Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00820/06.2BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/12/2012
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS RELEVANTES
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PODERES DE SUBSTITUIÇÃO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário:I. Não padece de falta de fundamentação a sentença recorrida onde são discriminados os factos considerados provados e indicados entre parêntesis os documentos em que se suporta a decisão respectiva e as partes destes de que foram extraídas as transcrições efectuadas, porque tal indicação assegura o confronto entre o texto da decisão e a parte do documento em que se sustenta e, por conseguinte, o acompanhamento do itinerário cognoscitivo do julgador;
II. Também não padece de falta de fundamentação a sentença recorrida que, na parte relativa aos factos não provados, se limita a referir que «Não se provaram outros factos com relevância para a decisão», porque dos artigos 508.º-A, n.º 1, alínea e), e 511.º, n.º 1, ambos do C.P.C. resulta que juiz só tem que discriminar os factos não provados que reputa relevantes para a decisão e o dever de fundamentação da resposta à matéria de facto se reconduz também aos factos relevantes;
III. Todavia, se a matéria factual alegada que o tribunal recorrido não apreciou é relevante para a decisão a proferir, há erro de julgamento sobre a irrelevância desses factos e consequente omissão de pronúncia sobre questões de facto que o juiz de primeira instância não apreciou e deveria ter apreciado, o que constitui também nulidade da sentença – artigo 125.º, n.º 1, do C.P.P.T.
IV. A modificabilidade da decisão de facto pelo tribunal de recurso ao abrigo do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. pressupõe que o tribunal recorrido tenha tomado posição quanto a esses factos, julgando-os provados ou não provados;
V. Se o tribunal recorrido se absteve de apreciar esses factos a decisão recorrida deve ser anulada.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:C..., S.A.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
1.1. C…, S.A., n.i.f. 502 673 273, com sede indicada na Rua …, recorre da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a presente impugnação judicial das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) e juros compensatórios dos períodos de 2001, 2002, 2003 e 2004, no valor global de € 7.560.254,35.
Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.
1.2. Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou as respectivas alegações e formulou as seguintes conclusões (que optamos por ordenar em alíneas):
1.ª A sentença recorrida não apresenta fundamentação sobre o percurso cognitivo e a formação da convicção do julgador quanto à apreciação da prova produzida, nomeadamente a prova testemunhal.
2.ª As afirmações constantes da sentença recorrida no sentido de que ““Os factos provados assentam numa análise crítica dos documentos insertos no presente processo de impugnação, bem como no processo administrativo apenso por linha, e ainda no depoimento das testemunhas inquiridas” e de que “Não se provaram outros factos com relevância para a decisão” não são suficientes para se considerar que foi feito um exame crítico da prova que cumpria conhecer, nem podem ser consideradas uma especificação dos fundamentos da decisão em matéria de facto;
3.ª Por esta razão, faltando-lhe a fundamentação do julgamento de facto o julgado recorrido padece do vício de nulidade, tendo violado o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e o n.º 3 do artigo 659.º do CPC.
4.ª A ora recorrente tinha alegado outros factos com interesse para a decisão da causa tais como:
- o modo de funcionamento do sector e da actividade da recorrente (artigos 17.º a 28.º, 30.º e 31.º da p.i.);
- o desconhecimento por parte da recorrente das irregularidades alegadamente praticadas pelos seus fornecedores (artigo 36.º da p.i.);
- a efectiva realização das transacções tituladas pelas facturas (artigos 61.º, 63.º, 108.º 2.º travessão, 113.º, 116.º 1.º travessão, 117.º, 124.º, 129.º, 132.º, 133.º, 134.º, 136.º e 138.º).
5.ª Estes factos eram importantes e destinavam-se precisamente a demonstrar e provar a ilegalidade das liquidações impugnadas.
6.ª A sentença recorrida padece de falta de fundamentação quanto à matéria de facto considerada não provada, uma vez que não faz nenhuma referência quanto ao processo cognitivo percorrido pelo julgador para entender que os factos alegados pela Recorrente não tinham qualquer interesse para a causa.
7.ª Por esta razão, a sentença recorrida incorre em falta de fundamentação – violando assim o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT.
8.ª A sentença recorrida deve ser anulada, determinando-se a sua baixa à 1.ª instância para apreciação da matéria de facto relevante para julgamento dos factos referidos na Conclusão n.º 4.
9.ª Por essa razão, a apreciação da prova à luz das regras da experiência comum deveria ter tomado em conta o que se provasse a propósito do funcionamento normal e práticas específicas do comércio da sucata.
10.ª Por esta razão, a sentença recorrida incorre em falta de fundamentação – violando assim o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT, incorrendo também em erro de julgamento.
11.ª A sentença recorrida deveria ter apreciado e valorizado como credível o conteúdo dos depoimentos das testemunhas N…, M…, S…, J1…, F1…, F2…, J2 …e J3….
12.ª A sentença recorrida deveria ter ampliado a matéria de facto relevante e ter considerado como provados os seguintes factos:
- Os fornecimentos titulados pelas facturas em causa foram efectuados;
- A sucata em causa foi transportada, recebida e paga pela Recorrente (e pago o correspondente IVA);
- Todos os factos constantes dos artigos 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 27.º, 28.º, 30.º, 31.º, 36.º, 61.º, 63.º, 108.º 2.º travessão, 113.º, 116.º 1.º travessão, 117.º, 124.º, 129.º, 132.º, 133.º, 134.º, 136.º e 138.º da p.i.
