonstrou que tal caminho é uma ligação com interesse local, destinado ao trânsito de pessoas e máquinas e incorporado no sistema viário da zona.
36- Outrossim, somos da opinião que, o requisito da imemorialidade também não se satisfaz, no caso dos presentes autos.
37- Perante a factualidade vinda de transcrever em D), decorre que o aludido caminho se encontra aberto à população há mais de setenta anos, o que no nosso modesto entendimento, não permite concluir por uma utilização anterior tão longínqua no tempo, que escapa à perceção da memória humana (centenária), falecendo por isso mesmo, o requisito da imemoralidade.
38- Além de que, a expressão "uso desde tempos imemoriais" não significa apenas utilização desde tempos de que já não há memória humana, mas uma utilização que se mantenha na atualidade.
39- Assim, não havendo uma utilidade pública no uso do caminho em causa, na atualidade, nunca o mesmo poderia ser qualificado como caminho público, como foi, pelo que a douta sentença recorrida padece, assim, de erro de julgamento.
40- Daí que, com todo o respeito, a douta sentença recorrida decidiu ainda mal ao concluir pelo uso direto e imediato do público do trato de terreno em litígio, desde tempos imemoriais.
41- Acresce que, face à prova produzida nos autos, decorre claramente que o caminho em litígio não tem as características de caminho, mas de um simples atravessadouro (abolido por lei), ou então se uma servidão, que a existir teria de ser intentada e decidida nos competentes Tribunais.
42- Mesmo que assim não se entenda, e a entender-se que o aludido caminho tivesse pertencido ao domínio público, o que não se concebe nem concede, sempre resultaria da matéria de facto dada por assente, que com o alcatroamento da N..., ocorreu a desafetação tácita do domínio público, por ter cessado a finalidade que visava satisfazer.
43- Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/2010, proc. nº 135/2002.P2.s1 (htpp:/ /www.dgsi.pt), a "desafetação tácita verifica-se sempre que uma coisa deixa de servir ao seu fim de utilidade pública e passa a estar nas condições comuns aos bens do domínio privado da Administração" (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, Voz. II, 9º ed, pág. 957).
44- Daí que para aferir da desafetação tácita tenha de apurar-se a modificação das circunstâncias de facto que originaram a afetação “ab initio” à satisfação da utilidade pública que era o objetivo da utilização coletiva.
45- Terá de ocorrer uma notória mudança de situação, ou clara alteração das circunstâncias que modifiquem as condições que foram pressuposto da qualificação jurídica.
46- Ora, no caso, resulta da factualidade vertida em J), que a N... foi alcatroada há aproximadamente vinte anos.
47- Neste caso, o caminho deixou de ser necessário para nele passarem os proprietários das propriedades que o ladeiam, porque passaram a poder dispor de uma estrada mais larga asfaltada melhor construída para satisfazer as suas necessidades de comunicação.
48- Em face do exposto, é de concluir, que não existe atualmente caminho com a natureza de “caminho público”, já que se verifica, há aproximadamente 20 anos, a sua desafetação tácita à dominialidade, por modificação das circunstâncias de facto que originaram a sua afetação inicial.
49- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos arts. 5º, 608º, nº2 e 615º, nº1 d) do CPC, e ainda o art. 342º do CC.
50- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, julgue a ação totalmente improcedente, por não provada.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
Assim se decidindo farão V.ªs Ex.ªs Venerandos Desembargadores, a habitual JUSTIÇA!”.
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O Recorrido/B…, veio a apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 28 de março de 2019, concluindo:
“Por todas as razões apontadas nesta resposta, para além de outras que este Venerando Tribunal em seu alto critério e entendimento há-de encontrar, se julgarão improcedentes e manifestamente impertinentes as conclusões alinhadas nas doutas alegações de recurso.
Destarte, deve ser recusada a alteração de todos e quaisquer dos segmentos decisórios referidos pelos Recorrentes, aderindo-se às conclusões de facto e de direito doutamente plasmadas no acórdão recorrido, que não merece qualquer reparo ou sindicância.
Pelo exposto e pelo mais que doutamente será suprido, deverá a decisão recorrida ser mantida porque elaborada em harmonia com a prova carreada para o processo e a produzida em Audiência de Julgamento, negando-se, por isso, provimento ao recurso, assim se fazendo, JUSTIÇA”
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O Recurso Jurisdicional foi admitido por Despacho de 2 de maio de 2019.
