Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02331/21.7BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:ESTRANGEIRO. PROTECÇÃO INTERNACIONAL. ASSISTÊNCIA POR ADVOGADO
Sumário:I) – Cfr. Ac. do STA, de 27-01-2022, proc. n.º 02144/20.3BELSB:
I – A Lei do Asilo assegura pleno acesso ao direito e aos tribunais aos requerentes de proteção internacional, assegurando, nomeadamente, aconselhamento jurídico gratuito em todas as fases do procedimento, a prestar pelo Conselho Português dos Refugiados (CPR).

II – Não se justifica uma interpretação do número 7 do artigo 49.º da Lei do Asilo em conformidade com os n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no sentido de que o mesmo impõe ao SEF que preste ao requerente a informação de que, além do aconselhamento pelo CPR, pode também requerer a nomeação, oficiosa e gratuita, de um advogado que o acompanhe na entrevista prevista no artigo 16.º da mesma lei.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

Ministério da Administração Interna interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF do Porto, em acção administrativa intentada por AA..., natural da República do Gana, julgada parcialmente procedente.

O recorrente conclui:

1. Resulta evidente que o Tribunal a quo na sua ponderação e julgamento do caso sub judice não teve em atenção o quadro legal atinente às condições e procedimentos de concessão de proteção subsidiária. Vejamos então,
2. O artigo 20. 2 da CRP consagra a garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, prevendo que: "1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade."
3. A garantia do acesso ao direito e aos tribunais estende-se a todos e a quaisquer direitos e interesses protegidos e engloba o direito à informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário, bem como o direito de se fazer acompanhar por advogado perante qualquer autoridade (cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA — Constituição da República Portuguesa Anotada. 4º ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, Volume I, pp. 410 a 412).
4. No âmbito de um pedido de proteção internacional, antes de ser proferida qualquer decisão, atento o n.º 1 do art.º 16.º da Lei n.º 23/2007, de 04/07, alterada pela Lei n.º 29/2012 de 09/08, "é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente", situação que se designa comummente por entrevista e que não constitui um ato administrativo mas um ato material de trâmite inserido num procedimento administrativo.
5. Constitui direito dos requerentes de asilo, entre outros, beneficiar de apoio judiciário, nos termos da lei (cf. artigo 49. 2 , n.º 1, alínea f), da Lei do Asilo).
6. De acordo com o preceituado no n.º 7 do art.º 49. 2 da Lei de Asilo, "na prestação de declarações a que se refere o artigo 16. 2 , os requerentes de asilo ou de proteção subsidiária podem fazer-se acompanhar de advogado, sem prejuízo de a respetiva ausência não obstar à realização desse ato processual" (sublinhado nosso), não se verificando qualquer obrigatoriedade quanto à presença de advogado no ato em causa, nem a sua ausência prejudica a realização da entrevista.
7. Assim sendo, e pese embora se reconheça a importância do acompanhamento por advogado, nesta fase do procedimento, inexiste qualquer obrigatoriedade quanto à presença de advogado no ato em causa, pese embora a entidade administrativa tenha feito chegar, sempre, ao conhecimento do requerente o seu direito ao acompanhamento e assistência jurídica gratuita.
8. Não se vislumbra, assim, qualquer desconformidade entre o disposto no n.º 1 do artigo 16.º e o princípio plasmado no artigo 20.º, n.º 2, da Lei Fundamental nem, bem assim, entre este e a atuação da Entidade Demandada, no caso em apreço.
9. Com a devida vénia, afigura-se ao recorrente que a Sentença, ora objeto de recurso, carece de fundamentação legal, porquanto não logrou fazer a melhor interpretação do regime que estabelece as condições e procedimentos de concessão de proteção subsidiária.
10. Com efeito, não se verifica qualquer contradição entre as referidas disposições, não afastando o artigo 16. 2 , n.º 1 da Lei do Asilo, a possibilidade de o requerente de protecção internacional ser acompanhado por advogado aquando da realização da entrevista.
11. O objetivo da entrevista é apurar quais as reais condições do Requerente de protecção internacional, sendo que a informação que transmitir é de cariz estritamente factual e pessoal, de molde a aferir se preenche ou não os pressupostos para admissão do pedido.
12. Sendo assim de assinalar que, ao contrário do alegado, não se verifica que o Requerente tenha prejuízos diretamente decorrentes da falta da presença do mandatário na entrevista, que suscite violação legal. Aliás, foi declarado pelo Requerente não ter advogado constituído.
13. Na verdade, não pode o ora recorrente aceitar o veredicto plasmado na Sentença que considerou boa a tese do recorrido (Autor).
14. Acresce que, a Entidade Demandada, quando da apresentação do pedido de protecção internacional do Autor, expressamente lhe transmitiu que o mesmo tinha direito a assistência legal gratuita em todas as fases do procedimento e direito a ser acompanhado por advogado durante a realização da entrevista pessoal a que o mesmo viria a ser sujeito, não se perscrutando, por isso, qualquer derrogação ao princípio de acesso ao direito.
15. Sempre se dirá que o ora Recorrido, no inicio da diligência entrevista foi questionado se tinha advogado constituído. A tal questão o ora recorrido retorquiu não ter, mais afirmando que a entrevista poderia prosseguir.
16. Ou seja, foi o ora Recorrido que expressamente declarou, em sede de entrevista, que não tinha advogado, cfr. auto de declarações a fls. (...) do PA.
17. Na prestação de declarações a que se refere o artigo 16º da Lei de Asilo, o requerente pode fazer-se acompanhar de advogado (se assim o entender), sendo que a sua ausência não obsta à realização daquele ato. Portanto, o ora recorrido poderia, se assim o entendesse, fazer-se acompanhar de mandatário, o que, in casu, não aconteceu.
18. Pelo que de nenhuma invalidade padece o ato aqui em causa, decorrente da ausência de um advogado na entrevista, pois, como resulta taxativamente do nº 7 do artigo 49º da Lei de Asilo, a presença de advogado quando da prestação de declarações pelo requerente de proteção internacional é meramente facultativa, não sendo a sua ausência obstativa à realização da entrevista.
19. Assim, resulta incompreensível que a douta sentença proferida considere que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não atuou como lhe competia e que não assegurou, no caso concreto, o direito constitucional ao advogado, de forma efetiva, como impunha o art.º 49º, nº 7 da Lei de Asilo, interpretado à luz do art. 2 20 2 , nº 2 da CRP.
20. Ademais, e como a presente impugnação mostra à evidência, o Recorrido não foi de modo algum prejudicado no seu direito de defesa, não se verificando qualquer ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa do requerente de asilo.
21. Importa, assim, evidenciar, que a ora recorrente deu pleno cumprimento às normas legais vigentes atinentes à Lei de Asilo, encontrando-se o ato administrativo legalmente enquadrado face ao disposto na Convenção de Genebra e na Lei de Asilo.
22. Crê-se destarte inequívoco, que a Sentença a quo carece de legalidade, porquanto, conforme precedentemente explanado, no estrito cumprimento do estatuto pelo direito vigente sobre a matéria, se lhe impunha considerar impoluto o ato da ora Recorrente.
23. Para melhor corroborar a posição da entidade demandada vejamos a argumentação deduzida pelo TCA Sul no Processo n° 622/21.6BELSB a qual desde já subscrevemos: "Em sede de procedimento de protecção internacional, tal como está legislativamente regulado, não ocorre uma situação de indefesa e uma preterição do princípio de igualdade de armas, violadora do art.° 20. 2 da CRP; Tal como está delineado o indicado procedimento não está obstaculizado o acesso pelo requerente de protecção à assistência e representação por advogado, assim como não fica vedado o apoio e a assistência jurídica. Diversamente, uma vez constituído advogado pelo requerente de protecção, aquela assistência e representação ficam garantidas em todos os momentos do procedimento, não podendo ser afastadas ou preteridas pela Administração".
24. Ao invés, assim não atuou, razão pela qual ora se pugna pela revogação da douta Sentença, atenta a correta interpretação e aplicação da Lei. O requerente de protecção, aquela assistência e representação ficam garantidas em todos os momentos do procedimento, não podendo ser afastadas ou preteridas pela Administração; Já o referido apoio e assistência jurídica são expressamente salvaguardados quer pela obrigação de informação da Administração da possibilidade do seu accionamento pelo interessado, quer pela intervenção do Conselho Português para os Refugiados (CPR), quer, ainda, pela possibilidade de acesso do requerente de protecção ao beneficio de apoio judiciário, nomeadamente na modalidade de atribuição de defensor nomeado, o que ocorre em termos céleres e de gratuitidade; A mera circunstância da lei — nacional e comunitária — permitirem a realização da entrevista ao requerente de protecção sem a presença de um advogado, quando este não o tenha constituído ou quando não tenha requerido tal assistência por via do benefício da atribuição de apoio jurídico, por si só, não viola o art. 220. ° da CRP.
25 Pelo exposto, só ocorrerá uma situação de indefesa e uma preterição do princípio de igualdade de armas, proibida pelo invocado art. 220.° da CRP, quando o legislador crie um quadro legal injustificada ou desnecessariamente complexo ou difícil, de tal forma que obstaculize a possibilidade de acesso pelo requerente de protecção à indicada assistência e representação jurídicas. Igualmente, aquela violação poderá ocorrer quando a indicada assistência e acesso lhe fiquem vedadas por razões económicas. Estas conclusões terão aplicação quer em sede procedimental — e designadamente num procedimento de protecção internacional em que o requerente pode ser sujeito a uma expulsão do nosso país — quer em sede judicial — quando aquele requerente pretende reagir contra a negação do seu pedido de protecção ou a expulsão que foi determinada.
26. Ora, em sede de procedimento de protecção internacional, tal como está legislativamente regulado, não ocorre uma situação de indefesa ou uma preterição do princípio de igualdade de armas, violadora do art.° 20.° da CRP. Na verdade, tal como está delineado o indicado procedimento não está, de forma alguma, obstaculizado o acesso pelo requerente de protecção à indicada assistência e representação por advogado, assim como, não fica vedado o apoio e a assistência jurídica. Diversamente, uma vez constituído advogado pelo requerente de protecção, aquela assistência e representação ficam garantidas em todos os momentos do procedimento, não podendo ser afastadas ou preteridas pela Administração. Já o referido apoio e assistência jurídica são expressamente salvaguardados quer pela obrigação de informação da Administração da possibilidade do seu accionamento pelo interessado, quer pela intervenção do Conselho Português para os Refugiados (CPR), quer, ainda, pela possibilidade de acesso do requerente de protecção ao beneficio de apoio judiciário, nomeadamente na modalidade de atribuição de defensor nomeado, o que ocorre em termos céleres e de gratuitidade.
27. Quanto ao específico momento da entrevista, como já assinalamos, pode o requerente de protecção apresentar-se na mesma com advogado constituído, que o assistirá. Este mesmo advogado terá acesso às informações e decisões constantes do processo e ao local onde o requerente esteja detido. Se o requerente de protecção internacional não tiver a possibilidade de constituir advogado para a fase da entrevista, também poderá requerer o beneficio de apoio judiciário para esta fase. Neste caso, o defensor oficioso assistirá o requerente de protecção no decurso da entrevista, bastando a este requerente indicar ao SEF que não prescinde de tal assistência, por via do seu defensor nomeado. No que se refere à possibilidade do requerente de protecção internacional alcançar o apoio e a assistência jurídica de que careça, é-lhe facilitado - e não obstaculizado - por via da informação inicial que lhe é prestadada indicação do rol dos seus direitos e deveresassociada à obrigação de tal comunicação se ter que fazer pessoalmente e através de língua que entenda.
28. Concorrem também para a facilitação no acesso ao apoio e assistência jurídica as explicações que lhe devem ser inicialmente dadas pela Administração — pelo SEF - relativamente ao apoio que pode encontrar no CPR e às incumbências deste organismo, mormente no aconselhamento e na elucidação dos direitos dos requerentes de protecção internacional. O correspondente apoio que se prevê dado pelo CPR milita no mesmo objectivo. Por fim, a possibilidade do requerente de protecção internacional aceder ao benefício de apoio judiciário, em termos céleres e gratuitos e de obter patrocínio jurídico e judiciário através de um advogado nomeado, garantem cabalmente o referido apoio e assistência.
29. Em suma, o fim previsto no art.º 20 da CRP, relativamente aos requerentes de protecção internacional, está suficientemente efectivado face ao correspondente procedimento, à sua tramitação e à intervenção quer da Administração — do SEF e dos serviços de segurança social, onde tramita o pedido de protecção jurídica —, quer do CPR. Portanto, a mera circunstância da lei nacional e comunitáriapermitir a realização da entrevista ao requerente de protecção sem a presença de um advogado, quando este não o tenha constituído, ou quando não tenha requerido tal assistência por via do benefício da atribuição de apoio jurídico e judiciário por intermédio de defensor nomeado, por si só, não viola o art.º 20 da CRP.
30. Em suma, o entendimento plasmado pelo recorrido conduz à ilegalidade da sentença, devendo, por isso, ser revogada.

Contra-alegou o recorrido, também ampliando, desfilando sob conclusões:

III.I. DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
III.I.A. DO NÃO CUMPRIMENTO DO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO E DA NÃO INDICAÇÃO DOS PRECEITOS VIOLADOS POR (ALEGADO) ERRO DE INTERPRETAÇÃO
1. Envolvendo o Recurso a impugnação da matéria de facto, o Recorrente, sob pena de rejeição, deveria: (i) ter indicado os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) ter indicado a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; (iii) enunciar aqueles pontos na motivação de recurso e sintetizá-los nas conclusões; (iv) bem como os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo nele realizado, impunham decisão diversa da adotada quanto a cada um dos factos impugnados; (v) fundamentando a respetiva discordância. Tudo conforme art. 640.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
2. O Recorrente deveria, de forma concreta e individualizada: (i) indicar os pontos da matéria de facto que foram dados como provados e não o deveriam ter sido – indicando concretamente as razões de facto e a prova produzida nesse sentido; (ii) indicar os pontos da matéria de facto que não foram dados como provados e que o deveriam ter sido – indicando concretamente as razões de facto e a prova produzida nesse sentido; (iii) indicar outros eventuais factos, essenciais ou instrumentais, não considerados e que o deveriam ter sido – indicando concretamente as razões de facto e a prova produzida nesse sentido.
3. O Recorrente, nomeadamente nas suas conclusões, não especifica com apreciação crítica os concretos meios de prova que impunham decisão diversa da seguida pela 1.ª instância. Limitou-se a fazer uma genérica referência a documentos, ao “PA”, sem fazer a indispensável apreciação crítica concretizada desses meios de prova, ou seja, sem invocar, em concreto, caso a caso, facto a facto, os fundamentos porque discorda da convicção formulada pela 1.ª instância.
4. Não cumpriu com o apontado ónus processual mencionado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, não fazendo o devido exame crítico das provas, antes se limitando a uma análise linear e superficial das mesmas.
5. A (hipotética, mas desconhecida) impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelo Recorrente tem necessariamente de ser rejeitada.
6. Não havendo lugar ao despacho de aperfeiçoamento (ou de apresentação) das respetivas alegações, uma vez que o art. 652.º n.º 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do Relator quanto ao aperfeiçoamento das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º, ou seja, quanto à matéria de direito, e já não quanto à matéria de facto.
