Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00824/17.0BELSB
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2022
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; ORDEM DOS ADVOGADOS; ERRO IRRELEVANTE NOS PRESSUPOSTOS
Sumário:1. Não afecta a validade do acto punitivo aplicado a uma advogada, praticado pelo Conselho Superior da Ordem dos Avogados, com fundamento na previsão do n.º 2 do artigo 83º e dos n.ºs 1 e 5, e no artigo 94º, n.ºs 1 e 5, do mesmo diploma, a circunstância de aí se ter referido que eram marido e mulher dois clientes sucessivos dessa advogada, o que não correspondia à verdade dos factos, pois aqueles nunca foram casados.

2. Isto porque essencial para a punição – e demonstrou-se ter ocorrido – não foi a exacta relação que existiu entre os sucessivos clientes advogada punida, mas o conhecimento que esta teve de factos pessoais do primeiro cliente e que deveria guardar em segredo profissional, segredo este que evidentemente ficou em risco quanto aceitou patrocinar a segunda cliente que tinha dois filhos do primeiro; estando em causa, precisamente, no processo em que aceitou patrocinar a segunda cliente contra o primeiro cliente, a regulação do poder paternal dos filhos de ambos; depois de ter patrocinado o pai das crianças em processos que envolviam ambos, um contra o outro.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A Ordem dos Advogados veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, de 05.07.2021, pela qual foi julgada procedente a acção administrativa intentada pela Advogada FF... e, por tal, anulado o acto impugnado, a deliberação tomada em acórdão de 10.11.2016 da 3ª Secção do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, que confirmou, em sede de recurso, a pena disciplinar de multa de 500€00.

A Recorrida contra-alegou defendendo a manutenção da sentença impugnada.

O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer o sentido da procedência do recurso.

A Recorrida veio pronunciar-se sobre este parecer, mantendo no essencial a sua posição, assumida nas contra-alegações.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos constantes do Acórdão proferido pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados que confirmou a decisão proferida no processo disciplinar que correu os seus termos no Conselho de Deontologia do Porto, e com a decisão proferida violou os artigos 83º, 94º e 110º do Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda o artigo 2ª da Constituição da República Portuguesa.

2. O Tribunal a quo labora num lapso na interpretação que fez da prova constante do PROCESSO DISCIPLINAR e dos artigos estatutários supratranscritos;

3. A questão fulcral que levou à condenação da Autora em pena de multa no processo disciplinar que correu os seus termos no Conselho de Deontologia do Porto e cuja decisão final foi confirmada no Conselho Superior da Ordem dos Advogados, não assenta exclusivamente no facto de a Sra. Advogada Autora ter patrocinado a ex-mulher do seu anterior cliente JJ... como parece transparecer da decisão proferida.

4. Mas sim no facto de a Autora ter sido, anteriormente, mandatária de JJ... em dois processos – o processo de inquérito n.º 1/02.4TAVPA e o processo-crime n.º 58/04.3GCVPA - que envolviam o dito JJ... e a sua ex-mulher MM... e vir de seguida aceitar patrocinar acção contra o seu ex-cliente JJ....

5. Há, de facto, um manifesto conflito de interesses quando um advogado, em qualquer situação, aceita patrocinar uma acção, ou um qualquer procedimento judicial ou extrajudicial, contra um ex-cliente/constituinte.

6. Dos factos dados como provados, que assentam, essencialmente, da análise do processo disciplinar junto aos autos, resulta claro que a Autora foi mandatária de JJ... em dois processos – o processo de inquérito n.º 1/02.4TAVPA e o processo-crime n.º 58/04.3GCVPA – que envolviam o dito JJ... e a sua ex-mulher MM....

7. Também resulta que o dito JJ... teve com CC... dois filhos – AA... e JM... – que aquele acabou por perfilhar livremente no Processo Administrativo de Averiguação Oficiosa de Paternidade (Proc. n.º 137/03.4TAVPA, que correu termos na Unidade de Apoio dos Serviços do Ministério Público de Vila Pouca Aguiar – fls. 72 e 73 do Processo Administrativo junto em apenso).