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O Ministério Público junto deste Tribunal, tendo sido notificado em 24 de maio de 2019, veio a emitir Parecer no mesmo dia, o qual, pela sua relevância, infra se transcreve parcialmente:
I – Da decisão recorrida:
1 – Por sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, datada de 14 de Janeiro de 2019 - fls. 238 e ss. dos autos - foi julgada procedente a ação administrativa, sob a forma de ação popular, proposta por BHSC e por MAOF, em que estes pediam a condenação de uma sua vizinha, a contrainteressada MAOF, a reconhecer que um caminho com cerca de trinta metros de comprimento e dois metros de lado que existe no Lugar de V..., Freguesia de SG, Concelho de Fafe, e que liga a rua da B... à N... do Baldio de V..., também denominado Monte P..., pertence ao domínio público e consequentemente mantê-lo transitável e livre de impedimentos ou obstáculos para permitir o trânsito de todos os que o pretendam utilizar. Após uma primeira rejeição, com fundamento na incompetência da jurisdição administrativa para decidir questões dominiais – vjs. decisão do TAF de Braga de fls. 12 e ss. dos autos, processo físico – este TCAN decidiu em sentido contrário, alicerçado na mais recente doutrina e jurisprudência sobre a matéria – fls. 81 e ss. dos autos, idem – o que veio a permitir que a ação fosse aperfeiçoada e tenham igualmente surgido como Réus na Acão Popular a Câmara Municipal de Fafe e a respetiva Junta de Freguesia de SG ( fls. 150 e 154 dos autos, processo físico também). Todos os Réus foram assim condenados à prática de todos os atos necessários à reposição do estado em que o caminho se encontrava antes da intervenção da Ré MAOF, que o vedou.
II – Do recurso:
2 – Recorre a contrainteressada MAF – fls. 252, processo físico – de facto e de direito, por entender que da prova produzida não se poder extrair que o referido caminho é público «desde tempos imemoriais», como teria de ser, designadamente tendo em consideração o que foi decidido no Assento do Supremo Tribunal de Justiça datado de 19.04.1984 ( disponível in www.dgsi.pt), defendendo assim a revogação da sentença da primeira instância, por considerar que a mesma incorre em erro de apreciação e de julgamento, sintetizando as suas conclusões em quarenta e três pontos que se dão aqui por reproduzidos ( fls. 274 a 278 dos autos, processo físico).
3 – Recorreu também a Junta de Freguesia de SG, Fafe, a fls. 286 e ss. dos autos, processo físico, considerando que a sentença é nula por excesso de pronúncia, pois defende que o facto constante da alínea l) da matéria de facto assente não foi alegado pelos Autores, e defendendo igualmente que o requisito da imemorialidade também não está verificado. Pelo que considera que o caminho em causa não pode ser considerado um caminho público, por nunca ter assumido a relevante utilidade pública para o comum dos moradores que tal qualificação pressupõe, podendo, quando muito, tratar-se de uma utilidade particular, para Autores e alguns mais, hipótese em que deveria antes ser qualificada como um atravessadouro ou uma servidão de passagem destes últimos. E termina formulando conclusões, cinquenta pontos, que igualmente se dão por reproduzidas neste parecer ( fls. 293 a 295, processo físico).
4 –Os Autores responderam aos recursos interpostos, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
(...)
III - Examinando,
6 – Recurso próprio, atempado, legítimo, nada obstando ao seu conhecimento.
7 –Diremos em primeiro lugar que ao contrário do que é referido nos dois recursos interpostos, a decisão recorrida nos parece muito bem construída, quer em termos de matéria de facto quer de direito, e não se vislumbra que a questão invocada pela recorrente Junta de Freguesia, relativa ao excesso de pronúncia, tenha cabimento, pois o facto dado como provado na alínea l) do relatório da matéria de facto, é instrumental no tocante ao que se afirma nos artigos 2º a 6º e 10º da P.I.., pelo que não se verifica o vício apontado, em nosso entender.
8 – Por outro lado, cremos que a fundamentação da matéria de facto que consta da decisão recorrida está explicada de forma inteiramente percetível e coerente, revelando com clareza qual foi o critério e o raciocínio lógico seguido pelo Tribunal para apreciar a prova produzida, face à pouca credibilidade que os depoimentos das testemunhas arroladas mereceram na generalidade, explicitando-se por isso em que medida a ida ao local foi decisiva para formar a convicção da Mª julgadora, como anteriormente transcrevemos.
9 – No tocante à decisão do aspeto jurídico da causa, não podemos deixar de salientar o exaustivo e pertinente estudo da questão da dominialidade dos caminhos como o dos autos que é feito na decisão recorrida, e o iter cognoscitivo seguido para a decisão, que nos parece inteiramente concordante com os factos provados: o caminho em discussão, que já deu acesso a um baldio, «Monte P...», é pedonal e ainda hoje é o caminho «menos penoso» para quem, partindo do Lugar de V..., pretende aceder à propriedade do Autor ou a qualquer propriedade vizinha, localizada no designado “Monte P...”.
