Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00189/17.0BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/17/2020
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL; PRESUNÇAO DE INCUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES DE SEGURANÇA; ARTIGO 12º DA LEI Nº. 24/2007, DE 18.07;
VIAS RODOVIÁRIAS CLASSIFICADAS COMO ITINERÁRIOS PRINCIPAIS
Sumário:I- A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.

II- A presunção de incumprimento das obrigações de segurança prevista no artigo 12º da Lei nº. 24/2007, de 18 de julho, não é aplicável às vias rodoviárias classificadas como Itinerários Principais [IP].

III- No domínio da efetivação de responsabilidade civil extracontratual, não resultando provado a existência de qualquer facto revestido de ilicitude, deixa de se colocar a questão de saber se terá ou não sido ilidida qualquer presunção de culpa. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:C.,S.A.
Recorrido 1:INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO
C.,S.A., com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, no âmbito da presente Ação Administrativa intentada contra si por INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A., também com os sinais dos autos, que, em 08.05.2019, julgou a mesma totalmente improcedente, e, em consequência, absolveu a Ré do pedido.
Em alegações, a Recorrente formulou as conclusões que ora se reproduzem, que delimitam o objeto do recurso: “(…)
1. Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu absolver a Ré, do pagamento de € 5.216,18, decorrente dos danos verificados no veículo XX-PP-XX em resultado do embate do mesmo no javali que se encontrava a atravessar o IP 3 ao km 75,200 sentido Sul/Norte.
2. Não se pode a Recorrente conformar com esta decisão, pois entende que deveria ter sido feita uma ponderação diferente da matéria de facto o que levaria a uma condenação total da Ré.
3. Com interesse para a decisão da presente questão, foram dados como provados os factos constantes das alíneas c) a N).
4. O Tribunal a quo entende que a Lei n.° 24/2007 de 18/07 não se aplica ao caso em concreto e nessa medida não se aplica a presunção prevista no artigo 14.° do mesmo diploma.
5. A Recorrente não está de acordo com a exclusão da aplicação da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, uma vez que os tribunais já decidiram em sentido contrário em situações em tudo idênticas.
6. Veja-se a título de exemplo o Acórdão do processo n.° 376/09.4TBVRL.G1 do Tribunal de Relação de Guimarães de 19/05/2016, no qual decidiu que a concessionária é responsável pelo pagamento decorrente de um acidente que ocorreu precisamente no IP 3.
7. E ainda o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, com o n.° 09177/12 de 16-03-2017, que decidiu que num caso em que uma pedra foi arremessada para o IC 19, ainda assim devia ser considerada a responsabilidade da concessionária uma vez que a via onde se registou o acidente está abrangida pelo conceito de autoestrada.
8. Na ótica da Recorrente se a interpretação feita pelo tribunal de 1ª instância for considerada a correta, estamos a admitir que em duas situações identificas, em que uma ocorra numa autoestrada e outra num IP, no primeiro caso o lesado é indemnizado dos prejuízos que teve e no segundo caso o lesado tem de suportar os prejuízos sofridos sem lugar a qualquer indemnização.
9. Face ao exposto, a Recorrente entende que a manter-se a decisão conforme proferida pelo tribunal de 1ª instância, existe uma clara violação do princípio da igualmente, previsto na Constituição da República Portuguesa.
10. Outro argumento usado pelo tribunal é que a Ré demonstrou que cumpriu com os deveres de vigilância e que esse cumprimento por si só é suficiente para a sua absolvição.
11. Ora, conforme resulta dos Acórdão supra identificados, não chega que uma concessionária faça prova que fez as rondas e inspeções às vedações para garantir que o dever de segurança foi cumprido, porque conforme se viu, isso não impediu que um conjunto de javalis entrasse na via e provocasse um acidente, sendo nesse sentido que a jurisprudência tem vindo a decidir, conforme Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, com o número 00106/15.1BEVIS, de 22-09-2017.
12. Assim sendo mesmo que se admita que a Lei n° 24/2007, de 18 de julho não tem aplicação ao caso concreto, não existe fundamento para se distinguir a situação dos presentes autos das demais uma vez que também neste caso os animais conseguiram o acesso à via e invadiram a faixa de rodagem o que fez com que o utente fosse surpreendido e não conseguisse evitar o embate.