8. E é precisamente esta CC... que a Autora vem depois a patrocinar contra o seu anterior cliente JJ... na acção de regulação do poder paternal dos identificados filhos de ambos – AA... e JM....

9. Ao contrário do afirmado na decisão proferida, toda esta prova foi devidamente analisada e ponderada, tendo sido concluído, conforme resulta do relatório final perfilhado no acórdão proferido pelo Conselho de Deontologia do Porto e citado expressamente no acórdão do Conselho Superior.

10. De facto, há um conflito de interesses quando a Advogada Autora aceita patrocinar CC... em processo de regulação do poder paternal contra o seu anterior cliente, quando anteriormente havia patrocinado este em dois processos-crimes que o opunham contra a sua ex-mulher MM..., e ainda lhe havia prestado informações jurídicas sobre um processo administrativo de investigação de paternidade.

11. É patente o conflito de interesses e o risco da quebra do sigilo profissional.

12. Ao aceitar patrocinar a mencionada CC... contra o seu anterior cliente JJ..., a Autora colocou-se numa situação de pôr em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente a assuntos do seu anterior cliente e desse conhecimento resultar vantagens ilegítimas ou injustificadas para a sua nova cliente.

13. E quebrou o dever de lealdade para com o anterior cliente JJ... que se prolonga muito para além da questão sobre que o advogado é consultado ou para a qual é constituído ou nomeado.

14. A Autora com o seu comportamento violou os deveres constantes do art.º 94º, n. º1 e n.º 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

15. E não exerceu a profissão da forma digna e no respeito dos deveres de retidão e lealdade postulados e exigidos no art.º 83º, n.º 1 e 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

16. O acórdão impugnado, tendo feito suas as palavras transcritas do relatório final perfilhado pelo Conselho de Deontologia do Porto, valorou convenientemente toda a prova produzida.

17. Qualquer referência no acórdão aqui em apreço de que a CC... era ex-mulher do anterior cliente da autora é um mero lapso de escrita e só como tal pode ser entendido, pois o acto praticado foi devidamente fundamentado, sendo que tal lapso não foi determinante para a apreciação da conduta da Sra. Advogada Autora nos autos disciplinares.

18. Tal lapso não pode servir, por si só, para que o Tribunal a quo entenda, como entendeu, que: Impõe-se, assim, concluir que existe divergência entre os pressupostos de facto que a entidade administrativa teve em conta para tomar a sua decisão, e a sua real ocorrência, o que determina a anulabilidade do acto impugnado, nos termos previstos nos artigos 163º, nº 1 e 161º do Código de Procedimento Administrativo (CPA);

19. Só um erro de facto grosseiro ou erro manifesto na apreciação das provas pode enfermar de vício o acto e que determine a sua anulabilidade.

20. Não pode, assim, considera-se que o Conselho Superior não tomou devidamente em consideração, nem valorou a prova junto aos autos do processo disciplinar ou que exista divergência entre os pressupostos de facto e os reais, pois toda a fundamentação consta dos actos praticados.

21. O acórdão não padece do vício que a sentença lhe aponta.

22. A Ordem dos Advogados, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade.

23. Nesta conformidade, a ação disciplinar relativamente aos advogados é exercida exclusivamente pela respetiva Ordem.

24. A actuação do Tribunal, nesta área, deve limitar-se à verificação da eventual violação do princípio da legalidade e a saber se houve erro grosseiro ou manifesto decorrente do exercício dos poderes discricionários da entidade competente.

25. A impugnação contenciosa não constitui uma renovação ou revisão do processo disciplinar (como a Autora pretende), mas uma apreciação de vícios eventualmente geradores de nulidade ou anulabilidade dos atos praticados, atento que o tribunal não pode substituir-se nas atribuições da entidade competente sob pena, mais uma vez, de violação do princípio da separação de poderes.
26. Tal limitação imposta pelo princípio da separação e interdependência de poderes traduz-se na proibição funcional do tribunal afectar a essência do sistema de administração executiva, ou seja, não pode o tribunal ofender a autonomia do poder administrativo, enquanto medida definida pela lei daquilo que são os poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos aos órgãos da Administração (cfr. artigos 03.º, n.ºs 1 e 3, 71.º, n.º 2, 95.º, n.º 3, 167.º, n.º 6, 168.º, n.º 3 e 179.º, n.ºs 1 e 5 todos do CPTA, preceitos estes dos quais claramente se infere a preocupação do legislador em assegurar ou mesmo reservar/preservar os denominados “espaços de valoração próprios do exercício da função administrativa”).

