Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00513/08.6BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/11/2010
Relator:Francisco Rothes
Descritores:RECURSO APLICAÇÃO COIMA - IVA - FALTA DE ENTREGA DO IMPOSTO - ART. 114.º DO RGIT - EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário:I - Em processo contra-ordenacional e no que respeita à verificação do preenchimento dos elementos típicos da infracção nunca pode falar-se em excesso de pronúncia pois o conhecimento dessa questão sempre se impõe ao juiz ao abrigo dos princípios da verdade material e da investigação, ainda que os sujeitos processuais nada aleguem a esse propósito.
II - Não podem dar-se como provados factos que, respeitando aos elementos típicos da infracção, não constam da decisão administrativa de aplicação da coima.
III - O facto tipificado como contra-ordenação no n.º 2 do artigo 114.º do RGIT reporta-se à tipificação constante do n.º 1 do mesmo preceito legal, sendo seu pressuposto essencial a prévia dedução da prestação tributária não entregue.
IV - Neste sentido, a falta de entrega da prestação tributária de IVA não preenche o tipo legal de contra-ordenação acima referido, uma vez que no IVA a prestação a entregar não é a prestação tributária deduzida, mas sim a diferença positiva entre o imposto suportado pelo sujeito passivo e o imposto a cuja dedução tem direito.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 Em processo de contra-ordenação instaurado pelo 2.º Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão foi aplicada uma coima à sociedade denominada “Outro - , Lda.” (adiante Arguida ou Recorrida) pela prática de uma infracção ao disposto nos art. 26.º, n.º 1 e 40.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), punível pelo art. 114º, nºs 1 e 2, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por ter remetido ao Serviço Administrativo do IVA (SAIVA) a declaração periódica relativa ao 3.º trimestre de 2003 sem o correspondente meio de pagamento.

1.2 A Arguida recorreu dessa decisão para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga com os seguintes fundamentos:
─ sendo que a decisão administrativa de aplicação de coima ora recorrida foi proferida na sequência da revogação de anterior decisão, o despacho de revogação não se encontra assinado, falta que constitui nulidade insuprível, a determinar a anulação de todo o processado ulterior;
─ por outro lado, tal falta, na medida em que tem como efeito a manutenção da primeira decisão administrativa de aplicação de coima, determina a nulidade da decisão ora recorrida por violação do princípio non bis in idem;
─ não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar antes da decisão o que constitui violação do disposto no art. 32.º da Constituição da República Portuguesa;
─ a decisão não contém uma descrição sumária dos factos integradores da contra-ordenação por que foi condenada, o que viola o disposto no art. 79.º do RGIT;
─ a referência à falta de entrega do IVA “no prazo legal”, sem mencionar qual seja este, e sem que seja perceptível a indicação do período a que respeita o imposto constitui nulidade insuprível nos termos do art. 63.º, n.º 1, alínea d), do RGIT;
─ a decisão também não indica as provas obtidas, o que acarreta a sua nulidade;
─ na decisão não se referem os elementos que contribuíram para a fixação da coima, não tendo sido feita a devida apreciação da culpa do agente, da sua situação económica e da gravidade do facto, o que também implica nulidade insuprível da mesma nos termos do art. 63.º, n.º 1, alínea d), do RGIT;
─ foi condenada pela prática de onze contra-ordenações, quando «apenas terá cometido uma infracção (contra-ordenação continuada)» (() As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.).

1.3 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, mediante despacho (() Despacho proferido ao abrigo do disposto no art. 64.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO)), aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, e depois de notificada a Arguida nos termos do n.º 2 do referido art. 64.º (cf. o despacho de fls. 112). O Ministério Público já manifestara a sua não oposição (cf. fls. 108).), julgou o recurso procedente e absolveu a Arguida da contra-ordenação que lhe foi imputada e pela qual foi condenado. Para tanto, e em síntese, considerou que a conduta da Arguida não se enquadra no referido art. 114.º, n.º 2, do RGIT, que se reporta ao seu n.º 1, por, no caso do IVA, não se estar perante uma prestação tributária deduzida nos termos da lei e, por outro lado, que nos casos em que o sujeito passivo tenha efectivamente recebido o IVA daqueles a quem vende mercadorias ou prestou serviços e, existindo tal obrigação, não o entrega à Administração tributária, a infracção é a prevista no n.º 3 do art. 114.º do RGIT.