13. Face ao exposto, a decisão de 1ª instância deve ser substituída por outra que condenada a Ré no valor do pedido.
NESTES TERMOS, e nos demais de direito, concedendo provimento ao recurso, e alterando a sentença sub judice conforme supra preconizado, farão V. Exas. a costumada VERDADEIRA JUSTIÇA! (…)”.
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Notificada que foi para o efeito, a Recorrida produziu contra-alegações, defendendo a manutenção do decidido quanto à improcedência da presente ação.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não emitiu o parecer a que se alude no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, a questão a dirimir consiste em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance explicitados no ponto I) do presente acórdão, incorreu em erro de julgamento de direito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
III.1 – DE FACTO
O quadro fáctico [positivo e negativo] apurado na decisão recorrida foi o seguinte: “(…)
A) No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com J. um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.° (...), relativo ao veículo ligeiro de passageiros de marca SEAT, modelo Leon 1.6 TDI Style Ecomotive, com a matrícula XX-PP-XX, e pelo qual este transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo;
B) O contrato identificado em A) incluía a cobertura de danos próprio da viatura, designadamente, choque, colisão e capotamento;
C) A 04/02/2016, pelas 21h20m, o veículo identificado em A), conduzido por J., esteve envolvido num sinistro automóvel quando circulava no IP3, ao Km 75,20, sentido (...) - (...), no lugar de (...), concelho de (...);
D) O local tem uma curva suave, com inclinação descendente, apresenta um pavimento asfaltado, encontrando-se, à data e hora, seco e limpo, sem qualquer substância gordurosa, verificando-se bom tempo;
E) O IP3 tem, nesse local, dois sentidos de marcha, com separador central e pinos na respetiva berma, sem iluminação da via;
F) O veículo identificado em A) circulava naquela artéria na faixa mais à direita, a cerca de 80 km/hora;
G) O local do sinistro situa-se cerca de 50 metros antes do nó designado de “Lagoa (...)”, onde estão instaladas unidades hoteleiras e de restauração;
H) Ao aproximar-se do quilómetro 75,20 daquela via, na localidade de (...), surgiram súbita e inesperadamente dois javalis na via em que circulava, que jaziam no chão;
I) O condutor do veículo, apesar de ter acionado esforços para não embater nos animais que se encontravam na via, travando, não logrou evitar a colisão, em virtude da sua proximidade na via e da falta de iluminação no local;
J) O veículo embateu nos animais com a parte dianteira e lateral esquerda, animais estes que permaneceram sucumbidos na via;
K) No seguimento do embate, e encontrando-se em lugar próximo, a Guarda Nacional Republicana - Destacamento de Trânsito de Viseu fez-se deslocar ao local e lavrou participação da ocorrência;
L) O Guarda destacado para o local, com a matrícula n° (...), verificou a existência dos animais na via, vestígios biológicos dos mesmos e destroços de veículos envolvidos no sinistro;
M) O veículo PP foi imobilizado pelo condutor na estação de serviço que dista cerca de 1000 metros do local do sinistro;
N) Do embate descrito resultaram danos para o veículo, na parte dianteira e lateral, especificamente, no chassis, para-choques frontal, chapa da matrícula, grelha dianteira, suporte de sensores, ótica, radiadores, resguardo de rodas, condensador, ventilação e ar condicionado, num valor total de € 4.179,43;
O) A 29/02/2016, a Autora pagou à entidade “C., S.A.” a quantia de € 4.179,43, pela prestação dos serviços de reparação do veículo PP;
P) A 07/03/2016, a Autora pagou à entidade “S., S.A.” a quantia de € 83,68, pela prestação de serviços de peritagem;
Q) A 15/03/2016, a Autora pagou ao seu segurado, J., a quantia de € 3.216,20, a título de indemnização pela privação do uso do automóvel PP pelo período de 19 dias;
R) A Ré efetua inspeções no local do sinistro com uma periodicidade de 2 a 3 vezes por semana, verificando a eventual presença de animais ou registando anomalias na rede de vedação, tendo passado no local nos dias 1 e 3 de fevereiro do ano de 2016 e sem que tivesse encontrado qualquer anomalia;
S) A Ré realiza inspeções trimestrais ao estado das vedações, tendo sido feita inspeção às mesmas, no local indicado, nos dias seguintes ao do sinistro e encontrando-se em bom estado;
T) O IP3 está vedado em toda a sua extensão, exceto nos nós de acesso e de saída;
U) A cerca de 1800 metros do local do sinistro, o IP3 está dotado de sinalização vertical tipo A 19b, para alerta dos utentes para o perigo de aparecimento de animais;
V) A petição inicial deu entrada neste Tribunal a 28/10/2016.