E não há nenhuma razão válida, na ótica do interesse público, para que o facto de ter sido alcatroada uma outra via de acesso ao local, a denominada N... implique dispensar o caminho em discussão nos presentes autos da sua natureza, ou retirar-lhe completamente a sua função ancestral, porquanto o troço em discussão continua a ser a travessia mais cómoda, em termos de distância e inclinação – como comprovou o Tribunal na sua ida ao local - para quem pretenda, a partir do Lugar de V..., caminhar até à propriedade do Autor e/ou a todas as propriedades, públicas ou privadas eventualmente existentes localizadas no designado Monte P.... Igual raciocínio se pode fazer relativamente à Rua da B..., que implica um desvio difícil, pela sua maior extensão, acentuada inclinação e tipo de piso.
10 –Temos assim que a lógica jurídica seguida na decisão recorrida nos parece inabalável e irrepreensível, reduzindo o relativo emaranhado das questões jurídicas suscitadas na ação ao seu cerne, ao essencial à boa decisão da causa: na verdade, estando demonstrada a ancestralidade da natureza e uso do caminho público em causa, o mesmo só poderia ser integrado no domínio privado da contrainteressada ou de qualquer outro cidadão por um título de propriedade válido, que a mesma manifestamente não possui, senão tê-lo-ia certamente invocado. Ou ainda, como se diz na sentença recorrida, citando-se com propriedade o Acórdão do STJ de 13.01.2004: « deixando o público de utilizar um caminho que antes era público, não resulta daí automaticamente a aludida desafetação tácita com consequente perda da dominialidade pública e integração no património privado do ente público: para essa desafetação se verificar impõe-se a ocorrência de uma modificação das circunstâncias de facto que originaram a afetação de tal caminho à satisfação da utilidade pública que constituía o objetivo da sua utilização coletiva. “(Ac. STJ de 13.1.2004)
11 – Quanto à questão do significado da expressão «tempos imemoriais», é nosso entendimento que mais do que remeter para os índices de esperança média de vida das populações que são invocados nas alegações de recurso, a mesma, se for feito algum esforço de interpretação histórica e teleológica e não meramente literal pode e deve ser lida de forma e com sentido mais flexível e simultaneamente mais rigoroso para os efeitos em causa, pois em rigor e por definição, «tempos imemoriais» não existem. É apenas uma força de expressão, e não um conceito jurídico de tipo científico. Só conhecemos e nos podemos lembrar daquilo que podemos ter memória, de alguma forma, ou seja, de tempos «memoriais». Pelo que pensamos dever ser de adotar a (força de) expressão em causa como significando «desde que há memória», ou mesmo, como as populações expressivamente referem amiúde «desde sempre». E tem de se reconhecer que isso está provado e fundamentado. Na verdade, a referência a um período de setenta anos que ´consta da decisão recorrida, tem uma suficiente dose de certeza, mesmo em termos transgeracionais, para se poder considerar uma segura referência do uso público de um caminho. Pelo que também neste ponto não partilhamos das críticas à decisão recorrida vertidas nas alegações de recurso.
12 – Por fim, diremos que será evidente que a convicção do Tribunal recorrido desempenhou um papel importante na condenação – como sempre acontece, acrescentaríamos nós – mas a validade dessa convicção resulta do facto de não se tratar de uma convicção discricionária ou arbitrária, mas antes duma convicção explicitada, fundamentada, e com integral respeito pelos critérios legais das regras de produção de prova, mas sem nunca perder de vista as regras da experiência de vida e a perspetiva do homem médio colocado perante os acontecimentos um causa, como é referido na parte inicial da motivação da sentença recorrida, tendo assim sido observados os contornos legais do princípio da livre apreciação da prova, tal como se encontram consagrados no Código de Processo Civil e no CPTA.
13 - Pelo exposto, fazendo nossa, com a devida vénia, a clara e concisa argumentação constante da decisão recorrida, a fls. 238 e ss. dos autos, processo físico, que só não repetimos aqui em maiores doses por razões de celeridade, concluímos no sentido da improcedência das objeções que lhe são feitas no recurso.
TERMOS EM QUE, Somos de parecer que os presentes recursos não merecem provimento.”
A Recorrente MA e a Junta de Freguesia vieram pronunciar-se face ao Parecer do Ministério Público, em 4 e 5 de junho de 2019, respetivamente, tendo reafirmado a sua perspetiva face à presente Ação.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - Questões a apreciar
As questões a apreciar e decidir prendem-se com a necessidade de verificar se o controvertido terreno se integrará, ou não no domínio Público, sendo que o objeto dos Recursos se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.
