Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00515/14.3BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/31/2019
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:ANULAÇÃO DA SENTENÇA. AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
Sumário:
I) - A insuficiência da decisão sobre a matéria de facto que compromete a decisão jurídica do pleito impõe a anulação da decisão recorrida em ordem à ampliação daquela. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Auto-Estradas Norte Litoral
Recorrido 1:APFSLA
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:
Conceder provimento ao recurso, determinando a baixa dos autos
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:

Auto-Estradas Norte Litoral – Sociedade Concessionária – AENL, S. A. (Av.ª Duque D´ Ávila, nº 46, 8º andar, 1050-083 Lisboa), interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF do Porto, em acção intentada por APFSLA (R. G…, 4445-448 Ermesinde), para efectivação de responsabilidade civil decorrente de sinistro em via concessionada à ré, acção julgada parcialmente procedente.
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Conclui a recorrente:
A Recorrente entende ter ocorrido omissão de pronúncia e lapso de análise dos factos julgados provados e que são determinantes para a decisão da causa;
Ao Tribunal incumbe sindicar a responsabilidade civil extracontratual da R. na produção do sinistro atrás relacionado, designadamente, se omitiu, ou não, os deveres de fiscalização, monotorização do tráfego e segurança da via para a circulação automóvel em auto-estrada.
Andou mal o Tribunal na análise crítica da prova produzida em conformidade com a matéria alegada.
A Recorrente preencheu o ónus probatório que lhe incumbia e demonstrou claramente o cumprimento das obrigações de segurança a que estava obrigada.
A sentença em crise julgou provado que a Recorrente procede a patrulhamentos diários da via concessionada, utilizando, para o efeito, viaturas que pela mesma circulam durante as 24 horas, dispondo ainda na mesma via de postos SOS e n.º de “telefone azul”.
Julgou ainda provado que a Recorrente realiza inspecções ao estado de conservação da vedação na extensão da concessão.
Além dos factos provados acima transcritos era essencial que o Tribunal “a quo” se tivesse pronunciado sobre a prova realizada quanto ao estado das vedações em data anterior e logo a seguir ao sinistro.
Era ainda essencial que o Tribunal “a quo” se tivesse debruçado relativamente à natureza do animal em causa e o local pelo qual acedeu à A28.
O Tribunal “a quo” reconhece ter fundado convicção nos depoimentos das testemunhas JS e LF, vigilante e oficial de obra, que depuseram no sentido da factualidade inserida nos pontos 6º e 7º da decisão da matéria de facto provada, contudo, omite e nada diz quanto ao facto dos aludidos depoimentos terem confirmado a informação e veracidade dos elementos constantes da prova documental oferecida pela Recorrente.
10ª É essencial para a boa decisão da causa que o Tribunal tivesse considerado e decidido sobre os documentos probatórios apresentados pela Recorrente e que demonstram que:
Dos patrulhamentos efectuados pelos Vigilantes da Ré no dia e em momento anterior à ocorrência do sinistro não foi detectada a presença de qualquer animal na via antes.
O local do sinistro dista apenas 670 metros do nó de entrada na auto-estrada Lavra/Aveleda/Angeiras.
Das inspecções efectuadas à rede de vedação pela Ré, principalmente da inspecção realizada no próprio momento do sinistro não resultou a existência de qualquer dano que permitisse a entrada de animais para a A28.
11ª É no mínimo exigível que o Tribunal “ a quo” tivesse proferido pronúncia quanto ao circunstancialismo que determinou a entrada daquele animal na via e se o mesmo é imputável à Recorrente.
12ª O Tribunal “a quo” limitou-se a fazer uma análise relativamente ao normativo legal aplicável para concluir, sem mais, que a Recorrente não logrou concluir que cumpriu com as obrigações de segurança.
13ª Da sentença proferida resulta que é exigido à Recorrente o cumprimento de obrigações impossíveis.