7. Não é possível ao Recorrido tomar posição, nas suas contra-alegações, sobre concretos pontos da matéria de facto dada como provada, precisamente porque não é possível apresentar tais alegações por falta das corretas e devidas conclusões apresentadas.
8. Mais. Nos termos do art. 639.º, n.º 2, do CPC (ex vi art. 1.º do CPTA), versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: (a) as normas jurídicas violadas; (b) o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; (c) invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
9. O que, nas conclusões em apreciação, também não se mostra realizado, improcedendo, pois, a totalidade das conclusões em referência.
Subsidiariamente, se assim se não entender (tentando responder à matéria dispersamente invocada nas alegações, num esforço de sistematização),
III.I.B. DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO APRESENTADO
III.I.B.1. DA (NÃO) OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE ADVOGADO
10. O Recorrente alega que, no procedimento relativo ao pedido de proteção internacional e, em especial, na prestação das declarações mencionadas no art. 16.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, não é a obrigatória a presença de advogado.
11. Dir-se-ia que bem faria o legislador em determinar a obrigatoriedade de tal assistência (cfr., por exemplo, a norma constante do art. 38.º, n.º 2, da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho).
12. De todo o modo, embora o acompanhamento por advogado possa não ser obrigatório (opção legislativa da qual abertamente se discorda), o Requerente de asilo deve ser claramente informado do seu direito a tal acompanhamento (art. 49.º, n.º 1, als. a) e f) da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho; art. 27.º, n.ºs 5 e 6, do Regulamento de Dublin). E, exercendo tal direito, deve o mesmo ser efetivamente respeitado.
13. No presente caso: o Autor é nacional ganês; nunca aprendeu a ler nem a escrever, em língua nenhuma (cfr. fls. 92 do P.A. “Instrutor” – “por o requerente não saber escrever, a presente intenção foi elaborada pelo inspetor BB....”); não sabe falar, ler, nem escrever em português; compreende apenas a sua língua indígena local (ganesa); e, com muitas (manifestas) dificuldades, o inglês; apesar de ter solicitado a assistência de um intérprete ganês, foi-lhe recusado esse pedido pelos serviços do SEF.
14. Tal factualidade nunca foi posta em causa pelo Réu.
15. Não resulta, todavia, da prova produzida nos presentes autos, que tenha sido prestada informação inicial ao Requerente de asilo (como a indicação do rol dos seus direitos e deveres, a referência às concretas modalidades de apoio judiciário, as explicações relativamente ao apoio que poderia encontrar no Conselho Português para os Refugiados e às incumbências deste organismo), de uma forma pessoal ou através de língua que o Requerente entendesse.
16. A fls. 23 do P.A. Instrutor, a declaração “foi dado conhecimento dos seus direitos e deveres numa língua que este compreenda ou seja razoável presumir que compreenda” foi feita por escrito (quando o Autor é analfabeto) e em português (língua que este nem oralmente compreende).
17. Prima, apenas, pelo seu formalismo, não constando da mesma qualquer explicação clara de que ao Autor assistia o concreto direito de ser acompanhado por um advogado.
III.I.B.2. DA (NÃO) OBRIGATORIEDADE DA PRESENÇA DE ADVOGADO
18. Informa o Réu que: os serviços do SEF transmitiram “expressamente” ao Autor que o mesmo tinha direito a assistência legal gratuita em todas as fases do procedimento; que o mesmo declarou não ter advogado constituído; que o mesmo afirmou que a entrevista poderia prosseguir; pelo que não existiria “qualquer derrogação ao princípio de acesso ao direito”. Invoca, para o efeito, o “Auto de Declarações” (referindo-se a fls. 35-43 do P.A. “Instrutor”).
19. Mas transmitiram “expressamente”… como? “De boca” - quando é certo que impediram ao Requerente o acesso de um tradutor no seu dialeto…? Por escrito – sendo certo que nada consta desse “Auto de Declarações” e que o Requerente é analfabeto …? De onde decorre que o Requerente de asilo apreendeu o seu direito de acompanhamento por advogado e que optou, conscientemente, por não o exercer? De lado nenhum.
20. E os documentos escritos constantes dos autos, ainda que eventualmente assinados pelo Requerente, não provam a tese do Recorrente. Se um documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor (art. 373.º do CC). A apresentação de dezenas de folhas a um Requerente de asilo que não sabe ler, pedindo-lhe que as assine, consubstancia o cumprimento de uma mera formalidade, um “fingimento” do respeito devido a um ser humano em posição de manifesta fragilidade.
21. Também nunca foi identificado o “intérprete” mencionado nos documentos, não constando dos mesmos qualquer declaração ou compromisso de honra nos termos legais.
22. O Requerente deu entrada na Unidade Habitacional de Santo António (UHSA), solicitou proteção internacional, prestou declarações perante os colaboradores do SEF e foi notificado da decisão final, tudo em línguas que não compreendia, sem ser informado da possibilidade de obter assistência jurídica contínua e gratuita, e sem a (devida) assistência de um legal intercessor. O que não se pode simplesmente aceitar.
III.I.B.3. DA EFETIVA OBSTACULIZAÇÃO DO DIREITO DO AUTOR À DEFESA
23. Os requerentes de asilo ou de proteção subsidiária beneficiam, designadamente, de apoio judiciário nos termos da lei (art. 49.º, n.º 1, al. f) da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho). Na prestação de declarações, os requerentes de asilo ou de proteção subsidiária podem fazer-se acompanhar de advogado (art. 49.º, n.º 7).
24. Os advogados que representem o requerente de asilo ou de proteção subsidiária têm direito de acesso às informações constantes do seu processo (art. 49.º, n.º 5) e ainda de acesso a zonas vedadas, como locais de detenção ou de trânsito, para poderem prestar àquele o devido aconselhamento (art. 49.º, n.º 6) (para além dos direitos estipulados no art. 79.º, n.ºs 1 e 2, do EOA).
25. Nenhum destes direitos foi, no entanto, respeitado.
26. A 22.10.2021, o Impugnante apresentou pedido de proteção internacional ao Estado português, junto do SEF, pedido este que correu os seus termos sob o n.º de processo 1310/2021. A 03.11.2021, foram tomadas as declarações do Requerente, pelos serviços do SEF (cfr. fls. 35-43 do P.A. “Instrutor”). Mas tais declarações não foram cabalmente transcritas para o auto correspondente (basta atentar na sua brevidade e inexatidão…).
27. E ainda que fossem completas, nunca as poderia o declarante ter confirmado, porque: redigidas numa língua que desconhece (português); e por ser o mesmo analfabeto.
28. Do exposto resulta, por si só, a falsidade da transcrição da entrevista.
29. De todo o modo: (i) o Autor é injustamente perseguido no Gana, sendo vítima de corrupção, razão pela qual não pode voltar ao seu país; (ii) foi continuamente ameaçado por uma figura política com uma pena de prisão, aplicada de forma discriminatória, sem ter direito a um processo judicial com as normais garantias de defesa, pelo simples facto de ter inadvertidamente danificado o seu carro; (iii) corre risco contra a sua liberdade, a sua integridade física e mesmo a sua vida; (iv) o Requerente, após breve estadia num centro de acolhimento temporário em Itália, foi restituído à liberdade; (v) não lhe foram fornecidos, então, em Itália, quaisquer acompanhamentos ou apoios sociais; (vi) abandonado à sua sorte pelas autoridades italianas, ia trabalhando em mercados, em troca de comida, roupa e algum dinheiro de bolso, sempre escassos; (vii) abrigava-se na casa de diferentes pessoas, que não lhe ofereciam estadia por mais de um dia; (viii) Dormiu frequentemente na rua; (ix) em condições manifestamente insalubres; (x) e passou regularmente fome.
30. O Réu não impugnou esta factualidade.
31. Todavia, apesar de o Autor ter mencionado, mais do que uma vez, o seu difícil percurso e (indignas) condições de vida em Itália, certo é que os serviços do SEF não terão atribuído a relevância devida a tal questão, optando, voluntariamente, por não expor essas situações nos seus documentos administrativos, que também nunca puderam ser sindicados pelo Requerente, uma vez que não sabia ler, e muito menos compreendia as línguas em causa (portuguesa / inglesa)!
32. Os examinadores do SEF não utilizaram todos os meios ao seu dispor para a produção dos necessários elementos de prova ao apoio do pedido.
33. As declarações do Requerente emitidas na entrevista pessoal apresentam-se como insatisfatórias, na medida em que não permitem percecionar a integralidade e concretude dos motivos pelos quais este não deseja regressar a Itália, muito embora permitam apreender que existe um conjunto de razões pertinentes suscetíveis de obstar à sua transferência para esse país.
34. O SEF não possibilitou ao Requerente a apresentação de todo o acervo de razões e factos potencialmente obstaculizantes à emissão da decisão de transferência, demitindo-se também da realização de qualquer diligência instrutória apta a confirmar ou infirmar o teor do declarado pelo Requerente.
35. Sempre existirá, portanto, um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do ato final do procedimento, em clara violação dos arts. 18.º, n.º 1, do DL n.º 27/2008 e 115.º, n.º 1, do CPA, o que consubstancia um manifesto vício de erro sobre os pressupostos de facto.
36. A 03.11.2021, o Autor foi ainda (alegadamente) “notificado” da intenção de consideração como “inadmissível” do seu pedido de proteção internacional (fls. 44 do P.A. “Instrutor”). Foi-lhe então conferido o prazo de 5 dias úteis para apresentar alegações escritas, em sede de audiência prévia.
37. Ora, nunca poderia o Requerente ter compreendido tal informação, porque veiculada por escrito (quando é analfabeto) e em português (língua que nunca falou). Pergunta-se, aliás, como poderia o Autor ter apresentado alegações escritas, quando não sabe escrever…!
38. O respeito pelo direito a ser ouvido cumprir-se-á se se fizer uma leitura articulada do art. 16.º da Lei n.º 27/2008, respeitante à tomada de declarações/entrevista, com o art. 5.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013, também ele relativo à entrevista pessoal do requerente do pedido de proteção internacional e onde se prevê a possibilidade de o «resumo» da entrevista assumir a forma de «relatório» ou de um «formulário-tipo» e que cada Estado-Membro terá de assegurar que o requerente e/ou o seu advogado ou outro conselheiro que o represente tenham «acesso ao resumo em tempo útil».
39. Dessa leitura articulada e conjugada ressalta a imposição de que o requerente, na entrevista/relatório ou após a mesma e chegada da resposta do Estado requerido, seja ouvido, ou de que lhe seja dada a possibilidade de produzir defesa, de emitir ou tomar posição, quanto à decisão a tomar em decorrência da aceitação ou de uma eventual aceitação da responsabilidade pelo Estado requerido da tomada ou retoma a cargo.
40. Deve explicitar-se, em sede da entrevista ou em momento posterior à mesma, a motivação sobre o Estado-Membro que se entende dever apreciar o pedido formulado, mediante a alegação e explicação daquilo que constitui a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o requerente é transferido, conferindo-se-lhe, assim, a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas.
41. Tal regime resulta, designadamente, dos arts. 3.º, 5.º, 7.º, 17.º e 24.º, todos do Regulamento (EU) n.º 604/2013, 2.º, n.º 5, e 121.º, ambos do CPA, e 267.º, n.º 5, da CRP.
42. O aludido “aligeiramento” da forma através da qual é exercido o direito de audiência reclama, por contraposição, um maior grau de exigência no controlo concreto do conteúdo do exercício de tal direito, bem como uma elevação da exigência do controlo jurisdicional exercido, principalmente, no caso de o requerente não estar acompanhado de advogado.
43. O direito europeu consagra, em matéria de asilo, a garantia a um procedimento justo, que inclui o direito a uma análise individualizada e atualizada do pedido de proteção internacional (garantia de efetivação do direito de asilo, encarado este como um direito fundamental internacional ao acolhimento).
44. A ausência de procedimento justo e individualizado para efeitos de concessão de asilo, ou o impedimento de acesso ao mesmo, constitui infração ao art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ao art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conduzindo à anulação da decisão de transferência de um requerente de asilo no domínio do Regulamento de Dublim.
45. Analisada a matéria de facto apurada, e tendo presente o teor do procedimento administrativo desenvolvido, mormente da entrevista/tomada de declarações realizada ao Autor, conclui-se que ao mesmo não foi facultada ou conferida, nem em sede de entrevista/declarações, nem posteriormente às mesmas, qualquer real possibilidade de contraditório/defesa ou de pronúncia quanto à decisão ou eventual decisão a tomar no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional.
46. Não se lhe permitiu, em especial, alegar ou explicitar aquilo que constituía a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o mesmo seria eventualmente transferido, nem afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial o apelo ao regime derrogatório respeitante às “cláusulas discricionárias” (cfr. art. 17.º do Regulamento (EU) n.º 604/2013), mormente, por razões humanitárias e compassivas.
47. O exercício do direito de audiência prévia do Requerente foi exercitado de um modo desadequado, incompleto, insuficiente. (Não seria de estranhar, também, dada a falta de representação por advogado…!)
48. O ato impugnado padece, portanto, de ilegalidade, designadamente pela preterição do direito de audiência prévia do Requerente (arts. 121.º e ss. do CPA).
49. A 11.11.2021, o Diretor Nacional Adjunto do SEF, Exmo. Senhor Dr. CC..., apoiando-se numa suposta “INFORMAÇÃO Nº 2153/GAR/2021”, declarou inadmissível o pedido de proteção internacional (fls. 48-53 do P.A. “Instrutor”). O Impugnante foi “notificado” dessa decisão a 12.11.2021 (fls. 72 do P.A.).
50. Ora, a “notificação” foi apresentada ao Requerente por escrito, quando este é analfabeto, e em português, língua que o mesmo não compreende.
51. Menciona-se no documento que “A notificação foi lida ao requerente na língua inglesa, que compreende, ou seja razoável presumir que compreenda”. Mas a compreensão do inglês pelo Requerente é visivelmente deficiente, não sendo “razoável” a presunção de que o mesmo conhece essa língua, quando anteriormente solicitou o seu próprio acompanhamento por um intérprete ganês aos serviços do SEF.
52. Mais. Apesar de a “notificação” conter uma rúbrica de um alegado “intérprete”, este nunca é identificado. O (alegado) “intérprete” não proferiu qualquer declaração ou compromisso de honra nos termos legais. Não existe prova de que tal “intérprete” detivesse conhecimentos suficientes da língua inglesa. Ou que tivesse lido integralmente o teor dos documentos ao Autor.
53. Não se pode fazer tábua rasa da imposição legal de intervenção de intérprete em atos/diligências em que os visados não dominem a língua portuguesa.
54. Se a “leitura” e “tradução” fossem suficientes, subsistiria o problema de saber como seria assegurada ao Requerente a leitura e releitura, se necessitasse.
55. O Autor ficou numa situação de desigualdade relativamente aos outros administrados, portugueses ou estrangeiros, que perceberam efetivamente o sentido da decisão desfavorável (tratamento claramente discriminatório, em clara violação do disposto no art. 15.º, n.º 1, da CRP).