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Factos não provados:
Com pertinência para o conhecimento da lide, foi dada como não provada a seguinte factualidade:
1. O condutor do veículo PP circulava em excesso de velocidade (…)”.
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III.2 - DO DIREITO
A Autora, aqui Recorrente, intentou a presente ação administrativa visando a efetivação de responsabilidade extracontratual contra a Ré, aqui Recorrida, brevitatis causae, por danos havidos num veículo automóvel propriedade do seu segurado decorrente de atravessamento de animal na faixa onde circulava, cuja ocorrência imputa àquela, por violação dos deveres de cuidado e vigilância da via rodoviária.
O T.A.F. de Viseu, como sabemos, julgou esta ação improcedente, consequentemente, absolvendo a Ré do pedido.
Fê-lo, sobretudo, com a seguinte fundamentação: ”(…)
No que tange à responsabilidade da Administração, a Lei n° 67/2007, de 31 de dezembro, considera ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
O alcance deste ilícito é, contudo, mais lato do que o que consta do art.° 483° do Código Civil, já que envolve atos jurídicos ou materiais que infrinjam quaisquer normas, princípios ou até regras de ordem técnica ou prudência. De acordo ainda com a mesma lei, “a culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos” (v. artigo 10°).
A culpa será aferida, pois, pela diligência exigível a um funcionário ou agente típico, ou seja, um funcionário ou agente zeloso que atua com respeito pela lei, sendo que, sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos.
Da aplicação do disposto no artigo 487.° do Código Civil, à matéria dos autos, resulta que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo se houver presunção de culpa.
Na verdade, decorre do disposto no artigo 7° do diploma que aprovou o Plano Rodoviário Nacional (Decreto-Lei n° 222/98, de 17 de julho, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n° 182/2003, de 16 de agosto), impõe a obrigação de vedação dos itinerários principais em toda a sua extensão. Mais impõe o n° 1 do artigo 12° do Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional (com a redação que lhe foi dada pela Lei n° 34/2015, de 27 de abril, redação esta em vigor à data dos factos) a sinalização de trânsito em conformidade com as disposições do Código de Estrada.
Neste ponto, importa referir que, à data do acidente em causa nos autos (04/02/2016), vigorava já o regime jurídico dos direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, aprovado pela Lei n° 24/2007, de 18 de julho (cf. respetivo art.° 14°).
Tal diploma, independentemente da existência de portagens e do pagamento de taxa pela utilização da autoestrada concessionada, estabeleceu as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis para os utentes, sem prejuízo de regimes mais favoráveis estabelecidos ou a estabelecer (respetivo art.° 1°).
Nos termos do art.° 12° da citada Lei n° 24/2007, '“1- Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a: a) Objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, atos de terrorismo, rebelião ou guerra”.
Desta previsão legal resulta que a concessionária de autoestrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objetos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar.
Contudo, e como decorre da própria letra da lei, tal presunção, que é simultaneamente de ilicitude e de culpa, impõe-se exclusivamente às concessionárias de vias de circulação classificadas como autoestradas, que não à entidade exploradora dos itinerários principais e complementares, sendo que, na presente lide, nos deparamos com esta segunda situação, um IP explorado pela aqui Ré.
Efetivamente, e se bem que na definição do seu âmbito de aplicação, faça a Lei n° 24/2007 abranger, para além das autoestradas, os itinerários principais e os itinerários complementares, usando o legislador, indistintamente, a expressão “vias rodoviárias” para referir os três tipos, optou o legislador, ao estabelecer a referida presunção de ilicitude e culpa, no artigo 12°, por restringir a operação da inversão do ónus da prova às autoestradas.
Na verdade, na interpretação legal, está o Tribunal obrigado a respeitar o disposto no artigo 9° do Código Civil, normativo que estabelece, no seu n° 3, que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Consequentemente, não será a referida presunção prevista no indicado artigo 12° da Lei n° 24/2007, de 18 de julho, aplicável à situação sob análise nos presentes autos, por se tratar de um itinerário principal.
Importa agora, face às considerações supra descritas, efetuar a subsunção dos factos às normas.