III – Fundamentação de Facto
Foi dada como Provada em 1ª instância a seguinte factualidade:
A) No Lugar de V..., freguesia de SG, concelho de Fafe, existe um caminho que liga a Rua da B... à N... do “Baldio de V... – Monte P...” – cf. resultou da inspeção ao local e dos depoimentos das Testemunhas VMAS, MO, CB e MG.
B) Esse caminho apresenta uma largura irregular, aproximadamente – e em média - de dois metros em toda a sua extensão – cf. resultou da inspeção ao local, e dos depoimentos das Testemunhas VMAS, MO, CB e MG.
C) E tem uma extensão, aproximadamente, de trinta metros - cf. resultou da inspeção ao local, e dos depoimentos das Testemunhas VMAS, MO, CB e MG.
D) Há mais de setenta anos que o caminho se encontra aberto à passagem da população - depoimentos das Testemunhas VMAS, MO, CB e MG.
E) Dando acesso a várias propriedades, pertencentes ao Autor, à Contrainteressada MA, ao irmão da Contrainteressada – cf. resultou da inspeção ao local, e dos depoimentos das Testemunhas MAS, MO, AO e MG.
F) Permite ainda o acesso a outros prédios situados no “Baldio de V... – Monte P...” – cf. resultou da inspeção ao local, e dos depoimentos das Testemunhas MAS, MO, AO e MG.
G) Trata-se de um caminho pedonal – cf. resultou da inspeção.
H) Não se dirige a ponte e/ou a fonte – cf. inspeção ao local.
I) Antes do alcatroamento da N..., o caminho aqui em discussão era o único acesso ao prédio no qual reside, atualmente, o Autor, bem como às propriedades situadas nos “Monte P...” – cf. depoimento de AO.
J) A N... apenas foi alcatroada há aproximadamente vinte anos – cf. conjugação do depoimento de todas as Testemunhas.
K) Encontrando-se no Lugar de V..., o Autor pode aceder à respetiva propriedade pelo caminho aqui em discussão ou pela N... ou, ainda, pela Rua da B... – cf. resultou da inspeção ao local.
L) Para aceder à respetiva propriedade pelo caminho aqui em discussão, partindo do Lugar de V..., tem que percorrer toda a extensão do caminho, conforme já referido, aproximadamente, de trinta metros – cf. resultou da inspeção ao local.
M) Para aceder à respetiva propriedade pela N..., o Autor, partindo do Lugar de V..., tem que percorrer uma distância superior a noventa metros em piso alcatroado e com declive- cf. resultou da inspeção.
N) Para aceder à respetiva propriedade pela Rua da B..., o Autor, partindo do Lugar de V..., tem que percorrer uma distância superior a noventa metros, com piso em terra e pedras e com declive – cf. resultou da inspeção.
O) O caminho aqui em discussão está ladeado de prédios pertencentes à Contrainteressada e ao irmão da Contrainteressada, prédios esses que se encontram delimitados com pedras/muros de pedra – cf. resultou da inspeção ao local e depoimento FFO.
P) O caminho em discussão, em terra batida, encontra-se devidamente demarcado e calcado – cf. resultou da inspeção ao local.
Q) Existe uma ramada que ocupa parcialmente o espaço aéreo do caminho – cf. resultou da inspeção ao local.
R) A Contrainteressada, MA, construiu muros que impedem o acesso ao caminho – cf. resultou da inspeção ao local, por acordo.
S) O Autor e vários populares solicitaram à Junta de Freguesia de SG e à Câmara Municipal adoção de diligências com vista a desobstruir o acesso ao caminho, porém, sem êxito – por acordo.
FACTOS NÃO PROVADOS
1. Pelo caminho passa um ramal de conduta de abastecimento de água.”
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IV – Do Direito
No que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª Instância:
“(...)
Face à dificuldade em traçar a distinção entre caminhos públicos e particulares, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a densificar critérios que permitam ao intérprete lançar luz sobre tal questão.
Comecemos pelos caminhos particulares, cuja densificação dogmática se afigura mais consensual, sendo pacífico que se trata propriedade privada, podendo ser atravessadouros e/ou servidões de passagem.
Os atravessadouros consistiam na ligação entre caminhos públicos através de uma propriedade privada, com vista ao encurtamento de distâncias.
Sucede, porém, que o artigo 1383.º do Código Civil (CC) aboliu os atravessadouros, deixando estes de merecer tutela legal a não ser em situações excepcionais, designadamente quando se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial (artº. 1384º do Código Civil).
A respeito das servidões de passagem, cumpre esclarecer que o artigo 1543º, do Código Civil, define como servidão predial o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
A servidão legal de passagem permite que os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, exigiam a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos, de igual faculdade gozando o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio (cf. art. 1550, n.ºs 1 e 2, do CC).