56. Devem, assim, ser declaradas inexistentes ou nulas, por terem sido redigidas numa língua que o Requerente não compreende. Do que sempre resultaria, pelo menos, a ineficácia dos atos administrativos “notificados” (art. 160.º do CPA).
57. Em suma: a preterição destas formalidades essenciais determina a nulidade do ato administrativo em apreço, por ofensa ao conteúdo essencial de direitos fundamentais do Impugnante (art. 161.º, n.º 2, al. d) do CPA), e, designadamente, pela violação do acesso ao direito consagrado constitucionalmente (art. 20.º, n.ºs 1 e 2 do CRP).
58. Ou sempre, caso assim não se entenda, a anulabilidade desses atos (art. 163.º do CPA).
59. Deveria proceder-se a nova notificação do ora Autor no cumprimento dos deveres legais impostos ao Ministério da Administração Interna.
60. O princípio do aproveitamento do ato administrativo sempre seria insuscetível de obstar à eficácia invalidante das formalidades preteridas, por não se poder concluir que a referida decisão de inadmissibilidade era a única concretamente possível.
61. O ato impugnado também não resulta do exercício de um poder estritamente vinculado.
62. Aqui chegados, menciona o Recorrente o Ac. de 07.10.2021, do TCAS, Proc. n.º 622/21.6BELSB, Relatora: Lina Costa, disponível em www.dgsi.pt. Mas basta ler essa decisão na sua integralidade para se concluir que a mesma trata, todavia, de um litígio com contornos factuais substancialmente diversos. Em causa: um Requerente de asilo de nacionalidade angolana (sendo o português a língua oficial de Angola); esse Requerente foi tomando efetivo conhecimento das informações que lhe eram dadas “através da língua “foula” com a ajuda de um intérprete”; saberia ler e escrever, tendo podido prestar esclarecimentos por escrito, em sede de audiência prévia. Isto quando, no presente caso: o Requerente de asilo tem nacionalidade ganesa; foi-lhe recusada a assistência de um intérprete da sua língua local; é o mesmo analfabeto.
63. Acontece ainda que, apesar de posteriormente ter sido nomeado advogado ao requerente de proteção, aquela assistência e representação não ficaram garantidas em todos os momentos do procedimento, tendo sido afastadas ou preteridas pelo SEF.
64. Foram negados à defensora do Autor o acesso ao Requerente (designadamente, na Unidade Habitacional de Santo António), a informações sobre o seu paradeiro e a consulta integral do seu processo em tempo útil (cfr. Docs. 1 e 2 juntos à Petição Inicial).
65. O Réu nunca impugnou tal factualidade.
66. Sempre se imporia, portanto, pelo menos, a revogação do ato administrativo de indeferimento do pedido de proteção internacional e a condenação do SEF a retomar o procedimento administrativo no momento das primeiras declarações prestadas pelo Requerente, dando-se conhecimento ao mesmo de que pode fazer-se acompanhar, gratuitamente, por advogado.
67. Posteriormente, deveria o seu Patrono ser notificado de todas as intenções e decisões relativas ao mencionado procedimento administrativo.
III.I.B.4. DOS PREJUÍZOS SOFRIDOS PELO AUTOR
68. Como resultado dos vícios procedimentais anteriormente expostos, o Requerente vê-se, ainda, privado do seu direito de permanência em território português. São-lhe negados os devidos alojamento e alimentação, assistência médica e medicamentosa, acesso ao sistema de ensino português, acesso ao mercado de trabalho português, acesso a programas e medidas de emprego e formação profissional.
69. O Requerente, perseguido no seu país natal, enfrenta, ainda, uma situação de evidente carência económica e social, não dispondo de recursos de qualquer natureza com os quais possa garantir a sua sobrevivência (fls. 66 do P.A. “Instrutor”).
70. Sofre de problemas de saúde regulares (oculares / úlceras), não podendo tomar a medicação correspondente (fls. 46 do P.A. “Instrutor”).
71. Não possui uma família, nem uma casa, um país ou uma atividade que possa exercer legalmente.
72. A incerteza quanto ao seu futuro agrava-se de dia para dia. Volvidos mais de 3 meses desde a interposição da sua Petição Inicial, vê-se, ainda, na eminência de ser expulso de Portugal.
73. Sofre de continuada e enorme angústia e ansiedade emocional. O que se requer seja superiormente atendido.
III.I.C. SÚMULA
74. A douta sentença recorrida decidiu corretamente, encontrando-se devidamente fundamentada, quer em termos de matéria de facto (atendendo à prova produzida), quer em termos da sua integração de Direito, não merecendo, por isso, qualquer censura e/ou reparo. Do que resulta, por si só, que o Recurso aqui em apreciação não merece provimento.
75. TERMOS EM QUE, PELA IMPROCEDÊNCIA DAS RESPETIVAS CONCLUSÕES, DEVERÁ O RECURSO SER JULGADO NÃO PROVADO E IMPROCEDENTE, MANTENDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA JUSTIÇA.
III.II. DA AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
III.II.A. NOTA INTRODUTÓRIA
76. Não obstante não tenha recorrido da douta sentença proferida a 15.03.2022, prevenindo a hipótese de o Recurso interposto pelo Réu poder proceder (no que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio), pretende o Apelado lançar mão da faculdade prevista no art. 636.º do CPC, tendo em vista a reabertura da discussão sobre determinados pontos (fundamentos) que foram por si invocados na ação, e sobre os quais o Dig. Tribunal “a quo” não se chegou a pronunciar.
77. A procedência da alteração ora pretendida não conduz à alteração total da decisão proferida a final, pugnando assim o Apelado pela manutenção da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, no que toca à necessária declaração de nulidade / anulação do ato impugnado (ainda que não com os mesmos fundamentos ali invocados).
III.II.B. DO CONTEXTO FÁTICO E PROCESSUAL
78. O ora Autor é nacional ganês e solteiro. Saiu do seu país em fevereiro de 2016, sozinho e indocumentado. É injustamente perseguido no Gana, sendo vítima de chantagem, extorsão e corrupção, razão pela qual não pode voltar ao seu país. Foi continuamente ameaçado por uma figura política com uma pena de prisão, aplicada de forma discriminatória, sem ter direito a um processo judicial com as normais garantias de defesa, pelo simples facto de ter, inadvertidamente, danificado o seu carro. Corre risco contra a sua liberdade, a sua integridade física e mesmo a sua vida.
79. É facto público e notório que subsiste, no Gana, um clima disseminado de desrespeito pelos direitos humanos, que atinge a população em geral, assumindo um elevado patamar de gravidade (cfr. Doc. 3 junto com a Petição Inicial, aqui dado como integrado e reproduzido para todos os efeitos legais). São sistematicamente relatados episódios concretos de violação dos direitos humanos, bem como documentadas práticas afrontadoras desses direitos por banda, designadamente, de forças de autoridade. Têm igualmente sido reportadas práticas decorrentes da existência de tráfico de influência e corrupção nas instituições públicas e que afetam, entre outras instituições, os tribunais estaduais.
80. O Requerente viajou então pela Líbia, Itália e Suíça. Em Itália e na Suíça, foi alvo dos (habituais, notórios e publicamente conhecidos) desinteresse, dificuldades burocráticas, xenofobia e assédio institucional (cfr. Doc. 4 junto à Petição Inicial, aqui dado como integrado e reproduzido para todos os efeitos legais). Não tinha suficiente ajuda financeira, (mal) sobrevivendo à custa de pequenos “biscates”, como vendas ocasionais de roupa que realizava em mercados, e dependendo da ajuda de outros africanos.
81. Chegou a Portugal no final de setembro de 2021. Não fala nem compreende a língua portuguesa. Foi instaurado contra o mesmo um processo de afastamento coercivo que correu termos sob o n.º 169/2021. A 18.10.2021, o Gabinete de Asilo e Refugiados (GAR) apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas. A 22.10.2021, o Impugnante apresentou pedido de proteção internacional ao Estado português, junto do SEF, pedido este que correu os seus termos sob o n.º de processo 1310/2021. A 03.11.2021, foram tomadas as declarações do Requerente, pelos serviços do SEF (cfr. Doc. 5 junto à Petição Inicial). Na mesma data, foi (alegadamente) “notificado” da intenção de consideração como “inadmissível” do seu pedido de proteção internacional, por (suposta) inadmissibilidade do mesmo (cfr. Doc. 5, p. 10). Foi-lhe então conferido o prazo de 5 dias úteis para apresentar alegações escritas, em sede de audiência prévia (embora nunca possa o Requerente ter compreendido tal informação, porque veiculada por escrito, mas em português, língua que nunca falou) (cfr. Doc. 5, p. 10). A 11.11.2021, o Diretor Nacional Adjunto do SEF, Exmo. Senhor Dr. CC..., apoiando-se numa suposta “INFORMAÇÃO Nº 2153/GAR/2021” (cfr. Doc. 6 junto à Petição Inicial) declarou inadmissível o pedido de proteção internacional (cfr. Doc. 7 junto à Petição Inicial). O Impugnante foi “notificado” dessa decisão a 12.11.2021 (cfr. Doc. 8 junto à Petição Inicial).
82. Ora, as notificações e intenções decisórias / decisões supramencionadas padecem de manifesta invalidade. A qualificação do pedido como “inadmissível” indica, de forma clara, a existência de erro grosseiro na avaliação e análise da situação jurídica do Requerente.
83. Sendo certo que, em virtude da mesma, se verá este privado do seu direito de permanência em território português, sendo-lhe consequentemente negados, de ora em diante: os devidos alojamento e alimentação, assistência médica e medicamentosa; acesso ao sistema de ensino português, acesso ao mercado de trabalho português, acesso a programas e medidas de emprego e formação profissional.
84. O Requerente, perseguido no seu país natal, enfrenta agora novamente uma situação de evidente carência económica e social (bem conhecida dos serviços do SEF – cfr. fls. 66 do P.A. “Instrutor”), não dispondo de recursos de qualquer natureza com os quais possa garantir a sua sobrevivência.
85. Perseguido, anteriormente, por motivos políticos, não possui agora família, nem uma casa, um país ou uma atividade que possa exercer legalmente.
86. Enfrenta problemas de saúde regulares (oculares / úlceras) e não tem meios para comprar a medicação correspondente (fls. 46 do P.A. “Instrutor”).
87. A incerteza quanto ao seu futuro agrava-se de dia para dia e vê-se na eminência de ser expulso de Portugal.
88. Sofrendo, em consequência, de enorme angústia e ansiedade emocional.
III.II.C. DA INVALIDADE DOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
89. É evidente que as declarações do Requerente não foram cabalmente transcritas para o auto correspondente (basta atentar na sua brevidade e inexatidão…).
90. E ainda que fossem completas, nunca as poderia o Requerente ter confirmado, porque: é analfabeto (a fls. 92 do P.A. “Instrutor”, aliás, o pedido de asilo é manuscrito pelo Sr. Inspetor BB...., em virtude de “o Requerente não saber escrever”); tais declarações, de todo o modo, encontram-se redigidas numa língua que desconhece.
91. Do exposto resulta, por si só, a falsidade da transcrição da entrevista (junta como Doc. 5 à Petição Inicial), o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
92. Analisados os documentos relativos ao procedimento administrativo aqui em causa, conclui-se que o Requerente não foi informado, numa língua que compreendesse ou fosse razoável presumir que compreendesse, dos seus direitos e obrigações no âmbito do pedido de proteção internacional que formulou.
93. Se, designadamente, na transcrição da “entrevista” (cfr. Doc. 5 junto à Petição Inicial), o SEF faz constar que a mesma foi realizada na língua inglesa (que o Requerente não compreende facilmente), quando, mais adiante, lhe é entregue um auto de declarações redigido em português, para que confirmasse as informações por si prestadas (sendo o Requerente analfabeto e nunca tendo falado a nossa língua), o aludido direito não lhe foi assegurado. O mesmo raciocínio se aplica à (alegada) notificação da intenção decisória (cfr. Doc. 5, p. 10): se o Requerente não fala português nem sabe ler, como lhe pode ser entregue uma notificação escrita nessa língua?!
94. Tal vício é transversal a todos os documentos apresentados ao Requerente no âmbito do procedimento administrativo. Os mencionados documentos não observam o exigido pela Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, nos seus arts. 14.º, 16.º, 24.º, 29.º, 33.º, 33.º-B, 37.º, 43.º, 49.º e 66.º.
95. Mais. Ainda que tivesse ocorrido uma leitura em inglês, por (alegado) “intérprete”, tal nunca implicaria que o Requerente tivesse tomado conhecimento do teor dos documentos. O Autor dificilmente acompanha qualquer discurso corrente em inglês. O “intérprete” mencionado nos documentos não é identificado. Não proferiu qualquer declaração ou compromisso de honra nos termos legais. Não existe prova de que o “intérprete” que levou a cabo esses atos procedimentais detivesse conhecimentos suficientes da língua inglesa. Ou que tivesse lido integralmente e explicado o teor dos documentos ao Requerente. Não se pode fazer tábua rasa da imposição legal de intervenção de intérprete em atos/diligências em que os visados não dominem a língua portuguesa. Se a “leitura” e “tradução” fossem suficientes, subsistiria o problema de saber como seria assegurada ao Requerente a leitura e releitura, se necessitasse.
96. O Autor ficou numa situação de desigualdade relativamente aos outros administrados, portugueses ou estrangeiros, que perceberam efetivamente o sentido da decisão desfavorável (violação do disposto no art. 15.º, n.º 1, da CRP).
97. Devem, consequentemente, ser declaradas inexistentes ou nulas, por terem sido redigidas numa língua que o Requerente não compreende. Do que sempre resultaria, pelo menos, a ineficácia do ato administrativo “notificado” (art. 160.º do CPA).
III.II.D. DA INVALIDADE DA NOTIFICAÇÃO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO INSUFICIENTE – INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES LEGALMENTE PRESCRITAS
98. No que concerne aos atos administrativos, impõe a Lei, em sede geral, além do mais, que tais atos sejam devidamente fundamentados (cfr. arts. 151.º, 152.º e 153.º do CPA).
99. Por outro lado, relativamente às notificações no âmbito do procedimento do ato administrativo, o art. 114.º, n.º 2, do CPA elenca os elementos mínimos que estas devem conter. Dispondo ainda o art. 160.º do CPA que, “Independentemente da sua forma, os atos que imponham deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções, que causem prejuízos ou restrinjam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou afetem as condições do seu exercício, só são oponíveis aos destinatários a partir da respetiva notificação.”
100. Ora, é inequívoco que estamos perante um ato administrativo, sendo evidentes os vícios e a invalidade das “notificações” aqui em causa, bem como a inoponibilidade de qualquer ato administrativo ao Autor.
101. Analisada a “notificação” da intenção decisória de 03.11.2021 (cfr. Doc. 5, p. 10, junto à Petição Inicial), fica sem se saber, designadamente, porque é que “Itália é o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional”.
102. No mesmo sentido, estudada a “notificação” da “decisão” relativa ao pedido de proteção internacional formulado pelo ora Impugnante, datada de 11.11.2021 (cfr. Doc. 8 junto à Petição Inicial), verifica-se que a mesma omite os fundamentos legais de facto e de Direito e os demais requisitos e elementos exigidos pela Lei, nomeadamente: os factos que alegadamente lhe deram causa (não é identificado com clareza o motivo pelo qual o pedido é considerado “inadmissível”, não se podendo igualmente compreender a mencionada decisão de “transferência (…) para a Itália”) e o texto integral do ato administrativo.