1.4 Inconformado com essa sentença, o Ministério Público (adiante também Recorrente) dela recorreu para este Tribunal Central Administrativo Norte, apresentando alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«
I - Nos presentes autos está em causa uma coima fiscal aplicada pelo Senhor Director de Finanças de Braga no processo de contra-ordenação n.º 3590200706049010, que foi instaurado contra a arguida por não ter entregue a prestação tributária que era devida relativa a IVA do período de 2003/09T, no montante de 25.099,97 €;
II - A entidade administrativa considerou provados os factos constantes do auto de notícia de fls. 5, e com base neles aplicou à arguida a coima de 5.547,09 €, por ter infringido o disposto nos arts 26.º, n.º 1 e 40.º, n.º 1 al. a) do CIVA, conduta que é punível pelo art.º 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4 do RGIT;
III - A recorrente aceitou toda a matéria de facto vertida no auto de notícia e não questionou que no período de 2003/09T estava obrigada a entregar ao Estado imposto (IVA) no montante de 25.099,97 €;
IV - O M.mo Juiz [do Tribunal] a quo deu como provados os factos enumerados sob as alíneas a) e b) do probatório da douta sentença recorrida;
V - Todavia, face à prova produzida nos autos, parece-nos que deveria o M.mo Juiz [do Tribunal] a quo considerar ainda provados os factos seguintes:
c) No período de 2003/09T, a arguida apurou imposto a entregar ao Estado no montante de 25.099,97 €, tendo efectivamente recebido as quantias constantes das facturas por si emitidas que deram origem ao apuramento daquele imposto;
d) O termo do prazo para cumprimento da obrigação (entrega do imposto) terminou a 17/11/2003, sendo que nessa data a arguida nada pagou, tendo apenas cumprido a obrigação a 3/8/2007 – cf. fls. 8/9;
e) Nos anos de 2003, 2004 e 2005, a recorrente realizou transacções comerciais sujeitas a tributação em sede de IVA e não apresentou as declarações de IVA a que estava obrigada, vindo a fazê-lo apenas na sequência de uma acção inspectiva – cf. ponto IV da petição inicial.
VI - O M.mo Juiz [do Tribunal] a quo fundamentou a decisão recorrida seguindo de perto a jurisprudência constante do douto Acórdão do STA de 29 de Maio de 2008, parecendo-nos, porém, que a situação de facto subjacente ao citado acórdão é substancialmente diferente da retratada nos presentes autos. Daí que, a argumentação jurídica constante do citado acórdão não possa valer no caso aqui em apreço.
VII - Além disso, no caso dos autos, a recorrente apenas pediu ao tribunal que a apreciasse a existência de vícios de natureza formal e a possibilidade de, por ter cometido diversas infracções de 2003 a 2005, lhe ser aplicada uma coima única, por entender que teria praticado uma contra-ordenação continuada, de acordo com o disposto nos arts 30.º, n.º 2 do Código Penal, 4.º, n.º 2 do DL n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, e 32.º do DL n.º 433/82, de 27/10, aplicável ex vi do artigo 3.º, al. b), do RGIT.
VIII - Por isso, o M.mo Juiz [do Tribunal] a quo deveria ocupar-se apenas do conhecimento das questões que deixou enunciadas, para decidir se:
A decisão recorrida não cumpre os requisitos que a lei impõe
A Recorrente foi condenada por 11 contra-ordenações quando apenas praticou uma infracção sob a forma continuada
IX - Salvo o devido respeito, e embora de modo sucinto, a decisão administrativa que aplicou a coima contém os requisitos legais, apreciando os factos sobre os antecedentes e situação concreta da arguida, tendo em conta a gravidade objectiva e subjectiva da contra-ordenação praticada para efeitos de fixação da coima, nos termos previstos nos arts 79.º, n.º 1, al. c), e 63.º, n.º 1, al. d) do RGIT – (cf. fls. 5/6);
X - Por outro lado, face ao disposto no art.º 25.º do RGIT, e sendo certo que a arguida tomou tantas decisões de não entregar o IVA devido ao Estado quantos os períodos de imposto que não fez essa entrega, não restam dúvidas que tendo a recorrida cometido onze infracções relativas a outros tantos períodos de imposto, a cada uma das quais foi aplicada uma coima, havendo por isso uma situação de concurso real, não só não poderá beneficiar da aplicação de uma única coima correspondente a uma contra-ordenação continuada, mas também não pode beneficiar do cúmulo jurídico das coimas, nos termos previstos no art. 19.º do decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (RGCO), em virtude de aquele preceito legal ser uma norma especial e impor expressamente que, nesse caso, «as sanções aplicadas às contra-ordenações são sempre cumuladas materialmente», conforme, aliás, já foi decidido no acórdão do STA, 078/08, de 28-05-2008;
XI - Decidindo como decidiu, o M.mo Juiz [do Tribunal] a quo não apreciou correctamente a prova produzida nos autos, pronunciou-se sobre questões não trazidas à apreciação do Tribunal, violando assim o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, 668.º, n.º 1, al. d) e 660.º, n.º 2 do CPC, e fez errada interpretação dos arts 114.º, n.ºs 1 e 2 e 26.º, n.º 4 do RGIT, violando ainda as demais normas legais referidas nestas conclusões.

Pelo que, revogando a douta sentença recorrida e julgando improcedente o recurso da arguida, confirmando inteiramente a decisão recorrida, VOSSAS EXCELÊNCIAS farão, agora como sempre, a costumada

JUSTIÇA».

1.5 O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.6 A Arguida não contra alegou o recurso.

1.7 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso.

1.8 Colhidos os vistos dos Juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

1.9 As questões suscitadas pelo Recorrente são as de saber se a sentença
─ enferma de nulidade por excesso de pronúncia (cf. conclusões VII, VIII e XI);
─ incorreu em erro no julgamento da matéria de facto quando não deu como provada factualidade que importa à decisão (cf. conclusão V);
─ fez errado julgamento de direito quando deu como não verificados os elementos do tipo legal de infracção por que a AT condenou a Arguida ao pagamento de uma coima (cf. conclusões VI e XI).

* * *
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO
2.1.1 A sentença recorrida fez o julgamento de facto nos seguintes termos:

«2. Fundamentação

2.1 Matéria de facto provada
a) Em 3 de Agosto de 2007, a Arguida entregou à administração tributária a declaração periódica de IVA respeitante ao período de 2003/09T, desacompanhada do montante de imposto apurado de € 25.099,97.
b) Por decisão de 11 de Fevereiro de 2008 proferida pelo Senhor Director de Finanças de Braga, a Recorrente foi condenada na coima de € 5.547,09 por se ter considerado que a mesma praticou a infracção prevista e punida pelos arts. 26º nº 1 e 40º nº 1 do Código do IVA e arts. 114º nº 2 e 26º nº 4 do RGIT, nos termos que constam de fls. 59 e 60 dos presentes autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

/
Não há factos relevantes para a discussão da causa
/
A decisão sobre a matéria de facto baseou-se nos documentos juntos aos autos».
2.1.2 Damos por assente a matéria de facto nos termos em que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a fixou.
2.1.3 O Recorrente pretende que seja aditada à matéria de facto dada como assente pela 1.ª instância a que deixou enunciada na conclusão V).
Sobre a questão, pronunciar-nos-emos adiante, em 2.2.2.
*
2.2 DE FACTO E DE DIREITO
2.2.1 A NULIDADE DA DECISÃO POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
O Recorrente invoca a nulidade da decisão (() Embora a decisão recorrida, contrariamente ao que alega o Recorrente, não seja uma sentença (vide nota anterior), tem-se entendido que as regras respeitantes às nulidades da sentença são aplicáveis a todas as decisões. ) por excesso de pronúncia, alegando que na decisão recorrida o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga conheceu de questão que não lhe fora suscitada pela Arguida no recurso judicial da decisão administrativa de aplicação da coima, o que, na tese do Recorrente, viola o art. 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), conjugado com os arts. 668.º, n.º 1, alínea d), e 660.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código de Processo Civil (CPC). Segundo o Recorrente, o Juiz da 1.ª instância não podia ter conhecido senão das questões da «existência de vícios de natureza formal» por a decisão administrativa recorrida alegadamente não cumprir os requisitos que a lei lhe impõe e da «possibilidade de […] lhe ser aplicada uma coima única», ao invés das onze em que foi condenada, que considera serem as questões que foram suscitadas pela Arguida em sede de recurso judicial da decisão de aplicação da coima (cf. conclusão VII), VIII) e XI)). Na tese do Recorrente, não podia, pois, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga ter conhecido oficiosamente da questão de saber «se a arguida recebeu ou não as facturas por si emitidas em que liquidou IVA e com base nas quais fez o apuramento da diferença entre esse IVA aquele que ela própria suportou», «desde logo porque desse modo foi vedada a possibilidade de a Fazenda Pública e o Ministério Público carrear para o processo prova relativa a esses factos», o que «constitui também uma clara violação do princípio do contraditório».
Na verdade, o tribunal não deve ocupar-se senão das questões de que lhe seja lícito conhecer, sob pena de nulidade da sentença que, no domínio do processo penal, se encontra prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo contra-ordenacional fiscal, por força da alínea b) do art. 3.º do RGIT e do art. 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO)).
No entanto, porque estamos no domínio do direito de natureza sancionatória, no que respeita à verificação do preenchimento dos requisitos do tipo legal de infracção imputado ao arguido, a actividade do tribunal não se encontra limitada pelas questões suscitadas pelos sujeitos processuais. Mais do que isso, o Tribunal está mesmo obrigado a exercer os seus poderes independentemente da alegação dos sujeitos processuais, em obediência aos princípios da verdade material e da investigação contidos, respectivamente, nos n.ºs 1 e 2 do art. 340.º do CPP, aplicável subsidiariamente.
Assim, salvo o devido respeito, não faz sentido esgrimir com o excesso de pronúncia, quando o Tribunal se limitou a verificar do preenchimento dos elementos típicos da contra ordenação.
Questão diferente, mas que não se coloca em sede da validade formal da sentença, mas antes já em sede de erro de julgamento, é a de saber se o efectivo recebimento ou retenção do imposto é ao não elemento típico da contra ordenação prevista no n.º 1 do art. 114.º do RGIT. Dela nos ocuparemos adiante.
Improcede, pois, a arguida nulidade da decisão.

2.2.2 DO ERRO NO JULGAMENTO DE FACTO
O Recorrente sustenta que na decisão recorrida deveria ter-se dado como provado que «[n]o período de 2003/09T, a arguida apurou imposto a entregar ao Estado no montante de 25.099,97 €, tendo efectivamente recebido as quantias constantes das facturas por si emitidas que deram origem ao apuramento daquele imposto», que «[o] termo do prazo para cumprimento da obrigação (entrega do imposto) terminou a 17/11/2003, sendo que nessa data a arguida nada pagou, tendo apenas cumprido a obrigação a 3/8/2007» e que «[n]os anos de 2003, 2004 e 2005, a recorrente realizou transacções comerciais sujeitas a tributação em sede de IVA e não apresentou as declarações de IVA a que estava obrigada, vindo a fazê-lo apenas na sequência de uma acção inspectiva» (cf. conclusão V)).
Salvo o devido respeito, dos referidos factos só poderia ser dado como assente que a Arguida, com referência ao 3.º trimestre do ano de 2003, apurou o montante de IVA a entregar ao Estado de € 25.099,97 e que apenas fez a entrega da respectiva declaração periódica em 3 de Agosto de 2007. No entanto, tal factualidade já foi levada ao probatório, como resulta da mera leitura do ponto 2.1 da decisão recorrida, que reproduzimos supra sob o ponto 2.1.1.
Quanto à demais factualidade que o Recorrente pretende seja dada como assente, designadamente que o montante de IVA apurado pela Arguida relativamente ao período em causa foi por ela efectivamente recebido conjuntamente com o valor das facturas por ela emitidas, não pode a mesma ser levada ao probatório por ausência de alegação (e de prova) nesse sentido.
Aliás, sempre se dirá que tal factualidade que, como melhor veremos adiante, constitui elemento típico da contra ordenação por que a Arguida foi condenada, não consta da decisão administrativa de aplicação da coima, como não constava do auto de notícia, motivo por que, mesmo que pudesse ser dada como assente – e não pode –, nunca poderia ser valorada contra a Arguida (a apresentação dos autos ao Ministério Público equivale à acusação, nos termos do disposto no art. 62.º da RGCO).

2.2.3 DO ERRO NO JULGAMENTO DE DIREITO
Sustenta ainda a Recorrente que o Juiz do Tribunal a quo fez errado julgamento ao aplicar à situação sub judice a doutrina do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo por a diversidade das situações fácticas de um e de outro processo o não autorizarem.
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, o Recorrente sustenta que, enquanto naquele processo ficou provado que a sociedade aí arguida não tinha recebido dos seus clientes o IVA liquidado nas facturas que emitiu nesse período, já no presente processo «a recorrente não questionou o efectivo recebimento do IVA liquidado e que deu origem ao apuramento do IVA a entregar ao Estado no período aqui em causa», pelo que «não deverá o Tribunal tomar a iniciativa de pôr em causa algo que nem à recorrente passou pela cabeça».
Como resulta do que deixámos já dito, toda a tese da Recorrente assenta, salvo o devido respeito, num equívoco: o de que o Tribunal não pode em sede de recurso da decisão de aplicação da coima conhecer oficiosamente do preenchimento dos requisitos típicos da contra ordenação.
Ora, como procuraremos demonstrar, mediante remissão para o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (() Acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Maio de 2008, proferido no processo com o n.º 279/08, publicado no Apêndice ao Diário da República de 29 de Setembro de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32220.pdf), págs. 656 a 660, com texto integral também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c19ed72355c4c93d8025745f0056370b?OpenDocument.) para o qual já remeteu a decisão recorrida, no tipo legal de infracção por que a Arguida foi condenada pela AT integra-se o efectivo recebimento ou a dedução da quantia que lhe cumpre entregar. Passamos a citar (() Permitir-nos-emos, apenas, por facilidade de exposição não respeitar a numeração das notas de rodapé do original, seguindo a do presente acórdão, mas reproduzindo-as sempre entre aspas e com um tipo de letra diverso.):

«No âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos arts. 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido.
De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do art. 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram. O significado natural da expressão «deduzir» é o de «subtrair de um total» (() «Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, I Volume, página 1081».).
Como ensina BAPTISTA MACHADO, «nos termos do art. 9.º, 3, (do Código Civil) o intérprete presumirá que o legislador «soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo» (() «Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 189».).
Assim, é de partir do pressuposto de que, com a utilização da expressão «prestação tributária deduzida» se pretendeu aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária (isto é, no caso, uma quantia de imposto, nos termos do citado art. 11.º do RGIT) pelo sujeito passivo através de uma subtracção de um quantia global e essa quantia deduzida tem de ser entregue à administração tributária.
É o que sucede, por exemplo, nas situações de retenção na fonte previstas no art. 71.º do CIRS, de rendimentos sujeitos a taxas liberatórias, em que a retenção do imposto na fonte é efectuada pelo sujeito passivo a título definitivo, que são enquadráveis no n.º 1 do art. 114.º.
Há ainda dedução por conta de prestação tributária (por conta do imposto), enquadrável na primeira parte do n.º 3 do art. 114.º, nos casos em que a retenção na fonte não é feita a título definitivo, mas sim por conta do imposto devido a final, como sucede, por exemplo, nas situações previstas no art. 98.º do CIRS (() «Estabelece-se neste artigo o seguinte:
Nos casos previstos nos artigos 99.º a 101.º e noutros estabelecidos na lei, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigadas, no acto do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respectivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses actos ocorrem».).
No caso do IVA, há obrigação de os sujeitos passivos procederem à sua liquidação e adicionarem o valor do imposto liquidado ao valor das mercadorias ou prestação de serviços, incluindo-o na factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços (arts. 35.º e 36.º, n.º 1, do CIVA).
Nas situações em que não se está perante um acto isolado (como sucede no caso em apreço) o art. 26.º, n.º 1, do CIVA impõe a de entrega do montante do imposto apurado (o «imposto exigível») no momento da apresentação das declarações a que se refere o art. 40.º do mesmo Código (() «O art. 26.º, n.º 1, do CIVA, na redacção vigente em 2004, quando ocorreram os factos dos autos, estabelecia o seguinte:
Sem prejuízo do disposto no regime especial referido nos artigos 60º e seguintes, os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 25.º e 71.º, na Direcção de Serviços de Cobrança do Imposto sobre o Valor Acrescentado, simultaneamente com as declarações a que se refere o artigo 40.º, ou noutros locais de cobrança legalmente autorizados».), independentemente de ter sido efectuado pelos adquirentes de bens ou utilizadores de serviços o pagamento da quantia facturada. O regime do art. 71.º, n.ºs 8 e 9, relativamente à possibilidade de dedução de imposto respeitante a créditos incobráveis ou de pagamento retardado confirma que a obrigação de pagamento do imposto pelo sujeito passivo não depende de ter sido paga a quantia liquidada pelo adquirente de bens ou utilizador de serviços. Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (arts. 19.º a 25.º do CIVA).
Poderão, no entanto, ver-se no âmbito do IVA situações de dedução do imposto pelo sujeito passivo, no sentido literal atrás referido, nos casos em que o imposto liquidado nas facturas é recebido pelo sujeito passivo daqueles a quem vende mercadorias ou presta serviços: neste caso, ao total recebido, o sujeito passivo tem de abater o imposto pago e entregá-lo à administração tributária, nos casos em que o saldo é favorável a esta, no período em causa.
Mas, esta situação só pode ocorrer nos casos em que o sujeito passivo tenha recebido efectivamente o imposto daqueles a quem vendeu mercadorias ou prestou serviços, o que não sucedeu no caso em apreço.
No entanto, as situações deste tipo, em que o sujeito passivo receber de terceiros IVA que liquidou e não o entregar à administração tributária, havendo obrigação de entrega por se comprovar que há um saldo positivo a favor desta no confronto da globalidade do imposto liquidado e pago pelo sujeito passivo em determinado período, são especialmente previstas não nos n.ºs 1 e 2, mas sim na parte final do n.º 3 do art. 114.º do RGIT, que, refere a prestação tributária «que tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar nos casos em que a lei o preveja» (() «Neste sentido, relativamente ao art. 29.º do RJIFNA, cujos três primeiros números têm teor idêntico aos correspondentes números do art. 114.º do RGIT, pode ver-se F. PINTO FERNANDES e J. CARDOSO DOS SANTOS, Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras Anotado e Comentado, páginas 174-175.
Interpretando também com este sentido as expressões idênticas que constavam do art. 24.º, n.ºs 1 e 2, do RJIFNA, respeitante ao crime de abuso de confiança fiscal, podem ver-se ALFREDO JOSÉ DE SOUSA Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3.ª edição, páginas 108-109, e NUNO de SÁ GOMES, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, 2000, páginas 261-262.
No mesmo sentido, a propósito das expressões idênticas utilizadas no art. 105.º do RGIT, pode ver-se SUSANA AIRES DE SOUSA, Os Crimes Fiscais, página 124».).
Porém, também aqui, como resulta do texto deste n.º 3 do art. 114.º do RGIT, apenas é sancionado como contra-ordenação o comportamento de quem tem obrigação de liquidar na sequência de recebimento da quantia do imposto (() «Excluindo as situações de autoliquidação em que não há recebimento do imposto do âmbito da expressão idêntica que constava do art. 24.º, n.º 2, do RJIFNA, pode ver-se ALFREDO JOSÉ DE SOUSA Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3.ª edição, páginas 109-110».).
A conduta de quem não entrega IVA liquidado nas facturas mas não recebido dos adquirentes das mercadorias ou utilizadores de serviços estava expressamente punida no art. 95.º do CIVA, em que se previa como transgressão «a falta de entrega ou a entrega fora dos prazos estabelecidos de todo ou parte do imposto devido».
Porém, este art. 95.º, inserido no Capítulo VIII do CIVA, está expressamente revogado pela alínea c) do art. 2.º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Por outro lado, as referências à «prestação tributária que nos termos da lei deduziu» e à «prestação tributária deduzida nos termos da lei», que se utilizam no art. 114.º do RGIT, têm um evidente alcance restritivo em relação à expressão «imposto devido», que era utilizada no referido art. 95.º do CIVA, pois as primeiras apenas abrangem situações em que o sujeito passivo procede à dedução do imposto, subtraindo-a de uma quantia global».

Assim, não estando demonstrado nos autos que a Arguida tenha recebido o imposto em causa antes do termo do prazo para a sua entrega à AT da declaração periódica, está afastada a possibilidade de preenchimento da hipótese do art. 114.º, n.º 2, do RGIT (que se reporta à conduta prevista no n.º 1 do mesmo artigo) (() O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a decidir neste sentido, sendo exemplos mais recentes os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário, ainda não publicados no jornal oficial:
de 18 de Novembro de 2009, proferido no processo com o n.º 539/09, com texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/176fe58578e2b8898025767a004ea5bf?OpenDocument;
de 25 de Novembro de 2009, proferido no processo com o n.º 624/09, com texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/161eefce0d4104ad8025768100420df0?OpenDocument;
de 2 de Dezembro de 2009, proferido no processo com o n.º 887/09, com texto integral disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6c07c6185d7e7e238025768d005b487a?OpenDocument. ).
Acresce que, como salientou já este Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão de 28 de Janeiro de 2010, proferido no processo com o n.º 1163/06.7 BEPRT, «foi para abranger no âmbito da punição prevista na norma do artigo 114º as situações em que em que o sujeito passivo de IVA não entrega o imposto devido que tenha sido liquidado, que se procedeu à alteração do nº 5 do art. 114º do RGIT através do artigo 113º da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro inaplicável, no entanto, aos factos aqui em apreço, o que não deixa de constituir o reconhecimento, por parte do legislador, de que, anteriormente, aquela conduta (não entrega do IVA liquidado) não era objecto de punição contra-ordenacional».
Por tudo o que ficou dito, o recurso não merece provimento.

2.2.4 CONCLUSÕES
Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:
I - Em processo contra-ordenacional e no que respeita à verificação do preenchimento dos elementos típicos da infracção nunca pode falar-se em excesso de pronúncia pois o conhecimento dessa questão sempre se impõe ao juiz ao abrigo dos princípios da verdade material e da investigação, ainda que os sujeitos processuais nada aleguem a esse propósito.
II - Não podem dar-se como provados factos que, respeitando aos elementos típicos da infracção, não constam da decisão administrativa de aplicação da coima.
III - O facto tipificado como contra-ordenação no n.º 2 do artigo 114.º do RGIT reporta-se à tipificação constante do n.º 1 do mesmo preceito legal, sendo seu pressuposto essencial a prévia dedução da prestação tributária não entregue.
IV - Neste sentido, a falta de entrega da prestação tributária de IVA não preenche o tipo legal de contra-ordenação acima referido, uma vez que no IVA a prestação a entregar não é a prestação tributária deduzida, mas sim a diferença positiva entre o imposto suportado pelo sujeito passivo e o imposto a cuja dedução tem direito.

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3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.

Sem custas, por delas estar isento o Recorrente.


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Porto, 11 de Fevereiro de 2010


(Francisco Rothes)

(Fonseca Carvalho)

(Moisés Rodrigues)