Além desta servidão legal, resultante da situação de encravamento, as servidões de passagem podem resultar de contrato, testamento, usucapião ou de destinação do pai de família (artº. 1547º do Código Civil).
Sucede que mais e maiores dúvidas se levantam a propósito dos caminhos públicos, sendo que a este propósito António Carvalho Martins os define como caminhos cuja propriedade pertence ao Estado ou às autarquias locais, mantidos sob a sua administração, afectos ao uso público, sem oposição de ninguém, sendo a todos lícito fazerem a sua utilização e tendo como únicas restrições as impostas por lei, ou pelos regulamentos administrativos - in "Caminhos Públicos e Atravessadouros". - 2ª Edição. Coimbra Editora, Lda. 1990.
Jurisprudencialmente, para que um caminho seja considerado público, não será necessário que o mesmo tenha sido apropriado ou produzido por uma pessoa colectiva de direito público e que esta haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação sob o mesmo (com se defendia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 1970), bastando que se encontre afecto à circulação e uso da generalidade das pessoas desde tempos imemoriais.
No entanto, tem-se vindo a entender que tal Assento deve ser interpretado restritivamente, no sentido de à publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, consistindo tal afectação no facto de "o uso de caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância" (v. Ac. STJ de 15 de Junho de 2000, BMJ 498, p. 226).
Quanto a classificações de caminhos públicos, o Decreto-Lei n.º 34 593, de 11 de Maio de 1945, subdividia as vias rodoviárias em estradas nacionais, estradas municipais e os caminhos públicos, subdividindo estes em municipais e em vicinais.
Os caminhos municipais eram tidos como aqueles que se destinavam a permitir o trânsito automóvel, enquanto que os caminhos vicinais se reportavam ao trânsito rural.
Para efeitos daquele diploma, os caminhos municipais ficavam a cargo das câmaras municipais e os caminhos vicinais a cargo das juntas de freguesias.
O Decreto-Lei n.º 34 593, de 11 de Maio de 1945, foi expressamente revogado pelo Decreto-Lei n.º 380/85, de 25 de Setembro.
Este segundo diploma veio consagrar o regime jurídico das comunicações públicas rodoviárias afectas à rede nacional e foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho.
Estes dois últimos diplomas não são explícitos quanto ao regime dos caminhos vicinais, tendo vindo a entender-se que se mantém em vigor o Decreto-Lei n.º 34 593, de 11 de Maio de 1945, na parte que os submete à administração das juntas de freguesia, por vazio legal operado com as revogações ulteriores.
Ainda a propósito de caminhos vicinais, após o assento Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1989, vem sendo entendimento jurisprudencial maioritário que "São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público".
Por tempos imemoriais, consideram-se aqueles que são anteriores à memória das pessoas vivas, quando ninguém se recorda da origem deste uso, porque "sempre" todos se recordam de por ali ter passado.
Vertendo as considerações acima expedidas ao caso dos autos, resulta manifesto que o troço do terreno que se discute nos autos trata-se de uma faixa de terreno enquadrável na classificação de caminho vicinal.
Com efeito, da factualidade assente resulta claro que o troço nunca pertenceu a qualquer particular. O troço sempre teve natureza pública e, antes do alcatroamento da N..., o caminho em discussão satisfazia interesses colectivos de certo grau ou relevância.
Com efeito, antes do alcatroamento da N..., o caminho aqui em discussão era considerado pela população como o único acesso ao prédio no qual reside, actualmente, o Autor, era único acesso às propriedades situadas no “Monte P...”.
E, apesar da nova via alternativa – N... -, nunca ocorreu uma desafectação do caminho, designadamente, a coberto dos artigos 17.º e 18.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7/08.
Com o decorrer dos anos, e com a utilização frequente de veículos motorizados, o caminho vicinal – que apenas permite a circulação pedonal – foi sendo cada vez menos usado pela população.
Porém, não foi alegada/provada a existência de qualquer deliberação que, mediante a constatação do não uso do caminho pela generalidade da população, reconhecesse a ocorrência de uma desafectação tácita do domínio público para o domínio privado da autarquia.
A propósito, tem-se entendido que não basta a falta de utilização pelo público para determinar a desafectação tácita do domínio público, “pela razão simples de que tal falta de utilização pode resultar de factos diferentes do desaparecimento da utilidade pública a cuja satisfação o bem público se encontrava afecto” (Ac. STJ de 13.1.2004, relator Silva Salazar e Ac. STJ de 14.10.2004, relator Araújo de Barros, in www.dgsi.pt); e acrescenta-se, citando-se Marcelo Caetano, que “a desafectação tácita das coisas públicas apenas será de aceitar nos casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica.“ (Ac. STJ de 14.10.2004).