103. O procedimento aqui em causa viola frontalmente os princípios da legalidade (art 3.º do CPA), da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (art. 4.º), da boa-fé (art. 10.º) e da colaboração da Administração com os particulares (art. 11.º). Princípios estes, aliás, constituindo imperativos categóricos para as instituições públicas (arts. 18.º e 266.º da CRP).
104. O ato de notificação deve esclarecer devida e inequivocamente o notificado do teor, efeitos, consequências e meios de defesa - para que ele, de tudo bem inteirado, os possa exercer de facto. A notificação consubstancia um ato que desempenha um papel fundamental na realização do princípio do contraditório, legalmente consagrado e constitucionalmente protegido. É corolário do princípio constitucional do "acesso à justiça" e a sua importância reflete-se nos efeitos que a lei atribui à sua invalidade. Trata-se de um ato tutelado pelos mais elevados valores do direito internacional e interno, uma vez que o princípio do "acesso à justiça" não pode deixar de ser integrado no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 14.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, todos pactos internacionais recebidos pelo direito interno português. O "acesso à justiça" implica também o direito à defesa, consubstanciado especialmente no princípio do contraditório, o que acarreta, antes de mais, o conhecimento efetivo do procedimento instaurado e a concessão de um prazo suficientemente amplo para a defesa, no que é fundamental. É assim inegável a primordial e máxima importância da notificação, legal e constitucionalmente protegida.
105. Da notificação recebida, não se compreende a razão de ser da intenção e da decisão de indeferimento, por alegada inadmissibilidade, do pedido de proteção internacional. Não se alcança porque é que se considera que o Autor deve ser transferido para Itália.
106. A notificação de que o ora Autor foi destinatário peca pela não observância de formalidades prescritas na lei. Assim, não pode o Autor defender-se convenientemente, porque simplesmente não conhece a totalidade dos elementos necessários para a sua defesa.
107. Do exposto decorre a nulidade da decisão, por ofensa ao conteúdo essencial de direitos fundamentais do Autor, designadamente dos seus direitos ao acolhimento, alojamento, alimentação, assistência médica e medicamentosa, acesso ao ensino, formação, ao trabalho e à remuneração, necessários à sua subsistência (art. 161.º, n.º 2, al. d) do CPA),
108. Ou sempre, caso assim não se entenda, a sua anulabilidade (art. 163.º do CPA),
109. Bem como a inoponibilidade ao Autor de qualquer (alegado) indeferimento do pedido de proteção internacional.
110. Impor-se-ia, assim, a nova notificação do ora Autor no cumprimento dos deveres legais impostos ao Ministério da Administração Interna.
111. Desde já se requerendo o esclarecimento das circunstâncias da consideração como “inadmissível” do pedido de proteção internacional.
III.II.E. DA ININTELIGIBILIDADE DA PRETENSA NOTIFICAÇÃO
112. O Autor desconhece, com rigor, a causa, a natureza e a fundamentação de facto e de Direito da intenção e da decisão de indeferimento, por (alegada) inadmissibilidade, do seu pedido de proteção internacional.
113. Porque é que se considera que o seu pedido está sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pelo pedido de proteção internacional, previsto no Capítulo IV da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho? Porque é que se considera que a responsabilidade pela análise do pedido pertence a outro Estado membro? Quando é que os serviços do SEF solicitaram às autoridades desse Estado membro a tomada ou retoma a cargo do Impugnante? O Estado Requerido aceitou a responsabilidade pela análise do pedido? Se sim, quando? Se não, porquê? Foi entregue, ao Impugnante, algum salvo-conduto emitido pelo SEF? Etc. etc., etc.?
114. As referidas notificações são incompletas, ininteligíveis e, por conseguinte, ilegais e inoponíveis ao ora Autor. Uma declaração que não comunique de forma autónoma e individualizada o ato notificando, tornando excessivamente oneroso o acesso à justiça administrativa, não pode ser configurada como notificação. Verifica-se, pois, a preterição de formalidades essenciais nas aludidas notificações. É a própria lei que considera tais elementos como formalidades essenciais de notificação, cominando a sua falta com a inoponibilidade do ato ao notificado. O destinatário não teve conhecimento da intenção e da decisão de indeferimento, por inadmissibilidade, em toda a sua extensão e significado, por facto que lhe não é imputável.
115. Verifica-se, portanto, uma ininteligibilidade das aludidas “notificações” realizadas pelos serviços do SEF, tendo as mesmas de ser consideradas anuláveis (art. 163.º do CPA),
116. Sendo, consequentemente, inoponível ao Autor qualquer ato administrativo de indeferimento do seu pedido de proteção internacional.
117. Impondo-se sempre a nova notificação do ora Autor no cumprimento dos deveres legais impostos ao Ministério da Administração Interna,
118. Desde já se requerendo o esclarecimento das circunstâncias do indeferimento / inadmissibilidade.
III.II.F. DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
119. Do anteriormente exposto resulta ter sido claramente violado o direito de audiência prévia do interessado (arts. 121.º e ss. do CPA).
120. De facto, a notificação para o exercício sério e completo do direito de audiência prévia deve, no mínimo, ser acompanhada do seguinte: (a) projeto de decisão e demais elementos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, em matéria de facto e de direito. Tal significa que deve notificar-se o administrado das “conclusões” da fase instrutória, bem como da sua fundamentação (de facto e de direito), juntando o “projeto de decisão” (sentido da mesma) e eventuais documentos que fundamentarão o ato administrativo; (b) indicação das horas e do local onde o processo pode ser consultado. No caso de existir um website onde o processo possa ser consultado, a notificação deve incluir a indicação do mesmo para efeitos de consulta eletrónica.
121. O que claramente não ocorreu, uma vez que o Autor nunca foi notificado para se pronunciar sobre o facto de (alegadamente) Itália ser o Estado membro responsável pela análise do seu pedido de proteção nacional, inexistindo também qualquer fundamentação (inteligível) da qualificação como “inadmissível” do seu pedido de proteção internacional que (sem a participação do mesmo) haveria de ser tomada.
122. Pior. Nunca poderia ter sido dada ao Requerente de asilo a oportunidade de efetivamente compreender o sentido da intenção decisória desfavorável, uma vez que este é analfabeto. Não sabe falar, ler, nem escrever em português. Compreende apenas a sua língua indígena local e, com muitas (manifestas) dificuldades, o inglês. Adicionalmente, apesar de ter solicitado a assistência de um intérprete ganês, foi-lhe recusado esse pedido pelos serviços do SEF. Sendo certo que, se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor (art. 373.º do CC).
123. O Requerente de asilo nunca foi, também, assistido por Advogado.
124. A audiência prévia constitui, juntamente com o princípio da participação (art. 12.º do CPA), a concretização do modelo de administração participada (art. 267.º da CRP, n.ºs 1 e 5), que impõe à Administração Pública a participação dos particulares na formação das decisões que lhe digam respeito. A falta de audiência prévia do Autor tem força invalidante do efetivo exercício desse direito por parte do mesmo.
125. A preterição desta formalidade essencial determina a nulidade do ato administrativo em apreço, por ofensa ao conteúdo essencial de direitos fundamentais do Impugnante (art. 161.º, n.º 2, al. d) do CPA),
126. Ou sempre, caso assim não se entenda, a anulabilidade desses atos (art. 163.º do CPA),
127. Impondo-se a nova notificação do ora Autor no cumprimento dos deveres legais impostos ao Ministério da Administração Interna.
III.II.G. DO DIREITO DE PROTECÇÃO INTERNACIONAL PELO ESTADO PORTUGUÊS
III.II.G.1. DA EXTEMPORANEIDADE DA DECISÃO DE TRANSFERÊNCIA DA RESPONSABILIDADE
128. Apesar de invocado o art. 37.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho, como fundamento para a prolação do despacho impugnado datado de 11.11.2021, não foi tal despacho proferido no prazo de 5 dias após alegada aceitação tácita da responsabilidade pelo Estado requerido.
129. O pedido de retoma a cargo às autoridades de Itália foi apresentado a 18.10.2021; o alegado prazo de 2 semanas terminou a 02.11.2021; sendo que o diretor nacional do SEF deveria ter proferido decisão de transferência da responsabilidade, no máximo, até dia 7 de novembro (ou 8 de novembro, dia útil).
130. Ora, a decisão impugnada foi emitida já depois de precludido este prazo, motivo pelo qual sempre se deveria considerar admissível o pedido formulado, e declarado o correspondente direito do Autor à proteção internacional.
De todo o modo, ainda que assim não se entenda (no que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio),
III.II.G.2. DO ARTIGO 3.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ACESSO AO PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DE UM PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL”)
131. O art. 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013, de 26 de junho (aqui, também, “Regulamento de Dublin III” ou “Regulamento”) determina uma verdadeira obrigação legal de os Estados-Membros apreciarem a eventual ocorrência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, antes de procederem à transferência daqueles para outro Estado-Membro em obediência aos critérios indicados no Capítulo III do Regulamento. Por conseguinte, uma vez apresentado um pedido de proteção, o respetivo Estado-Membro terá primeiramente que aferir, nos termos determinados no art. 3.º, n.º 1 e no Capítulo III do Regulamento, qual é o Estado responsável pela apreciação de tal pedido. Sendo identificado como responsável pela apreciação do pedido um outro Estado-Membro, há, então, que avaliar da eventual impossibilidade em proceder à transferência, nos termos do art. 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo.
132. Ora, no presente caso, o SEF não averiguou as condições de acolhimento em Itália e do sistema de asilo italiano.
133. Têm, todavia, sido noticiadas, relativamente a Itália, a existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional (cfr. Doc. 4 junto com a Petição Inicial). Resulta expresso em diversos relatórios, estudos e noticias, que após o “Decreto Salvini”, que entrou em vigor em 05-10-2018, as condições de acolhimento em Itália agravaram-se consideravelmente, sobretudo para os migrantes não documentados. Estas circunstâncias relativas ao agravamento das condições dos migrantes em Itália, são hodierna e frequentemente divulgadas em diversas notícias, acessíveis a qualquer um. Nessa mesma medida, as circunstâncias políticas, de pressão migratória e de acolhimento a migrantes, existentes em Itália, são factos notórios, porque do conhecimento geral, sendo realidades facilmente acessíveis a qualquer cidadão mediamente informado, à Administração, designadamente ao SEF, ou a este Tribunal - cfr. art. 412.º, n.º 1, do CPC. A prolação do “Decreto Salvini”, associado ao atual quadro político de Itália e à pressão migratória que continua a impender sobre este país, faz crer que as indicadas condições de acolhimento aos migrantes e requerentes de proteção internacional se mantenham deficitárias e cada vez mais debilitadas. Estas circunstâncias podem ser presumidas pelas regras da experiência comum, constituindo presunção judicial – cfr. arts. 349.º e 351.º do CC.
134. Conforme decorre do procedimento administrativo que foi levado a cabo pelo SEF, estes serviços não procederam a nenhuma indagação acerca daquelas condições. Do procedimento administrativo também não consta nenhuma pronúncia do Centro Português de Refugiados (CPR) relativamente à situação italiana.
135. Ora, também no caso dos autos incumbia ao SEF averiguar acerca do procedimento de asilo e das condições de acolhimento em Itália, aferindo sobre as invocadas falhas sistémicas nas condições de acolhimento, antes de determinar a transferência do Impugnante para este país. Deveria o SEF ter instruído oficiosamente o procedimento, nele fazendo introduzir informação fidedigna e atualizada sobre aquele procedimento e aquelas condições, por forma a verificar se, no caso concreto, existiam motivos que determinassem a impossibilidade da transferência do Requerente, conforme indicado no art. 3.º, n.º 2, do Reg. (UE) 604/2013, de 26 de junho. Para o efeito, deveria o SEF ter recorrido a fontes credíveis, obtidas junto do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo, da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e de organizações de direitos humanos relevantes. Nada disso foi feito no procedimento em apreço, onde se decidiu sem averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento.
136. Apesar de o Autor ter mencionado, mais do que uma vez, o seu difícil percurso e (indignas) condições de vida em Itália (a xenofobia e o assédio de que foi alvo, a falta de acompanhamento e de ajuda financeira para sobreviver, os dias incontáveis que dormiu na rua, a fome que passou), certo é que os serviços do SEF não terão atribuído a relevância devida a tal questão, optando, voluntariamente, por não expor tais situações nos seus documentos administrativos, que também nunca puderam ser sindicados pelo Requerente, uma vez que não sabia ler, e muito menos compreendia as línguas em causa (portuguesa / inglesa).
137. A decisão do SEF é ilegal, designadamente, porque não foi precedida da indagação concreta, junto da Autoridades Italianas, sobre as condições de receção naquele país. Teria de ter apurado concretamente se Itália cumpria todas as condições mínimas de respeito pela dignidade do ser humano. Violou-se, assim, o art. 3.º, n.º 2, 2.º e 3.º parágrafos, do mencionado Regulamento.
III.II.G.3. DO ARTIGO 5.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ENTREVISTA PESSOAL”)
138. Por aplicação do art. 5.º do Regulamento de Dublin III, deve ocorrer uma entrevista pessoal com o requerente da proteção, acompanhada da entrega de um resumo escrito ao mesmo. Essa entrevista serve para ouvir o requerente, para colher as suas informações, mas também para o informar acerca do seu pedido e respetivo enquadramento legal. Tal entrevista servirá, ainda, para recolher do requerente a sua pronúncia acerca da própria decisão a tomar-se no âmbito do (eventual) procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.
139. Acontece, todavia, que, in casu, na entrevista, não foi comunicado ao Autor, com clareza, o teor da decisão que iria ser tomada.
140. O Autor não se pôde, naturalmente, pronunciar sobre a mesma, não tendo conseguido manifestar a sua discordância, por não querer (como não quer) ser retornado a Itália. É que nesse país não tinha suficiente ajuda financeira, (mal) sobrevivendo à custa de vendas ocasionais de roupa que realizava em mercados e dependendo da ajuda de outros africanos.
141. Ora, no plano do direito da União, o respeito dos direitos de defesa constitui um seu princípio geral e fundamental (hoje consagrado nos arts. 48.º e 49.º da CDFUE e, também, no art. 41.º da mesma Carta). Este princípio é aplicável sempre que a Administração se proponha adotar, relativamente a uma pessoa, um ato lesivo dos seus interesses, sendo que os destinatários de decisões que afetam de modo sensível os seus interesses devem ter a possibilidade de dar a conhecer utilmente o seu ponto de vista sobre os elementos com base nos quais a Administração tenciona tomar a sua decisão. Esta obrigação incumbe às Administrações dos Estados-Membros, sempre que estas tomem decisões que entram no âmbito de aplicação do direito da União, e mesmo que a legislação da União aplicável não preveja expressamente essa formalidade.
142. O sentido e o entendimento sustentados quanto à necessidade de observância do direito de audiência e de defesa encontram fundamentação, também, nos considerandos 17.º a 19.º do Reg. (UE) n.º 604/2013, assim como no considerando 25.º da Diretiva n.º 2013/32/UE (disciplinadora dos procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional).