13.ª Os indícios apresentados pela Administração Fiscal não são suficientes para a consideração como falsas das facturas emitidas à recorrente pelos fornecedores em causa nos presentes autos.
14.ª A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento.
15.ª O Relatório que baseou as liquidações impugnadas, não contém prova nem indícios suficientes de que a recorrente tenha incluído na sua contabilidade facturas correspondentes a operações simuladas, e, pelo contrário, a recorrente conseguiu provar, pela positiva, que as transacções efectivamente ocorreram.
16.ª As liquidações adicionais foram feitas em manifesta violação da lei, impondo-se, de forma irrefragável, a revogação da sentença recorrida.
17.ª A recorrente tem o direito à dedução do IVA liquidado nas facturas em crise.
18.ª O Relatório da Inspecção, as liquidações impugnadas e a sentença de 1.ª instância violaram o disposto na norma que estabelece o direito à dedução do IVA suportado nas compras da recorrente. Ou seja, o julgado recorrido violou o artigo 19.º do Código do IVA.
1.3. A Fazenda Pública não contra-alegou.
1.4. Neste Tribunal, a Ex.ma Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, pelas razões que desenvolvidamente explana de fls. 1319 a fls. 1322 dos autos.
1.5. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
1.6. Como foi doutamente referido pela Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, são quatro os vícios imputados à sentença recorrida e as correspondentes questões decidendas:
§ Saber se é nula a decisão recorrida por falta de fundamentação da matéria de facto;
§ Saber se o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, ao desconsiderar factos relevantes para a decisão e que deveriam ser considerados provados;
§ Saber se o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ao concluir que as facturas identificadas pela Administração Tributária não titulam verdadeiras transacções;
§ Saber se o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, ao concluir que a Administração Tributária não incorreu em incorrecta interpretação e aplicação do artigo 19.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante sob a sigla “C.I.V.A.”).

2. Fundamentação de Facto
2.1. É o seguinte o acervo dos factos que em primeira instância foram dados como provados:
A. A impugnante é uma sociedade que iniciou a sua actividade económica na área do comércio por grosso de sucatas e desperdícios metálicos, tendo procedido à alteração do objecto em 24/02/2003 para desenvolver a sua actividade na área da reciclagem, tratamento e eliminação de outros resíduos industriais (cfr. relatório da IT, nos 1º e 2º parágrafos de fls. 5-vs. do PA);
B. A impugnante deduziu a seu favor, ao abrigo do artº 19º do CIVA, valores de imposto que influenciaram, nos respectivos pedidos, o montante total de IVA relativamente aos anos de 2001 a 2004 (cfr. relatório da IT, parte III.7.15, a fls. 121 do PA; e artº 2º da p.i.);
C. A IT determinou a realização de uma acção inspectiva junto da impugnante, a qual decorreu entre 19/05/2005 e 08/11/2005 (cfr. relatório final da IT, a fls. 4-vs. do PA; e artº 1º da p.i.);
D. Os valores de imposto deduzidos pela impugnante relativamente aos anos de 2001 a 2004, e ora em causa, constavam como liquidados em documentos de venda emitidos por, ou em nome de, fornecedores que por regra não os declararam ou entregaram nos cofres do Estado (cfr. relatório da IT, parte III.7.15, a fls. 121 do PA; e artigos 9º, e 33º a 36º da p.i.);
E. A IT procedeu à elaboração de um projecto de relatório, dele notificando a impugnante para exercício do direito de audição prévia, direito que a impugnante exerceu (cfr. relatório da IT, parte IX, a fls. 139-vs. do PA; e fls. 832 e ss. do PA);
F. A impugnante foi notificada do relatório final da IT contendo as conclusões da acção inspectiva levada a efeito (cfr. fls. 1 a fls. 155 do PA; e artº 1º da p.i.);
G. No relatório final da IT notificado à impugnante foram efectuadas as seguintes correcções à matéria colectável:
a)- Com base nos fundamentos expostos no ponto III.7 do relatório, e em relação aos “fornecedores” aí descritos, considera-se que as compras escrituradas e declaradas pelo sujeito passivo Cunha Irmãos são operações simuladas, pelo que o imposto deduzido com base nos respectivos documentos, no montante de 7 541 200,01 €, deduzido no período de 2001 a 2004, não é dedutível, por força do nº 3 do artº 19º do CIVA (cfr. relatório da IT, a fls. 124 a 127; e fls. 138-vs., todas do PA);
b)- Com base nos fundamentos expostos no ponto III.9.4 do relatório, considera-se que a transmissão intracomunitária declarada pela impugnante, aí descrita, para o sujeito passivo Belga designado “H…, Sprl”, o qual não possui activos mobiliários ou imobiliários nem qualquer estrutura comercial, é uma operação simulada, não sendo, nesta medida, invocável a isenção estabelecida no artº 14º do RITI, pelo que será liquidado o respectivo imposto nos termos previstos nos artigos 1º e 3º do CIVA, no montante de 19 054,34 € (cfr. relatório da IT, a fls. 138-vs. do PA);
H. Relativamente aos “fornecedores” da impugnante referidos no ponto III.7 do relatório constata-se que, no que de relevante para os presentes autos importa destacar:
a)- Relativamente ao “fornecedor” J…,
- concluiu-se que no âmbito de uma acção de fiscalização relativa aos anos de 1994 e 1995 emitiu facturas de venda de sucatas sem que estivesse registado para poder desenvolver a respectiva actividade em sede de IVA (cfr. relatório da IT, a fls. 14 do PA); que não é do domínio público que este “fornecedor” possua qualquer instalação para o exercício da actividade de comércio de sucata; não possui trabalhadores ao seu serviço; na contabilidade deste “fornecedor” não consta qualquer guia de remessa ou de transporte; várias facturas foram emitidas com datas coincidentes com sábados, sendo certo que não é permitida a circulação de camiões aos fins-de-semana; não foi possível comprovar a materialidade das transacções, uma vez que o registo de pagamentos é efectuado por contrapartida da conta “caixa” e simultaneamente com o registo das facturas, sem que haja registo de qualquer conta de “depósitos” (cfr. relatório da IT, a fls. 14-vs. do PA);