Assim, “deixando o público de utilizar um caminho que antes era público, não resulta daí automaticamente a aludida desafectação tácita com consequente perda da dominialidade pública e integração no património privado do ente público: para essa desafectação se verificar impõe-se a ocorrência de uma modificação das circunstâncias de facto que originaram a afectação de tal caminho à satisfação da utilidade pública que constituía o objectivo da sua utilização colectiva.“ (Ac. STJ de 13.1.2004)
Voltando a nossa atenção ao caso que nos ocupa, importa recordar que, há mais de vinte anos, o caminho apresentava importância capital para o prédio hoje pertencente ao Autor, pois era o único acesso ao prédio e tinha igualmente manifesta utilidade para a população em geral, pois era única forma de aceder às propriedades localizadas no “Monte P...”.
Três factores foram determinantes para diminuir o uso do caminho pedonal em discussão, a saber: o avanço da idade média da população, o uso de veículos motorizados e o alcatroamento da N....
Porém – importa destacar, o melhoramento e alcatroamento da N... não retirou a utilidade do caminho em discussão nos presentes autos.
O caminho em discussão é pedonal e ainda hoje é o caminho menos penoso para quem, partindo do Lugar de V..., pretende aceder à propriedade do Autor ou a qualquer propriedade vizinha, localizada no designado “Monte P...”.
Ou seja, não se pode afirmar, na óptica do interesse público, que o alcatroamento da N... permitiu dispensar o caminho em discussão nos presentes autos, porquanto o troço em discussão continua a ser a travessia pedonal menos penosa para quem pretenda – a partir do Lugar de V... – dirigir-se a pé à propriedade do Autor e/ou a todas as propriedades localizadas no designado Monte P.... O mesmo se aplica relativamente à Rua da B..., que implica um desvio penoso pela sua extensão, inclinação e tipo de piso.
Por fim, não podemos deixar de salientar que os bens do domínio público, como é o caso do caminho em discussão, não podem ser alienados, nem objectos de direitos privados ou transmitidos por instrumentos de direito privado, não sendo inclusivamente susceptíveis de aquisição por usucapião, pelo que, declarando-se o caminho em causa pertencente ao domínio público, forçoso será condenar os Réus na prática de actos necessários à reposição do estado em que esse mesmo caminho se encontrava antes da actuação de MAOF.”
Vejamos
Para afastar quaisquer dúvidas, refira-se desde já que em anterior Acórdão proferido na presente Ação se considerou serem os Tribunais Administrativos os competentes pera dirimir a controvertida questão.
Com efeito, na situação aqui controvertida estamos manifestamente perante uma relação jurídico-administrativa, para cujo conhecimento são competentes os tribunais desta jurisdição, uma vez que está em causa uma ação popular administrativa, em que predomina essa relação.
«O âmbito de aplicação da ação popular administrativa e da ação popular civil depende, não da natureza dos interesses em causa, mas sim da natureza da relação jurídica concreta subjacente ao litígio.» - cfr. Ac. Tr. Confl., de 28-11-2000, proc. nº 000345.
Como se escreveu no Ac. do Tribunal de Conflitos, de 28-09-2010, proc. nº 023/09, a propósito de situação próxima daquela que aqui está em apreciação, na competência destes tribunais integram-se :
«(…)
os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e atos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cf. artº4º, nº1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição.
Aliás, diríamos que é esse o seu campo próprio, atento a natureza pública do bem objeto dessa relação jurídica e o consequente estatuto de direito público (administrativo) desse bem, também denominado «estatuto de dominialidade».
Se é certo que as referidas questões não estão expressamente enunciadas no nº1 do artº4º do ETAF, o certo é que deixaram de integrar as alíneas deste preceito que respeitam à delimitação negativa da jurisdição e que integram os seus nº2 e 3.
Efetivamente, não existindo hoje qualquer outra norma que as exclua do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, elas cairão, necessariamente, no âmbito da cláusula geral do artº 1º nº 1 do ETAF, verificados os demais pressupostos da relação jurídica administrativa.
Neste sentido se tem pronunciado a generalidade da doutrina, que aqui acompanhamos.
Assim, diz a este propósito Vieira de Andrade:
«Julgamos que o desaparecimento desta exclusão ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência para conhecer da impugnação dos atos de qualificação dominial, que são atos administrativos, quer se trate de atos de classificação, quer de afetação (vide M. Caetano, Manual II, 8ª ed., p. 850 e segs)., bem como as ações relativas a questões de delimitação do domínio público com outros domínios que são questões de direito administrativo. Na realidade sempre se entendeu que um dos privilégios inerentes à propriedade pública, em comparação com a propriedade privada, é o poder da Administração de delimitar unilateralmente o domínio público (cf. M. Caetano, obra citada, p. 856).
As razões de exclusão, no anterior ETAF, estavam ligadas à ideia de que tudo o que respeitava à propriedade devia ser julgado perante os tribunais judiciais, por desconfiança relativamente aos tribunais administrativos e pela pressuposição da limitação dos seus poderes – são por isso razões que deixaram de justificar o desvio relativamente ao critério substancial de definição do âmbito da jurisdição administrativa.» Vide, obra citada, p. 150.
No mesmo sentido, Ana Raquel Gonçalves Moniz, in O domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade. Almedina, 2006, p.531 e segs.
No mesmo sentido, se pronunciam Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha, ao referirem que «De um modo geral pertence hoje ao âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico administrativa e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais (artº 1º, nº1 do ETAF e artº 213, nº 3 da CRP). (…) Isto inclui, por exemplo, (…) as questões de delimitação de bens do domínio público, que até aqui eram excluídas pelo artº 4º anterior. «Tal matéria, que estava expressamente excluída da justiça administrativa no anterior ETAF (cf. alínea e) do nº1 do artº4º), não é agora objeto de qualquer “desaforamento” legislativo, devendo entender-se que os litígios emergentes de atos de qualificação dominial e de delimitação do domínio público, sendo administrativos, reingressam por força da cláusula geral do seu artº 1º, nº 1, no âmbito da competência dos tribunais administrativos» Vide, obra citada, in “Introdução”, a p.18. .
Também Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira são da mesma opinião in CPTA e ETAF anotados, vol. I, Almedina, reimpressão da edição de Nov. de 2004, p.35/36.
(…)»
Analisemos agora simultaneamente o objeto de ambos os Recursos:
Da matéria de facto
Vem impugnada a matéria de facto fixada, designadamente a constante das alíneas a), b), c), d), e), f), g), i), k), l), o), p), q) e r), propondo-se a sua alteração.
Como se sumariou, entre muitos outros, no Acórdão deste TCAN nº 126/12.8BEMDL, de 12-06-2019 “Determina o artigo 662º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu n.º 1, que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa”.
Na interpretação deste preceito, já na anterior versão (Artº 712º CPC), tem sido pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância. A gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram diretamente percecionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho.
Por outro lado, o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância, impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.”
No mesmo sentido se sumariou no Acórdão deste TCAN nº 01253/15.5BEPRT, de 03-05-2019 que “Nos termos do artº 640º, nº 2, alínea a) do CPC “sob pena de imediata rejeição do recurso”, deve o Recorrente “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Como se sumariou ainda no Acórdão deste TCAN nº 2419/13.8BEPRT, de 04.05.2018, “Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.”
Com efeito, pretendendo o recorrente que o tribunal ad quem procedesse à alteração da decisão do tribunal de 1 ª instância sobre a matéria de facto, sempre teria de indicar, além dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, quais os concretos meios de prova que impunham decisão divergente da adotada, o que não logrou conseguir (cfr. artº 641, nº1, do CPC).
Relativamente à gravação efetuada dos depoimentos das testemunhas, deveriam ser indicados com exatidão as passagens da gravação em que se funda o entendimento divergente, não podendo as transcrições efetuadas ser descontextualizadas e complementadas com afirmações interpretativas do Recorrente, tendentes a evidenciar o seu ponto de vista (cfr. artºs 640º, nº2 e 157º, ambos do CPC.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2011, no processo 1079/07.0 TVPRT.P1.S1:
“A lei impõe ao recorrente que indique (concretamente) os depoimentos em que se funda, não sendo suficiente indicar um conjunto de testemunhas que depuseram a determinado facto (mesmo que venham devidamente identificadas pelos nomes e outras referências), para depois se concluir, sem mais, que ouvidos os seus depoimentos se deveria decidir diferentemente. Importa alegar o porquê da discordância, isto é, em que é tais depoimentos contrariam a conclusão factual do tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele.” E acrescenta “(…) trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detetada. Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório”
De facto, determina o artigo 662º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu n.º 1, que:
“A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Na interpretação deste preceito, e dos que lhe antecederam no tempo, como se afirmou já, tem sido pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.05, processo n.º 394/05, de 19.11.2008, processo n.º 601/07, de 02.06.2010, processo n.º 0161/10 e de 21.09.2010, processo n.º 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo n.º 00205/07.3BEPNF, e de 14.09.2012, processo n.º 00849/05.8 BEVIS).
Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª edição, página 657:
“Esse contacto direto, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reações do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar”.
Por outro lado, o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância, impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.
Dito isto, não lograram as Recorrentes fazer prova do invocado no que concerne à almejada alteração da matéria de facto.