14ª Nunca a Recorrente teria possibilidades de cumprir o ónus probatório que sobre ela impende, pois o Tribunal “ a quo” entendeu que: a R. não afasta o ónus de segurança que sobre si recai dizendo e demonstrando que realiza inspeções ao estado de conservação da vedação da auto-estrada n.º 28 na extensão da concessão (cf. Ponto 7.º do probatório), pois, se o fez pouco tempo antes do atravessamento da raposa, os seus agentes fizeram mal o trabalho ao não vislumbrar algum buraco por onde o animal pudesse ter entrado, ou então, a malha da vedação ou a altura da mesma não se mostram adequadas a impedir a entrada dos animais na via rodoviária.”
15ª Tal conclusão não assenta em qualquer alegação ou prova, apenas numa suposição totalmente infundada do Tribunal e que não poderá ser considerada para a decisão da causa.
16ª Para condenar a Recorrente o Tribunal apenas faz referências genéricas a obrigações que na realidade e no caso concreto não estão contratualizadas e se afiguram claramente impossíveis de cumprir.
17ª Em face das considerações e conclusões que incluiu na sentença, facilmente se conclui que, para Tribunal “a quo” a Recorrente nunca teria possibilidade de provar o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de concessão e da obrigação de manutenção da circulação dos utentes em segurança naquela auto-estrada!
18ª Toda a prova que poderia fazer e fez, nunca seria suficiente para fazer face a uma obrigação impossível que a sentença em crise lhe exige!
19ª O Tribunal “a quo” na sentença proferida distanciou-se da matéria de facto provada por forma a justificar uma condenação em considerações genéricas.
20ª A vedação ao longo do local do acidente não apresentava quaisquer danos como a própria sentença admite, não sendo de admitir a conclusão de que então a Recorrente tinha o dever de a substituir por outra que não permitisse a entrada na auto-estrada de qualquer animal.
21ª Como alegado e provado pela Recorrente a auto-estrada em causa é uma via aberta, sem portagens físicas e restrições de acesso.
22ª Os limites da concessão contratualizada pela Recorrente terminam efectivamente nesses ramais, logo, o Tribunal nunca poderia ter fundamentado a decisão dos presentes com factualidade que não resultou demonstrada no caso concreto e que é impossível de ocorrer.
23ª É manifesto o lapso de análise e aplicação do direito em que incorreu o Tribunal “a quo”.
24ª O Tribunal “a quo” justifica a condenação da Recorrente no facto não alegado e não provado de que os seus agentes fizeram mal o trabalho ao não vislumbrar algum buraco por onde o animal pudesse ter entrado, ou então, a malha da vedação ou a altura da mesma não se mostram adequadas a impedir a entrada dos animais na via rodoviária.
Pelo que, seria forçoso que o Tribunal “a quo” tivesse concluído que a rede instalada no local do acidente, em mais do que um km para a frente ou para trás do local em que ocorreu o acidente, em ambos os sentidos de trânsito, estava em condições e não apresentava danos.
25ª O animal – raposa – entrou pelo nó de acesso à A28 que se situa apenas a 670 metros do local do sinistro.
26ª Contrariamente ao que é referido na douta sentença recorrida, não impende sobre a concessionária, ora recorrente, uma presunção de culpa.
27ª A decisão recorrida padece do entendimento que constitui incumprimento das obrigações de segurança tudo o que não evita a ocorrência danosa.
28ª A Concessionária, aqui Recorrente, não pode nem consegue, por ser impossível, ter um controlo absoluto, infalível e implacável sobre o que a todo o momento e instante se passa na via.
29ª Existem factores e condicionalismos que a Recorrente não poderá nunca superar, ultrapassar ou alterar, sob pena de entrarmos no domínio do absurdo e do ininteligível.
30ª O animal que no caso concreto se introduziu na via, era uma raposa, tendo o Tribunal “a quo” referido aquela como “animal que se esgueira de forma rápida e oportunista”.
31ª Será forçoso reconhecer que o aparecimento súbito da raposa na via não é, por si só, suficiente para responsabilizar a Recorrente.
32ª A conduta da concessionária, que ficou provada, ultrapassa o patamar do cumprimento genérico das obrigações de segurança.
33ª A obrigação da Recorrente é de meios e não de resultado, ou seja, a de envidar esforços para que não ocorram acidentes na via concessionada.
34ª Não podia nem pode a Recorrente vigiar e controlar em permanência esses nós de acesso à auto-estrada, pelo que a possibilidade de entrada de um animal selvagem sempre será uma realidade a ter em conta.
