Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:02454/04.7BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/03/2012
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IVA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
REPARAÇÃO DE GARANTIA
Sumário:1. As reparações efetuadas durante o período de garantia são consideradas prestações de serviços para os efeitos do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado se, não constituindo transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens, tiverem sido efetuadas a título oneroso e constituírem atividades com carácter económico;
2. A compensação, pelo fabricante, dos prejuízos suportados pelo distribuidor na reparação de defeitos de viaturas automóveis que àquele devam ser imputados é uma atribuição patrimonial que não tem subjacente nenhuma operação com substância económica;
3. Se os elementos colhidos pela Administração Tributária são insuficientes para aferir se as reparações efetuadas durante o período de garantia pelo distribuidor foram contratualizados entre concessionários, distribuidora e fabricante ou constituem mera compensação dos prejuízos suportados pelo distribuidor na reparação de defeitos das viaturas, a liquidação que neles se suporta padece de erro sobre a verificação dos pressupostos de facto da tributação.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:B..., S.A.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
1.1. B…, S.A., n.i.f. 5…, com sede indicada na Rua…, Vila Nova de Gaia, recorre da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a presente impugnação judicial das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.) e juros compensatórios dos períodos de 2000, 2001 e 2002 no valor total de € 1.823.997,79.
Recurso este que foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo.
1.2. Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou as respectivas alegações e formulou as conclusões que de seguida transcrevemos:
1. O presente recurso tem em vista obter a revogação da douta sentença proferida pela Meritíssima Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto no processo de impugnação n.º 2454/04.7BEPRT, do Juízo Liquidatário, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial que a ora recorrente deduziu contra as liquidações de IVA, nos valores de € 389.881,49, € 534.191,23 e de € 663.714,44, relativos aos anos de 2000, 2001 e 2002, respectivamente, e correspondentes juros compensatórios dos montantes de € 90.616,10, € 85.746,96 e € 59.847,57, tudo somando a quantia de € 1.823.997,79.
2. Com efeito:
3. A matéria de facto que a douta sentença recorrida deu como provada deve ser reformulada no sentido de eliminado o referido em d), uma vez que o que aí consta não é mais do que um juízo de valor efectuado pela Administração Tributária (AT) que qualifica, sob os pontos de vista de facto e de direito, a matéria em causa nos presentes autos, e não um facto que seja incontroverso e resulte do que consta dos autos.
4. Ao tempo de 2000, 2001 e 2002 a impugnante, ora recorrente, era distribuidora exclusiva em Portugal das viaturas automóveis da marca BMW, bem assim como das respectivas peças sobresselentes, distribuição essa que lhe foi concedida e se desenvolvia nos termos do respectivo Contrato de Distribuição que celebrou com a BMW AG.
5. Ao abrigo e nos termos daquele Contrato, a impugnante nomeava os denominados Concessionários, os quais tinham, entre outras, a obrigação de efectuar reparações aos veículos vendidos, durante o chamado período de garantia (reparações de garantia), nas quais aplicavam peças BMW e despendiam mão-de-obra, sendo que não recebiam quantia alguma do cliente proprietário da viatura, dado que para este a reparação era gratuita.
6. A impugnante reclamava à BMW AG as importâncias despendidas pelos Concessionários com as reparações de garantia, e depois de ser creditada pela BMW AG pelos valores que esta entendia serem devidos face às garantias, a impugnante, por sua vez, creditava os Concessionários por esses mesmos valores.
7. A douta sentença recorrida, tal como a AT, entende que “In casu, a impugnante e os seus concessionários prestaram um serviço que era da responsabilidade da BMW AG, que se concretizou nas reparações dos veículos dentro do prazo de garantia (reparações de garantia)”, e, assim concluiu que eram devidas as liquidações de IVA e juros compensatórios que foram, impugnadas.
8. Contudo, no entender da recorrente, não ocorreu qualquer prestação de serviços sujeita e tributável em IVA.
9. Efectivamente, do que se tratou foi do ressarcimento da BMW AG aos Concessionários, efectuado via impugnante, dos danos relativos a defeitos que se vieram a manifestar nas viaturas que a BMW AG vendeu à impugnante e esta, por seu lado, vendeu aos Concessionários.