- concluiu-se que no âmbito de uma acção de fiscalização relativa aos anos de 1994 a 1997 este “fornecedor” apresentou declarações de IVA, mas não procedeu ao respectivo pagamento dos impostos (cfr. relatório da IT, a fls. 15-vs. e 16 do PA); não constavam da contabilidade deste “fornecedor” quaisquer custos com remunerações de pessoal ou com reintegrações e amortizações (cfr. relatório da IT, a fls. 16 do PA); nenhuma factura indica o local de carga e descarga; não há registo do modo como são pagas as facturas; não há recibos de quitação; e a sua actividade comercial encontra-se cessada desde 31/12/1994 (cfr. relatório da IT, a fls. 16-vs. do PA); não existem guias de remessa ou quaisquer outros documentos de transporte; não existem cheques movimentados nem letras; não há, ou são irrelevantes, as despesas com portagens, com combustíveis, ou com reparação de viaturas; a carga de sucata que descreve ter sido carregada em camiões chega a atingir por cada camião o peso de 66,5 toneladas, 87 toneladas, 330 toneladas, e 350 toneladas, desconhecendo-se que camiões especiais poderiam ter transportado tamanha carga (cfr. relatório da IT, a fls. 18 do PA); este “fornecedor” foi condenado a 24 meses de prisão no âmbito de um processo-crime de fraude fiscal que correu termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira sob o nº 120/98.OIDAVR-C (cfr. relatório da IT, a fls. 21 do PA);
- relativamente ao período em análise, de 2001 a 2004, a documentação respeitante aos invocados vendedores onde o “fornecedor” J… adquiria a sucata era em geral emitida por este, à excepção dos invocados vendedores A…, e da S… (cfr. relatório da IT, a fls. 24-vs a fls. 31-vs. do PA); são, em regra, inexistentes quaisquer elementos documentais relativos à identificação de veículos transportadores de sucata, bem como dos respectivos locais de carga e descarga; inexistem elementos documentais quanto a meios, prazos ou formas de pagamento utilizadas nas invocadas compras de sucatas pelo “fornecedor” J… (cfr. relatório da IT, a fls. 32 do PA); o “fornecedor” J… não possui qualquer conta bancária desde 1996; o volume de compras de sucatas declarado pelo “fornecedor” J… nos anos de 2001 a 2004 ascendeu a mais de 34 milhões de euros (cfr. relatório da IT, a fls. 33 do PA); não existem despesas relativas a seguros, comunicações, energia, pessoal, e encargos financeiros; as invocadas vendas no período em análise pelo “fornecedor” J… à impugnante representaram mais de 1/3 do total das vendas invocadas (cfr. relatório da IT, a fls. 33-vs. do PA); os documentos de venda deste “fornecedor” J… contêm um nº de telefone que corresponde ao de uma senhora que habita no Alentejo, que afirmou não conhecer o dito “fornecedor” (cfr. relatório da IT, a fls. 34 do PA); a viatura com a matrícula …-…-BQ, que terá sido a mais utilizada pelo “fornecedor” J… no transporte de sucatas, estava registada em nome de J2…desde 1998, surgindo registada em nome do “fornecedor” J… apenas no ano de 2005, não sendo crível o transporte de sucatas no montante de cerca de 8 milhões de euros nesta viatura durante 4 anos em permanente situação de circulação ilegal (cfr. relatório da IT, a fls. 35 a 36-vs. do PA); o “fornecedor” J… nunca terá possuído um estaleiro com condições para armazenar o tipo de sucata que declarou transaccionar (cfr. relatório da IT, a fls. 44 a 45-vs. do PA); os documentos de venda são omissos quanto aos meios de pagamento ou formas utilizadas; o “fornecedor” J… não possuía conta bancária desde 1996 (cfr. relatório da IT, a fls. 46 do PA); as vendas facturadas pelo “fornecedor” J… à impugnante assumem as seguintes características: foram, em regra, pagas a pronto, através de cheques emitidos e levantados no mesmo dia ou na semana seguinte; os cheques emitidos pela impugnante eram todos levantados no balcão do banco emissor; o valor dos cheques emitidos varia entre 50 000,00 € e 100 000,00 €; foram levantados vários cheques em simultâneo no mesmo balcão e no mesmo dia, com diferença temporal de escassos minutos, num valor total de 137 305,50 € (cfr. relatório da IT, a fls. 49 do PA);
b)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante P…,
- a partir de 31/12/2000 não estava colectado para desenvolver o exercício de qualquer actividade comercial (cfr. relatório da IT, a fls. 51 do PA); assumiu ter emitido facturas falsas, umas sem que tivessem subjacente qualquer transacção comercial, outras em substituição dos verdadeiros transmitentes (cfr. relatório da IT, a fls. 51-vs. do PA); por parte da Administração da impugnante eram elaborados ticket´s de máquinas de calcular com a inscrição manuscrita do tipo de sucata, a data e os valores necessários, sendo entregues a este “fornecedor” para a emissão das facturas falsas à impugnante (cfr. relatório da IT, a fls. 54-vs. do PA; e relação constante de fls. 345 do PA); por cada ticket´s de máquinas de calcular – contendo os elementos correspondentes a 6 ou 7 facturas - com a inscrição manuscrita do tipo de sucata, a data e os valores necessários para a emissão das facturas falsas por este “fornecedor” à impugnante, aquele recebia entre 20 a 40 contos desta (cfr. relatório da IT, a fls. 54 do PA); os pagamentos das facturas pela impugnante a este “fornecedor” eram efectuados por cheque emitido pela impugnante, cujo administrador J… se deslocava ao Banco conjuntamente com o “fornecedor”, que procedia ao levantamento do dinheiro e o entregava ao administrador (cfr. relatório da IT, a fls. 54, e 57 do PA);
c)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante Sucatas N…, L.da,
- nas aquisições de sucata constantes nas facturas, em regra não discriminava o tipo de sucata adquirida (cfr. relatório da IT, a fls. 63 do PA); na descrição das viaturas referidas como utilizadas no transporte de sucatas figuram veículos ligeiros, motociclos e tractores agrícolas (cfr. relatório da IT, a fls. 63-vs. do PA); possuía registos contabilísticos de facturas relativas a aquisições intracomunitárias de sucata, que não correspondiam à verdade (cfr. relatório da IT, a fls. 68 e 68-vs. do PA);
d)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante B…-Comércio de Sucatas, Unipessoal, L.da,
- o volume de negócios apresentado por este “fornecedor” corresponde a 19 558 489,36 € (cfr. relatório da IT, a fls. 82-vs. do PA); não possui documentos que permitam identificar a existência de qualquer conta bancária (cfr. relatório da IT, a fls. 81-vs. do PA); não possui pessoal ao seu serviço, nem possui instalações fabris, máquinas ou equipamentos para o desenvolvimento da actividade; não possui, ou são irrelevantes, as despesas com portagens, combustíveis e reparação de viaturas; não tem custos financeiros, apesar de apresentar movimentos financeiros de valor superior a 23 000 000,00 € (cfr. relatório da IT, a fls. 82-vs. do PA); as invocadas aquisições de sucata registadas por este “fornecedor” a J3…, têm como pano de fundo as seguintes características: o senhor J3… apresentou a declaração de início de actividade comercial em 21/01/2003, e apresentou a declaração de cessação em 17/07/2003, reportada a 22/01/2003, significando que apenas desenvolveu a sua actividade durante um dia (cfr. relatório da IT, a fls. 83 do PA); num momento em que assume ter sido toxicodependente, o senhor J3… foi abordado para ceder temporariamente os originais do seu bilhete de identidade e do cartão de contribuinte, o que fez, mediante o pagamento de 300,00 €; o senhor J3… assume que assinou documentos em branco (cfr. relatório da IT, a fls. 84 do PA); as invocadas aquisições de sucata registadas por este “fornecedor” a M… caracterizam-se pelo facto de as viaturas indicadas para o transporte da sucata, não existirem, ou não corresponderem à verdade (cfr. relatório da IT, a fls. 86-vs. do PA); o registo de vendas de sucata por este “fornecedor” à impugnante no ano de 2003 atingiu o montante de 5 372 115,84 € (cfr. relatório da IT, a fls. 91-vs. do PA);
e)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante D…,
- entregou declaração de início de actividade em 14/11/2003 visando a reciclagem de sucata e de desperdícios metálicos, cessando a actividade em 30/06/2004; apenas em oito meses registou um volume de negócios no montante de 1 045 873,24 € (cfr. relatório da IT, a fls. 94-vs. do PA); não possui quadro de pessoal, não tem instalações fabris nem máquinas ou equipamentos destinados ao desenvolvimento da actividade comercial
f)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante L…-Comercial de Recuperados, L.da,
- não tem movimento em conta de Bancos, sendo os pagamentos e recebimentos efectuados em dinheiro; não apresenta custos com pessoal (cfr. relatório da IT, a fls. 101 do PA); inexistem contratos de fornecimento de água, luz ou telefone, donde se infere não possuir quaisquer instalações para o desenvolvimento da sua actividade (cfr. relatório da IT, a fls. 103 e 103-vs. do PA); entre os anos de 2001 a 2004 a impugnante registou compras a este “fornecedor” no valor de 66 311 537,57 € (cfr. relatório da IT, a fls. 104 do PA); este “fornecedor” invoca ter adquirido sucata a C…, o qual não se encontrava colectado para o desenvolvimento de qualquer actividade comercial, afirmando este que nunca esteve relacionado com o negócio da sucata e que não conhece nem nunca ouviu falar da empresa Lisbarte (cfr. relatório da IT, a fls. 107 do PA);
g)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante F…,
- este “fornecedor” invoca adquirir sucatas na firma E…Imp. e Exp. de Sucatas L.da, constatando-se que esta emite facturas cujos elementos de identificação correspondem a um empresa totalmente distinta (“Boutique A…, L.da”) – cfr. relatório da IT, a fls. 108-vs. do PA; este “fornecedor” invoca adquirir sucatas a J4…, cujo NIPC corresponde a uma pessoa já falecida (cfr. relatório da IT, a fls. 109 do PA); a impugnante regista a compra de sucata a este “fornecedor” nos anos de 2001 a 2004 no valor de 40 332 315,51 € (cfr. relatório da IT, a fls. 112 do PA);
h)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante Universal M…, L.da,
- não tem instalações próprias para o desenvolvimento da actividade de comércio por grosso de minérios e metais, e não tem pessoal (cfr. relatório da IT, a fls. 113 e 114 do PA); nos anos de 2003 e 2004 a impugnante regista compras a este “fornecedor” em montante superior a 3,5 milhões de euros (cfr. relatório da IT, a fls. 114-vs. do PA); relativamente ao transporte da sucata, a empresa transportadora regista apenas duas facturas de transporte (cfr. relatório da IT, a fls. 115 do PA);
i)- Relativamente ao “fornecedor” da impugnante F…,
- encontra-se colectado para a actividade de transporte rodoviário de mercadorias (cfr. relatório da IT, a fls. 116 do PA); não lhe são conhecidas instalações para o desenvolvimento da actividade ligada à área das sucatas; nunca se disponibilizou a colaborar com a IT (cfr. relatório da IT, a fls. 116-vs. do PA); a impugnante regista compras a este “fornecedor” nos anos de 2003 e 2004 no valor de 818 031,72 € (cfr. relatório da IT, a fls. 117-vs. do PA);
I. A impugnante foi notificada das respectivas liquidações adicionais em causa, sendo que as liquidações adicionais referentes ao ano de 2001 foram notificadas em 28/12/2005 (cfr. parte introdutória da p.i., a fls. 3 dos autos; fls. 109/110; e fls. 147 a 219, todas dos autos);
J. Da notificação das liquidações em causa deduziu a impugnante a presente impugnação judicial em 29/05/2006 (cfr. parte superior de fls. 2 dos autos).
2.2. A respeito da matéria de facto não provada, consignou-se em primeira instância o seguinte:
«Não se provaram outros factos com relevância para a decisão.».
2.3. À fundamentação da resposta à matéria de facto aditou-se ainda na douta sentença o seguinte:
«Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos insertos no presente processo de impugnação, bem como no processo administrativo apenso por linha, e ainda no depoimento das testemunhas inquiridas».

2.4. A Recorrente começa por apontar ao julgado recorrido o vício de nulidade por falta de fundamentação da resposta à matéria de facto, quanto aos factos considerados provados.
Alega a Recorrente, nesta parte, que, apesar de o julgado recorrido referir que a decisão da matéria de facto assentou «no depoimento das testemunhas inquiridas», não foi descrita a convicção formada pelo julgador a quo em face dos depoimentos produzidos, ficando «por compreender o itere cognoscitivo do julgador, com o inerente comprometimento da faculdade de sindicar tal processo de formação de convicção».
E que foi, assim, violado o n.º 2 do artigo 123.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante sob a sigla “C.P.P.T.”), bem como o artigo 659.º do Código de Processo Civil (doravante sob a sigla C.P.C.).
Anota-se, todavia, que a referência ao «depoimento das testemunhas inquiridas» foi extraída da fundamentação da resposta à matéria de facto que o M.mº Juiz “a quo” julgou provada. E o que a Recorrente manifesta não compreender é a razão porque «não considerou os depoimentos das testemunhas para efeito de julgar como não provados outros factos com relevância para a decisão».
Quer dizer: apesar de apontar à obscuridade da fundamentação da sentença na parte dos factos provados, a Recorrente acaba por revelar que não conseguiu acompanhar o raciocínio do julgador, não nessa parte, mas na parte da resposta à matéria de facto não provada. Não está em causa saber em que medida os depoimentos testemunhais relevaram para a decisão de dar como provados determinados factos, mas saber porque é que esses depoimentos testemunhais não foram aproveitados para dar como provados outros factos.
Não se concede, por outro lado, que não se consiga acompanhar o itinerário cognoscitivo do julgador em primeira instância, na parte relativa aos factos provados. É que, logo a seguir à indicação de cada um desses factos, o M.mº Juiz “a quo” indicou entre parêntesis os documentos em que se suportava a decisão respectiva, chegando inclusive a localizar a parte relevada ou transcrita nas folhas do processo ou do apenso. Assegurando, assim, a qualquer declaratário normal o confronto entre o texto da decisão e a parte do documento em que se sustenta, ponto por ponto.
É certo que à fundamentação localizada da resposta à matéria de facto dada como provada, o M.mº Juiz acrescentou uma fundamentação genérica, onde também aludiu, totalmente de passagem, ao depoimento das testemunhas inquiridas. E é também verdade que não se percebe qual o relevo desses depoimentos para se dar como provados aqueles factos.
Mas pondera-se também que a ausência de qualquer referência a esses depoimentos testemunhais na fundamentação localizada – a que se contrapõe ali uma indicação muito circunstanciada dos documentos de apoio à respectiva decisão – sugere fortemente que o que foi determinante e decisivo para o ali decidido não foi a prova testemunhal, mas a prova documental. O que é também confirmado pelo facto de o meio de prova idóneo ser ali, precisamente, a prova documental.
Acresce que a Recorrente também não põe em causa a resposta à matéria de facto dada como provada nem a relevância e suficiência de tais documentos para a sustentar.
De todo o exposto decorre que a referência deslocada ao «depoimento das testemunhas inquiridas» não chega para pôr em causa a clareza da fundamentação da resposta à matéria de facto respectiva.
Improcedendo, assim, as conclusões 1. a 3. do recurso, na parte correspondente.
2.5. Mas a Recorrente também imputa à decisão recorrida o vício de falta de fundamentação quanto aos factos considerados não provados (cfr. ponto II. B. das doutas alegações de recurso), por o M.mº Juiz se ter ali reconduzido a uma fórmula «cartular, de praxe», sem justificar concretamente porque não deu como provada outra factualidade oportunamente alegada.