35ª Afigura-se inequívoco que os deveres de segurança e de protecção que oneram a concessionária, ora recorrente, assumem natureza de obrigação de meios, ou seja, de envidar esforços para que a circulação se processe com segurança, já que com tal imposição não se pretende garantir que os condutores que circulam na auto-estrada cheguem sãos e salvos ao seu destino, mas antes acautelar a segurança da circulação da mesma.
36ª No caso concreto a ora recorrente acautelou de forma clara, com o seu procedimento, a segurança da circulação na via.
37ª A idoneidade e adequação dos meios utilizados pela Recorrente em matéria de fiscalização, inspecção e prevenção de acidentes afigura-se evidente tendo em conta a matéria provada nos autos.
38ª As obrigações que o Tribunal “a quo” comete à concessionária não são minimamente compatíveis com o entendimento maioritariamente sufragado pela jurisprudência.
39ª A conduta da concessionária preenche cabalmente a exigência da obrigação de meios, sendo a matéria de facto provada absolutamente idónea e adequada à prova do cumprimento dessa mesma obrigação de meios, devendo ser alterada a decisão recorrida em conformidade.
40ª Seria forçoso que o Tribunal “a quo” tivesse concluído que a rede instalada no local do acidente, em mais do que um km para a frente ou para trás do local em que ocorreu o acidente, em ambos os sentidos de trânsito, estava em condições e não apresentava danos;
41ª A exigência relativamente ao cumprimento do ónus da prova referida na sentença em crise coloca a concessionária perante a probatio diabólica que é inalcançável;
42ª A douta sentença recorrida não considerou como devia a conduta da concessionária em matéria de vigilância da via;
43ª A douta sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do artigo 12º da Lei nº 24/2007;
44ª A conduta da concessionária preenche cabalmente a exigência da obrigação de meios, sendo a matéria de facto provada absolutamente idónea e adequada à prova do cumprimento dessa mesma obrigação de meios, devendo ser alterada a decisão recorrida em conformidade.
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A recorrida contra-alegou, concluindo:
I – Não merece qualquer reparo a sentença proferida, uma vez que se encontra devidamente fundamentada e de acordo com a prova carreada para os presentes autos, bem como com a Jurisprudência e a Doutrina.
II – Entende a Recorrente que preencheu o ónus probatório que lhe incumbia e demonstrou o cumprimento das obrigações de segurança a que estava obrigada, no entanto, desde logo, não há dúvidas que a Recorrente incumpriu a sua obrigação fundamental e basilar de assegurar uma circulação segura e sem perigo para os utentes.
III – Relativamente ao estado das vedações os depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento foram, no essencial, contraditórios quanto ao facto de as mesmas terem sido vistoriadas no dia do acidente.
IV – Da mesma forma e quanto aos documentos juntos (os quais foram todos impugnados pela A.), as testemunhas da Recorrente esclareceram-nos inclusive que os mesmos nada tinham que ver com a presente situação.
V – Acresce que, no que respeita ao local pelo qual o animal acedeu à A28 a Recorrente não efectuou qualquer prova quanto à mesma.
VI – Nenhuma testemunha da Recorrente foi capaz de precisar se em momento anterior ao acidente algum funcionário da Recorrente tinha passado no local, quando o tinha feito e o que tinha visto.
VII – A sentença não podia dar como provado qualquer outro facto além dos que constam dos art.ºs 6º e 7º da matéria de facto provada, simplesmente porque não foi efectuada qualquer prova credível quanto à restante matéria alegada.
VIII – Aliás, se a Recorrente pretendia demonstrar que a matéria de facto provada devia ser alterada ou ampliada, deveria ter indicado os concretos meios de prova que deveriam sustentar essa mesma alteração/ampliação.
IX – Contrariamente ao pretendido pela Recorrente, o Tribunal não concluiu que a Recorrente provou que a vedação não tinha qualquer problema e que o animal não foi detectado apesar da vigilância exercida, o que o Tribunal concluiu foi que genericamente a Recorrente costuma fazer patrulhamentos e verificar as vedações, nada se tendo concluído quanto ao dia em concreto do sinistro em apreço nos autos.
X – Foi possível apurar que os patrulhamentos são efectuados a 80 km/h em carrinhas que não têm qualquer iluminação suplementar para além da iluminação de um veículo normal, pelo que facilmente se conclui que, a não ser que embatam em algum animal/objecto, durante a noite sobretudo nas zonas sem iluminação artificial nada conseguem detectar na via.
XI – Assim, a sentença proferida não merece qualquer reparo nem quanto à matéria de facto provada, nem quanto à subsunção dos factos ao direito.
XII – A sentença ora proferida respeita o que vem sendo jurisprudência unânime quer no Tribunal Central Administrativo Norte quer no Tribunal Central Administrativo Sul.
XIII – À data do acidente a que respeitam os presentes autos se encontrava em vigor o regime jurídico que define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, aprovado pela Lei n.º 24/2007 de 18 de Julho
XIV – Do art.º 12º desta Lei “resulta que a concessionária de auto-estrada em que se verifique um sinistro rodoviário causado por objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem, atravessamento de animais e líquidos na via, neste último caso quando não resultantes de condições climatéricas anormais, está onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar. Esta presunção, porque presume o incumprimento de um certo dever, constitui, simultaneamente, uma presunção da ilicitude de certo facto e uma presunção de culpa, na medida em que revela a inobservância do especial dever de diligência que onera a concessionária (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).”.
XV – Face à matéria dada como provada em 1º a 5º dos factos provados, não restam dúvidas que a A. logrou provar os pressupostos da responsabilidade civil que lhe competiam provar: o facto, os danos e o nexo de causalidade entre estes.
XVI – Por seu lado, competia “à R., concessionária do Estado para a construção, conservação e exploração das auto-estradas que lhe foram concessionadas por lei, de entre as quais conta-se a A28, a prova de que o acidente não ocorreu por culpa sua porque cumpriu todas as condições de segurança que estavam a seu cargo. Ou seja, partindo do princípio de que cabia à R. o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança a seu cargo, uma vez que a causa do acidente foi a presença de um animal na via, há que averiguar se a R. ilidiu a presunção da falta de cumprimento daquelas obrigações de segurança (presunção de ilicitude e de culpa) no que respeita ao acidente.”.
XVII – Uma vez que na presente situação a Recorrente apenas provou que abstracta e genericamente normalmente procede a patrulhamentos diários da via concessionada, utilizando para o efeito viaturas que pela mesma circulam durante as 24 horas, dispondo ainda na mesma via de postos SOS e n.º de “telefone azul” e que a Recorrente realiza inspecções ao estado de conservação da vedação na extensão da concessão, estamos em crer que esta prova não é suficiente para ilidir, no caso concreto, a presunção de ilicitude e culpa que sobre a Recorrente impendia.
XVIII – Por todo o exposto, nenhum reparo há a fazer nem à matéria de facto nem à decisão de mérito, devendo-se manter na íntegra a sentença ora em crise.
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal foi notificado nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, não emitindo parecer.
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Dispensando vistos, vêm os autos a conferência, cumprindo decidir.
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Os factos, elencados na decisão recorrida:
1.º - O ZP foi interveniente num acidente de viação ocorrido no dia 17/05/2013, cerca das 22h:53m, na A28, em L…, Matosinhos, no sentido Norte/Sul, quando conduzido pela filha da A., HSSLA, que ao chegar ao Km 14,300 colidiu com uma raposa que atravessou a faixa de rodagem da direita para a esquerda e ante a qual a condutora do ZP não teve hipótese de se desviar;
2.º - Do sinistro resultaram estragos no ZP, cuja reparação foi orçada em €4.970,81 (cf. fls. 23 e 24 do processo físico);
3.º - Atendendo ao valor comercial do ZP, de €3.700,00, a A. foi desaconselhada a proceder à reparação do mesmo, que foi entregue para abate, tendo recebido a quantia de €300,00 pelo salvado (cf. fl. 25 dos autos físicos);
4.º - Em 08/08/2013, a A. adquiriu um novo veículo automóvel;
5.º - Entre a data do acidente e a da aquisição do novo carro, a A. viu-se privada do uso do ZP na satisfação diária das necessidades domésticas e familiares;
6.º - A R. procede a patrulhamentos diários da via concessionada, utilizando, para o efeito, viaturas que pela mesma circulam durante as 24 horas, dispondo ainda na mesma via de postos SOS e n.º de “telefone azul”;
7.º - A R. realiza inspecções ao estado de conservação da vedação na extensão da concessão.
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O mérito da apelação
O tribunal “a quo” condenou a ré no pagamento à autora de um “montante global de €4.439,00 (quatro mil e quatrocentos e trinta e nove euros), acrescido dos correspondentes juros de mora a contar desde a citação e até ao efectivo e integral pagamento”, somatório de várias parcelas que discriminou.
Fundamentalmente, afirmou a responsabilidade da ré decorrente da Lei n.º 67/2007, de 31/12, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, da Lei n.º 24/2007, de 18/07, e no que em tronco comum respiga do previsto no art.º 483º do CC.
Contra o decidido a recorrente convoca que há omissão de pronúncia.
Mas como logo enuncia: “Ao Tribunal incumbe sindicar a responsabilidade civil extracontratual da R. na produção do sinistro (…)” [conclusão 2ª]
Foi o que o tribunal fez, alicerçando nos factos e no direito, sem omitir tratamento de questão.
São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer da questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para a sua pretensão” - José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 143.
É certo que tal como refere Jacinto Rodrigues Bastos (in Notas ao Cód. de Proc. Civil, vol. III, 3ª ed., pág. 180), “… não terá o juiz de, em relação a cada uma delas – referindo-se a questões no sentido acima defendido -, apreciar todos os argumentos ou razões aduzidas pelos litigantes, na defesa dos seus pontos de vista, embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes, como se dizia na antiga prática forense”.
Mas, de todo o modo, sempre é pacífico que “A nulidade de decisão por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre alguma questão que as partes tenham submetido à sua apreciação e já não quando o juiz não se ocupa ou não tem em consideração eventuais factos ou argumentos e razões que as partes tenham invocado em abono do seu ponto de vista” – Ac. do STA, Pleno, de 19-05- 2016, proc. nº 01657/13.
Comos se dá nota em Ac. deste TCAN, de 10-03-2017, proc. nº 00846/13.0BEPRT: «Não constitui fundamento de nulidade da sentença por omissão de pronúncia ou falta de fundamentação mas tão só de erro de direito a alegação de que não foram considerados na matéria de facto factos que resultam dos autos e omissão de outros» - Ac. TCAN, de 16-06-2005, proc. nº 00471/04.6BECBR; «A desconsideração de algum elemento relevante no juízo acerca de uma «quaestio juris» pode configurar um erro de julgamento, mas não uma omissão de pronúncia.» (Ac. do STA, de 31-03-2016, proc. nº 019/16).
Não obstante, há uma clara insuficiência do julgamento sobre a matéria factual.
Efectivamente, alegou a ré em contestação matéria relativa relativamente à natureza do animal em causa, quanto ao estado das vedações em data anterior e logo a seguir ao sinistro, quanto à realização de patrulhamentos que não terão detectado presença do animal, e que este se teria introduzido por nó de acesso que identificou.
Se quanto à natureza do animal em causa é dispensável qualquer específica actividade probatória, conquanto notória essa natureza, já quanto ao mais isso não sucede, tendo-se como relevantes tais matérias, dentro do que possa encarar-se como contributo para plausível solução de direito.
De algum modo a sentença as considerou, mas em sentido de partar necessidade de expressa emissão de juízo fáctico (e mesmo que perpasse que foram matérias envolvidas na produção de prova, mas sem terem sido obtido consignação de expresso julgamento de facto).
Assim, discorreu que:
«(…)
À R. incumbe o cumprimento dos deveres de segurança para com a via rodoviária que tem sob a sua alçada e vigilância (cf. o artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil), sobretudo, na perspectiva em que sobre si impende o dever de garantir que os condutores-utilizadores dessa via de circulação rápida o façam em segurança.
Há que exigir à Impetrada, igualmente, que na prossecução de tais deveres implemente um sistema de vigilância/fiscalização/sinalização/monitorização apto a prevenir a ocorrência de eventos danosos como aquele que é tratado na presente demanda.
Mais. É à R. que compete implementar um sistema de vedação na auto-estrada, incluindo nos nós ou ramais de acesso à mesma, que proteja cabal e eficazmente os condutores que nessa via circulam a alta velocidade, que não podem ficar à mercê de um sistema ineficiente que permita a entrada de animais para a faixa de rodagem e que pela mesma se desloquem de forma livre.
E a ausência de uma vedação eficiente torna-se ainda um factor de risco agravado se a circulação na auto-estrada se dá à noite, como aconteceu no caso vertente, em que a iluminação artificial inexiste ou não é suficiente para iluminar um animal como uma raposa que se esgueira de forma rápida e oportunista.
Olhando para o caso entre mãos, entende-se que a R. não cumpriu o ónus de segurança sobre a auto-estrada onde se deu o sinistro trazido aos presentes autos, pois não basta demonstrar que procede a patrulhamentos diários na via concessionada, utilizando, para o efeito, viaturas que pela mesma circulam durante as 24 horas, dispondo ainda na mesma via de postos SOS e n.º de “telefone azul” (cf. ponto 6.º do probatório).
De igual modo, a R. não afasta o ónus de segurança que sobre si recai dizendo e demonstrando que realiza inspecções ao estado de conservação da vedação da auto-estrada n.º 28 na extensão da concessão (cf. ponto 7.º do probatório), pois, se o fez pouco tempo antes do atravessamento da raposa, os seus agentes fizeram mal o trabalho ao não vislumbrar algum buraco por onde o animal pudesse ter entrado, ou então, a malha da vedação ou a altura da mesma não se mostram adequadas a impedir a entrada dos animais na via rodoviária.
Como se vê, dispor de patrulhamentos, postos SOS ou n.º de “telefone azul” não impediu a entrada da raposa na A28 no dia e no local do acidente com o ZP. São meios insuficientes para impedir o atravessamento de animais na via, sendo de exigir à R., conforme já atrás dissemos, que adopte um sistema de vedação para a auto-estrada, incluindo os nós ou ramais de acesso, que responda mais eficazmente à obrigação de segurança que a lei impõe, numa actuação mais incisiva e proactiva ao nível da prevenção do acidente.
O atrás dito significa que se conclui não ter a R. observado o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança que sobre a mesma impendia, sobretudo, na vertente do impedimento da entrada de animais na via onde se verificou o sinistro analisado nos presentes autos.
(…)»
O fio lógico deste julgamento é o de que o animal só pode ter-se introduzido na via por deficiente cumprimento de obrigação de segurança (vedação), seja em espaço anterior, seja pela sua introdução por nó de acesso; dum ou doutro modo, terá a ré incumprido com a sua obrigação de segurança.
Mais que chamar à colação que incumbe à concessionária o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, conforme decorre do regime constante na Lei nº 24/2007, de 18/07, o julgamento tira ilação que não pode indiferentemente ser tirada, já que – olhando o elenco fáctico das circunstâncias julgadas provadas – é carecida de suporte fáctico que habilite em bastante ser extraída.
A insuficiência da decisão sobre a matéria de facto inviabiliza a decisão jurídica do pleito, impondo-se a anulação da decisão recorrida, e a consequente remessa dos autos ao tribunal "a quo", nos termos do artº 662º, nº 2, c), e nº 3, c), do CPC, a fim de que este proceda ao necessário julgamento da matéria de facto, quanto ao estado das vedações em data anterior e logo a seguir ao sinistro, quanto à realização de patrulhamentos que não terão detectado presença do animal, e quanto à alegada sua introdução pelo identificado nó de acesso, conforme delimitado em contestação, matérias que, motivando, deverá explicitar como provadas ou não provadas.
A esta ampliação não se opõe, ao contrário do que contra-alega a recorrida, qualquer actual falta de indicação por banda da recorrente dos concretos meios de prova que devam sustentar.
Restante objecção trazida a recurso, carecida de autonomia, surte prejudicada.
***
Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao recurso, anulando a decisão recorrida com vista à dita ampliação.
Custas: pela recorrida.
Porto, 31 de Maio de 2019.
Ass. Luís Migueis Garcia
Ass. Conceição Silvestre
Ass. Alexandra Alendouro