10. Assim, os créditos efectuados pela BMW AG à recorrente representam a compensação, a indemnização ou reembolso de custos suportados pelos Concessionários, por força da obrigação de “Garantia de bom funcionamento” expressa no art. 921º do Código Civil e também decorrente do disposto nos arts. 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, pelo que tais créditos revestem a natureza de indemnização legal e contratual, devida pela reparação dos defeitos das viaturas (sublinhe-se que, não obstante, quer o art. 921º do Código Civil quer os arts. 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 67/2003 tenham sido invocados em 28 e 33 da petição da impugnação, a douta sentença recorrida nada disse sobre os mesmos).
11. Em todo o processo inerente às reparações de garantia, a recorrente limita-se a receber as respectivas reclamações dos Concessionários, a remetê-las à BMW AG, a receber desta os créditos que correspondem àquelas reparações e, finalmente, a creditar os Concessionários exactamente pelos mesmos valores.
12. Por isso do que verdadeiramente se trata é de meros movimentos financeiros, da BMW AG para a recorrente, e desta para os Concessionários, movimentos esses que não revestem qualquer carácter oneroso, de contrapartida ou correspectivo.
13. E muito menos de contrapartida que a impugnante, ora recorrente, haja obtido da BMW AG, uma vez que os valores dos créditos efectuados por esta são integralmente creditados pela recorrente aos Concessionários.
14. Todavia, diz a douta sentença recorrida:
“Para o que aqui interessa, e pese embora as reparações não tenham tido custos para os clientes finais (sendo gratuitas para aqueles), o certo é que aquelas reparações foram efectuadas ao abrigo de garantias e os custos em que os concessionários incorreram foram objecto de reclamação pela impugnante, junto da BMW AG e tiveram como contrapartida os créditos emitidos por esta empresa à impugnante”.
“Temos pois um débito por parte da impugnante à BMW AG e o crédito por parte da BMW AG à impugnante”.
“Assim, as reparações de garantias hão-de ter-se como prestações de serviços enquadradas no art. 1º, nº 1 alínea a) do CIVA, e deste modo competia à impugnante liquidar IVA, nada havendo a censurar nas liquidações efectuadas”.
15. Mas da matéria que consta dos factos dados como provados, bem assim como de tudo o que consta dos autos, não se pode dizer, como faz a Meritíssima Juiz, que “Temos pois um débito por parte da impugnante à BMW AG e o crédito por parte da BMW AG à impugnante”.
16. O que decorre dos autos, nomeadamente dos factos b), c), s), t) que ficaram provados, é que a impugnante reclamava à BMW AG os valores despendidos com as reparações de garantia, para que esta os aprovasse, e, em caso de aprovação, a BMW AG creditava a impugnante.
17. Por isso a douta sentença recorrida não podia ter concluído que houve “um débito por parte da impugnante à BMW AG”.
18. Sendo assim, não deve, com o devido respeito, ser aceite o entendimento da Meritíssima Juiz de que houve contrapartida, e, consequentemente, também não deve ser aceite a conclusão de que “as reparações de garantias hão-de ter-se como prestações de serviços enquadradas no art. 1º, nº 1 alínea a) do CIVA, e deste modo competia à impugnante liquidar IVA”.
19. O facto de as reparações de garantia terem como contrapartida os créditos emitidos pela BMW AG à ora recorrente, o que significa é apenas isso.
20. Porém, o que importa saber é se essa contrapartida representa ou decorre de negócio que a título oneroso haja sido realizado entre a impugnante, ora recorrente, e a BMW AG, que seja relevante para efeitos da sua qualificação como prestação de serviços à luz do disposto no Código do IVA.
21. Ora, o IVA é um imposto geral sobre o consumo, sendo que no elenco da sua incidência real ou objectiva constam as prestações de serviços, e não se descortina onde existe consumo nos movimentos financeiros, acima aludidos, efectuados, primeiro, da BMW AG para a impugnante, e, depois, da impugnante para os Concessionários.
22. Por outro lado, tais movimentos financeiros não representam, para a recorrente, qualquer vantagem, e constituem isso sim e apenas a compensação, a indemnização ou o reembolso da BMW AG aos Concessionários, aliás, previsto na lei (cfr. art. 921º do Código Civil e arts. 7º e 8º do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril), efectuado via impugnante, dos danos relativos a defeitos das viaturas que a BMW AG vendeu à impugnante e esta vendeu aos Concessionários, pelo que se manifesta a ausência de contrapartida que permitisse concluir pela existência de factos sujeitos e não isentos de IVA passíveis de ser qualificados como prestações de serviços, nos termos do art. 4º do correspondente Código, já que para essa qualificação seria absolutamente necessário que ocorresse a contrapartida, o mesmo é dizer, o carácter oneroso.
23. De resto e neste mesmo sentido, como a ora recorrente mencionou em 34 da petição da impugnação judicial mas ao qual a douta sentença recorrida não faz qualquer alusão, cite-se o seguinte que consta da alínea a) da Informação n.º 2681, Processo D 130, de 29 de Dezembro de 1987, da DSCA do SIVA:
a. “Tem vindo a ser entendido que não constitui operação tributável em IVA o fornecimento ou reparação de peças avariadas, quando o alienante dos bens se obriga dentro do prazo de garantia, previamente estipulado, a substituí-las ou repará-las, sem encargos para o adquirente”.
24. Acresce ainda que dos factos e) e q) dados como provados decorre que os valores das reparações de garantia também incluem os relativos às peças sobresselentes aplicadas nas ditas reparações, as quais, por serem bens corpóreos, não podem ser subsumíveis no conceito de prestações de serviços a que se refere 4º do Código do IVA.
25. O que se acaba de alegar foi mencionado pela impugnante em 20, 21 e 22 da petição da impugnação, sendo certo que a Meritíssima Juiz nada referiu sobre essa alegação.
26. Ora, face a todo o exposto, a douta sentença recorrida não devia ter decidido como decidiu, mas devia, sim, ter julgado a impugnação totalmente procedente.
27. Nos termos do disposto no nº 1 do art. 43º da Lei Geral Tributária, a recorrente tem direito a juros indemnizatórios sobre o total de € 1.823.997,79, contados desde 31 de Agosto de 2004 até à data da emissão da respectiva Nota de Crédito.
28. A douta sentença recorrida violou, entre outros, o disposto nos arts. 1º, nº 1, a), e 4º do Código do IVA.
1.3. A Fazenda Pública não contra-alegou.
1.4. Neste Tribunal, a Exmª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, pelas razões que desenvolvidamente explana de fls. 221 a fls. 222 dos autos.
1.5. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
1.6. Devidamente delimitadas pelas conclusões do recurso, são duas as questões a decidir:
a) Saber se a sentença recorrida errou na resposta à matéria de facto, ao dar como provado o que nela consta sob a alínea “d)” respectiva;
b) Saber se a sentença recorrida errou ao enquadrar as reparações de garantia nas prestações de serviços a que alude o artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante sob a sigla “C.I.V.A.”)
2. Fundamentação de Facto
2.1. Em primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
a) A impugnante foi alvo de uma acção inspectiva que incidiu sobre os exercícios de 2000, 2001 e 2002 (cf. relatório inspectivo de fls. 57 a 112 do processo administrativo, doravante apenas PA). ---
b) No que concerne ao IVA os Serviços inspectivos apuraram que “A empresa B…, SA é representante em Portugal da marca BMW, dispondo de uma rede de concessionários distribuídos pelo território nacional. A qualidade dos produtos por si comercializados, bem como pelos diversos concessionários, é garantida pela empresa alemã, Bayerische Motoren Werke, AG (…), durante um período predefinido.
Assim durante o período de garantia, representante e concessionários deparam-se com reclamações efectuadas pelos seus clientes, depois de devidamente apreciadas pelos serviços técnicos de cada uma delas, dão lugar a reparações que podem ser consideradas ao abrigo das respectivas garantias.
Quer as reparações efectuadas pelos concessionários, quer as efectuadas pela empresa B…, durante o período de garantia, são da responsabilidade da empresa BMW AG, na Alemanha. Assim, os custos por estes incorridos, com as reparações efectuadas ao abrigo da garantia, são reclamados pela B… à empresa alemã, BMW AG” (cf. doc. de fls. 81 e 83 do PA). ---
c) Os SIT apuraram também que “ (…) os concessionários reclamam ao representante o valor dos custos incorridos mensalmente com os serviços prestados aos seus clientes ao abrigo das respectivas garantias. Por seu turno, o valor reclamado pelos concessionários ao representante é objecto de reclamação à empresa alemã, sendo o preço das peças reclamado, deduzido da margem de comercialização. Caso o pedido seja considerado procedente, a empresa BMW AG, emite uma nota de crédito, onde se encontra discriminado por viatura, o valor da reparação aceite. A empresa B…, mensalmente, credita aos seus concessionários o valor das garantias previamente creditadas pela empresa BMW AG” (cf. doc. de fls. 82 do PA). ---
d) Os SIT consideraram que “Em termos de enquadramento tributário, as reparações efectuadas ao abrigo da garantia pela empresa B... e pelos seus concessionários por conta da empresa alemã, BMW AG, são consideradas prestações de serviços, efectuadas em território nacional a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, e por isso enquadráveis para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado na alínea a) do nº 1 do artigo 1º do CIVA” (cf. fls. 82 do PA). ---
e) Apuraram que “A empresa B... só conhece o montante das reclamações aceites pela BMW AG, quando recebe as notas de crédito por esta emitidas. È nesta data e com base na respectiva nota de crédito, que liquida e deduz à taxa de 17% o IVA devido sobre o montante que lhe é creditado, valor que é relevado nas contas “2433190000/243219000 – IVA aquisições Intracomunitárias 17%”. Como se constata, a empresa B..., enquadrou estas operações, no âmbito do RITI, como aquisições intracomunitárias de bens/serviços, liquidando e deduzindo simultaneamente o respectivo IVA, inclusivamente, até o preenchimento da declaração periódica de IVA, está incorrecto, pois foram considerados aqueles serviços no campo 10 da declaração, no qual, devem ser incluídas apenas as aquisições intracomunitárias” (cf. doc. de fls. 84 e 85 do PA). ---
f) Concluíram os SIT que “Compete à empresa B..., proceder à liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado sobre os créditos comunicados pela empresa BMW AG, relativos aos serviços por si prestados e pelos seus concessionários ao abrigo das respectivas garantias. O imposto em causa é devido, na data em que lhes é comunicado o respectivo crédito pela empresa BMW AG” (cf. fls. 85 do PA). ---
g) Assim, em relação ao ano de 2000 apurou-se IVA em falta no montante de €389.881,50, em relação ao ano de 2001, apurou-se o montante de €534.191,23 e em relação ao ano de 2002, o montante de €663.714,43, procedendo-se às correcções à matéria tributável (cf. doc. de fls. 58 do PA). ---
h) A impugnante foi notificada em 11/05/2004, para efeitos de audição prévia que veio a exercer contestando as correcções efectuadas, no entanto, as correcções mantiveram-se (cf. fls. 101 e 102, 113 a 126 do AP). ---
i) Foram emitidas as liquidações adicionais nº 04248473, relativa ao ano de 2000, no montante de €389.881,49, n º04248486, relativa ao ano de 2001, no montante de €534.191,23 e nº04248499, relativa ao ano de 2002, no montante de €663.714,44, todas com data limite de pagamento de 31/08/2004 (cf. doc. de fls. 16 a 18 do PA). ---
j) Na mesma data foram, ainda, emitidas as liquidações nº 04248461 a 04248498 relativas aos juros compensatórios de cada um daqueles anos que totalizam o montante de €236.210,63 (cf. doc. de fls. 19 a 54 do PA). ---
k) As liquidações, ora, impugnadas foram, pagas pela impugnante em 31/08/2004 (cf. doc. de fls.76 a 125 dos autos). ---
l) A impugnante é distribuidora exclusiva em Portugal das viaturas de marca BMW, bem como das respectivas peças sobresselentes (cf. depoimento das testemunhas). ---
m) A distribuição daquelas viaturas foi concedida por contrato celebrado entre a impugnante e a empresa alemã denominada BMW AG (cf. depoimento das testemunhas). ---
n) A impugnante nomeia em Portugal entidades que têm por finalidade a revenda daquelas viaturas e a assistência técnica pós-venda (cf. depoimento das testemunhas). ---
o) A nomeação de concessionários resulta de um contrato escrito celebrado entre a impugnante e cada um dos concessionários (cf. depoimento das testemunhas). ---
p) O contrato é igual para todos os concessionários, estando os concessionários obrigados a proceder às reparações dos veículos vendidos durante o período de garantia (cf. depoimento das testemunhas). ---
q) Nas reparações de garantia o concessionário aplica peças BMW e despende mão-de-obra, não recebendo quantia alguma do cliente final, uma vez que para ele a reparação é gratuita (cf. depoimento das testemunhas). ---
r) Os concessionários remetem à impugnante a nota com os custos e despesas em que incorreram (cf. depoimento das testemunhas). ---
s) A impugnante remete à BMW AG os custos e despesas do concessionário, reclamando-os (cf. depoimento das testemunhas). ---
t) As quantias reclamadas pela impugnante, quando aprovadas pela BMW AG, são reembolsadas à impugnante, que por sua vez reembolsa os concessionários (cf. depoimento das testemunhas). ---
u) A presente impugnação foi deduzida em 29/11/2004 (cf. doc. de fls. 3 dos autos). ---
2.2. A ora Recorrente começa por solicitar a este tribunal a reformulação da matéria de facto no sentido da eliminação do referido na alínea “d)” supra, «uma vez que o que aí consta não é mais do que um juízo de valor efectuado pela Administração Tributária» (…) «e não um facto que seja incontroverso e resulte do que consta dos autos» (cfr. 3.ª conclusão).
No entanto, o que a Mmª Juiz “a quo” ali dá como provado é que os Serviços de Inspecção Tributária (“S.I.T.”) consignaram no relatório que “Em termos de enquadramento tributário, as reparações efectuadas ao abrigo da garantia pela empresa B... e pelos seus concessionários por conta da empresa alemã, BMW AG, são consideradas prestações de serviços, efectuadas em território nacional a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal, e por isso enquadráveis para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado na alínea a) do nº 1 do artigo 1º do CIVA”.
E não é incontroverso que na parte do relatório para que a douta sentença expressamente remete se consignou o que ali se transcreve. O que, de resto, o processo administrativo em apenso confirma instantaneamente a fls. 82, último §.
De salientar que a M.mª Juiz não formula ali qualquer juízo sobre o conteúdo daquela afirmação: limita-se a consignar que a mesma foi veiculada no relatório.
Assim sendo, não se vê fundamento algum para corrigir a resposta à matéria de facto, no segmento transcrito.
Pelo que o recurso não merece provimento nesta parte.
2.3. Ao abrigo do disposto no artigo 712.º do C.P.C. e dada a sua relevância para a boa decisão da causa, adita-se a seguinte matéria de facto, que resulta provada documentalmente, cfr. fls. 76 a fls. 125 dos autos:
v) A Impugnante pagou na 2.ª tesouraria das Finanças de Vila Nova de Gaia, em 31 de Agosto de 2004, as quantias a que se reportam as liquidações impugnadas. ---
3. Fundamentação de Direito
Estamos, assim, reconduzidos à questão de saber se as denominadas reparações de garantia efetuadas pela Recorrente ou pelas concessionárias em veículos adquiridos à “BMW AG”, veículos por aquelas vendidos e registados em Portugal, constituem prestações de serviços para os efeitos do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado.
No ponto de partida da nossa análise do problema, cumpre lembrar que a nossa lei tributária acolhe um princípio de preferência pelo conteúdo das declarações dos contribuintes e dos dados da sua contabilidade ou escrita da aferição dos pressupostos de facto da tributação. É o que decorre do artigo 75.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, que consagra a presunção da veracidade dos elementos respetivos que sejam apresentados e estejam organizados nos termos previstos na lei, isto é, que revelem o cumprimento escrupuloso, pelo sujeito passivo, dos deveres de colaboração que sobre ele recaem.
O que significa que a aferição da existência ou não de uma prestação de serviço para efeitos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado deve, à partida, assentar nos elementos que sejam fornecidos pelo sujeito passivo. E só quando a Administração Tributária se depara com o incumprimento ou o defeituoso cumprimento dos referidos deveres de colaboração – designadamente porque não foram apresentadas as declarações ou não se encontra efetuada a escrita, ou o teor das declarações revelam desconformidades com estes elementos de suporte, ou existem elementos adicionais que permitem duvidar fundadamente da veracidade do seu teor – é que cessa a presunção de verdade do declarado pelo sujeito passivo e emerge uma nova presunção: a presunção de legalidade das informações prestadas pela própria Administração Tributária, desde que devidamente fundamentadas e baseadas em dados objetivos – artigo 76.º da mesma Lei.
No caso, e de acordo com o ponto III – 1.1.3 do relatório de fiscalização de que se encontra cópia anexada aos autos (e para que expressamente remete a alínea a) dos factos provados na douta sentença recorrida), a ora Recorrente enquadrou estas operações como «aquisições intracomunitárias de bens/serviços, liquidando e deduzindo simultaneamente o respectivo IVA». Ou seja, e tanto quando nos é possível ver, a ora Recorrente declarou à Administração Tributária que estava a adquirir à “BMW AG” bens.
Não sabe este tribunal em que consistiriam as declaradas aquisições intracomunitárias, porque não foram juntos os documentos de suporte nem foi descrito, sequer, exemplificativamente, o seu teor. Sabe apenas que o tratamento fiscal e contabilístico dos respetivos movimentos era compatível com esse enquadramento: o I.V.A. era liquidado com base em documentos emitidas pela “BMW AG” e, simultaneamente, deduzido, sendo, por isso, relevado nas contas 2433 (I.V.A. liquidado) e 2432 (I.V.A. dedutível). Operação que, se bem vemos, corresponde ao mecanismo do reverse charge ou de inversão de sujeição, que decorre das regras de localização de determinadas operações intracomunitárias em que o sujeito passivo do imposto passa a ser o adquirente, registando-o simultaneamente como imposto a pagar e a recuperar do Estado.
Admite-se, em todo o caso, que esses movimentos estivessem configurados como “AICBs” por estar em causa a expedição intracomunitária de peças e componentes de veículos automóveis da marca BMW que eram incorporadas nos veículos intervencionados em reparações efetuadas pelos concessionários ou pela distribuidora (ora Recorrente) no período de garantia.
Só que – tanto quanto nos é possível aferir (relembramos que os documentos de suporte não foram, sequer exemplificativamente, anexados ao relatório) – essas operações tinham por base «notas de crédito», isto é, documentos que titulam movimentos a crédito da distribuidora, ora Recorrente. Terá sido por isso que os serviços de inspeção tributária começaram por pôr em causa a declaração e contabilização destas operações: os documentos de suporte não confirmavam a aquisição intracomunitária de bens. E tinham razão – tanto quanto daqui se pode ver – em fazê-lo, porque não poderiam, em princípio, ser notas de crédito, qualquer que fosse o seu teor, a titular “AICBs”.
A partir daqui, alargava-se o dever de colaboração da ora Recorrente. Se os documentos de suporte não esclarecem os verdadeiros contornos da operação, caberia à entidade fiscalizada fornecer elementos adicionais ou prestar esclarecimentos complementares (designadamente ao abrigo do artigo 37.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária).
Não se sabe, porém, se foram tomadas diligências adicionais no sentido de suscitar a intervenção da entidade inspecionada no procedimento de inspeção. O relatório não dá notícia de qualquer deficit de colaboração dessa entidade no seu decurso. O que se sabe é que os serviços de inspeção tributária não se limitaram a pôr em causa que tais operações fossem qualificadas como aquisições intracomunitárias: também as qualificaram como prestações de serviços “intracomunitárias” (expressão que aqui utilizamos para designar a prestação de serviço de operador nacional a entidade localizada noutro Estado membro). Ou seja, os serviços de inspeção tributária também concluíram que as operações em causa eram prestações de serviços, em que o prestador era o concessionário ou a ora Recorrente, conforme o caso, e o adquirente era a própria “BMW AG” (e não o contrário).
Mas, a ser assim, não bastaria à Administração Tributária reunir elementos que denunciassem que não existiu qualquer aquisição intracomunitária de bens (o que, em si mesmo, não interferiria com a matéria tributável, visto que o resultado contabilístico continuaria a ser igual a zero). Importava também que fossem reunidos elementos adicionais que suportassem essa qualificação, fundamentando as suas decisões com dados objetivos, como lhe era imposto pelo artigo 76.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.
Ora, o único verdadeiro elemento que a fiscalização levou ao relatório foi o facto de a reparação dos veículos da marca alemã no período de garantia ser da responsabilidade da “BMW AG”.
Temos como certo que sob a designação de reparações de garantia podem estar situações muito diversas como a reparação de vícios da coisa vendida (vícios redibitórios, protegidos pela denominada garantia edilícia – artigos 913.º do Código Civil) de defeitos de funcionamento (protegidos pela garantia de duração – cfr. artigo 921.º do mesmo Código) ou, em geral, de outros defeitos revelados durante a sua utilização (garantias voluntárias ou extensões de garantia – cfr. artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril). E nem todas elas são da responsabilidade do fabricante. Não serão da responsabilidade do fabricante, designadamente, as intervenções relacionadas a qualidades da coisa vendida unilateralmente asseguradas pelo vendedor ou com vícios relacionados com a conservação ou utilização do veículo pelo distribuidor comercial ou vendedor.
No entanto, a questão que aqui se coloca não é a de saber se o fabricante dos veículos automóveis da marca BMW era responsável por aquelas reparações, porque essa responsabilidade, de alguma forma, era assumida pela “BMW AG” ao emitir a nota de crédito.
A questão que aqui se coloca verdadeiramente é a de saber a que título a “BMW AG” assumia essa responsabilidade perante a ora Recorrente. Se essa responsabilidade era assumida no âmbito do contrato de distribuição entre a B... e a “BMW AG” ou no âmbito do direito de regresso entre condevedores solidários (cfr. artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 citado).
É que, a nosso ver, só no primeiro caso é possível afirmar a existência de serviços prestados por aquela à “BMW AG”. No segundo caso, o que temos é a compensação «por todos os prejuízos causados pelo exercício» dos direitos do consumidor que, nas relações internas entre condevedores, sejam imputáveis a quem não pagou.
É certo que, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, são consideradas como prestações de serviços as operações efetuadas a título oneroso que não constituem transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens. A lei não dá, assim, um conceito positivo de prestação de serviço, ficando-se por uma definição “residual” ou “negativa”, porque seriam muito difíceis de enquadrar juridicamente as múltiplas operações com essa natureza que a realidade económica pode oferecer. O conceito de prestação de serviço vigente neste Código é, por isso, mais amplo do que lhe é atribuído noutros lugares do nosso direito – designadamente na lei civil – refletindo a preocupação do legislador de assegurar a neutralidade do imposto. É um daqueles conceitos cujo sentido haverá que encontrar, em última análise, na substância económica do facto tributário – artigo 11.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária .
No entanto, e como adverte José Guilherme Xavier de Basto (in «A Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional», Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 164, pág. 172) há que ter o cuidado de não levar longe de mais o significado e as implicações da renúncia do legislador em definir, de modo positivo, as prestações de serviços e em identificar o seu conteúdo. Remetendo para o seu âmbito toda e qualquer atribuição patrimonial feita por um sujeito passivo. «Assim é patente que, embora cabendo formalmente no conceito de prestação de serviços, não constitui operação tributável o pagamento de uma indemnização que releve, por exemplo, da responsabilidade civil extra-contratual. Quem indemniza está repristinando a situação anterior à lesão e não exerce uma actividade económica…».
Também Clotilde Celorico Palma (in «Introdução ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado», pág. 59), refere que «sob pena de se violarem as características do imposto, para que se considere que existe uma prestação de serviços em sede de IVA deverá, naturalmente, existir um serviço enquadrável numa actividade económica. Ou seja, deverá ser aferido casuisticamente se no caso controvertido existe ou não uma operação com substância económica que possamos tributar a título de prestação de serviços».
Entendimento que se conjuga com jurisprudência uniforme do Tribunal de Justiça das Comunidades, segundo o qual apenas estão abrangidas pelo artigo 4.º da Sexta Diretiva as atividades que tenham caráter económico (vd., por todos, o acórdão no processo C-77/01, in http://curia.europa.eu). O conceito de «actividades económicas» é definido no n.° 2 do referido artigo como englobando todas as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, nomeadamente, as operações relativas à exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com carácter de permanência. (cit.).
Ora, a compensação, pelo fabricante, dos prejuízos suportados pelo distribuidor na reparação de defeitos de viaturas automóveis que àquele devam ser imputados é uma atribuição patrimonial que não tem subjacente nenhuma operação com substância económica, porque não está em causa a exploração de fatores de produção com o objetivo de intervir no mercado de venda ou reparação de veículos, mas a erosão do valor patrimonial auferido na venda pretérita do veículo, por força das operações de reparação que teve que executar para salvaguardar as qualidades garantidas ao consumidor final.
Sendo por essa razão que, porventura, se diz no ponto 1 Ofício-Circulado 49424, de 1989.05.04, da Direção dos Serviços do IVA que as reparações efetuadas a título gratuito no decurso do chamado período de garantia se encontram «tacitamente incluídas no preço da venda do bem abrangido pela garantia».
Diferente será, todavia, o caso das reparações efetuadas com base em garantia do fabricante ao consumidor disponibilizando para o efeito as oficinas do concessionário ou do distribuidor. Em tal caso, a intervenção do concessionário ou do distribuidor não resulta diretamente da garantia mas do dever, contraído perante o fabricante, de executar determinados serviços de reparação previamente contratualizados.
Incumbia, por isso, à Administração Tributária reunir indicadores suficientes, sustentados em dados objetivos, de que estavam em causa serviços de reparação contratualizados entre concessionários, distribuidora e fabricante, através dos quais os primeiros se comprometessem a executar as reparações perante o fabricante, de forma onerosa.
Constituiria indicador desse facto a existência de contrato de distribuição que contivesse cláusulas que, devidamente interpretadas, apontassem para essa realidade. Mas os serviços de inspeção tributária nunca invocaram nenhum contrato ou cláusula com esse teor, nem anexaram ao relatório algum documento que o reproduzisse.
Poderia também constituir indicador desse facto que o cálculo dos valores a creditar fosse efetuado com base no preço comercial da reparação, nomeadamente quanto ao valor da mão-de-obra despendida (e não com base no custo dessa mão-de-obra para o próprio concessionário), mas nada foi adiantado a esse respeito, não existindo também elementos que permitam saber se a inspeção teria ou não possibilidade de ir mais longe na aferição destes factos.
De todo o exposto decorre que a Administração Tributária acabou por não reunir – como lhe competia – indicadores suficientes de que subjacentes às referidas notas de crédito estariam verdadeiras prestações de serviços, efetuadas pela ora Recorrente, por si ou através dos concessionários, à “BMW AG”.
Assim sendo, as liquidações impugnadas estão viciadas de erro sobre a existência de pressupostos suficientes para qualificar estas operações como verdadeiras prestações de serviços.
Razão porque a douta sentença não pode manter-se e deve ser revogada.
E, em substituição, devem ser anuladas as liquidações impugnadas, com todas as consequências legais, incluindo a restituição das quantias pagas, com direito aos peticionados juros indemnizatórios, por se verificarem in casu os requisitos a que alude o artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.
4. Conclusões
4.1. As reparações efetuadas durante o período de garantia são consideradas prestações de serviços para os efeitos do artigo 4.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado se, não constituindo transmissões, aquisições intracomunitárias ou importações de bens, tiverem sido efetuadas a título oneroso e constituírem atividades com carácter económico;
4.2. A compensação, pelo fabricante, dos prejuízos suportados pelo distribuidor na reparação de defeitos de viaturas automóveis que àquele devam ser imputados é uma atribuição patrimonial que não tem subjacente nenhuma operação com substância económica;
4.3. Se os elementos colhidos pela Administração Tributária são insuficientes para aferir se as reparações efetuadas durante o período de garantia pelo distribuidor foram contratualizados entre concessionários, distribuidora e fabricante ou constituem mera compensação dos prejuízos suportados pelo distribuidor na reparação de defeitos das viaturas, a liquidação que neles se suporta padece de erro sobre a verificação dos pressupostos de facto da tributação.
5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso e em consequência
a) Revogar a decisão recorrida;
b) Em substituição, anular as liquidações impugnadas, com todas as consequências legais, incluindo a restituição das quantias pagas, com direito aos peticionados juros indemnizatórios.
Custas pela Recorrida
Porto, 03 de Maio de 2012
Ass. Nuno Bastos
Ass. Irene Neves
Ass. Aragão Seia