143. O direito de audição/defesa do Autor no âmbito do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, ainda que não expressamente previsto no regime procedimental definido no art. 37.º da Lei n.º 27/2008, deve ter-se, todavia, como imposto e de ser exigida a sua observância no seu seio, sob pena de infração dos comandos/princípios e normativos convocados.
144. O relatório indicado no art. 17.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, exige-se, também, nos procedimentos especiais para a determinação do Estado-Membro responsável.
145. Quando as condições em que deve ser assegurado o respeito dos direitos de defesa dos nacionais de países terceiros em situação irregular não se mostram fixadas de modo expresso pelo direito da União, essas condições e suas consequências terão, tal como constitui jurisprudência do TJUE, de ser regidas pelo direito nacional, desde que as medidas adotadas neste sentido sejam equivalentes àquelas de que beneficiam os particulares em situações de direito nacional comparáveis (princípio da equivalência) e não tornem, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos de defesa conferidos pela ordem jurídica da União (princípio da efetividade). Assim, o respeito pelo direito a ser ouvido cumprir-se-á se se fizer uma leitura articulada do art. 16.º da Lei n.º 27/2008 com o art. 5.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013. Dessa leitura articulada e conjugada ressalta a imposição, também, no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional, e em que a referida entrevista constitui ato procedimental ou pelo menos peça documental, de que o requerente, na entrevista/relatório ou após a mesma e chegada da resposta do Estado requerido, seja ouvido, ou de que lhe seja dada a possibilidade de produzir defesa, de emitir ou tomar posição, quanto à decisão a tomar em decorrência da aceitação ou de uma eventual aceitação da responsabilidade pelo Estado requerido da tomada ou retoma a cargo.
146. Deve explicitar-se, em sede da entrevista ou em momento posterior à mesma, a motivação sobre o Estado-Membro que se entende dever apreciar o pedido formulado, mediante a alegação e explicação daquilo que constitui a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o requerente é transferido, conferindo-se-lhe, assim, a possibilidade de afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial por razões humanitárias e compassivas.
147. Tal regime resulta, designadamente, dos arts. 3.º, 5.º, 7.º, 17.º e 24.º, todos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, 2.º, n.º 5, e 121.º, ambos do CPA, e 267.º, n.º 5, da CRP.
148. O aludido “aligeiramento” da forma através da qual é exercido o direito de audiência reclama, por contraposição, um maior grau de exigência no controlo concreto do conteúdo do exercício de tal direito, bem como uma elevação da exigência do controlo jurisdicional exercido, principalmente, no caso de o requerente não estar acompanhado de advogado.
149. O direito europeu consagra, em matéria de asilo, a garantia a um procedimento justo, que inclui o direito a uma análise individualizada e atualizada do pedido de proteção internacional (garantia de efetivação do direito de asilo, encarado este como um direito fundamental internacional ao acolhimento).
150. A ausência de procedimento justo e individualizado para efeitos de concessão de asilo, ou o impedimento de acesso ao mesmo, constitui infração ao art. 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e ao art. 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, conduzindo à anulação da decisão de transferência de um requerente de asilo no domínio do Regulamento de Dublim.
151. Analisada a matéria de facto apurada, e tendo presente o teor do procedimento administrativo desenvolvido, mormente da entrevista/tomada de declarações realizada ao Autor, conclui-se que ao mesmo não foi facultada ou conferida, nem em sede de entrevista/declarações, nem posteriormente às mesmas, qualquer real possibilidade de contraditório/defesa ou de pronúncia quanto à decisão ou eventual decisão a tomar no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional. Não se lhe permitiu, em especial, alegar ou explicitar aquilo que constituía a sua situação jurídica e factual no Estado-Membro para o qual o mesmo seria eventualmente transferido, nem afastar a aplicação dos critérios de responsabilidade, em especial o apelo ao regime derrogatório respeitante às “cláusulas discricionárias” (cfr. art. 17.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013), mormente, por razões humanitárias e compassivas. As declarações do Requerente emitidas na entrevista pessoal apresentam-se como insatisfatórias, na medida em que não permitem percecionar a integralidade e concretude dos motivos pelos quais este não deseja regressar a Itália, muito embora permitam apreender que existe um conjunto de razões pertinentes suscetíveis de obstar à sua transferência para esse país.
152. Em boa verdade, o que sucedeu é que SEF não possibilitou ao Requerente a apresentação de todo o acervo de razões e factos potencialmente obstaculizantes à emissão da decisão de transferência, demitindo-se também da realização de qualquer diligência instrutória apta a confirmar ou infirmar o teor do declarado pelo Requerente.
153. Em suma: o ato impugnado padece de ilegalidade, designadamente pela preterição do direito de audiência prévia do Requerente.
154. O princípio do aproveitamento do ato administrativo sempre seria insuscetível de obstar à eficácia invalidante das formalidades preteridas, por não se poder concluir que a referida decisão de inadmissibilidade era a única concretamente possível.
155. O ato impugnado também não resulta do exercício de um poder estritamente vinculado.
III.II.G.4. DO ARTIGO 13.º, N.º 2, DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ENTRADA E/OU ESTADIA”)
156. A Entidade Demandada, considerando que a responsabilidade pela análise do pedido em causa pertence a outro Estado Membro, não procedeu à sua apreciação, tendo, antes, dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, conforme previsto nos arts. 19.º-A, n.º 1, al. a) e 36.º e ss. da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho. O Diretor Nacional Adjunto do SEF proferiu, assim, a decisão impugnada, no sentido de considerar inadmissível o pedido do Autor, determinando a sua transferência para Itália.
157. Acontece, todavia, que, entre 2016 e 2021, o Requerente esteve e permaneceu por períodos superiores a cinco meses em vários Estados Membros da União Europeia, entre os quais se contam Itália, Suíça e Portugal.
158. Atentos tais registos e o disposto no n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento de Dublin III, tanto o Estado Italiano, como o Estado Suíço, deixaram de ser responsáveis pela análise de qualquer pedido internacional, análise essa que compete, agora, ao Estado Português (após alegada entrada “irregular” no nosso território),
III.II.G.5. DO ARTIGO 19.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“CESSAÇÃO DE RESPONSABILIDADE”)
159. Resulta do teor do Despacho n.º 3863-B/2020, de 27 de março, que o Estado Português concedeu ao Impugnante uma autorização de permanência em território nacional, com efeitos em tudo iguais aos da autorização de residência em território português. Como tal, nos termos do n.º 1 do artigo 19.º do Regulamento de Dublin III, tornou-se responsável pela análise do respetivo pedido de proteção internacional.
160. Adicionalmente, informam os serviços do SEF que o Requerente formulou pedidos de proteção internacional em Itália e na Suíça. Ora, se o Impugnante abandonou o território italiano “em conformidade com uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento emitida na sequência da retirada ou do indeferimento do pedido” (art. 19.º, n.º 3, do Regulamento), e se o mesmo se encontra em Portugal desde finais de setembro de 2021, será forçoso concluir, para os efeitos do n.º 2 do art. 19.º do Regulamento de Dublim, que abandonou o território estrangeiro há mais de 3 meses.
161. Por esse motivo, o Estado Italiano deixou de ser o estado Membro responsável pela análise do seu pedido de proteção internacional, pois tal competência e responsabilidade passou a ser do estado Português.
162. A decisão do SEF violou, assim, aqui também, os princípios da legalidade, da justiça e da razoabilidade.
III.II.G.6. DA ELEGIBILIDADE PARA O DIREITO AO ASILO
163. É garantido o direito de asilo aos estrangeiros perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana (art. 3.º da Lei n.º 27/2008). Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual (art. 3.º, n.º 2). É garantido o direito de asilo, no quadro da Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951 e do Protocolo de 31 de janeiro de 1967, relativos ao Estatuto dos Refugiados, e nos termos do Tratado da União Europeia e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (a seguir designados "Tratados") (art. 18.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Ninguém pode ser afastado, expulso ou extraditado para um Estado onde corra sério risco de ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes (art. 19.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). Os arts. 2.º e 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) proíbem em absoluto o regresso forcado de qualquer pessoa que, em consequência do mesmo, fique confrontada com um risco real de sofrer um tratamento contrário a qualquer dessas disposições. O art. 3.º da CEDH consagra um dos valores fundamentais de uma sociedade democrática e proíbe absolutamente a tortura ou as penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, independentemente do comportamento da vítima, mesmo que se trate de alguém indesejável ou perigoso.
164. Ora, o Requerente é injustamente perseguido no Gana, sendo vítima de corrupção, razão pela qual não pode voltar ao seu país. Foi continuamente ameaçado por uma figura política com uma pena de prisão, aplicada de forma discriminatória, sem ter direito a um processo judicial com as normais garantias de defesa, pelo simples facto de ter inadvertidamente danificado o seu carro. Corre risco contra a sua liberdade, a sua integridade física e mesmo a sua vida.
165. Ainda assim, os examinadores do SEF não parecem ter utilizado todos os meios ao seu dispor para a produção dos necessários elementos de prova ao apoio do pedido.
166. Sempre existirá, portanto, um défice de instrução procedimental gerador da ilegalidade do ato final do procedimento, em clara violação dos arts. 18.º, n.º 1, do DL n.º 27/2008 e 115.º, n.º 1, do CPA.
167. O que consubstancia um manifesto vício de erro sobre os pressupostos de facto.
III.II.H. DOS DANOS CAUSADOS PELA (INJUSTIFICADA) RECUSA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL
168. Como resultado da (ininteligível e injustificada) decisão de indeferimento, por (alegada) inadmissibilidade, do pedido de proteção internacional, o Autor vê-lhe negados os seus direitos ao acolhimento, alojamento, alimentação, assistência médica e medicamentosa, acesso ao ensino, formação, ao trabalho e à remuneração, necessários à sua subsistência. O Impugnante sofre de enorme angústia e ansiedade emocional. Perseguido, anteriormente, por motivos políticos, não possui agora uma casa que possa chamar sua, um país que possa chamar de seu, uma atividade que possa exercer legalmente. Vive em condições indignas, de manifesta instabilidade económico-financeira. A incerteza quanto ao seu futuro agrava-se de dia para dia. Não consegue criar raízes num país, encontrar um novo emprego, nem constituir família, não só pela sua idade, como pelas suas reduzidas qualificações, pela sua falta de documentação e injustificadas recusas dos seus pedidos de asilo. É uma pessoa de bem, que gosta de cumprir com as suas obrigações, que sempre trabalhou e que não está habituado a ter que viver na dependência económica de terceiros (muito menos de entidades e serviços estatais). Vê-se, injustamente, na eminência de ser expulso de Portugal.
169. A Administração Pública responde, nos termos da lei, pelos danos causados no exercício da sua atividade (art. 16.º do CPA, “Princípio da responsabilidade”). Estando obrigada a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento (indeferimento) que obriga à reparação (art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas de direito público).
170. A responsabilidade do Ministério da Administração Interna compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito (art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 67/2007).
171. Nos termos do art. 3.º da CEDH, um Estado é responsabilizado quando efetua uma expulsão em que tenham sido apresentadas razões substantivas para crer que a pessoa em causa estava confrontada com um risco real de ser sujeita a tortura ou penas ou tratamentos desumanos e degradantes no país para o qual foi expulsa.
172. Na obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806.º do CC).
173. Deve o Ministério da Administração Interna ser condenado ao pagamento de uma indemnização, ao Requerente, por danos patrimoniais, em quantia nunca inferior a €1.500,00 (mil e quinhentos euros) (necessária à sua sobrevivência desta a sua entrada em Portugal), e ainda por danos morais, em montante nunca inferior a €3.000,00 (três mil euros), assim como ao pagamento dos juros de mora vincendos que recaiam sobre essas quantias, às taxas de juro civis legalmente aplicáveis, desde a citação para a presente ação até efetivo e integral pagamento.
174. TERMOS EM QUE, CASO O RECURSO PRINCIPAL DEVA PROCEDER (O QUE NÃO SE CONCEDE), DEVE O PRESENTE PEDIDO DE AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO SER LIMINARMENTE RECEBIDO, JULGADA PROVADO E PROCEDENTE E, POR, VIA DISSO: A) SER DECLARADA NULA OU, SUBSIDIARIAMENTE, ANULADA, PELA SUCESSIVA ORDEM DE RAZÕES ATRÁS IMPOSTA, A PRETENSA “NOTIFICAÇÃO” DE 12.11.2021, SUBSCRITA PELO EXMO. SENHOR INSPETOR DO SEF (UNIDADE HABITACIONAL DE SANTO ANTÓNIO), DR. DD..., COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, DANDO-SE SEM EFEITO TODO O PROCESSADO; B) SER ALTERADA A “NOTIFICADA” DECISÃO DE (I) INDEFERIMENTO, POR ALEGADA “INADMISSIBILIDADE”, DO PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL, E (II) DE TRANSFERÊNCIA DO IMPUGNANTE PARA ITÁLIA, TOMADA PELO DIRETOR NACIONAL ADJUNTO DO SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (SEF), EXMO. SENHOR DR. CC..., A 11.11.2021; C) EM CONSEQUÊNCIA, SER A MESMA SUBSTITUÍDA POR ATO QUE RECONHEÇA E DECLARE A ADMISSIBILIDADE DO PEDIDO FORMULADO, DEVENDO O MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA (SEF) FAZER TRAMITAR E APRECIAR O PEDIDO FORMULADO PELO IMPUGNANTE, PROFERINDO DECISÃO, E SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TERMOS DA LEI; D) SER DECLARADO O DIREITO DO AUTOR À PROTEÇÃO INTERNACIONAL, A SER CONFERIDA PELO ESTADO PORTUGUÊS, AO ABRIGO, DESIGNADAMENTE, DA LEI N.º 27/2008, DE 30 DE JUNHO; E) SER O RÉU CONDENADO A PAGAR AO ORA IMPUGNANTE MONTANTE NUNCA INFERIOR A €1.500,00 (MIL E QUINHENTOS EUROS), A TÍTULO DE DANOS PATRIMONIAIS, E A €3.000,00 (TRÊS MIL EUROS), A TÍTULO DE DANOS MORAIS, NUM TOTAL DE €4.500,00 (QUATRO MIL E QUINHENTOS EUROS), ASSIM COMO AO PAGAMENTO DOS JUROS DE MORA VINCENDOS, ÀS SUCESSIVAS TAXAS LEGAIS APLICÁVEIS, DESDE A DATA DA CITAÇÃO PARA A PRESENTE AÇÃO ATÉ EFETIVO E INTEGRAL PAGAMENTO; F) TUDO COM OS RESPETIVOS EFEITOS LEGAIS.
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art.º 146º do CPTA, emitiu parecer no sentido de não provimento do recurso.
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Com legal dispensa de vistos, cumpre decidir.
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Os factos, que na decisão recorrida vêm dados como provados:
1. Em data não concretamente apurada, foi instaurado contra o Requerente um processo de afastamento coercivo que correu termos sob o n.º 169/2021 (cfr. fls. 9 do p.a.).
2. Em 18.10.2021, o Gabinete de Asilo e Refugiados apresentou um pedido de retoma a cargo às autoridades italianas (cfr. comunicações e ofícios de fls. 7 a 19 do p.a.).