27. O Tribunal ao proferir a decisão ora posta em crise violou o princípio da separação de poderes, devendo a sentença ser revogada e mantido o ato praticado pela Ordem dos Advogados.
*

II –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

1. A Autora é Advogada, inscrita no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados e titular da cédula profissional nº (...)P (cfr. folhas 4 e 45 do processo administrativo apenso; facto não controvertido).

2. Em 29.05.2009 foi instaurado à Autora processo disciplinar, autuado sob o nº 7/2009-P/D, com base na participação apresentada por JJ... (cfr. documentos de folhas 4, 6, 8, frente e verso e 49 do processo administrativo).

3. Em 22.03.2013, no âmbito do processo disciplinar nº 7/2009-P/D foi deduzida acusação contra a ora Autora, com os seguintes fundamentos (cfr. folhas 85-87 do processo administrativo):

“(…)
2º A arguida foi advogada do Participante no processo de inquérito nº 1/02.4TAVPA, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Pouca de Aguiar e que teve origem em denúncia apresentada por aquele contra a sua ex-mulher MM..., a quem imputou a prática de um crime de furto qualificado.

3º - Tal processo culminou com despacho de arquivamento proferido em 31/10/2003.

4º - A arguida também representou o Participante no âmbito do processo comum nº 58/04.3GCVPA, que correu os seus termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar.

5º - Este processo dizia respeito a um processo crime, por queixa apresentada contra o Participante pela referida MM..., por crime de ofensas à integridade física simples.

6º - A arguida prestou ainda diversas consultas ao Participante no âmbito de um Processo Administrativo de Investigação de Paternidade, nomeadamente, sobre a tramitação do processo, de como se averiguava a paternidade, explicação de exames hematológicos, etc. 7º - Em 18/04/2006, a arguida apresentou a sua renúncia ao mandato nos autos processo comum nº 58/04.3GCVPA.

8º - Em 14/07/2007, a arguida foi contactada por CC..., tendo em vista instaurar acção de regulação de poder paternal contra o Participante.

9º - A arguida aceitou essa incumbência, patrocinando, assim, a referida CC... contra o ora Participante.

10º - A arguida bem sabia que ao aceitar litigar contra o Participante em acção de regulação de poder paternal estaria a por em risco a preservação do segredo profissional relativamente a factos atinentes aos assuntos confiados pelo seu anterior cliente, ora Participante.

11º - Tal como bem sabia que o conhecimento que possuía sobre os assuntos de que o Participante a incumbiu de tratar, poderia acarretar para a sua nova patrocinada CC..., vantagens ilegítimas ou injustificadas.

12º - Bem como sabia que se encontra impedido de encontra impedido de intervir em acção conexa – inventário – com outra – divórcio – em que tenha representado a parte contrária. 13º - A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é, proibida.

14º - Pelo que, com a sua conduta, o arguido violou culposamente os deveres consignados nos art. 83º, nº 1 e 2 e 94º, nº 1 e 5 do EOA.

15º - Cometeu, pois, a arguida, infracção disciplinar, abstractamente passível de punição com qualquer uma das penas previstas nas als. a) a d) do artº 125º do EOA, a graduar nos termos do artº 126º, nºs 1 a 4, do mesmo EOA.
(…).”.

4. Em 22.04.2013 a arguida, ora Autora, apresentou defesa no âmbito do processo disciplinar nº 7/2009-P/D, juntando documentos, requerendo a inquirição de testemunhas e requerendo (cfr. folhas 92-103 do processo administrativo):

“Termos em que,

Deve a douta acusação proferida ser considerada prescrita, na sequência de prescrito se encontrar o Procedimento Disciplinar.