No caso dos autos, cabe notar que se mostra provado, para o que ora nos interessa, que, no dia 04/02/2016, aproximadamente pelas 21h20m, o veículo PP circulava no itinerário principal IP3, no sentido Coimbra-Viseu, ocupando a via de circulação da direita, atento o seu sentido de marcha.
Cabe ainda notar que se mostra provado que, quando se aproximava do km 75,20, o condutor do veículo PP foi surpreendido pela presença, súbita e inesperada, de dois javalis na sua via de trânsito, que jaziam mortos em decorrência de um anterior embate.
Mais cabe notar que se mostra provado que, dada a curta distância que separava o veículo dos animais, o condutor não teve qualquer possibilidade de evitar o embate, tendo o veículo embatido nos mesmos com a parte da frente.
Dos factos considerados provados temos, pois, que, em substância, ocorreu a colisão do veículo automóvel visado nos autos contra dois animais que jaziam mortos na via onde circulava, e que a causa do acidente ocorrido no dia 04/02/2016 foi o aparecimento súbito, na faixa de rodagem, destes animais, que tinham embatido momentos antes num outro veículo que circulava na mesma via, à mesma hora e no mesmo sentido de trânsito.
Ora, é ponto assente que a manutenção e fiscalização da segurança rodoviária à Ré, Infraestruturas de Portugal, S.A..
No que se reporta à ilicitude, é sabido que o facto ilícito pode consistir tanto num ato jurídico, como num ato material, podendo, também, consistir numa omissão, só que, neste último caso, apenas quando exista obrigação de praticar o ato omitido.
Conforme referido, à luz do artigo 9° da citada Lei n°. 67/2007, consideram-se ilícitos: “ (...) as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos (...) ”.
No caso em análise, já vimos que era sobre a Ré que impendia a obrigação de manutenção da via pública em condições de segurança de circulação.
Da factualidade dada como provada, dimana que a visibilidade era parca, atenta à hora do sinistro, bem como que a via de circulação estava devidamente vedada, como imposto por lei, contendo sinalização de trânsito, a menos de 2 quilómetros do local do sinistro, alertando para o perigo de aparecimento de animais selvagens.
Ora, não logrou a Autora provar, como lhe competia, que as vedações do itinerário principal estavam em más condições de manutenção, verificando-se buracos ou outras anomalias, ou que não observou a Ré outros deveres de cuidado impostos por lei e em que moldes.
Por outro lado, e contrariamente ao por si afirmado em sede de petitório inicial, resultou provado, como resulta da Participação de Acidente de Viação elaborada pelas entidades policiais, que a via de trânsito continha a sinalização do risco de aparecimento de animais selvagens, assim impondo aos utentes da mesma um dever de cuidado acrescido aquando da circulação.
Sendo também certo que, nos termos do disposto do n° 1 do artigo 20° do Regulamento da Sinalização de Trânsito, os sinais de perigo devem ser colocados a uma distância não inferior a 150 metros nem superior a 300 metros do ponto a que se referem, a interpretação que se impõe à expressão “do ponto a que se referem” é a do início da situação de perigo, in casu, o de atravessamento de animais, não impondo tal normativo a sua repetição a cada 300 metros. Contrariamente, e como indicado no n° 2 do artigo 14° do mesmo diploma legal, tais sinais de perigo devem ser repetidos depois de cada interseção de nível, se as condições de perigo se mantiverem.
Daqui se retira que a sinalização não deve estar a uma distância superior a 300 metros do início da situação de perigo, que se mantém, não havendo sinalização em contrário (de fim da situação de perigo) e até à interseção seguinte (caso não seja repetida a sinalização). Resulta, assim, da factualidade dada como provada, que observou a Ré os deveres de sinalização que se lhe impunham, e nos moldes previstos na legislação aplicável.
Perante tudo o exposto, falha logo o primeiro elemento exigido para que se possa verificar a existência de responsabilidade civil aquiliana: um facto, revestido de ilicitude, ou seja, e neste caso, o incumprimento pela Ré dos seus deveres de vigilância da via de trânsito, manutenção das condições de segurança naquela e da colocação da sinalização e perigo de atravessamento de animais, incumprimento este que não resultou provado.
Aliás, cumpriu, além do mais, a Ré Infraestruturas de Portugal com o ónus da prova que lhe competia, da vigilância periódica da via de circulação em causa, das respetivas vedações e da colocação da sinalização de perigo no local do sinistro, sendo-lhe inaplicável a presunção de ilicitude estabelecida no artigo 12° da Lei n° 67/2007, norma supra transcrita.