3. Em 22.10.2021, o Requerente, natural da República do Gana, apresentou um pedido de proteção internacional junto do Gabinete de Asilo e Refugiados (cfr. declaração comprovativa fls. 22 do p.a.).
4. Em 03.11.2021, foi realizada uma entrevista ao Requerente, tendo sido nessa mesma data elaborada transcrição da mesma com o seguinte teor parcial, assinado pelo Sr. Inspetor do SEF, pelo intérprete e pelo Requerente:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(…)” (cfr. relatório a fls. 79 a 88 do p.a.).
5. Em 11.11.2021, foi emitido despacho que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente e que determinou a transferência deste para Itália, Estado Membro responsável pela análise do pedido (cfr. despacho a fls. 72 do p.a.).
6. Em 12.11.2021, foi emitido termo de notificação do conteúdo do despacho referido no ponto anterior, de que consta a referência de que a notificação foi lida na língua inglesa ao Requerente, tendo o mesmo sido assinado pelo Sr. Inspetor do SEF, pelo Requerente e pelo intérprete (cfr. termo de notificação a fls. 71 do p.a.).
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A apelação:
O tribunal “a quo” julgou «parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação, em que é Requerente AA... e Réu o Ministério da Administração Interna e, consequentemente:
a) Determino a anulação do ato da Ré que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional formulado pelo Requerente, por procedência de vício de violação de lei por violação do acesso ao direito, considerando prejudicado, por inútil, o conhecimento dos demais vícios invocados pelo Requerente;
b) Determino a retoma do procedimento nos termos que vêm expostos;
c) Considero totalmente improcedente o pedido indemnizatório formulado.».
Teve em alicerce:
«(…)
Da validade do ato:
Como vimos, a título de fundamento da invalidade do ato impugnado, o Requerente imputa desde logo ao ato impugnado um vício de procedimento, por negação de acesso ao direito previsto no art. 20.º, n.º 1 e 2 da CRP, na medida em que o requerente de proteção não foi informado, no início do procedimento, de que beneficiava de apoio judiciário, tendo prestado declarações e sido notificado da decisão final sem a assistência de um advogado. Segundo sustenta o Requerente, na prestação de declarações, os requerentes de asilo ou de proteção subsidiária podem fazer-se acompanhar de advogado, por força do disposto no art. 49.º, n.º 7, da Lei do Asilo.
Vejamos se procede tal vício, principiando por uma resenha das normas legais aplicáveis.
O art. 20.º da CRP consagra a garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, prevendo, nos n.ºs 1 e 2, que:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
A garantia do acesso ao direito e aos tribunais estende-se a todos e a quaisquer direitos e interesses protegidos e engloba o direito à informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário, bem como o direito de se fazer acompanhar por advogado perante qualquer autoridade (cfr. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA – Constituição da República Portuguesa Anotada. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, Volume I, pp. 410 a 412).
Vejamos então a forma como o legislador veio a configurar um tal direito no âmbito dos procedimentos de asilo.
Constitui direito dos requerentes de asilo, entre outros, beneficiar de apoio judiciário nos termos da lei (art. 49.º, n.º 1, al. f), da Lei do Asilo).
Na prestação de declarações a que se refere o art. 16.º da Lei do asilo, prevê o art. 49.º, n.º 7, da Lei do Asilo, que “os requerentes de asilo ou de proteção subsidiária podem fazer-se acompanhar de advogado, sem prejuízo de a respetiva ausência não obstar à realização desse ato processual.
Tal preceito visa a transposição do disposto no art. 23.º, n.º 3, da Diretiva 2013/32/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa a procedimentos comuns de concessão e retirada do estatuto de proteção internacional, com o seguinte teor parcial:
“Os Estados-Membros devem autorizar o requerente a fazer-se acompanhar na entrevista pessoal por um advogado ou outro consultor admitido ou autorizado nessa qualidade nos termos do direito nacional.
Os Estados-Membros podem determinar que o advogado ou outro consultor apenas possa intervir no final da entrevista pessoal.
(…)
Sem prejuízo do disposto no artigo 25.º, n.º 1, alínea b), a ausência de advogado ou outro consultor não obsta à realização da entrevista pessoal do requerente pela autoridade competente.”
Tem vindo a ser decidido, quer pelo Tribunal Central Administrativo Norte, quer pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que o requerente de proteção internacional, aquando da prestação de declarações a que se refere o art. 16.º da Lei do Asilo, tem de ser devidamente informado de que lhe assiste o direito ser acompanhado por um advogado.
Neste sentido, vejam-se as seguintes doutas palavras do Tribunal Central Administrativo Norte:
Assim sendo, de lado algum do procedimento resulta que o Autor tivesse sido informado de que o acompanhamento jurídico poderia ser por si exigido naquele preciso momento - o mais importante para o desfecho do seu pedido de asilo -, e para as declarações que iria prestar, o que se impunha para que o Autor tivesse a consciência de que estava a renunciar a um seu direito legal.
Na verdade, não se afigurando exigível que um requerente de asilo conheça os contornos do procedimento legal nacional de asilo, dificilmente se pode esperar que um cidadão estrangeiro, perante a enunciação, por parte das autoridades, com mediação de intérprete, de uma panóplia de direitos, entre os quais o direito ao aconselhamento jurídico e ao apoio judiciário (ponto 2 do probatório), se aperceba de que está naquele preciso momento a abdicar do direito de se fazer acompanhar por advogado, se não tiver sido para tal circunstância expressa e atempadamente alertado.
E, se tal advertência não é efetuada de forma cristalina, o direito não é efetivamente assegurado, consistindo a leitura dos direitos no cumprimento de uma mera formalidade, sem substância efetiva.” (cfr. Ac. do TCAN de 18.12.2020, proc. n.º 01450/20.1BEPRT, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, veja-se também o Ac. do TCAS de 07.10.2021, proc. n.º 2144/20.3BELSB).
É certo que tal jurisprudência assenta na falta de informação do direito de constituir advogado no âmbito das declarações de parte do requerente, a realizar nos termos do art. 16.º da Lei do Asilo, que é um momento crucial do procedimento de asilo.
Na situação dos presentes autos, não está em causa uma tal entrevista, por ter sido considerado que a Itália seria o país responsável pela análise do pedido do Requerente, no âmbito de um processo de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido internacional (cfr. ponto 5 do probatório), conduzido nos termos dos arts. 36.º e ss da Lei do Asilo.
Contudo, entende-se que idêntico raciocínio se aplica à entrevista pessoal a realizar no âmbito desse mesmo processo de determinação do Estado-Membro responsável, a realizar nos termos previstos no art. 5.º do Regulamento n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (Regulamento de Dublin).
Na verdade, no âmbito de tal sub-procedimento não deixam de aplicar-se os direitos dos requerentes de proteção internacional elencados no art. 49.º da Lei do Asilo, entre os quais se encontra o direito de beneficiar de apoio judiciário e o de serem informados, entre outros, dos direitos que lhe assistem (cfr. n.º 1, als. a) e f) do referido art. 49.º).
Aliás, o próprio Regulamento de Dublin, que regula este mesmo procedimento, prevê, no art. 27.º, n.º 5, que “Os Estados-Membros garantem o acesso da pessoa em causa a assistência jurídica e, se necessário, a assistência linguística”, relegando os procedimentos relativos ao acesso à assistência jurídica para o direito nacional (cfr. último parágrafo do n.º 6 deste art. 27.º).
Ora, é inegável que, no caso dos procedimentos de asilo, o apoio jurídico é particularmente relevante, quer considerando as barreiras linguísticas existentes, quer considerando a carência económica em que os requerentes de asilo na maioria das vezes se encontram.
Assim sendo, impunha-se que o Requerente fosse inequivocamente informado de tal direito no âmbito do procedimento administrativo que despoletou, ainda que meramente com vista à determinação do Estado responsável.
Consideramos aqui plenamente aplicáveis as seguintes doutas palavras do Tribunal Central Administrativo Sul:
Assim se concluindo que uma interpretação do art. 49.º, n.º 6, da Lei do Asilo, conforme o art. 20.º da CRP, impõe seja prestada informação certa e segura ao requerente de proteção internacional sobre a possibilidade de, não tendo meios económicos para o fazer a sua expensas, poder beneficiar do acompanhamento por advogado gratuito, ab initio e em todo o processo – muito em particular na entrevista prevista no art. 16.º da Lei do Asilo, atento o seu carácter fundante de todo o procedimento -, impedindo-se a instrução de um processo administrativo em violação do princípio da Boa-fé e do Princípio da Participação dos Interessados - cfr. art. 266.º n.º 2 e art. 267.º n.º 5, ambos da CRP – e, bem assim, de outros princípios gerais da atividade administrativa expressamente consagrados no CPA, designadamente, no art. 6.º - Princípio da igualdade -, art. 11.º - Princípio da colaboração com os particulares – e, em aplicação direta do art. 67.º, - Capacidade procedimental dos particulares -, este último que prevê o acompanhamento por advogado em todas as etapas do procedimento.” (cfr. Ac. do TCAS de 07.10.2021, proc. n.º 2144/20.3BELSB, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso dos autos, de lado algum do procedimento, em especial da entrevista realizada ao Requerente (cfr. ponto 4 do probatório), resulta que o Requerente tenha sido informado do seu direito de ser assistido por advogado, o que se impunha por força do disposto no art. 49.º, n.º 1, da Lei do Asilo.
Tal advertência afigura-se essencial para garantir a efetividade do direito em causa. Na verdade, não se afigurando exigível que um requerente de asilo conheça os contornos do procedimento legal nacional de asilo, dificilmente se pode esperar que um cidadão estrangeiro se aperceba de que está a abdicar do direito de se fazer acompanhar por advogado, se não for para tal circunstância expressa e atempadamente alertado.
E, se tal advertência não é efetuada, o direito não é efetivamente assegurado.
Como bem salientou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão M.S.S. c. Bélgica e Grécia, a respeito do direito a um recurso efetivo, a acessibilidade a tal direito em termos práticos é decisiva para a valoração da respetiva efetividade (cfr. TEDH, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, n.º 30696/09, de 21 de janeiro, § 318 e 319, in https://www.echr.coe.int/).
Se assim é, pode concluir-se que, no caso concreto, o direito constitucional ao advogado não foi assegurado de forma efetiva, como impunha o art. 49.º, n.º 1, al. f), da Lei do Asilo, interpretado à luz do art. 20.º, n.º 2, da CRP.
Procede assim a invalidade invocada pelo Requerente, impondo-se a anulação do ato impugnado e a retoma do procedimento administrativo no momento da entrevista realizada ao Requerente, dando-se prévio conhecimento efetivo ao Requerente de que pode exigir a presença de advogado nessa mesma entrevista.
Uma vez que a retoma do procedimento implicará uma nova tramitação do mesmo, no âmbito da qual o Requerente poderá inclusivamente efetuar declarações novas e, portanto, não consideradas no procedimento ora sindicado, designadamente quanto à existência de falhas sistémicas em Itália que agora invoca, afigura-se prejudicada, por inútil, a análise dos demais vícios invocados pelo Requerente, ao abrigo do disposto no art. 608.º, n.º 2, do CPC.
***
Da responsabilidade civil:
Como vimos, o Requerente pede ainda a condenação do Réu a pagar-lhe uma indemnização global de EUR 4.500,00, que compreende o montante de EUR 1.500,00 correspondente a danos patrimoniais e o montante de EUR 3.000,00 a título de danos não patrimoniais. Para tanto, o Requerente invoca a lesão ilícita do seu direito ao asilo.
Sucede, porém, que, quer considerando o conteúdo do ato em causa, que se limitou a determinar a transferência do Requerente para Itália, sem proceder à análise do pedido de asilo formulado, quer considerando a natureza do vício primeiramente invocado pelo Requerente e considerado procedente, que determina a retoma do procedimento em cumprimento das formalidades legais, não se afigura possível, neste momento, aferir-se a existência de uma violação do direito subjetivo do Requerente ao asilo em Portugal, o que se imporia para que se reconhecesse uma ilicitude geradora de responsabilidade civil (cfr. Ac. do STA de 09.11.2000, proc. n.º 046441, in www.dgsi.pt).
Note-se, aliás, que a sindicância judicial de tal questão pressuporá sempre uma análise prévia e discricionária da Administração, por força do princípio de separação de poderes previsto no art. 3.º do CPTA.
Inexiste assim qualquer nexo causal entre os danos invocados pelo Requerente e a invalidade procedimental da decisão que vem impugnada, de que apenas resulta a obrigatoriedade de retoma do procedimento, improcedendo totalmente o pedido indemnizatório formulado.
(…)».
Não se comprendem as chamadas de atenção versadas pelo recorrido sob “DO NÃO CUMPRIMENTO DO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO E DA NÃO INDICAÇÃO DOS PRECEITOS VIOLADOS POR (ALEGADO) ERRO DE INTERPRETAÇÃO”, pois que nem se depara impugnação que requeira o cumprimento de tais ónus, como claramente vem indicado qual o direito tido como violado.
E quanto ao direito, o recorrente tem razão.
Não é imprescindível que aquando da entrevista o entrevistado seja expressamente informado de que pode ser assistido por advogado (nem que essa assistência seja obrigatória).
Cfr. Ac. do STA, de 27-01-2022, proc. n.º 02144/20.3BELSB:
I – A Lei do Asilo assegura pleno acesso ao direito e aos tribunais aos requerentes de proteção internacional, assegurando, nomeadamente, aconselhamento jurídico gratuito em todas as fases do procedimento, a prestar pelo Conselho Português dos Refugiados (CPR).
II – Não se justifica uma interpretação do número 7 do artigo 49.º da Lei do Asilo em conformidade com os n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no sentido de que o mesmo impõe ao SEF que preste ao requerente a informação de que, além do aconselhamento pelo CPR, pode também requerer a nomeação, oficiosa e gratuita, de um advogado que o acompanhe na entrevista prevista no artigo 16.º da mesma lei.
Pode ler-se neste aresto:
«(…)
8. A questão de direito que se discute no presente recurso é a de saber se, como se decidiu no acórdão recorrido, o número 7 do artigo 49.º da Lei n.º 27/2008, de 30 junho, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de maio (Lei do Asilo) tem de ser interpretado em conformidade com os n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), no sentido de que o mesmo impõe ao SEF que preste «informação certa e segura ao requerente de protecção internacional sobre a possibilidade de, não tendo meios económicos para o fazer a suas expensas, poder beneficiar do acompanhamento por advogado gratuito, ab initio e em todo o processo – muito em particular na entrevista prevista no art. 16.º da Lei do Asilo».
Não se discute no presente recurso se aquela disposição legal é ou não conforme à Constituição, por violação das mesmas normas do artigo 20.º, por permitir que a referida diligência se realize sem a presença de um advogado, não obstante ter sido essa a questão inicialmente suscitada pela Autora, ora Recorrida, perante as instâncias.
9. A questão dos deveres de informação em matéria de acesso ao direito e aos tribunais não pode, no entanto, ser vista isoladamente, a propósito da presença de um advogado na entrevista prevista no artigo 16.º da Lei do Asilo.