Sem prescindir e caso assim se não entenda,

Julgada improcedente a douta acusação por não provada, tudo com legais consequências.”.

5. Em 19.11.2013, o Relator do processo disciplinar elaborou o respectivo relatório Final, do qual consta, entre o mais, o seguinte (cfr. folhas 130-136 do processo administrativo):

“(…)
1. Relatório

O Participante remeteu participação disciplinar em que é visada a Sra. Dra. Feliciana Andrade, titular da cédula profissional (...)P.

Foi deliberada a instauração de processo disciplinar em 08/05/2009 do que a Sra. Advogada arguida foi notificada.

Foi deduzida acusação por violação dos deveres consagrados nos arts. 83º, nº 1 e 2, 94º, nº 1 e 5 do EOA do que a Sra. Advogada foi notificada, tendo apresentado defesa.
***
2. Factos Provados

2.1 Da acusação:

1. A arguida, que é licenciada em direito, inscreveu-se na Ordem dos Advogados, como advogada, em 21/10/1987.

2. A arguida foi advogada do Participante no processo de inquérito n° 1/02.4TAVPA, que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Pouca de Aguiar e que teve origem em denuncia apresentada por aquele contra a sua ex-mulher MM..., a quem imputou a pratica de um crime de furto qualificado.

3. Tal processo culminou com despacho de arquivamento proferido em 31/10/2003.
4.A arguida também representou o Participante no âmbito do processo comum n° 58/04.3GCVPA, que correu os seus termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar.

6. Este processo dizia respeito a um processo crime, por queixa apresentada contra o Participante pela referida MM..., por crime de ofensas à integridade física simples.

7. A arguida prestou ainda diversas consultas ao Participante no âmbito de um Processo Administrativo de Investigação de Paternidade, nomeadamente, sobre a tramitação do processo, de como se averiguava a paternidade, explicação de exames hematológicos, etc.

8. Em 18/04/2006, a arguida apresentou a sua renúncia ao mandato nos autos processo comum n° 58/04.3GCVPA.

9. Após o que, a arguida aceitou patrocinar CC... contra o ora Participante, em acção de regulação de poder paternal.

10. A arguida bem sabia que ao aceitar litigar contra o Participante em acção de regulação de poder paternal estaria a por em risco a preservação do segredo profissional relativamente a factos atinentes aos assuntos confiados pelo seu anterior cliente, ora Participante.

11. Tal como bem sabia que o conhecimento que possuía sobre os assuntos de que o Participante a incumbiu de tratar, poderia acarretar para a sua nova patrocinada CC..., vantagens ilegítimas ou injustificadas.

12. A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é, proibida.
(…).

6. Qualificação e gravidade da conduta

Na acusação formulada era imputado à arguida a prática de infracção disciplinar pelo facto de a sua conduta violar os deveres deontológicos previstos no disposto nos artigos 83º, nº1 e 2 e 94º, nº 1 e 5 do EOA.

Refere o nº 1 do artigo 94º do EOA que “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”

E o nº 5 que “O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar segredo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.”

A prova constante dos autos é suficientemente esclarecedora acerca da efectiva violação das referidas normas estatutárias.

De facto, há um conflito de interesses quando a Advogada arguida aceita patrocinar CC... em processo de regulação de poder paternal contra o Participante, quando anteriormente havia patrocinado este em dois processos crime que o opunham contra a sua ex-mulher MM..., e ainda lhe havia prestado informações jurídicas sobre um processo administrativo de investigação de paternidade.

Os processos de natureza criminal, iniciados do Participante contra a sua ex-mulher e vice-versa, abarcam e abordam muitas questões de índole pessoal e familiar que, obviamente, se relacionam de forma muito directa com as questões afloradas no processo de regulação de poder paternal, ainda que a requerente deste último processo não tenha sido a mesma interveniente dos processos crime.

A conexão é patente!

Acresce que, a Sra. Advogada arguida também prestou informações ao Participante sobre questões suscitadas no âmbito de um processo de investigação de paternidade. O que, inevitavelmente, a fez tomar contacto com aspectos inerentes a essa esfera muito específica do Participante concernente à paternidade.

E não tem qualquer interesse a circunstância de não existir um mandato constituído a favor da arguida. Os factos revelados pelo Cliente ao Advogado estão sempre abrangidos pelo segredo profissional.

O segredo profissional, à semelhança dos restantes princípios de natureza deontológica, não estão dependentes de nenhuma relação de mandato, são muito anteriores e estão na base de todo e qualquer relacionamento entre Cliente/Advogado.

A Sra. Advogada ao ter aceite patrocinar a dita CC… contra o Participante, não só se colocou em risco o dever guardar segredo profissional de um seu anterior cliente, como também se colocou em risco de obter vantagens ilegítimas ou injustificadas para esta nova cliente.

Apreciando esta conduta somos do parecer que resulta comprovada a violação do dever constante do nº 5 do art. 94º do E.O.A.. Pois que a violação deste preceito tem-se como verificada desde que o advogado se coloque numa situação que constitua um risco de violar o segredo profissional ou que se coloque numa situação que constitua um risco de obter vantagens ilegítimas ou injustificadas, não se sendo necessário a prática de qualquer outro acto que, aliás, a acontecer, constituiria uma infracção autónoma.

Foi o que aconteceu nos presentes autos, a Sra. Advogada arguida colocou-se numa situação de risco cujos limites deveria ter respeitado, abstendo-se de representar CC..., no processo de regulação de poder paternal contra o seu anterior cliente, ora Participante.

6. Proposta da pena

Nos termos do artigo 126º do EOA, na aplicação das penas deve atender-se aos antecedentes profissionais e disciplinares do arguido, ao grau de culpabilidade, às consequências da infracção e todas as demais circunstâncias agravantes e atenuantes.

A arguida, actuou com dolo.

A arguida encontra-se inscrita desde 1987 e tem averbado no seu registo disciplinar a pena de censura.

Assim, tudo ponderado, proponho que à Sra. Advogada arguida, seja aplicada a pena disciplinar de Multa no valor de €500,00 (quinhentos euros), prevista na alínea c) do nº 1, do artigo 125º do EOA, que nos termos do art. 126, nº 1 e 4 deverá ser aplicada.
(…)”.

6. O Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados – 3ª Secção, por acórdão de 22.11.2013, deliberou aplicar à Autora a pena disciplinar de multa no valor de 500€00 (cfr. folhas 137 do processo administrativo).

7. Em 05.12.2013, a Autora interpôs recurso para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados contra o Acórdão referido no ponto anterior (cfr. folhas 142-174 do processo administrativo).

8. Em 08.11.2016, o Relator do recurso junto do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, elaborou parecer, do qual consta, designadamente, o seguinte (cfr. folhas 294-302, verso do processo administrativo):

“(…)
APRECIANDO e decidindo

A. São estes os factos em apreciação:

1. - A arguida foi advogada do Participante no processo de inquérito n° 1/02.4TAVPA, que correu termos peio Tribunal Judicial da Comarca de Vila Pouca de Aguiar e que teve origem em denúncia apresentada por aquele contra a sua ex-mulher MM..., a quem imputou a pratica de um crime de furto qualificado.

2. - Tal processo culminou com despacho de arquivamento proferido em 31/10/2003.

3. - A arguida também representou o Participante no âmbito do processo comum nº 58/04.3GCVPA, que correu os seus termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar.

4. - Este processo dizia respeito a um processo crime, por queixa apresentada contra o Participante pela referida MM..., por crime de ofensas à integridade física simples.

5. A arguida prestou ainda diversas consultas ao Participante no âmbito de um Processo Administrativo de Investigação de Paternidade, nomeadamente, sobre a tramitação do processo, de como se averiguava a paternidade, explicação de exames hematológicos, etc.

6. - Em 18/04/2006, a arguida apresentou a sua renúncia ao mandato nos autos processo comum n° 58/04.3GCVPA.

7. - Em 14/07/2007, a arguida foi contactada por CC..., tendo em vista instaurar acção de regulação de poder paterna! contra o Participante.

8. A arguida aceitou essa incumbência, patrocinando, assim, a referida CC... contra o ora Participante.

9. A arguida bem sabia que ao aceitar litigar contra o Participante em acção de regulação de poder paternal estaria a por em risco a preservação do segredo profissional relativamente a factos atinentes aos assuntos confiados pelo seu anterior cliente, ora Participante.

10. Tal como bem sabia que o conhecimento que possuía sobre os assuntos de que o Participante a incumbiu de tratar, poderia acarretar para a sua nova patrocinada CC..., vantagens ilegítimas ou injustificadas.

11. -Bem como sabia que se encontra impedido de encontra impedido de intervir em acção conexa - inventário - com outra - divórcio - em que tenha representado a parte contraria.

12. - A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é proibida.
(…)
2. - Dados por provados tais factos, importa saber/concluir se os mesmos consubstanciam ou não infracção disciplinar cometida pela Srª Advogada Recorrente, por forma a concluir-se que, com a sua conduta, a Recorrente violou culposamente os deveres consignados nos art. 83º, nº 1 e 2 e 94º, nº 1 e 5 do EOA.

Desde já louvamos a decisão contida no Relatório Final, sufragado pelo Acórdão Recorrido, já que é inquestionável - entre outros factos, dados por provados - que os mesmos envolvem - apenas e tão só - 3 pessoas, que são a Recorrente, o primeiro Cliente e a segunda Cliente daquela, Clientes que foram marido e mulher, entre os quais ocorreram factos intimamente relacionados com a sua condição dos Clientes, de casados e depois de divorciados, factos dos quais resultaram processos conexos no seu conteúdo.

(…)

Assim sendo, como bem se escreveu, “A conexão é patente”, uma vez que é manifesta e comprovada a violação do dever constante do nº 5 do art. 94º do E.O.A., a qual se verifica logo que a Srª Advogada Recorrente se colocou numa situação que constituiu um risco de violar o segredo profissional, numa situação que constituiu risco de obter vantagens ilegítimas ou injustificadas, independentemente da pratica de qualquer outro acto. A ora Recorrente deveria ter-se abstido de representar a ex-mulher do seu Cliente, no processo de regulação de poder paternal contra este.

(…)

D. Sobre a questão da prescrição

O facto gerador da infracção disciplinar consumou-se em 14/12/2007, no momento em que a Recorrente passou a patrocinar a nova Cliente CC..., ex-mulher do Participante. A Recorrente havia sido mandatária deste, em processos judiciais em, que a parte contrária era esta CC....
Não obstante, a Recorrente aceitou patrocinar a dita Célia contra o seu anterior cliente e ora Participante.

(…)

TERMOS EM QUE, SEM MAIS CONSIDERANDOS, SE NEGA PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO, CONFIRMANDO-SE O ACÓRDÃO RECORRIDO.”.

9. A 3ª Secção do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, por acórdão de 10.11.2016 deliberou:

“aprovar o parecer do relator que antecede e assim negar provimento ao recurso, confirmando-se o Acórdão recorrido, pelas razões contidas no mencionado parecer”
(cfr. folhas 303 do processo administrativo).

Com interesse para a presente decisão, mais se provou que:
10. Em 12.01.2017 não constava no assento de nascimento de CC... qualquer averbamento de alteração de estado civil (cfr. documento nº 6 junto com a petição inicial).

11.JJ... contraiu casamento com MM..., em 13.08.1988, casamento que foi dissolvido por divórcio por sentença de 01.07.2005 (cfr. documento nº 7 junto com a petição inicial).
*
III - Enquadramento jurídico.

Tem razão, adianta-se, a Ordem dos Advogados, acompanhada na sua posição pelo Ministério Público neste Tribunal.

Não se trata aqui de saber se foi invadida, ou não, a margem de discricionariedade que a Ordem dos Advogados goza na apreciação dos factos no âmbito de um processo disciplinar.

Houve erro na fixação dos factos e esse erro é evidente, tal como a própria Ordem dos Advogados reconhece, e foi declarado na sentença recorrida.

O que importa, como refere o Ministério Público neste Tribunal, é aquilatar do relevo desse erro, a sua repercussão na validade do acto impugnado.

E na verdade esse acto impugnado fundou-se, no essencial, na violação do disposto no n.º2 do artigo 83º, e no artigo 94º, nºs 1 e 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados, “a qual se verifica logo que a Srª Advogada Recorrente se colocou numa situação que constituiu um risco de violar o segredo profissional, numa situação que constituiu risco de obter vantagens ilegítimas ou injustificadas, independentemente da pratica de qualquer outro acto. A ora Recorrente deveria ter-se abstido de representar a ex-mulher do seu Cliente, no processo de regulação de poder paternal contra este”.
O que importa é saber se foram ou não elencados factos que são suficientes e preenchem a previsão normativa do preceito acima referido, à volta do qual gira toda a discussão jurídica dos autos, embora outras normas sejam invocadas.

Dispõe o n.º 2 do artigo 83º do Estatuto da Ordem dos Advogados (com a epígrafe “Impedimentos”), para o qual remete o 94º, nºs 1 e 5, do mesmo diploma.

“O advogado está impedido de praticar actos profissionais ou de mover qualquer influência junto de entidades, públicas ou privadas, onde desempenhe ou tenha desempenhado funções cujo exercício possa suscitar, em concreto, uma incompatibilidade, se aqueles actos ou influências entrarem em conflito com as regras deontológicas contidas no presente estatuto”.

Apontando estes factos, estes sim essenciais, para a punição:

“9. A arguida bem sabia que ao aceitar litigar contra o Participante em acção de regulação de poder paternal estaria a por em risco a preservação do segredo profissional relativamente a factos atinentes aos assuntos confiados pelo seu anterior cliente, ora Participante.

10. Tal como bem sabia que o conhecimento que possuía sobre os assuntos de que o Participante a incumbiu de tratar, poderia acarretar para a sua nova patrocinada CC…, vantagens ilegítimas ou injustificadas.

11. -Bem como sabia que se encontra impedido de encontra impedido de intervir em acção conexa - inventário - com outra - divórcio - em que tenha representado a parte contraria.

12. - A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era, como é proibida. “

Contata-se que, claramente, os factos dados como provados são suficientes e integram esta previsão normativa.


Onde consta “inventário” e “divórcio” deveriam ter-se referido os processos descritos nos pontos 2 a 8 da acusação (ponto 3 dos factos provados na sentença).

Onde consta, mais à frente, “ex-mulher”, poderia constar “ex-companheira” ou mãe dos filhos, de quem se separou. Ou até poderia não constar nada do ponto de vista do estado de civil.

O acto punitivo manteria inalterada a sua validade do ponto de vista dos factos essenciais que o sustentam.

Porque o que releva para o caso não é a exacta relação que existiu entre os sucessivos clientes da Autora, Recorrida, mas o conhecimento que esta teve de factos pessoais do primeiro cliente e que deveria guardar em segredo profissional, segredo este que evidentemente ficou em risco quanto aceitou patrocinar a segunda cliente que tinha dois filhos do primeiro. Estando em causa, precisamente, no processo em que aceitou patrocinar a segunda cliente contra o primeiro cliente, a regulação do poder paternal dos filhos de ambos. Depois de ter patrocinado o pai das crianças em processos que envolviam ambos, um contra o outro.

O que basta, como pressupostos de facto, para sustentar o acto punitivo impugnado. Pelo que, ao contrário do decidido, é de manter o acto impugnado na ordem jurídica, porque válido.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:

1. Revogam a decisão recorrida.

2. Julgam a acção totalmente improcedente pelo mantém o acto impugnado na ordem jurídica, porque válido.

Custas em ambas as Instâncias pela Autora, Recorrente.
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Porto, 27.05.2022

Rogério Martins
Conceição Silvestre
Luís Migueis Garcia, com a declaração de voto que se segue:

Voto a decisão. Revejo-me na lógica da fundamentação, justificando a manutenção da sanção disciplinar. Mas não por reporte de enquadramento ao indicado 83º (impedimento) do EOA, antes ao indicado art.º 95º (dever deontológico).

Luís Migueis Garcia