Nestes termos, falhando a verificação de um facto revestido de ilicitude, de imediato falece qualquer responsabilidade extracontratual aquiliana, não estando prevista para esta matéria qualquer responsabilidade por atos lícitos.
Face ao supra exposto, falece esta causa de pedir da Autora, não podendo o seu pedido proceder (…)”.
Recapitulando o mais essencial que se vem de transcrever, temos que o Tribunal a quo fundou o juízo de improcedência da ação na falta de verificação de um facto revestido de ilicitude, o que se mostra estribado no entendimento de que:
(i) a presunção de incumprimento das obrigações de segurança prevista no artigo 12º da Lei nº. 24/2007, de 18 de julho, não é aplicável às vias rodoviárias classificadas como Itinerários Principais [IP] ;
(ii) não restou provado que as vedações do itinerário principal estivessem em más condições de manutenção, verificando-se buracos ou outras anomalias;
(iii) a Ré observou os deveres de vigilância periódica da via de circulação em causa, das respetivas vedações e da colocação da sinalização de perigo no local do sinistro que se lhe impunham, e nos moldes previstos na legislação aplicável.
A recorrente insurge-se contra o considerado e decidido sob os pontos (i) e (iii), por manter a firme convicção que (i) a presunção de incumprimento das obrigações de segurança prevista no artigo 12º da Lei nº. 24/2007, de 18 de julho, é igualmente aplicável às vias rodoviárias classificadas como Itinerários Principais [IP], e que (ii) “(…) não chega que uma concessionária faça prova que fez as rondas e inspeções às vedações para garantir que o dever de segurança foi cumprido, porque conforme se viu, isso não impediu que um conjunto de javalis entrasse na via e provocasse um acidente, sendo nesse sentido que a jurisprudência tem vindo a decidir, conforme Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, com o número 00106/15.1BEVIS, de 22-09-2017”.
Mas, adiante-se, desde já, sem razão.
Efetivamente, cotejando a constelação argumentativa da sentença recorrida com a natureza do alegado pela Recorrente no âmbito do presente recurso jurisdicional, entendemos ser a conclusão de que a decisão judicial recorrida não merece o menor reparo, encontrando-se certeiramente justificada.
Para explicitação do juízo que se vem de expor, mostra-se útil começar por deixar um breve enquadramento teórico necessário para a apreciação da questão.
A Lei n.º 24/2007, de 18 de julho, veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares.
Ora, “Autoestradas” são as vias classificadas como tal no PRN e conjuntos viários a elas associados, incluindo obras de arte, praças de portagem e áreas de serviço nelas incorporados, bem como os nós de ligação e troços das estradas que os completarem [cfr. artigo 3º, alínea a) da citada Lei nº. 24/2007];
Já os “Itinerários principais” são as vias classificadas como tal no PRN [cfr. artigo 3º, alínea b) da citada Lei nº. 24/2007];
Nos termos do artigo 12º da citada Lei nº. 24/2007, cabe à concessionária das Autoestradas o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança no caso de atravessamento de animais ocorrido nestas e motivador de um acidente rodoviário.
A partir daqui, é possível inferir que, pese embora a Lei nº. 24/2007 seja aplicável a todas as vias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, o legislador teve o cuidado de distinguir as referidas vias entre si, tendo optado por estabelecer a referida presunção de incumprimento das obrigações de segurança prevista no artigo 12° apenas para as vias rodoviárias classificadas como Autoestradas.
Ora, se é certo que a letra da lei é o ponto de partida da tarefa de interpretação jurídica, não menos é que esse mesmo elemento hermenêutico constitui o limite do resultado interpretativo [artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil].
Isto para dizer que, tendo o legislador apenas previsto a aplicação do disposto no artigo 12º da citada Lei nº. 24/2007 para as vias rodoviárias classificadas como autoestradas, não há como não concluir que, no caso concreto, que o ali se vem de preceituar é igualmente aplicável às vias rodoviárias classificadas itinerários principais.
Nem se diga que estamos perante um lapso do legislador: nada nas normas em apreço inculca a ocorrência de tal lapso e, ademais, deve presumir-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados [artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil].
Pelo que não colhe aqui a argumentação do Recorrente de que o disposto no artigo 12º da citada Lei nº. 24/2007 é igualmente aplicável aos itinerários principais.