Os direitos do requerente nessa matéria estão genericamente previstos no número 1 do mesmo artigo 49.º, e nele se dispõe, entre outros, que o requerente de asilo ou de protecção subsidiária goza do direito de:
«a) Ser informado de imediato ou, quando o pedido tenha sido entregue através de outra entidade, até cinco dias a contar do registo do pedido, numa língua que compreendam ou seja razoável presumir que compreendam, dos direitos que lhe assistem e das obrigações a que estão sujeitos em matéria de acolhimento, designadamente sobre (…) iii) as organizações que prestam assistência jurídica específica;
e) Beneficiar de aconselhamento jurídico gratuito em todas as fases do procedimento, a prestar por entidade pública ou organização não governamental com a qual tenha sido celebrado protocolo;
f) Beneficiar de apoio judiciário, nos termos da lei.»
A organização não-governamental que, em Portugal, presta assistência ou aconselhamento jurídico gratuito em todas as fases do procedimento, é o Conselho Português para os Refugiados (CPR), que atua em nome do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Nos termos do n.º 2 do artigo 13.º da Lei do Asilo, com a apresentação do pedido de protecção internacional, «o SEF informa imediatamente o representante do ACNUR e o Conselho Português para os Refugiados (CPR) enquanto organização não governamental que atue em seu nome da apresentação do pedido de protecção internacional, podendo estes contactar o requerente logo após a receção de tal comunicação com o objectivo de o informar sobre o respectivo procedimento, bem como sobre a sua possível intervenção no mesmo, a qual depende do consentimento do requerente.»
A partir daquele momento, a Lei do Asilo reconhece aos representantes do ACNUR e do CPR amplos poderes de intervenção no procedimento, como decorre dos seus artigos 13.º, 17.º, 20.º, 24.º, 28.º, 29.º, 33.º, 33.º-A, 25.º-B, 37.º, 43.º, 49.º, 59.º e 82.º, ainda que os mesmos não tenham, propriamente, poderes de representação, e o requerente não esteja impedido de, simultaneamente, ser representado por um advogado por si constituído ou nomeado oficiosamente.
10. Do quadro legal descrito decorre, portanto, que mesmo que não tenha um advogado, por si constituído ou nomeado oficiosamente, o requerente beneficia de aconselhamento jurídico gratuito pelo CPR, desde o momento em que apresenta o pedido de protecção internacional, e em todas as fases do procedimento.
É, aliás, muito evidente que o legislador quis que, na fase administrativa do procedimento, aquele aconselhamento fosse assegurado primordialmente pelo CPR, tendo em conta que o faz, não só empenhadamente, por ser essa a sua missão, dada a sua natureza de uma organização humanitária não-governamental, como de forma gratuita, independente e imparcial.
Não se ignora o papel fundamental que um advogado, constituído ou nomeado oficiosamente, pode ter no acompanhamento do procedimento, e no aconselhamento do requerente, nomeadamente durante a entrevista prevista no artigo 16.º, mas neste quadro legal não se pode imputar ao SEF a falta de informação sobre a possibilidade de aquele acompanhamento poder ser obtido gratuitamente.
No limite, é aos juristas do CPR que cabe dar ao requerente aquela informação «certa e segura», e de assisti-lo nessa matéria, da mesma forma que o assiste na obtenção de apoio judiciário para a impugnação da decisão de recusa do pedido de protecção internacional, como aliás fez no caso dos autos.
11. Como é imposto pelo n.º 1 do artigo 49.º da Lei do Asilo, o SEF notifica imediatamente o requerente de um pedido de protecção internacional dos direitos de acesso à informação jurídica e aos tribunais que a lei prevê expressamente, nomeadamente de que:i) - tem direito a aconselhamento jurídico gratuito a prestar pelo CPR;
ii) - pode ser representado por um advogado constituído;
iii) - pode requerer apoio judiciário no caso de decidir recorrer da decisão tomada no termo do procedimento.
Não lhe é explicado, porque a lei não o prevê expressamente, que pode também requerer a constituição de um advogado oficioso e gratuito para o assistir no procedimento administrativo, se assim o desejar, mas tanto não parece suficiente para configurar uma inconstitucionalidade das normas ínsitas naquela disposição legal, por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º da CRP.
Nem, por maioria de razão, a falta daquela informação específica configura uma inconstitucionalidade do n.º 7 do artigo 49.º da mesma lei, por violação das mesmas normas, ou justifica a sua interpretação conforme com elas, como se fez no acórdão recorrido.
Não há, naquele quadro legal, manifestamente, uma insuficiência de informação e consulta jurídicas, ou de patrocínio administrativo e judicial, nem tão pouco uma insuficiência de informação sobre os múltiplos mecanismos de acesso ao direito e aos tribunais que a lei coloca à disposição do requerente de protecção internacional.

É certo que as funções cometidas por lei aos juristas do CPR não se equivalem às dos advogados constituídos ou nomeados oficiosamente, mas a sua contribuição para a concretização daquele direito fundamental não pode ser desvalorizada, tanto mais que se trata de um corpo de juristas especializados em direito de asilo e dos refugiados, e por isso particularmente habilitados para prestar aquela assistência.
Ainda que não tenham poderes de representação dos requerentes, nem outros poderes próprios do exercício da advocacia, os juristas do CPR gozam de amplos poderes de intervenção no procedimento de proteção internacional, pelo que se encontram numa posição privilegiada para assegurar o aconselhamento jurídico do requerente.
12. Acresce, por outro lado, que não se pode afirmar que o requerente de um pedido de protecção internacional desconhece em absoluto que tem direito a ser assistido gratuitamente por um advogado, quando lhe é expressa e imediatamente prestada a informação de que tem direito a aconselhamento jurídico gratuito, em todas as fases do procedimento.
O mais certo é que aquele requerente, que vem de outro país, e na maior parte dos casos não domina a língua portuguesa – e muito menos o direito português – não faça uma distinção clara entre um jurista do CPR e um advogado, e se limite a assimilar a essência da informação, que é a de que tem direito a assistência jurídica gratuita em todas as fases do procedimento administrativo. Caberá, pois, ao jurista do CPR que estiver a fazer o acompanhamento do seu processo explicar-lhe a diferença e, se for o caso, assistir-lhe no pedido de nomeação de um advogado oficioso que o acompanhe à entrevista prevista no artigo 16.º da Lei do Asilo, se ele manifestar a vontade de ser acompanhado nessa diligência.

13. Regressando ao caso sub judice, não há nos autos qualquer evidência de que o SEF tenha incumprido os deveres de informação que lhe são impostos por lei.
Como aliás se reconhece no acórdão recorrido, a ora Recorrida tomou conhecimento dos seus direitos em matéria de acesso ao direito e aos tribunais em dois momentos distintos – na data em que apresentou o seu pedido de protecção internacional e na data da realização da entrevista.
Está também provado nos autos que o CPR foi notificado do pedido de protecção internacional apresentado pela Recorrida, no próprio dia em que ele foi feito, havendo, por outro lado, prova de que a Recorrida foi efectivamente acompanhada por juristas daquela organização não-governamental, que, entre outros, a assistiram no pedido de assistência judiciária prévio à propositura da presente acção.
Aliás, como resulta do processo administrativo instrutor, durante todo o período em que decorreu o respetivo procedimento administrativo, a Recorrida ficou alojada no Centro de Acolhimento para Refugiados da Bobadela, gerido pelo CPR, pelo que beneficiou de um acompanhamento integral daquela organização não-governamental.
Não existem, pois, razões para duvidar de que não tivesse acesso à informação e consulta jurídicas em termos suficientes para acautelar os seus interesses – se necessário para fazer um pedido de nomeação oficiosa de um advogado, ainda durante a fase administrativa do procedimento - tanto mais que ela domina a língua portuguesa e alega ter uma formação académica de nível superior, dispondo assim de um nível de compreensão superior à média dos requerentes de pedidos de protecção internacional.
14. Assim, e em conclusão, julga-se que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento, quando interpretou o n.º 7 do artigo 49.º da Lei do Asilo no sentido de que a mesma norma impunha que o ora Recorrente tivesse, previamente à realização da entrevista prevista no artigo 16.º daquela lei, prestado à Recorrida informação sobre a possibilidade de poder beneficiar do acompanhamento gratuito por um advogado nomeado oficiosamente, para além do cumprimento dos deveres de informação que decorrem do n.º 1 da mesma disposição legal.
(…)».
Ainda assim, a sorte da acção não deixa de estar na dependência da ampliação do objecto do recurso, o qual visa permitir “à parte vencedora” a reabertura da discussão sobre determinados pontos (fundamentos) que foram por si invocados na acção (e julgados improcedentes, ou, na medida em que a lei processual também o admite, prejudicados); só e apenas se o recurso interposto - quanto a esse vencimento - , sem essa apreciação, for de procedência; e, viu-se já, é o caso.
Todavia, e por assim ser, deste conhecimento está excluído o que no presente recurso (sob “III.II.H. DOS DANOS CAUSADOS PELA (INJUSTIFICADA) RECUSA DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL”) respeita ao pedido indemnizatório (portanto, sem maior pronúncia que confirme, ou não, a aparente robustez do decidido quanto a esse pedido; pela sua razão ou por actual razão na dependência da sorte, como se verá, do recurso) - relativamente ao qual o autor não é parte vencedora - , sob pena de conhecer a titulo de ampliação do objecto de um recurso, um recurso principal, independente ou subordinado, que não foi interposto, quando o poderia ter sido.
Vendo do mais.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.C. DA INVALIDADE DOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS”.
A respeito da intervenção do intérprete e da redacção da entrevista prevista no art.º 16º da Lei nº 27/2008, de 30/07, convirá observar que é às partes, e só a elas, que incumbe circunscrever o thema decidendum, alegando os factos que integram a causa de pedir e formulando o correspondente pedido. É a relação pedido/causa de pedir que identifica a pretensão do autor, sendo certo que, a final, terá de existir uma correspondência entre o requerido e o pronunciado. Cada questão corresponde a um binómio causa de pedir - pedido, o qual exprime os fundamentos fácticos e jurídicos que justificam a concessão da tutela judicial pretendida (art.581º, nºs 3 e 4, do CPC; Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, V, 1984 pág. 58). Por outro lado, como é comummente lembrado, os recursos são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões impugnadas, não se destinando à apreciação de questões novas, salvo se forem de conhecimento oficioso, e “O processo quando chega ao Tribunal de Apelação, encontra-se já delimitado quanto ao âmbito do conhecimento do recurso e ao ónus de impugnação, impedindo que o Tribunal em sede de recurso possa vir “ex novo” suscitar ilegalidades que nunca foram suscitadas pelos sujeitos processuais.” (Ac. do STA, de 29-11-2018, proc. n.º 0481/16.0BESNT 0739/18).
Ora, no que respeita ao que agora se aborda, claramente que o autor ao longo das suas contra-alegações extravasa a anterior discussão que carreou para os autos, confinada ao seguinte (cfr. p. i.):
C. DA INVALIDADE DOS DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
63. Como adiante veremos, é evidente que as declarações do Requerente não foram cabalmente transcritas para o auto correspondente (basta atentar na sua brevidade e inexatidão…).
64. E ainda que fossem completas, nunca as poderia o Requerente ter confirmado, porque redigidas numa língua que desconhece.
65. Do exposto resulta, por si só, a falsidade da transcrição da entrevista (ora junta como Doc. 5),
66. O que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
Sem prescindir,
67. Analisados os (parcos) documentos relativos ao procedimento administrativo aqui em causa (documentos esses que ora se juntam), conclui-se que o Requerente não foi informado por escrito, numa língua que compreendesse ou fosse razoável presumir que compreendesse, dos seus direitos e obrigações no âmbito do pedido de proteção internacional que formulou.
68. Se, designadamente, na transcrição da “entrevista” (cfr. Doc. 5), o SEF faz constar que a mesma foi realizada na língua inglesa,
69. Quando, mais adiante, lhe é entregue um auto de declarações redigido em português, para que confirmasse as informações por si prestadas, o aludido direito não lhe foi assegurado.
70. O mesmo raciocínio se aplica à (alegada) notificação da intenção decisória (cfr. Doc. 5, p. 10): se o Requerente não fala português, como lhe pode ser entregue uma notificação nessa língua?!
71. Tal vício é transversal a todos os documentos apresentados ao Requerente no âmbito do procedimento administrativo.
72. Os mencionados documentos não observam o exigido pela Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, nos seus arts. 14.º, 16.º, 24.º, 29.º, 33.º, 33.º-B, 37.º, 43.º, 49.º e 66.º.
Mais.
73. Ainda que tivesse ocorrido uma leitura em inglês, por (alegado) “intérprete”, tal nunca implicaria que o Requerente tivesse tomado conhecimento do teor dos documentos.
74. O “intérprete” mencionado nos documentos não é identificado.
75. Não proferiu qualquer declaração ou compromisso de honra nos termos legais.
76. Não existe prova de que o “intérprete” que levou a cabo esses atos procedimentais detivesse conhecimentos suficientes da língua inglesa.
77. Ou que tivesse lido integralmente o teor dos documentos ao Requerente.
78. Não se pode fazer tábua rasa da imposição legal de intervenção de intérprete em atos/diligências em que os visados não dominem a língua portuguesa.
79. Se a “leitura” e “tradução” fossem suficientes, subsistiria o problema de saber como seria assegurada ao Requerente a leitura e releitura, se necessitasse.
80. O Autor ficou numa situação de desigualdade relativamente aos outros administrados, portugueses ou estrangeiros, que perceberam efetivamente o sentido da decisão desfavorável.
81. As notificações do SEF, realizadas em língua portuguesa, evidenciam, assim, um tratamento claramente discriminatório, em clara violação do disposto no art. 15.º, n.º 1, da CRP.
82. Devem, assim, ser declaradas inexistentes ou nulas, por terem sido redigidas numa língua que o Requerente não compreende.
83. Do que sempre resultaria, pelo menos, a ineficácia do ato administrativo “notificado” (art. 160.º do CPA).
O conhecimento agora em instância de recurso vê o que o autor agora pretende em ampliação, seguindo sua delimitação, que pode até não abranger todos os fundamentos em que decaiu (ou não foram apreciados), mas também sem que lhe seja permitido (fora do que até possa suscitar de contributo a um conhecimento oficioso) alimento maior do que o antes esteve em causa.
A Lei n.º 27/2008, de 30/7 (Estabelece as condições e procedimentos de concessão de asilo ou protecção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de protecção subsidiária), prevê no seu art.º 16.º, n.º 1, que “Antes de proferida qualquer decisão sobre o pedido de proteção internacional, é assegurado ao requerente o direito de prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender e através do qual comunique claramente, em condições que garantam a devida confidencialidade e que lhe permitam expor as circunstâncias que fundamentam a respetiva pretensão.”.
Norma fiel ao espírito do comando do art.º 5º, nº 4, do REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 26 de Junho de 2013 [Regulamento Dublim III, que substitui o Regulamento (CE) n.º 323/2003 do Conselho (Regulamento Dublim II)], que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida: “A entrevista realiza-se numa língua que o requerente compreenda ou que possa razoavelmente presumir-se que compreenda, e na qual esteja em condições de comunicar. Caso necessário, os Estados-Membros designam um intérprete que esteja em condições de assegurar uma comunicação adequada entre o requerente e a pessoa que realiza a entrevista.” (no mesmo sentido o REGULAMENTO DE EXECUÇÃO (UE) N.º 118/2014 DA COMISSÃO, de 30 de Janeiro de 2014, que altera o Regulamento (CE) n.º 1560/2003 relativo às modalidades de aplicação do Regulamento (CE) n.º 343/2003 do Conselho, que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro).