Está, assim, em causa, saber se a afirmação transcrita no ponto 2.2 supra («Não se provaram outros factos com relevância para a decisão») satisfaz ou não o comando dos artigos 123.º, n.º 2, do C.P.P.T. e 659.º, n.º 3, do C.P.C., que impõem ao juiz o dever de discriminar os factos que considera não provados e indicar a respectiva fundamentação.
Previamente, porém, importa questionar se o referido comando legal se reporta a toda a factualidade alegada ou apenas à factualidade alegada com relevo para a decisão. É que dos artigos 508.º-A, n.º 1, alínea e), e 511.º, n.º 1, ambos do C.P.C. resulta que juiz só tem que levar à base instrutória a matéria relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. É essa a matéria que, depois, será objecto de resposta à matéria de facto, e não a matéria alegada. Sendo que, nos processos que não comportam base instrutória (como sucede com a impugnação judicial, onde o saneamento da matéria de facto com relevo para a decisão é feito a final) devem também ser reportados à fase da decisão.
Ora, o entendimento deste Tribunal é precisamente o de que esta obrigação se restringe à factualidade que o juiz considere relevante. Isto é, os factos alegados que o juiz não considere relevantes não têm que ser discriminados na sentença. A sua discriminação faz-se por exclusão.
E o que se extrai do segmento transcrito da douta sentença recorrida é que, no entendimento do Tribunal “a quo”, não havia factos a incluir ali e a dar como não provados, porque não havia outros factos a considerar com interesse para a decisão.
Assim sendo, a sentença não padece de falta de especificação dos factos. A admitir-se que há outros factos relevantes para a decisão, o que haverá então é um erro de julgamento sobre a irrelevância desses factos. De que poderá resultar outro vício da sentença: a falta de pronúncia sobre questões de facto alegadas e que o juiz deveria apreciar, por não se deverem considerar irrelevantes. Dele se conhecerá no ponto seguinte.
Menos evidente seria a questão de saber se existiria falta de fundamentação na própria afirmação de que a demais factualidade, alegada na douta p.i, não é relevante para a decisão.
Consideramos, porém, que o dever de fundamentação da resposta à matéria de facto se reconduz aos factos relevantes. De um lado, porque a lei só manda fundamentar na decisão da matéria de facto os factos provados e dos factos não provados, omitindo qualquer referência aos factos irrelevantes (isto é, os factos que o tribunal se absteve de enquadrar numa categoria ou noutra). De outro lado, porque a obrigação de fundamentar a irrelevância de determinados factos frustraria os desígnios do legislador ao reconduzir o juízo de facto aos factos relevantes, manifestamente norteados pelos princípios da economia processual e da boa (e célere) administração da justiça. Finalmente, porque a falta de especificação das razões porque se desconsideraram outros factos não tolhe o direito de defesa da parte, que se reconduzirá então à demonstração da sua relevância para o sentido da sua decisão.
Improcedem, assim, e também nesta parte, as conclusões 1. a 3. do recurso.
2.6. É justamente a relevância de factos oportunamente alegados e que a douta sentença não considerou – e o correspondente erro de julgamento – que a Recorrente invoca no ponto II. c. das doutas alegações de recurso.
Dizendo fundamentalmente que deveriam ter sido considerados como provados os factos constantes dos artigos 17.º a 25.º, 27.º, 28.º, 30.º, 31.º, 36.º, 61.º, 63.º, 108.º, 2.º travessão, 113.º, 116.º, 1.º travessão, 117.º, 124.º, 129.º, 132.º, 133.º, 134.º, 136.º e 138.º, todos da douta p.i. A verdadeira e decisiva questão está, por isso, em saber se o ali alegado constitui factualidade relevante para a decisão.
Previamente, será útil salientar que a Impugnante, ora Recorrente, arrolou onze testemunhas (depois reduzidas a dez testemunhas – fls. 275 a 276 dos autos) e a Fazenda Pública uma testemunha. Ambas as partes entenderam, por isso, que havia matéria factual alegada e controvertida, que reclamava a realização dessa prova. Também a M.mª Juiz do processo assim o entendeu, visto que deferiu a inquirição dessas testemunhas, a qual decorreu em audiência contraditória que ocupou dois dias completos e preencheu sete cassetes áudio, que se encontram anexadas ao processo. A sua audição será esclarecedora quanto ao esforço despendido pelos diversos intervenientes processuais, que não se pouparam no desígnio de esclarecer o Tribunal e assim cumprir o seu dever na realização da justiça.
É notório, porém, que na douta sentença recorrida esse esforço não foi relevado, porque na conclusão factico-jurídica não é feita nenhuma alusão concreta ao seu teor. Aliás, é apenas na aplicação do direito aos factos que, pela primeira vez, o M.mº Juiz “a quo” formula um juízo probatório sobre um destes depoimentos (o de P…) e apenas para reforçar as conclusões do relatório de que as facturas por ele emitidas não correspondem a reais transacções. Nenhum dos demais depoimentos mereceu qualquer referência do Tribunal, nem quanto ao seu teor, nem quanto à sua valia probatória.
Reconheça-se que nenhuma censura mereceria a douta sentença se nos articulados não tivesse sido alegado nenhum facto que carecesse de prova ou se a factualidade alegada fosse notoriamente irrelevante, mesmo considerando todas as soluções plausíveis da questão de direito invocada.
E conceda-se que é precisamente o caso do alegado nos artigos 124.º, 129.º, 132.º, 133.º, 134.º, 136.º e 138.º, todos da douta p.i. – a que a Recorrente faz referência para ilustrar o erro de julgamento nesta parte. Isto é, não estão ali contidos «factos» e o teor respectivo não tem qualquer relevo para a decisão.
Não estão ali alegados factos porque a Recorrente se limita a afirmar e reafirmar que todas as transacções registadas na sua contabilidade em nome dos indicados fornecedores ocorreram efectivamente, sendo as referidas facturas tituladas por operações reais. Sendo que tal afirmação não passa de uma conclusão, sobre a qual não é possível formar qualquer juízo do tipo cognoscitivo. Desacompanhada de factos concretos que a sustentem, nem sequer pode ser reproduzida pelo Tribunal e não tem outro valor que não seja o «valor da insistência».
E as afirmações correspondentes não têm qualquer relevo para a decisão porque, nesta parte, a questão – tal como foi colocada – se reconduz a saber se a Administração Tributária recolheu indicadores suficientes de as operações tituladas nas referidas facturas não se realizaram e, por isso, logrou elidir a presunção a que alude o artigo 75.º da Lei Geral Tributária. Se os indicadores recolhidos não são suficientes, a Recorrente também não tem que demonstrar a realidade das operações, porque beneficia de presunção legal a seu favor. E se esses indicadores são suficientes, também já não bastaria à Recorrente insistir na materialidade das operações: teria que vir a terreiro com outros elementos factuais que, sendo susceptíveis de verificação externa, infirmassem aqueles indicadores ou, pelo menos, permitissem duvidar fundadamente da sua existência ou do seu relevo probatório (cfr. artigo 100.º do C.P.P.T.).
Neste particular, por isso, não se dá razão à Recorrente. Mas há outras afirmações produzidas naquele douto articulado que encerram verdadeiros factos e cuja relevância para a decisão não pode ser aprioristicamente arredada. Factos que, nuns casos, se encontram devidamente concretizados e, noutros casos, são por natureza genéricos e descontextualizados mas podem ser integrados com base factual instrumental. Sobre eles o M.mº Juiz – apesar de a Recorrente se ter afadigado na produção da prova respectiva – nunca tomou posição.
Referimo-nos, designadamente, à questão de saber se a Impugnante ora Recorrente adquiria a sucata sobretudo a «juntadores de sucata» e se estes recorriam a estratagemas para ocultar desta a origem do produto e a identidade dos respectivos fornecedores «nomeadamente através do apagamento e destruição de certos sinais distintivos que essa sucata possa apresentar» (cit. do artigo 26.º) ou da (falsa) «indicação como local de origem a sua base de trabalho ou sede» (seu artigo 31.º). A alegação não é isenta de reparos, porque a ora Recorrente deveria, a nosso ver, ter concretizado um pouco mais o que entende por «sinais distintivos», mas não há dúvida que a questão tinha relevo factual porque – se bem se interpreta – a Recorrente pretendia através dela demonstrar que as irregularidades detectadas quanto ao local de origem e outras incongruências detectadas nas guias de remessa não tinham o significado que a fiscalização lhes pretendia atribuir.
Referimo-nos também aos elevados preços dos produtos transaccionados. No artigo 27.º da douta p.i. alega-se que «o cobre, por exemplo, é adquirido aos sucateiros juntadores a preços que variam de acordo com a cotação desse metal na Bolsa de Londres, podendo atingir os 6 € por quilo, o que representa, mesmo para uma carga completa numa pequena camioneta ligeira com capacidade de carga de 3.500 kg, um valor de fornecimento na casa dos 21.000 euros». A questão tinha relevo factual porque a Recorrente pretendia através dela demonstrar que não existe – ou não é evidente que exista – a aparente desproporção entre o volume de vendas e os meios de produção desses «sucateiros juntadores», que foi assinalada no relatório.
Referimo-nos, ainda à questão de saber se os «sucateiros juntadores» têm ou não necessidade de armazenamento de sucata, «dado que os seus camiões são carregados na origem da sucata e, logo que cheios, são directamente remetidos e descarregados nas instalações» da ora Recorrente (artigo 30.º). Facto que permitiria questionar se a dimensão das instalações destes fornecedores é ou não um indicador fiável da sua capacidade produtiva (cfr. também o artigo 109.º).
Também no artigo 61.º do mesmo douto articulado se descreve um episódio com o qual se pretende demonstrar que a própria Administração Tributária confirmou que J… era fornecedor da ora Recorrente. Foram ouvidas testemunhas relativamente a essa matéria. No entanto, o M.mº Juiz também não lhe faz alusão alguma.
No artigo 116.º daquele douto articulado alega-se também que o P…, no período em análise, utilizava as viaturas PS-88-42 e OM-72-70 nas suas transacções de sucata e que os “ticket’s” que lhe eram entregues com as quantidades e os valores a facturar eram emitidos após a conferência da mercadoria. Factos sobre os quais, na resposta à matéria de facto, o M.mº Juiz também não tomou posição alguma, apesar de ter depois relevado as declarações do próprio P…, prestadas perante a fiscalização, segundo as quais os “ticket’s” eram entregues para indicação dos dados a inserir nas facturas («falsas»).
A Recorrente tem, por isso, razão quando conclui (4.ª conclusão) que tinha alegado factos a relevar para a decisão da matéria de facto, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito. Há, por isso, erro de julgamento sobre a (ir)relevância desses factos para a decisão.