E o que se vem de se considerar nada contende com o princípio da igualdade constitucionalmente previsto no artigo 13º da CRP.
Na verdade, o princípio da igualdade consiste na necessidade de tratar igualmente as situações iguais e desigualmente as situações desiguais.
A igualdade entre situações é uma igualdade não fáctica, mas de qualificação jurídica; não tem de ser avaliada quanto à aparência ou à exteriorização dessas situações, mas quanto à sua substância; e a ponderação substancial deve ser efetuada em função dos valores constitucionais e legais.
No caso concreto, estão em causa duas vias rodoviárias distintas, pelo que devem as mesmas ser analisadas e tratadas de forma distinta atendendo ao quadro normativo e factual próprio, afastando a aplicação do princípio da igualdade.
Sendo assim, não se descortina, quanto ao aspeto agora tratado, qualquer razão para censura da sentença recorrida.
Deslindada esta questão recursiva, cumpriria, pois, centrar nossa atenção em apurar se, se a sentença recorrida, ao decidir que a Ré demonstrou que cumpriu com os deveres de vigilância, incorreu em erro de julgamento.
Efetivamente, a Recorrente insurge-se contra este entendimento, desde logo, porquanto entende que “(…) não chega que uma concessionária faça prova que fez as rondas e inspeções às vedações para garantir que o dever de segurança foi cumprido, porque conforme se viu, isso não impediu que um conjunto de javalis entrasse na via e provocasse um acidente, sendo nesse sentido que a jurisprudência tem vindo a decidir, conforme Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, com o número 00106/15.1BEVIS, de 22-09-2017”.
Ocorre, porém, que, tal tarefa se nos apresenta como inútil por destituída de efetiva relevância, considerando, desde logo, o tecido fáctico apurado nos autos.
Com efeito, dimana do probatório coligido que, a 04/02/2016, pelas 21h20m, o veículo identificado em A), conduzido por J., esteve envolvido num sinistro automóvel quando circulava no IP3, ao Km 75,20, sentido (...) - (...), no lugar de (...), concelho de (...) [cfr. alínea A)].
Mais dimana que a Ré efetua inspeções no local do sinistro com uma periodicidade de 2 a 3 vezes por semana, verificando a eventual presença de animais ou registando anomalias na rede de vedação, tendo passado no local nos dias 1 e 3 de fevereiro do ano de 2016 e sem que tivesse encontrado qualquer anomalia [cfr. alínea R)].
Sendo este os contornos fácticos imutáveis do caso a decidir, dos quais este Tribunal Superior não se pode desviar, é nosso entendimento que, tal qual bem considerado na sentença recorrida, não logrou a Recorrente demonstrar que “(…) as vedações do itinerário principal estavam em más condições de manutenção, verificando-se buracos ou outras anomalias, ou que não observou a Ré outros deveres de cuidado impostos por lei e em que moldes (…)”.
Desta feita, e sopesando que a imputada violação dos deveres de fiscalização e cuidado assenta numa pretensa “(…) existência de vedações suficientemente eficazes para evitar a entrada de animais daquele porte na via de trânsito (…)” [cfr. artigo 16º], impera concluir não está provada a existência de quaisquer factos donde se possa presumir qualquer ilicitude da Recorrida.
Assim, e porque só depois de feita a prova sobre aqueles factos pode fazer-se funcionar a presunção que resulta da lei e dispensar de prova a concreta culpa ou de serviço por parte da Ré, aqui Recorrida, deixa de se colocar a questão de saber se terá ou não sido ilidida qualquer presunção de culpa, nomeadamente se basta a simples prova, em abstrato, de que uma concessionária “(…) fez as rondas e inspeções às vedações para garantir que o dever de segurança foi cumprido (…)”.
E nesta falta de relevância reside o “punctum saliens” distintivo da falta de préstimo à boa decisão de causa.
Nestes termos, e também por falta de relevância para a decisão de mérito a proferir, improcede o invocado erro de julgamento de direito em análise.
Concludentemente, improcedem todas as conclusões do recurso jurisdicional em análise.
Mercê de tudo o quanto ficou exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional e mantida a decisão judicial recorrida.
Ao que se provirá em sede de dispositivo.
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IV – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 17 de abril de 2020,


Ricardo de Oliveira e Sousa
Fernanda Brandão
Helder Vieira