O que é necessário à entrevista é que o entrevistado possa “prestar declarações na língua da sua preferência ou noutro idioma que possa compreender”; no caso, numa entrevista “feita na língua inglesa escolhida pelo requerente e através da qual comunica claramente”; como empreendida subsequente notificação, “lidas as declarações e relatório em língua inglesa que compreende e na qual se expressa”; e mais tarde notificação da decisão final, “lida na língua inglesa ao Requerente, tendo o mesmo sido assinado pelo Sr. Inspetor do SEF, pelo Requerente e pelo intérprete”; certo que o autor vinca que do intérprete não foi recolhida “declaração ou compromisso de honra nos termos legais”; mas nos “termos legais” do regime normativo de que estamos a cuidar tal exigência não é feita.
Foi isso, como está plenamente provado, que sucedeu
Vir agora nesta instância invocar que não tem domínio de tal língua - quando o antes nunca o esgrimiu, quando nunca por aí alicerçou falsidade -, surpreende e é nova alegação que agora não pode ser tida em conta.
Com isto se não confunde outra realidade.
A língua do procedimento é a língua portuguesa (art.º 54º do CPA), e é por ela que o auto - como outros documentos - deve ser redigido; não é por o autor não a compreender que há falsidade; como não a há sob gratuita invocação de que as suas declarações não foram cabalmente transcritas sem o assinalar em que em concreto o não foram, afinal deixando um vazio de causa.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.D. DA INVALIDADE DA NOTIFICAÇÃO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO E COMUNICAÇÃO INSUFICIENTE – INOBSERVÂNCIA DE FORMALIDADES LEGALMENTE PRESCRITAS” e sob “III.II.E. DA ININTELIGIBILIDADE DA PRETENSA NOTIFICAÇÃO”.
«Fundamentar é enunciar explicitamente as razões ou motivos que conduziram o órgão administrativo à prática de determinado ato [cfr. arts. 124.º e 125.º do CPA/91], devendo este, assim, conter expressamente, de forma sucinta, clara, concreta, congruente e contextual, os fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão, habilitando, desta forma, um destinatário normal a apreender o seu itinerário cognoscitivo e valorativo.» -Ac. do STA, de 12-04-2018, proc. n.º 01675/15.
É jurisprudência constante dos tribunais administrativos que a fundamentação de um ato é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação só é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognitivo e valorativo seguida pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu como decidiu e não de forma diferente, de maneira a poder desencadear os mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação.
No caso atinge-se a necessária fundamentação.
Sem que a respeito de notificação seja de dar razão ao autor.
Algum apontamento de crítica mais não desencadearia que uma inoponibilidade.
Mas o autor não convence, feita notificação, como já decorre supra, a modos de ser percebida.
E sem que, como a própria dedução da acção revela, adviesse prejuízo da garantia.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.F. DA VIOLAÇÃO DO DIREITO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA” e em “III.II.G.3. DO ARTIGO 5.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ENTREVISTA PESSOAL”)”.
O autor não tem razão.
Cfr. Ac. do STA, de 03-10-2019, proc. n.º 02095/18:
«I - Se no âmbito de «procedimento de protecção internacional» houver lugar ao «procedimento especial de determinação do Estado responsável» pela análise do respectivo pedido, o requerente deverá ser ouvido sobre a possibilidade do seu pedido ser inadmissível e ser transferido para outro Estado;
II - Essa audição tem lugar no âmbito das «declarações» e «relatório» previstos nos artigos 16º e 17º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.».
Audiência que respeitou real possibilidade de contraditório/defesa ou de pronúncia quanto à decisão ou eventual decisão a tomar no quadro do procedimento especial de determinação do Estado responsável pela apreciação do pedido de protecção internacional.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.G.1. DA EXTEMPORANEIDADE DA DECISÃO DE TRANSFERÊNCIA DA RESPONSABILIDADE”, o autor introduz questão nova, que não tem de ser conhecida.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.G.2. DO ARTIGO 3.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ACESSO AO PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DE UM PEDIDO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL”)”.
A nossa mais alta instância tem-se pronunciado de forma reiterada.
Assim, e por mais recente, lembramos o expendido no Ac. do STA, de 21-04-2022, proc. nº 0545/21.9BELSB, em que esteve em causa «a decisão administrativa de transferência do ora Recorrente para Itália, proferida em 18.03.2021, que, nos termos da alínea a) do nº 1, do art. 19º-A e do nº 2 do art. 37º, ambos da Lei nº 27/8, considerou o pedido de protecção internacional apresentado pelo aqui Recorrente, inadmissível. E, nos termos do art. 37º da referida Lei ordenou a notificação desse cidadão, e a sua transferência nos termos do art. 38º do mesmo diploma, para Itália (cfr. 12. dos FP).
O TAC de Lisboa julgou improcedente a acção, por, em síntese, ter entendido que, de acordo com o disposto no art. 20º, nº 2 do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho (doravante Regulamento) o processo de determinação do Estado-Membro responsável tem início a partir do momento em que um pedido de protecção internacional é apresentado pela primeira vez a um Estado-Membro, o que no caso do A. ocorreu em Itália, tendo esse pedido sido indeferido. O pedido subsequente apresentado em Portugal (cfr. art. 2º, nº 1, al. f) da Lei nº27/2008, de 30/6 – Lei do Asilo), só seria admissível se verificados os pressupostos do art. 33º, nº 1 da Lei do Asilo, o que não acontece, sendo o pedido, como tal, considerado inadmissível (art. 19º-A, nº 1, al. e) da referida Lei). Verificada esta inadmissibilidade, foi seguido pela Entidade Demandada o disposto no art. 18º, nº 1, al. d) do Regulamento, nos termos do qual o Estado-Membro responsável [no caso a Itália] é obrigado a retomar a cargo, nas condições previstas nos arts. 23º, 24º 25º e 29º, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência.
Entendeu-se na sentença, em face da alegação do A., que ao procedimento de retoma a cargo, em casos como o presente, não é aplicável a cláusula de salvaguarda prevista no art. 3º, nº 2, § 2 do Regulamento de Dublin III, conforme é jurisprudência do TCA Sul como do STA (cfr., v.g., os acs. de 18.02.2021, Proc. nº 01542/19.0BELSB e de 16.01.2020, Proc. nº 2240/18.7BELSB), por não existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na acepção do art. 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Não se verificando igualmente, à luz dos preceitos e acórdãos citados, défice instrutório por parte do SEF, sendo que, quanto aos alegados problemas de saúde se considerou que a sua natureza não era de molde a impedir a transferência para a Itália.
O TCA Sul confirmou o decidido em 1ª instância.
Entendeu o acórdão que a decisão de transferência do Recorrente para Itália impugnada nos autos foi tomada com fundamento na admissão tácita da retoma a cargo, por parte da Itália, país no qual foi efectuado o pedido de protecção internacional, em aplicação dos arts. 18º, nº 1, al. d) e do art. 23º do Regulamento de Dublin III, “por o Requerente de protecção internacional ter apresentado um novo pedido em Portugal, quando tinha anteriormente formulado um outro em Itália, que foi indeferido”, sendo que o pedido de protecção internacional apenas é decidido por um Estado-Membro (art. 3º, nº 1 do Regulamento). Quanto à alegação do Recorrente de que a sentença recorrida ajuizara incorrectamente o invocado vício de violação de lei por défice instrutório, por os autos não provarem que estamos perante uma situação susceptível de preencher a previsão do art. 3º, nº 2, 2º § do Regulamento Dublin III, o acórdão referiu a doutrina que decorre dos diversos acórdãos deste STA, nomeadamente o de 08.04.2021, Proc. nº 02253/19.1BELSB no qual se disse o seguinte: “à luz da doutrina emergente desses acórdãos não se verifica o alegado défice instrutório. Na verdade, e quanto às declarações do Autor, inexiste uma única palavra relevante para o efeito. Melhor dizendo, vão inclusivamente em sentido contrário à realidade que poderia preencher a previsão constante do artigo 3º/2 do Regulamento. Na verdade, afirmou que lhe deram a possibilidade de frequentar aulas de italiano, assim como lhe deram alimentação e dinheiro, com o qual reuniu os meios financeiros para viajar para Portugal. É certo que refere que não obteve resposta a queixas de saúde que apresentou, mas não será tal facto, seguramente, que preencherá o conceito que aqui está em causa, tanto mais que o que se conhece dos autos são queixas ao nível de um joelho. Quanto ao mais – notícias conhecidas sobre a situação existente em Itália -, vale integralmente o que acima se transcreveu.”.
Quanto às falhas de sistémicas a que se refere o art. 3º, nº 2 do Regulamento apontadas pelo Recorrente a Itália concluiu o acórdão o seguinte: “…, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, a situação geral que se vive em Itália, no que refere procedimento de protecção internacional e às condições de acolhimento aos refugiados, não permite concluir que a situação se tenha agravado, nem que, de acordo com a interpretação que o TJUE e o TEDH têm feito do art.º 4.º da CDFUE e do art.º 3.º da CEDH, o Estado português se deva abster de transferir todo e qualquer requerente de protecção internacional para aquele país.
As declarações que o Recorrente prestou ao SEF também não confirmam a existência das invocadas falhas de natureza sistémica, pois referiu que, enquanto esteve em Itália, beneficiou de alojamento, alimentação e recebia dinheiro todos os meses. Apenas alegou que não lhe foi prestada assistência médica para os problemas num dos joelhos, de que se queixou.
Para além disso, a situação particular do Recorrente também não obsta à sua transferência para Itália.
Trata-se de pessoa jovem (nasceu a 14/12/1995), autónoma, saudável (…), que não faz parte de nenhum grupo de risco que impusesse ao Estado Português que, antes de efectuar a transferência, averiguasse sobre as condições que ali irão ser dispensadas ao Recorrente.
Assim, negou provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Na presente revista o Recorrente reafirma o já invocado nas instâncias, alegando que o acto impugnado viola os deveres decorrentes do Direito da União Europeia, em particular, do disposto no art. 3º, nº 2, 2º§, do Regulamento (UE) nº 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26.06.2013, tendo o acórdão recorrido incorrido em erro de julgamento ao assim não ter entendido.
A argumentação do Recorrente não é, porém, convincente.
Como se vê as instâncias decidiram a questão da retoma a cargo de forma e com fundamentação coincidente.
Ora, as questões suscitadas na apelação [a qual constitui o objecto da presente revista] aparentam ter sido bem decididas pelo TCA (como antes pela 1ª instância), sem que se vislumbre que o acórdão recorrido tenha incorrido em erro de julgamento que pudesse justificar a admissão da revista.
Acresce que, todas as questões suscitadas pelo recorrente na apelação, foram apreciadas de forma fundamentada, consistente e plausível pelo acórdão recorrido, afigurando-se ter sido aplicada a legislação aqui em causa de forma correcta e de acordo com a jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Assim, face à aparente exactidão do acórdão recorrido, não se vendo necessidade de uma melhor aplicação do direito, nem revelando o objecto da revista especial relevância jurídica ou social ou complexidade superior ao normal para este tipo de problemática, não se justifica afastar a regra da excepcionalidade do recurso de revista.».
A similitude importa para aqui mesmo juízo.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.G.4. DO ARTIGO 13.º, N.º 2, DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“ENTRADA E/OU ESTADIA”)”.
O REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013, dispõe:
Artigo 13.o
Entrada e/ou estadia
1. Caso se comprove, com base nos elementos de prova ou nos indícios descritos nas duas listas referidas no artigo 22.o, n.o 3, do presente regulamento, incluindo os dados referidos no Regulamento (UE) n.o 603/2013, que o requerente de asilo atravessou ilegalmente a fronteira de um Estado-Membro por via terrestre, marítima ou aérea e que entrou nesse Estado-Membro a partir de um país terceiro, esse Estado-Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional. Essa responsabilidade cessa 12 meses após a data em que teve lugar a passagem ilegal da fronteira.
2. Quando um Estado-Membro não possa ser ou já não possa ser tido como responsável nos termos do n.o 1 do presente artigo e caso se comprove, com base nos elementos de prova ou indícios descritos nas duas listas referidas no artigo 22.o, n.o 3, que o requerente – que entrou nos territórios dos Estados-Membros ilegalmente ou em circunstâncias que não é possível comprovar – permaneceu num Estado-Membro durante um período ininterrupto de pelo menos cinco meses antes de apresentar o seu pedido de proteção internacional, esse Estado-Membro é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.
Se o requerente tiver permanecido durante períodos de pelo menos cinco meses em vários Estados-Membros, o Estado-Membro em que tal ocorreu mais recentemente é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.
O autor não tem apoio factual para o que na regra que atende ao tempo (cinco meses) procura sustento de alegação; antes pelo contrário, o próprio declarou a permanência em Turim (Itália) nos últimos 5 meses anteriores ao pedido de protecção.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.G.5. DO ARTIGO 19.º DO REGULAMENTO DE DUBLIN III (“CESSAÇÃO DE RESPONSABILIDADE”)”.
O REGULAMENTO (UE) N.º 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 26 de junho de 2013, dispõe:
Artigo 19.o
Cessação de responsabilidade
1. Se um Estado-Membro conceder um título de residência ao requerente, as obrigações previstas no artigo 18.o, n.o 1, são transferidas para esse Estado-Membro.
2. As obrigações previstas no artigo 18.o, n.o 1, cessam se o Estado-Membro responsável puder comprovar, quando lhe for solicitado para tomar ou retomar a cargo um requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), que a pessoa em causa abandonou o território dos Estados-Membros durante um período mínimo de três meses, a menos que seja titular de um título de residência válido emitido pelo Estado-Membro responsável.
Os pedidos apresentados depois do período de ausência referido no primeiro parágrafo são considerados novos pedidos e dão lugar a um novo procedimento de determinação do Estado-Membro responsável.
3. As obrigações previstas no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) e d), cessam se o Estado-Membro responsável puder comprovar, quando lhe for solicitado para retomar a cargo um requerente ou outra pessoa referida no artigo 18.o, n.o 1, alíneas c) ou d), que a pessoa em causa abandonou o território dos Estados-Membros em conformidade com uma decisão de regresso ou uma medida de afastamento emitida na sequência da retirada ou do indeferimento do pedido.
Os pedidos apresentados após um afastamento efetivo são considerados novos pedidos e dão lugar a um novo procedimento de determinação do Estado-Membro responsável.
O entendimento do autor não tem apoio factual quanto à existência de assinalado despacho de autorização de permanência em território nacional; não surpreenderá que até assim possa ser, mas não se justifica sequer indagar; não há que confundir uma autorização de permanência com um título de residência; como na própria Lei n.º 27/2008, de 30/7, também se distingue (art.º 11º); portanto, sem favor da norma.
Quanto ao que sob conclusões aparece em “III.II.G.6. DA ELEGIBILIDADE PARA O DIREITO AO ASILO”, é matéria cujo conhecimento resulta prejudicado.
*
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e julgar improcedente a acção.

Sem custas.

Porto, 27 de Maio de 2022.

Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre
Isabel Costa