2.7. Aqui chegados, uma outra questão se coloca: a questão de saber se o Tribunal “ad quem” pode, ao abrigo do artigo 712.º do C.P.C., ultrapassar essa lacuna e pronunciar-se ex novo sobre tal matéria factual, tendo em conta que se encontram disponibilizados nos autos os registos fonográficos com reprodução áudio dos depoimentos testemunhais colhidos.
A resposta é negativa. O Tribunal “ad quem” tem o poder de reapreciar a prova e, com base nela, modificar o que foi decidido em 1.ª instância sobre a matéria de facto. Mas não tem o poder de decidir em substituição da 1.ª instância, pronunciando-se sobre factos que esta nem sequer considerou, salvo nos casos a que alude o artigo 272.º do C.P.C.
É certo que a alínea b) do n.º 1 do artigo 712.º prevê que a decisão do tribunal de 1.ª instância pode ser alterada em via de recurso se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas. Trata-se, porém de situações que não têm aplicação ao caso, que são aquelas em que a 1.ª instância desconsiderou a especial força probatória de determinado meio de prova, como acontece com determinados documentos ou o acordo e confissão das partes. Sendo que nestes casos, o tribunal superior nem sequer está a apreciar os factos na sua materialidade, mas a extrair uma consequência da aplicação das regras de direito probatório formal vinculativas.
É verdade que a alínea c) do mesmo dispositivo legal permite que seja modificada a decisão da matéria de facto quando for apresentado pelo Recorrente documento superveniente que só por si a imponha. Mas constitui pressuposto da modificação que o documento venha destruir «a prova em que o tribunal fundou a decisão». Isto é, que a factualidade correspondente tenha sido apreciada em primeira instância e tenha inclusive sustentado o decidido. Não abrangendo, por isso a prova que este tribunal nem sequer considerou. De qualquer modo, também não está aqui em causa nenhum elemento de prova de natureza superveniente, muito menos de natureza documental.
O mesmo raciocínio é transponível para as situações a que alude a alínea a) do mesmo preceito: para que a decisão de facto possa ser por ali modificada, importa que tenha havido decisão quanto aos pontos da matéria de facto em causa e que os elementos de prova reanalisados tenham sustentado essa mesma decisão. É o que decorre das expressões ali utilizadas: «…que serviram de base à decisão» ou «…decisão com base neles proferida». Algo que no caso não sucede, porque nem o M.mº Juiz “a quo” tomou posição quanto a esses factos nem existe qualquer indicação concreta de que os depoimentos prestados tenham efectivamente sustentado qualquer decisão quanto à matéria de facto.
De todo o exposto decorre que – ressalvadas as situações excepcionais supra indicadas – o legislador só concedeu ao tribunal “ad quem” poderes de modificação da matéria de facto que o tribunal “a quo” tenha efectivamente apreciado. À regra de substituição do tribunal recorrido que emana do artigo 715.º, n.º 1, do C.P.C. devem, assim, ser opostos os limites interpostos pelo referido artigo 712.º do mesmo Código.
A oposição de tais limites aos poderes de cognição pelo tribunal de recurso tem subjacente – a nosso ver – uma razão fundamental: promover a imediação na primeira apreciação da prova, que só o tribunal recorrido pode salvaguardar. Sendo que, como refere A. S. Abrantes Geraldes (in «Recursos em Processo Civil, 2008, pág. 281), «tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc., sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorados por quem os presencia (…)».
Impõe-se, por isso, a anulação da decisão recorrida e a devolução do processo à 1.ª Instância para elaboração de nova sentença que contenha a resposta à matéria de facto supra referida. Ficando prejudicado o conhecimento dos demais vícios apontados no recurso.
3. Conclusões
3.1. Não padece de falta de fundamentação a sentença recorrida onde são discriminados os factos considerados provados e indicados entre parêntesis os documentos em que se suporta a decisão respectiva e as partes destes de que foram extraídas as transcrições efectuadas, porque tal indicação assegura o confronto entre o texto da decisão e a parte do documento em que se sustenta e, por conseguinte, o acompanhamento do itinerário cognoscitivo do julgador.
3.2. Também não padece de falta de fundamentação a sentença recorrida que, na parte relativa aos factos não provados, se limita a referir que «Não se provaram outros factos com relevância para a decisão», porque dos artigos 508.º-A, n.º 1, alínea e), e 511.º, n.º 1, ambos do C.P.C. resulta que juiz só tem que discriminar os factos não provados que reputa relevantes para a decisão e o dever de fundamentação da resposta à matéria de facto se reconduz também aos factos relevantes.
3.3. Todavia, se a matéria factual alegada que o tribunal recorrido não apreciou é relevante para a decisão a proferir, há erro de julgamento sobre a irrelevância desses factos e consequente omissão de pronúncia sobre questões de facto que o juiz de primeira instância não apreciou e deveria ter apreciado, o que constitui também nulidade da sentença – artigo 125.º, n.º 1, do C.P.P.T.
3.4. A modificabilidade da decisão de facto pelo tribunal de recurso ao abrigo do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do C.P.C. pressupõe que o tribunal recorrido tenha tomado posição quanto a esses factos, julgando-os provados ou não provados;
3.5. Se o tribunal recorrido se absteve de apreciar esses factos a decisão recorrida deve ser anulada.
4. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:
a) Anular a decisão recorrida;
b) Ordenar a devolução dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro para que aí seja elaborada nova decisão com prévia apreciação das questões fácticas referidas na fundamentação do presente acórdão.
Sem custas.
Porto, 12 de Janeiro de 2012
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves
Ass. Aragão Seia