Refira-se acrescidamente, em qualquer caso, que se não vislumbra que da prova testemunhal produzida resulte qualquer certeza adicional que possibilitasse ao tribunal alterar a matéria de facto fixada em 1ª instância.
Mesmo no que concerne à questão suscitada decorrente de um suposto excesso de pronúncia na fixação da matéria de facto, sempre se dirá que o invocado facto provado constante da alínea I) (Antes do alcatroamento da N..., o caminho aqui em discussão era o único acesso ao prédio no qual reside, atualmente, o Autor, bem como às propriedades situadas nos “Monte P...”), se mostra meramente instrumental, resultando do afirmado nos artigos 2º a 6º e 10º da P.I, em face do que se não reconhece a verificação do suscitado excesso de pronúncia.
No que concerne à matéria de facto fixada, refira-se, finalmente, que a mesma se mostra explicita, percetível e coerente, evidenciando o critério e o raciocínio lógico seguido pelo Tribunal a quo para apreciar a prova produzida, na fixação da sua convicção.
Da Fundamentação de Direito
Refira-se desde já que igualmente se não vislumbra que a decisão de direito proferida em 1ª instância se revele insuficiente, inadequada ou irrazoável.
Aliás, a decisão recorrida tem a preocupação de enquadrar a questão da dominialidade dos caminhos, acompanhada de algum enquadramento histórico, sendo que é percetível o iter cognoscitivo seguido para decidir como decidiu, em função da prova fixada, sublinhando que a controvertida via pedonal é, ainda hoje, o caminho «menos penoso» para quem, partindo do Lugar de V..., pretende aceder à propriedade do Autor ou a qualquer propriedade vizinha, localizada no designado “Monte P...”.
Como sublinhado pelo Ministério Público, o facto de ter sido alcatroada uma outra via de acesso ao local, a denominada N..., não implica ou determina que o caminho aqui em questão perca a sua dominialidade pública.
Estando demonstrada a ancestralidade da natureza e uso do caminho público em causa, o que não é equivalente a uma antiguidade de séculos, a sua integração no domínio privado, ainda que da Junta de Freguesia, passaria necessariamente por um complexo processo de desclassificação, tendente a viabilizar, designadamente a transação do imóvel em questão, uma vez que os bens do domínio público não são transacionáveis.
Como se discorre no Acórdão do STJ de 13.01.2004: “deixando o público de utilizar um caminho que antes era público, não resulta daí automaticamente a aludida desafetação tácita com consequente perda da dominialidade pública e integração no património privado do ente público: para essa desafetação se verificar impõe-se a ocorrência de uma modificação das circunstâncias de facto que originaram a afetação de tal caminho à satisfação da utilidade pública que constituía o objetivo da sua utilização coletiva.”
Como se afirmou já relativamente à expressão “ancestralidade”, também “tempos imemoriais”, não significa necessariamente o decurso de centenas de anos, admitindo-se como bom o entendimento adotado pelo Magistrado do Ministério Público, que no seu Parecer, qualificou tal expressão como equivalendo «desde que há memória».
Assim sendo, tendo o tribunal a quo entendido como razoável que aquele caminho integrará o domínio público há pelo menos setenta anos, parece razoável que tal poderá admitir-se como preenchendo o prazo como “imemorial”, sendo que nenhum dos proprietários dos prédios adjacentes possui título de propriedade que integre a referida faixa.
A convicção firmada pelo tribunal a quo parece assim ter sido construída e fixada em termos razoáveis, sem quaisquer laivos de discricionariedade ou arbitrariedade, mas antes no respeito pelos critérios legais das regras de produção de prova, sem perder de vista as regras da experiência de vida e a perspetiva do homem médio colocado perante os acontecimentos em causa, como se refere inclusivamente na motivação da sentença recorrida, sem perder de o princípio da livre apreciação da prova.
Refira-se finalmente, mal se compreender o empenho da Junta de Freguesia no não reconhecimento da controvertida faixa de terreno como integrante do Domínio Público, quando é um dos seus escopos, exatamente garantir a preservação do domínio público na sua área territorial.
Acresce que igualmente não se alcança o sentido do raciocínio da Junta de Freguesia ao afirmar no seu Recurso, designadamente, que “com o alcatroamento da N..., ocorreu a desafetação tácita do domínio público, por ter cessado a finalidade que visava satisfazer”, pois que tal empreitada, independentemente de quem a realizou, não tem a virtualidade de alterar a correspondente dominialidade do caminho aqui controvertido.
Em face de tudo quanto se expendeu supra, não se julgará procedente qualquer dos recursos apresentados, mantendo-se, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.
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Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento aos recursos jurisdicionais apresentados, confirmando-se a Sentença Recorrida.
Custas pelas Recorrentes
Porto, 12 de julho de 2019
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco
Ass. Nuno Coutinho
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa