Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00633/15.0BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/24/2023
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM; NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO MATERIAL CONTROVERTIDA;
ACÇÕES QUE DIGAM RESPEITO A RELAÇÕES CONTRATUAIS E DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DEVEM SER INTERPOSTAS CONTRA O ESTADO, REPRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, E NÃO CONTRA OS MINISTÉRIOS;
FALTA DE PERSONALIDADE JUDICIÁRIA DO RÉU/MINISTÉRIO;
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
AA propôs ação administrativa contra a Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), pedindo a sua condenação no pagamento de EUR 25.766,25 a título de danos patrimoniais e de EUR 4.000,00 a título de danos não patrimoniais por si sofridos, com base em responsabilidade civil por ato ilícito.
Por sentença proferida pelo TAF de Mirandela foi julgada parcialmente procedente a acção e
a) condenado o Réu a pagar à Autora a quantia de EUR 25.766,25 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e seis euros e vinte e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais;
b) condenado o Réu a pagar à Autora a quantia de EUR 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais;
c) Absolvido o Réu do demais peticionado.

Desta vem interposto recurso pelo Réu.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:
Vem o presente recurso interposto:
a) do Despacho Saneador de 22-12-2016, por incorrer no vício de omissão de pronúncia como resulta do disposto na alínea d) do n° 1 do artigo 615° do CPC (regime aplicável aos despachos por força do n° 3, do artigo 613° do mesmo diploma legal), o que conduz à nulidade do mesmo;
b) bem como, da Sentença proferida em 19-08-2022, pois como ato subsequente, encontra-se ferida dos mesmos vícios já apontados ao Despacho recorrido, devendo a mesma ser anulada.

B. O Tribunal "a quo" no Despacho Saneador, de que agora se recorre, fez tábua rasa quanto às questões prévias de que cumpria conhecer oficiosamente e que obstam ao conhecimento da causa, ao ter ignorado a natureza jurídica da relação material controvertida, a qual conduz, necessariamente, à falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, pelo que, e como consequência da falta deste pressuposto processual, deveria ter sido o Réu DGAV/Ministério absolvido da instância.

C. Pois resulta, quer a doutrina, quer a jurisprudência, são unânimes no sentido de que as ações administrativas comuns que digam respeito a relações contratuais e de responsabilidade civil extracontratual devem ser interpostas contra o Estado, representado pelo Ministério Público, e não contra os ministérios.

D. Por tudo quanto se disse, verifica-se, no presente caso, a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério, pelo que estamos perante uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e assim sendo, mesmo não tendo tal exceção sido invocada por nenhuma das partes, não podia o Tribunal "a quo", face aos elementos constantes dos autos, deixar de apreciar oficiosamente a falta de personalidade judiciária de alguma das partes.

E. E assim sendo, verifica-se que o Despacho Saneador recorrido incorre no vício de omissão de pronúncia, como resulta do disposto na alínea d) do n° 1 do artigo 615° do CPC (regime aplicável aos despachos por força do n° 3, do artigo 613° do mesmo diploma legal), o que conduz à nulidade do mesmo, devendo ser substituído por outra decisão que declare a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, e em consequência ser o mesmo absolvido da instância.

F. Do anteriormente exposto, resulta evidente, por si só, a razão pela qual se assume forçosa a conclusão de que a Sentença recorrida, como ato subsequente, se encontra ferida dos mesmos vícios já apontados ao Despacho recorrido.

G. Desde logo porque, conforme dispõe o artigo 195° n° 2 do CPC, "Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente...", e padecendo o Despacho Saneador, como se demonstrou, do vício de omissão de pronúncia que conduz à sua nulidade, a Sentença, como ato subsequente e dando cobertura àquele vício, também ela própria, por esse efeito, acaba por ficar contaminada pelo referido vício.

H. Resultando assim, que em consequência da procedência dos vícios de que padece o Despacho saneador, todo o processado subsequente àquele despacho deverá ser anulado, inclusive a Sentença final.

Termos em que, e nos mais de Direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado e fundado e, em consequência, ser,
i) Declarada a nulidade do Despacho Saneador, devendo o mesmo ser substituído por outra decisão que declare a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, e em consequência ser o mesmo absolvido da instância.
ii) Em consequência da procedência dos vícios de que padece o Despacho saneador, todo o processado subsequente àquele despacho deverá ser anulado, inclusive a Sentença final.

Assim se fará Justiça.
Não foram juntas contra-alegações.
O MP, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. A Autora teve como profissão viveirista – produtor/fornecedor de materiais de propagação vitícola -, licenciada pela Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural - DGADR, com o nº de registo ...85, entre os anos de 2010 e 2014, tendo cessado a sua atividade em 2014-07-01.
2. Para o exercício da sua atividade, a Autora instalou um viveiro de propagação de plantas-mãe de videiras “vinha brava” para a obtenção de varas.
3. Para cumprir a sua atividade, a Autora procedia ao corte das varas, em pequenas estacas para posteriormente serem enraizadas, cujo tamanho podia variar entre 40 cm e/ou 1,20 m.
4. Estas estacas teriam como destino a venda a um único viveirista alemão, BB, que pretendia adquirir toda a produção de estacas.
5. A Autora emitiu ao referido viveirista as seguintes faturas: - Fatura n.º 4, de 18.01.2013, no valor global de 17.212,50;
- Fatura n.°..., de 23.01.2014, no valor de 16.907,10 €;
- Fatura n.°..., de 23.01.2014, no valor de 5.560,65 €.
6. De acordo com o “Manual de Procedimentos para a Certificação de Material de Propagação de Videira” datado de 2014 e emitido pelo Ministério da Agricultura e do Mar, a época de emissão das etiquetas para “estacas para enxertar ou enraizar e garfos” ocorre entre os o dia 01 de novembro e 30 de abril.
7. O corte das varas tem de ser efetuado no momento em que as mesmas já estão prontas a ser cortadas e de acordo com a pretensão estipulada pelo fornecedor.
8. Nos anos de 2012 e 2013, a Autora trabalhou o seu viveiro para poder proceder ao corte das estacas, embalá-las e exportar as mesmas para o seu comprador alemão em meados de dezembro.
9. A Autora requereu no ano de 2012 e no ano de 2013 a emissão das etiquetas de certificação no início do mês de novembro.
10. Quando à colheira de 2012, a decisão favorável de aprovação por parte da DGAV ocorreu em 08.01.2013.
11. Quanto à colheita de 2013, a decisão favorável de aprovação por parte da DGAV ocorreu em 14.01.2014.
12. Após o pedido, por parte da Autora, de etiquetas à VITICERT, estas foram disponibilizadas a 12.01.2013 e a 17.01.2014.
13. O tempo decorrido entre o tempo de colheita e o armazenamento das estacas à espera da emissão das etiquetas originou uma infeção fúngica nas estacas colhidas para enxertar ou enraizar.
14. As varas ficaram inutilizadas para exportação.
15. A Autora emitiu as seguintes Notas de Crédito ao fornecedor:
- Nota de Crédito n.° 1, emitida em 10.01.2014, no valor de 3.298,50 €, relativa à Fatura n.° 4, de 18.01.2013, no valor de 17.212,50 €;
- Nota de Crédito n.º 2, emitida em 24.04.2014, no valor de 16.907,10 €, relativa à Fatura n.º..., de 23.01.2014, no valor de 16.907,10 €;
- Nota de Crédito n.° 3, emitida em 24.04.2014, no valor de 5.560,65 €, relativa à Fatura n.º..., de 23.01.2014, no valor de 5.560,65 €.
16. As atividades e as circunstâncias do viveiro da propriedade da Autora eram do conhecimento da Direção Regional da Agricultura e Pescas do Norte e da DGAV, entidades que foram instadas para a urgência na emissão dos certificados e acompanharam o desenvolvimento da atividade da Autora.
17. No 2014, os serviços da Ré comunicaram todas as decisões relativas a estacaria (porta enxertos) à Viticert apenas em meados de janeiro, com vista a garantir a equidade de acesso ao pedido de etiquetas por parte de todos os viveiristas.
18. A Autora viu-se obrigada a cessar a atividade profissional em virtude das dificuldades de certificação que vêm descritas, com os inerentes prejuízos para a sua vida pessoal e profissional.
19. As vinhas-mãe da Autora não foram inspecionadas pela Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte (DRAPN) desde 2010, tendo-se mantido nessa situação até 2013.
20. Por ofício de 28.12.2012, a Ré deu conhecimento à Viticert de que na região de Trás-os-Montes, do total das parcelas inscritas (163 parcelas de vinhas mãe de garfos e 30 parcelas de vinha mãe de porta enxertos), 105 não foram inspecionadas nos últimos 3 anos, dada a escassez de recursos humanos da DRAPN.
21. Por ofício de 28.12.2012, entre outros, a Ré deu conhecimento à DRAPN de que na região de Trás-os-Montes, do total das parcelas inscritas (163 parcelas de vinhas mãe de garfos e 30 parcelas de vinha mãe de porta enxertos), 105 não foram inspecionadas nos últimos 3 anos, alertando, entre outros, para o potencial risco de dispersão de doenças da videira, em particular da Flavescência Dourada.
DE DIREITO
Atente-se no discurso fundamentador da sentença:
Como vimos, a Autora pretende responsabilizar o Réu pelos danos resultantes da aprovação tardia das etiquetas de certificação de que necessitava para a concretização do negócio em que havia investido, no âmbito do desenvolvimento da atividade de viveirista.
Segundo a Autora, a ilicitude traduz-se na violação dos princípios gerais aplicáveis, traduzida no desrespeito dos prazos razoáveis para a emissão de decisão. Por outro lado, o Réu aplicou critérios que não têm base legal, como seja a equidade no tratamento de situações desiguais, uma vez que a Autora pretendia proceder à exportação do produto.
Em sentido contrário, invoca o Réu que a Autora cortou as varas por sua conta e risco e que não garantiu um correto armazenamento dos materiais, conforme imposto pelo art. 18.º do Decreto-lei 194/2006, de 27 de setembro, de modo a evitar uma infeção fúngica.
Por outro lado, não tendo sido realizadas as inspeções dos materiais vitícolas, a Ré não poderia autorizar a emissão das etiquetas. No entanto, apesar da ausência de tais relatórios, para não pôr em causa a atividade da Autora, acabou por certificar, considerando o risco mínimo da presença do organismo da Flavescência Dourada.
Finalmente, sustenta que inexiste qualquer prazo legal que tenha sido por si incumprido.
Vejamos então.
Nos termos do art. 7.º, n.º 1, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (RRCEEEP), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, “O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
São, assim, à luz do preceito contido no art. 7.º, n.º 1, do RRCEEEP, os seguintes os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil:
(1) o facto, que se traduz num ato de conteúdo positivo ou negativo de natureza voluntária, praticado por um órgão ou agente no exercício das suas funções e por causa desse exercício;
(2) a ilicitude, que se traduz na ofensa de direitos de terceiros ou de disposições legais destinadas a proteger os seus interesses;
(3) a culpa, que se traduz num nexo de imputação ético-jurídica do facto ao agente através de um juízo de censura;
(4) um dano, que se traduz numa lesão de ordem patrimonial ou moral;
(5) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada.
*
Importa, antes do mais, aferir se é possível concluir pela existência de um facto ilícito culposo por parte do Réu face à factualidade apurada nos autos.
Prevê o art. 22.º, n.ºs 1 a 4, do Decreto-lei n.º 194/2006, de 27 de setembro, que regula a produção, controlo, certificação e comercialização de materiais de propagação vegetativa de videira, na versão à data em vigor, o seguinte:
“1 - As inspeções às culturas e aos materiais vitícolas podem, caso o respetivo produtor ou o seu representante assim o declarem, ser realizadas na sua presença.
2 - As inspeções referidas no número anterior são realizadas:
a) Para a categoria inicial, por inspetores oficiais;
b) Para as categorias base, certificado e standard, por inspetores oficiais ou por técnicos autorizados.
3 - O inspetor oficial ou o técnico autorizado, na sequência das inspecções efetuadas, podem determinar a execução de trabalhos, nomeadamente destruição de materiais vitícolas, depurações, tratamentos fitossanitários, e outros, nas culturas ou nos materiais vitícolas inspecionados.
4 - Conforme o resultado que se verificar no termo das inspeções realizadas às culturas e aos materiais vitícolas, estes são:
a) Aprovados para certificação;
b) Desclassificados para categoria inferior, desde que a razão da desclassificação não seja de ordem fitossanitária por aplicação da legislação a que se refere o artigo 27.º;
c) Excluídos da certificação.”
É certo que, conforme alegado pelo Réu, inexiste um prazo legal específico para a tomada de decisão de aprovação para certificação dos materiais vitícolas, para além do prazo legal transversal de 90 dias para a decisão final de um procedimento previsto no art. 58.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo, na versão à data em vigor.
No caso dos autos, quer no ano de 2012, quer no ano de 2013, a Autora viu a sua pretensão de aprovação das varas aprovada pela DGAV dentro de cerca de dois meses e meio após a formulação do pedido de aprovação (cfr. pontos 9, 10 e 11 do probatório).
Sucede, porém, que está em causa uma atividade que, na prática, não se compadece com um tal período de espera por aprovação, ainda que tal não se encontre expressamente regulado, importando assim convocar os princípios gerais do direito administrativo.
Na verdade, resultou demonstrado que a Autora iniciou a atividade de produção de estacas em 2010, instalando um viveiro de propagação de plantas-mãe de videiras, com vista à importação das varas em meados dezembro, para um determinado cliente alemão (cfr. pontos 2, 3, 4, 7 e 8 do probatório).
As circunstâncias do negócio da Autora eram do pleno conhecimento das autoridades competentes, que acompanharam de perto o desenvolvimento da atividade da Autora e que, instadas para a urgência da certificação, nada fizeram (cfr. ponto 16 do probatório), tendo as estacas acabado por ficar inutilizadas para exportação em virtude da espera da certificação, por dois anos consecutivos (cfr. pontos 13 e 14 do probatório).
Pelo contrário, resultou da prova produzida nos autos que os serviços do Réu decidiram comunicar todas as decisões de aprovação solicitadas ao mesmo tempo, independentemente da data em que foram requeridas, por uma questão de equidade perante os produtores (cfr. ponto 17 do probatório), o que necessariamente obrigou os produtores mais expeditos - como foi o caso da Autora, que submeteu os seus pedidos logo no início do mês de novembro, no início da época de certificação (cfr. pontos 6 e 9 do probatório) -, a aguardarem por um período mais longo.
Ora, desde logo, uma tal opção carece por completo de base legal, sendo certo que os órgãos da Administração Pública se encontram subordinados à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins (cfr. art. 3.º, n.º 1, do CPA).
Por outro lado, ainda que inexistisse um prazo específico de decisão, afigura-se constituir uma flagrante violação dos princípios da boa administração, da justiça e da razoabilidade e mesmo do princípio da proporcionalidade (cfr. arts. 5.º, 8.º, 7.º e 11.º do CPA) que a Administração, através da inércia no exercício da sua competência, obstaculize por completo o desenvolvimento de uma atividade económica por parte de um particular, quando este legalmente depende dessa mesma atuação, tendo a Administração pleno conhecimento de tais circunstâncias.
Foi isso que sucedeu no caso dos autos, em que a Autora, por dois anos consecutivos, viu ocorrer a inutilização do produto da sua cultura, em virtude da espera pela decisão de aprovação da DGAV, apesar de ter sido diligente na apresentação do seu pedido de certificação (cfr. pontos 9, 13, 14 e 16 do probatório).
A tal entendimento não obsta, de forma alguma, a omissão de inspeção por parte da DRAPN (cfr. ponto 19 do probatório), conforme invocado pelo Réu. É que, se a realização de uma tal inspeção, ainda que legalmente prevista (cfr. arts. 19.º e ss do Decreto-lei n.º 194/2006), não depende da Autora, mas depende tão somente dos serviços do Réu, mais concretamente da DRAPN (cfr. pontos 20 e 21 do probatório), a respetiva omissão não pode ser, de forma alguma, invocada com vista à desresponsabilização do Réu pela demora na aprovação da certificação do produto da Autora.
Salienta-se ainda que o Réu não logrou demonstrar que a Autora não garantiu o correto armazenamento dos materiais (cfr. ponto 1 do elenco de factos não provados), pelo que também improcede necessariamente a sua alegação no sentido de que o não cumprimento dos requisitos do art. 18.º do Decreto-lei 194/2006, de 27 de setembro é da sua responsabilidade em virtude de tais circunstâncias.
Ou seja, os serviços do Réu não agiram com a diligência devida e exigível perante as circunstâncias da atividade em questão, incorrendo na violação dos princípios da boa administração, da justiça e da razoabilidade e mesmo do princípio da proporcionalidade (cfr. arts. 5.º, 8.º, 7.º e 11.º do CPA), ao impedir a Autora, enquanto agente económico, de desenvolver a sua atividade nos termos e tempos em que a mesma se impunha face à natureza das coisas e considerando a legislação aplicável.
Há que, concluir, assim, pela verificação de um facto ilícito culposo por banda do Réu, gerador de responsabilidade civil.
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Por outro lado, a Autora logrou provar nos presentes Autos, não apenas a ocorrência de danos, como também a existência de um nexo de causalidade entre a conduta ilícita e tais danos.
Nos termos do art. 3.º, n.º 1, do RRCEEEP, quem esteja obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A existência de um nexo de causalidade deve ser apurada segundo a teoria da causalidade adequada (cfr. art. 563.º do CC, aplicável ex vi art. 3.º, n.º 3, do RRCEEEP). Nos termos deste preceito, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Ora, apurou-se nos presentes autos que a omissão de diligência na aprovação das varas da Autora por parte do Réu foi a causa da respetiva inutilização por força da infeção fúngica que a espera originou, bem como que esta atuação por parte do Réu por dois anos consecutivos levou a Autora a desistir da prossecução da atividade económica a que se tinha proposto (cfr. pontos 13, 14, 15 e 18 do probatório).
Assim sendo e face à verificação dos respetivos pressupostos, conclui-se pela existência de responsabilidade civil do Réu, devendo ser a Autora ressarcido dos danos sofridos.
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Importa agora apurar os danos que deverão ser ressarcidos, nos termos dos arts. 562.º, 563.º e 564.º do CC, aplicáveis por remissão do art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 67/2007.
Desde logo, a Autora pretende ser indemnizada pelos danos patrimoniais que sofreu, por se ter visto obrigada a emitir notas de crédito ao comprador dos seu produtos relativamente ao material inutilizado que havia sido já faturado, no valor de EUR 3.298,50, EUR 16.907,10 e EUR 5.560,65 (cfr. pontos 5 e 15 do probatório).
A recondução de tais danos a danos indemnizáveis, em virtude do dever legal de reconstituição da situação anterior à lesão não suscita qualquer dúvida.
Na verdade, tais danos correspondem ao conceito de dano “real” ou “concreto” que o art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007 tem claramente em vista (cfr. PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA – Código Civil Anotado. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, Volume I, pp. 577, em anotação ao art. 562.º).
Procede, pois, a pretensão indemnizatória da Autora quanto aos danos peticionados a título de danos emergentes, no valor global de EUR 25.766,25.
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A Autora pede ainda a condenação do Réu ao pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, no valor de EUR 4.000,00.
De acordo com o art. 496.º, n.º 1, do CC, “Na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, devendo o montante de tais danos ser fixado equitativamente pelo tribunal (art. 496.º, n.º 2, do CC).
Recorrendo às doutas palavras do Supremo Tribunal Administrativo, “Embora a indemnização por danos morais seja apenas uma compensação, por o dano não ser mensurável, não deve ser meramente simbólica, mas de montante com poder compensatório que o Tribunal aproxime da intensidade da dor sofrida.” (Ac. do STA de 01.04.1993, proc. n.º 030675, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, veja-se ainda, entre vários outros, vários dos quais aí indicados, o Ac. do STA de 25.09.2007, proc. n.º 0142/07, também disponível em www.dgsi.pt).
Para fixar esta indemnização é essencial que, “como vem sendo entendido pelos nossos tribunais superiores, e com vista ao cumprimento do disposto no artº 496º, do CC, a indemnização seja fixada em montante que contribua para alcançar uma efectiva possibilidade compensatória, sendo portanto significativa, isto por um lado, mas, por outro, importa que seja também justificada e equilibrada, não podendo de todo contribuir para um enriquecimento abusivo e imoral do lesado” (Ac. do TRG de 07.05.2013, proc. n.º 3016/10.5TBBRG.G1, in www.dgsi.pt).
Analisando-se a situação dos autos, conclui-se que os danos descritos são danos que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito.
Na verdade, a Autora viu-se obrigada a cessar a atividade profissional em virtude das dificuldades de certificação com que se deparou, o que lhe causou prejuízos na sua vida pessoal e profissional, com os inerentes e presumíveis danos morais (cfr. ponto 18 do probatório). Está em causa uma alteração de vida e uma frustração de um investimento material e pessoal, bem como das inerentes expectativas, cujas consequências morais serão, necessária e naturalmente, de relevo.
Assente que está ser a gravidade dos danos geradora de tutela, importa ter ainda em consideração que, para a fixação do montante devido, o tribunal deverá ter em atenção ainda o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, nos termos conjugados do art. 496.º, n.º 3, e 494.º do CC.
Quanto ao grau de culpabilidade, considera-se que a ilicitude imputada ao Réu merece uma censura relativamente elevada, face ao conhecimento de que dispunha da situação da Autora, nos termos que vêm expostos.
Quanto à situação económica das partes, nenhum elemento resulta dos autos que imponha a respetiva ponderação, a qual apenas releva em situações de verdadeira desproporção (cfr., neste sentido, o Ac. do TRL de 10.11.2016, proc. n.º 23592/11.4T2SNT.L1-2, in www.dgsi.pt).
Contudo, importa ainda considerar que os danos morais sofridos pela Autora não foram objeto de densificação e concretização da sua banda, motivo pelo qual apenas podem ser considerados num grau mínimo presumível.
Assim, este tribunal considera equitativa a atribuição de uma compensação no valor de 2.000,00 EUR a título de danos não patrimoniais.
X
É objecto de recurso o Despacho Saneador, proferido em 21/12/2016, por incorrer no vício de omissão de pronúncia como resulta do disposto na alínea d) do n.° 1 do artigo 615.° do CPC (regime aplicável aos despachos por força do n.° 3, do artigo 613.° do mesmo diploma legal), o que conduz à nulidade do mesmo, bem como, a Sentença proferida em 19/08/2022, pois como ato subsequente, encontra-se ferida do mesmo vício já apontado ao Despacho recorrido, devendo a mesma ser anulada.
Antes, porém, de entrarmos na análise das questões jurídicas suscitadas no âmbito do presente recurso jurisdicional, importa recordar:
1. A Autora no processo mencionado em epígrafe, interpôs uma ação administrativa, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, pedindo a condenação do Réu (DGAV) no pagamento da quantia de €25.766.25, a título de danos patrimoniais, e €4000 a título de danos não patrimoniais, pela demora na autorização da emissão de etiquetas, no âmbito do Decreto-Lei n.° 194/2006, de 27 de setembro.
2. Com a presente ação, a Autora pretende que o Réu seja condenado a pagar-lhe uma indemnização decorrente da aplicação da Lei n.° 67/2007, de 31 de dezembro, que estabelece o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.
3. Em sede de contestação o Réu pugnou pela improcedência da ação, invocando a inexistência de qualquer responsabilidade civil da sua parte.
4. Pelo Despacho Saneador, proferido em 21/12/2016, o tribunal identificou o objeto do litígio e os temas de prova.
5. A audiência de julgamento realizou-se em duas sessões nos dias 18-12-2019 e 20-02-2020.
6. Em 19-08-2022, foi proferida a Sentença que, no seu segmento decisório, determinou:
"Em face do exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação, e, consequentemente:
a) Condeno o Réu a pagar à Autora a quantia de EUR 25.766,25 (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e seis euros e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais;
b) Condeno o Réu a pagar à Autora a quantia de EUR 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais;
c) Absolvo o Réu do demais peticionado.».
Dos fundamentos do recurso -
A - Do Despacho Saneador, proferido em 22/12/2016 -
Da exceção de falta de personalidade e de ilegitimidade passiva do Réu DGAV/Ministério -
Pese embora na sua contestação, o Réu não tenha invocado a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, a mesma pode ser deduzida posteriormente, como resulta do disposto no n.° 2 do artigo 573.° do CPC, nomeadamente em sede de recurso, como é caso.
O artigo 595.° do CPC, sob a epígrafe «Despacho saneador» preceitua o seguinte: «1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
2 - O despacho saneador é logo ditado para a ata; quando, porém, a complexidade das questões a resolver o exija, o juiz pode excecionalmente proferi-lo por escrito, suspendendo-se a audiência prévia e fixando-se logo data para a sua continuação, se for caso disso.»
Como se pode verificar da leitura do despacho saneador, o tribunal a quo não conheceu oficiosamente da exceção dilatória, como lhe competia, pelo que o referido despacho incorre no vício de omissão de pronúncia, como resulta do disposto na alínea d) do n.° 1 do artigo 615.° do CPC (regime aplicável aos despachos por força do disposto no n.° 3 do artigo 613.° do mesmo diploma legal), o que conduz à nulidade do mesmo.
No despacho saneador, o Tribunal a quo não conheceu as questões prévias de que cumpria conhecer oficiosamente e que obstam ao conhecimento da causa, ao ter ignorado a natureza jurídica da relação material controvertida, a qual conduz, necessariamente, à falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, pelo que, e como consequência da falta deste pressuposto processual, deveria ter sido o Réu DGAV/Ministério absolvido da instância. Pois em sede de Processo Administrativo é o artigo 10°, n° 1, do CPTA, que nos fornece um critério para se aferir da legitimidade passiva: "Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida...".
Ora a verificação do pressuposto da legitimidade passiva (singular e direta), relativamente à entidade pública demandada, destina-se apenas a averiguar se essa entidade, e isto após ter sido verificada a sua personalidade e capacidade judiciárias, é a titular da relação controvertida, tal como apresentada pelo autor numa concreta ação e, como tal, está em condições de se ocupar do pedido, contradizendo-o.
E esta verificação prévia da sua personalidade e capacidade judiciárias tem de ser feita nos termos dos n°s 2 e 3 do artigo 8°-A, que nos remete para a lei processual civil (artigo 12° do CPC) e para os artigos 9° (legitimidade ativa) e 10° (legitimidade passiva), ambos do CPTA.
Como é bem de ver, são estes critérios que irão dar resposta a um problema, prévio ao da legitimidade, que é o de saber se determinado ente público pode ser parte em juízo.
E o seu n° 2 preceitua que "Nos processos intentados contra entidades públicas, parte demandada é a pessoa coletiva de direito público, salvo nos processos contra o Estado ou as Regiões Autónomas que se reportem à ação ou omissão de órgãos integrados nos respetivos ministérios ou secretarias regionais, em que parte demandada é o ministério ou ministérios, ou a secretaria ou secretarias regionais, a cujos órgãos sejam imputáveis os atos praticados ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos."
É pois, o n° 2 do artigo 10°, que atribui "legitimidade passiva" aos ministérios. Mas, na verdade, trata-se de uma verdadeira atribuição de "personalidade judiciária" a estes departamentos do Estado que, por carecerem de personalidade jurídica, não deteriam, à partida, a suscetibilidade de ser parte.
E só depois de verificada a personalidade (e capacidade) judiciária desse ente público, é que, por recurso ao critério/regra contido no n° 1, do artigo 10°, se pode apurar a sua legitimidade passiva (a sua posição de contraparte na relação controvertida, tal como configurada pelo autor).
Note-se que, a norma do n° 2 do artigo 10° apenas nos diz que, naquelas situações aí descritas, em vez de ser demandado o Estado (por força do princípio da coincidência), deve ser demandado o ministério, por a lei lhe atribuir, excecionalmente, personalidade judiciária.
Se não tivesse sido consagrada, no CPTA, esta extensão da personalidade judiciária, por força do princípio da coincidência (tem personalidade judiciária quem tem personalidade jurídica), em qualquer processo que fosse impugnado qualquer ato ou omissão da Administração Pública Direta, só o Estado, representado pelo Ministério Público (artigo 24° do CPC), é que poderia ser demandado. Ou seja, o disposto no n° 2 do artigo 10° do CPTA, é uma exceção à regra geral da representação do Estado pelo Ministério Público, prevista no artigo 24° do CPC, e apenas no que diz respeito aos processos administrativos, que afasta a obrigatoriedade de demandar a pessoa coletiva Estado, nos casos expressamente aí descritos.
Também neste sentido, apontava o disposto no artigo 11º, n.° 2, do CPTA, em vigor à data da presente ação, ao ressalvar, a propósito do patrocínio judiciário e representação em juízo, que o Estado, nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, é representado pelo Ministério Público.
Este entendimento é adoptado pela doutrina, dos quais se citam a título de exemplo Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos a propósito das normas atrás referidas:
"A norma parece dever ser objeto de uma interpretação restritiva mediante a qual será de entender que ela não abrange todo o tipo de processos intentados contra entidades públicas, mas apenas as situações que anteriormente correspondiam ao recurso contencioso de anulação e à impugnação de normas (agora enunciadas nos arts. 50.° e segs. e 72.°) e a que há a acrescentar agora as pretensões dirigidas à condenação na prática de ato devido e à declaração de ilegalidade por omissão de normas (arts. 66.° e 77.°), bem como as ações de reconhecimento de direitos e as ações de condenação à adoção ou abstenção de comportamentos, designadamente as que tenham em vista a condenação da Administração à não emissão de um ato administrativo (art. 37°, n° 2, als. a), b), c), d) e e)). Trata-se, portanto, dos processos que seguem a forma de ação administrativa especial e uma parcela dos processos que seguem a forma da ação administrativa comum. Nesse sentido aponta, desde logo, a letra da lei, que se reporta a processos que tenham por objeto "a ação ou omissão de uma entidade pública", determinando que a identificação do ministério que deverá ser demandado (no caso do Estado) deverá ser efetuada por referência aos órgãos a que "seja imputável o ato jurídico impugnado" ou sobre os quais "recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos" isto, em contraponto com a cláusula geral do n.° 1 do art. 10.°, que confere legitimidade passiva à outra parte na relação material controvertida, sugerindo que pretende referir-se, por regra, a pessoas jurídicas e não a entidades (como seria o caso dos ministérios) que beneficiem de uma mera extensão da personalidade judiciária, o que assume sempre um carácter excecional (cfr. art. 5°. do CPC).
No mesmo sentido concorre também o disposto no art. 11.° n.° 2 que, de harmonia com o art. 20.° do CPC, no âmbito do patrocínio judiciário, ressalva a possibilidade da representação do Estado (e não dos ministérios) pelo M.P., nos processos que tenham por objeto relações contratuais ou de responsabilidade.".
Assim, as ações administrativas comuns que digam respeito a relações contratuais e de responsabilidade civil extracontratual devem ser interpostas contra o Estado, representado pelo Ministério Público, e não contra os ministérios.
Por tudo quanto se disse, verifica-se, no presente caso, a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério, pelo que estamos perante uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, e assim sendo, mesmo não tendo tal exceção sido invocada por nenhuma das partes, não podia o Tribunal a quo, face aos elementos constantes dos autos, deixar de apreciar oficiosamente a falta de personalidade judiciária de alguma das partes.
Veja-se a este respeito o Acórdão do TCA Sul de 05/05/2022, Proc. 684/07.9BELSB):
«Numa ação administrativa comum para a efetivação de responsabilidade contratual ou extracontratual, instaurada contra um Ministério, a sanação da falta de personalidade judiciária não é possível e não sendo sanável, também não pode ser objeto de suprimento, sendo determinante da absolvição da instância, nos termos do preceituado no art° 278°, n°1, alínea c) do Código do Processo Civil. (...)
A falta de personalidade judiciária e de legitimidade passiva do Ministério correspondem a exceções dilatórias (arts. 576 n.° 2 e 577° alíneas c) e e) do CPC, as quais não são passíveis de suprimento ou sanação, atento o disposto nos arts. 6° n.° 2 e 278° n.° 1, alíneas c) e d) do CPC, sendo que nos termos do art.° 576° n.° 2 do CPC "As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal." Sumário
I – Numa ação administrativa comum para efetivação de responsabilidade contratual ou extracontratual, instaurada contra um Ministério, a sanação da falta de personalidade judiciária não é possível e não sendo sanável, também não pode ser objeto de suprimento, sendo determinante da absolvição da instância, nos termos do preceituado no artº 278º, nº 1, alínea c) do Código do Processo Civil.
II – Tal como já se entendia no âmbito do CPTA na sua versão original deve considerar-se, à luz do disposto nos atuais artigos 8º-A e 10º do CPTA revisto, que nas ações cujo objeto se circunscreve à efetivação da responsabilidade civil extracontratual é o Estado ou a pessoa coletiva pública em que se integrem os órgãos a que são imputáveis os atos e ações (ou omissões) justificadores do dever de indemnizar, que possui a legitimidade passiva e a correspondente personalidade judiciária para a ação, encontrando-se, nesse âmbito, os ministérios desprovidos de personalidade e de legitimidade passiva.
Assim, a ação tem de ser intentada contra a entidade a quem incumbe o reconhecimento do direito que o autor pretende fazer valer, sendo esta detentora de legitimidade passiva para ser demandada.
III - A falta de personalidade judiciária e de legitimidade passiva do Ministério correspondem a exceções dilatórias (arts. 576º n.º 2 e 577º alíneas c) e e) do CPC), as quais não são passíveis de suprimento ou sanação, atento o disposto nos arts. 6º n.º 2 e 278º n.º 1, alíneas c) e d) do CPC, sendo que nos termos do art. 576º n.º 2 do CPC “As exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.”
Entre as exceções dilatórias elencadas pelo CPC, encontram-se as da falta de personalidade judiciária e ilegitimidade passiva do réu (art. 577º alíneas c) e e) do CPC).

Entre as exceções dilatória elencadas pelo CPC, encontram-se as da falta de personalidade judiciária e ilegitimidade passiva do réu (art. 577° alíneas c) e e) do CPC).»
E como também já se pronunciou o Supremo Tribunal Administrativo, a personalidade judiciária, "constitui o pressuposto dos restantes pressupostos processuais relativos às partes, pois que faltando personalidade judiciária simplesmente não há parte e, bem assim, não há instância, mas apenas uma aparência de instância" (Acórdão de 03/03/2010, processo n° 0278/09).
E assim sendo verifica-se que o Despacho Saneador recorrido padece de vício de omissão de pronúncia, o que conduz à nulidade do mesmo.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/05/2022, Processo n° 3334/19.7T8STR.E1.S1: "I - Verifica-se o vício da omissão de pronúncia (art. 615.° n.° 1 d), do C.P.C.), quando o tribunal deixe de conhecer qualquer questão colocada pelas partes ou que seja do conhecimento oficioso.". Ou ainda o Acórdão da Relação do Porto de 09/07/2009, Proc. 1720/08.7TJPRT.P1: "...é nula, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na 1ª parte da al. d) do n° 1 do art. 668° do CPC, a sentença que não conhece oficiosamente das excepções dilatórias nos termos do disposto no art. 495° do CPC."
Neste sentido já se pronunciou o STA no seu Acórdão de 06/03/2008, Proc. 0437/07:
"Em primeiro lugar, deve referir-se que o facto de no despacho saneador proferido no tribunal a quo e já transitado em julgado, se ter referido, em termos genéricos, que se não verificavam outras excepções de conhecimento oficioso, não impede este Tribunal de apreciar a arguida excepção de ilegitimidade passiva, atento o disposto no art° 510°, n° 3 do CPC ex vi art° 72°, n° 1 da LPTA, uma vez que tal questão não pode considerar-se decidida pelo tribunal a quo, porque para tal não basta um mero juízo genérico negativo sobre os pressupostos processuais de conhecimento oficioso, era necessário uma pronúncia sobre a questão concreta que agora foi colocada, o que não acontece."
Do anteriormente dito, o Despacho Saneador, de que agora se recorre, incorre no vício de omissão de pronúncia, como resulta do disposto na alínea d) do n° 1 do artigo 615° do CPC (regime aplicável aos despachos por força do n° 3, do artigo 613° do mesmo diploma legal), o que conduz à nulidade do mesmo, tendo de ser substituído por outra decisão que declare a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, e em consequência ser o mesmo absolvido da instância.
Da Sentença, proferida em 19/08/2022 -
Do anteriormente exposto, resulta evidente, por si só, a razão pela qual se conclui que a Sentença recorrida, como ato subsequente, se encontra ferida dos mesmos vícios já apontados ao Despacho recorrido.
Desde logo porque, conforme dispõe o artigo 195° n° 2 do CPC, "Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente...", e padecendo o Despacho Saneador, como se disse, do vício de omissão de pronúncia que conduz à sua nulidade, a Sentença, como ato subsequente e dando cobertura àquele vício, também ela própria, por esse efeito, acaba por ficar contaminada pelo referido vício - V. neste sentido o Acórdão do STJ de 22/02/2017, Proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1:
"1. O incumprimento pelo tribunal da relação do disposto no art.° 655.° n.° 1 do CPC é suscetível de integrar a prática da nulidade processual prevista no art° 195.° n.° 1 do mesmo diploma legal, pois foi omitido um ato que a lei prescreve, que consistia em dar a possibilidade às partes de exercer o contraditório.
2. A intensidade desta violação é tal, uma vez que se trata de um princípio estruturante do direito processual civil, que a decisão final ao dar cobertura a esse desvio processual acaba por assumi-lo, ficando ela própria contaminada.". Ou o Acórdão deste TCAN de 07/05/2021, Proc. 00104/16.8BEMDL:
"Precise-se que as nulidades do processo podem determinar a nulidade da própria sentença (acórdão ou despacho), não porque esta padeça de um dos vícios intrínsecos a que alude o artigo 615°, n.° 1 do CPC, mas porque quando essas nulidades processuais ocorram antes da prolação da sentença (acórdão ou despacho), por decorrência do n.° 2 do artigo 195° do CPC, a procedência de uma nulidade processual poderá levar à nulidade dos atos subsequentes, incluindo da própria sentença (acórdão ou despacho) apesar desta não padecer de nenhum dos vícios a que alude o n.° 1 do artigo 615° do CPC."
E o mesmo se dirá da Sentença, pois ainda que o Tribunal a quo tenha feito uma mera apreciação genérica negativa sobre os pressupostos processuais de conhecimento oficioso, não se pode considerar que esta questão tenha sido decidida pelo tribunal, na medida em que este se limitou a referir o seguinte:
«(...) Ao abrigo do art. 10.°, n.° 4, do CPTA, considero a presente ação regularmente proposta contra o Ministério da Agricultura e Alimentação.
Assim, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se devidamente representadas.
Não se verificam outras nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra oficiosamente conhecer e obstem ao conhecimento do mérito da causa.». Conduzindo, assim, a verificação desse erro, inevitavelmente, à sua revogação e substituição por outra decisão que declare a procedência da exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Réu; em consequência, terá de ser determinada a anulação de todos os atos que foram praticados pelo Tribunal a quo desde a data da prolação do Despacho Saneador, bem como a Sentença de que agora se recorre.
Neste sentido cfr. ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 17/5/2018, no processo 710/15.8T8VLR:
"Nesta situação em que o recurso interposto da decisão interlocutória é decidido a favor do recorrente, como diz o Professor Miguel Teixeira de Sousa num post intitulado "Recurso de decisão interlocutória e suspensão do trânsito em julgado", publicado em 21 de Janeiro de 2016 no blogue do IPPC[7] (5), há que aplicar, por analogia, o disposto no artigo 195.°, n.° 2, Código de Processo Civil: "a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final". Ou o Acórdão deste TCAN de 17/03/2022, Proc. 01299/09.2BEVIS:
"Cumpre, pelo exposto:
Revogar o despacho recorrido, por erro de julgamento;
(…);
Nos termos do n° 2 do mesmo artigo 201°, aplicado por analogia, anular, todo o processado subsequente ao despacho revogado, inclusive a sentença, (…)".
Em suma, resulta assim, que em consequência da procedência dos vícios de que padece o Despacho saneador, todo o processado subsequente àquele despacho deverá ser anulado, inclusive a Sentença atrás transcrita.
DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, e, em consequência:
a) anula-se o Despacho Saneador, declara-se a falta de personalidade judiciária do Réu DGAV/Ministério para os presentes autos, e consequentemente, absolve-se o mesmo da instância;
b) Em consequência da procedência dos vícios de que padece o Despacho saneador, anula-se todo o processado subsequente àquele Despacho, inclusive a Sentença final.
Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.

Porto, 24/02/2023


Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro