Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00573/21.4BECBR-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2022
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR; RECURSO DE DECISÃO CAUTELAR; EFEITO SUSPENSIVO; EFEITO DEVOLUTIVO; ARTIGO143.º, N.º 2, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS; ACTO PUNITIVO;
FACTO CONSUMADO; ESFERA DE DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO; TIPIFICAÇÃO DA INFRACÇÃO; ESCOLHA E MEDIDA DA SANÇÃO; PARTO NO DOMICÍLIO; PONTO 3 DA RECOMENDAÇÃO DA MESA DO COLÉGIO DA ESPECIALIDADE DE ENFERMAGEM DE SAÚDE MATERNA E OBSTÉTRICA; ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE FACTO E DE DIREITO; FUMUS BONI IURIS; PONDERAÇÃO DE INTERESSES
Sumário:1. Tendo sido afastado, na ponderação de interesses, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativo, a existência de prejuízo prevalecente para o interesse público, não é de fixar efeito suspensivo ao recurso dado tal se traduzir numa revogação da decisão recorrida pela mera alteração do efeito ao recurso, o que, manifestamente, contraria a própria natureza e função do recurso, impondo-se, por isso, manter o efeito devolutivo fixado por regra para o recurso de decisões respeitantes a processos cautelares, como é o caso - artigo143.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

2. É de suspender a execução de uma decisão punitiva proferida em processo disciplinar se, face à demora média dos processos nos tribunais administrativos, incluindo a possibilidade de haver recurso jurisdicional, é fundado o receio de, até ao trânsito em julgado eventual da decisão anulatória, o requerente ter, entretanto, já cumprido toda a pena, constituindo-se deste modo uma situação de facto consumado, para efeitos do disposto no n.º1 do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

3. Determinar se os factos provados integram uma determinada infracção – ou não – não cabe na esfera de discricionariedade da Administração; pelo contrário, cabe naquilo que é função essencial dos tribunais, também na apreciação da validade dos actos administrativos: aplicar o direito aos factos concretos; na discricionariedade, técnico-jurídica, da Administração, cabe, isso sim, a tarefa de escolha e graduação da sanção.

4. Não cabe na previsão do ponto 3 da Recomendação da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, que contempla as regras sobre o parto no domicílio, uma situação em que o enfermeiro que se tinha aprestado a realizar um parto ao domicílio quando foi contactado para o efeito, às 4h da madrugada de um domingo para segunda-feira, informou que não tinha como se deslocar, dado que o seu carro se encontrava na oficina, e deu indicação para que a parturiente se deslocasse ao hospital, onde acabou por se realizar o parto, dado que, independentemente das razões que determinaram a alteração dos planos, o facto essencial é que o parto se realizou no hospital, nas mesmas condições em que se teria realizado um parto de urgência, e não no domicílio.

5. Sendo este um dos pressupostos essenciais do acto punitivo, a da integração da conduta do enfermeiro num caso de desrespeito por tal recomendação, o mesmo padece do vício de erro nos pressupostos de facto e de direito, sendo anulável, pelo que é provável o êxito da acção principal, verificando-se, assim, o fumus boni iuris.

6. Na ponderação de interesses a que alude o n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não está em causa, na hipótese de pedido de suspensão da eficácia de acto, os efeitos da não execução do acto, mas apenas os efeitos da não execução imediata.*
* Sumário elaborado pelo relator
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

A Ordem dos Enfermeiros veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, de 21.02.2022, pela qual foi (totalmente) deferida a providência cautelar apresentada por AA... para suspensão da eficácia da deliberação da 1ª Secção do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, de 23.04.2021, que aplicou ao requerente a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional pelo período de 1 (um) ano, com pena efectiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos.

Invocou para tanto, em síntese, que a decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação ao caso concreto, o disposto no artigo 120.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pois, ao contrário do decidido, não se verifica qualquer dos requisitos aqui previstos para o decretamento da providência: quanto ao fumus boni iuris o Tribunal violou o princípio da separação de poderes, ao invadir a esfera do poder discricionário da Requerida; no que respeita ao periculum in mora também não se verifica e, em todo o caso, deve prevalecer, na ponderação de interesses, o interesse público que é fortemente prejudicado com o decretamento da providência.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não deu parecer.
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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

A. De acordo com o artigo 144.º, n.º 4, do CPTA, “quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos”.

B. No presente caso, a atribuição de efeito devolutivo ao recurso implicará prejuízos para o interesse público, na medida em que permitirá que o Enfermeiro aqui em causa, cuja actuação foi considerada, por dois júris distintos de pares, não acautelar as condições mínimas de segurança e bem-estar da grávida e recém-nascido em partos realizados no domicílio, continue a adoptar a mesma conduta, colocando em causa não só a vida e a saúde dos utentes a que assiste nessas condições, mas também a dignificação da profissão.

C. Note-se que o Enfermeiro AA... foi condenado na pena de suspensão do exercício profissional por um período de 1 (um) ano, com pena efetiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos, por ter praticado, aquando da realização de parto no domicílio e posterior transporte da puérpera e do recém-nascido para o Centro Hospitalar de (...), E.P.E., por ter praticado graves infrações disciplinares (alíneas a), b), g) e i), do n.º 1, do artigo 97.º, as alíneas a) a c), do artigo 100.º, a alínea d), do artigo 104.º, as alíneas a) e b), do artigo 109.º e a alínea a), do artigo 111.º, todos do EOE) que colocam em causa, de forma irremediável, o bem-estar, a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos, assim como a imagem da Ordem dos Enfermeiros enquanto associação pública profissional representativa dos que exercem a profissão de enfermeiro (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do EOE).

D. Na verdade, estamos perante um Enfermeiro que ainda que detentor da Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, realiza partos no domicílio sem cumprimento das recomendações para realização de um parto no domicílio emanadas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, na medida em que realiza os partos sem a devida e recomendada vigilância pré-natal – atuação esta que o ora Recorrido tem mantido de forma reiterada e a qual não pretende alterar.

E. Acresce que a realização de partos no domicílio, em especial da forma como o Enfermeiro AA... os realiza, é particularmente sensível porque feito de forma individualizada sem a possibilidade de ser acompanhado por outros profissionais de saúde.

F. Nesse âmbito, a atribuição de efeito devolutivo ao presente recurso criaria uma sensação de impunidade perante tais factos o que conduziria a uma perda de credibilidade da Ordem dos Enfermeiros; credibilidade essa que, como se sabe, é absolutamente essencial para a Ordem dos Enfermeiros poder prosseguir as suas atribuições e, dessa forma, garantir o interesse público que presidiu à sua constituição.

G. Em face do exposto, deve ser atribuído o efeito suspensivo ao presente recurso.

H. No essencial, a sentença recorrida determinou a procedência da providência cautelar requerida, com os seguintes fundamentos:

a. Verificação do requisito de periculum in mora na medida em que se está perante uma situação de facto consumado, desde logo por decorrência da própria aplicação da sanção disciplinar, sendo a apreciação da situação económica do Requerente e a privação do valor da sua remuneração correspondente ao tempo de execução da sanção disciplinar apenas um acréscimo no que toca a verificação do referido requisito;

b. Previsível procedência, em sede de acção principal, da anulação do acto por falta de fundamentação sob ponto de vista material, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito;
c Inexistência de qualquer prejuízo para o interesse público com a adopção da providência cautelar;

I. Ao concluir da forma descrita, a sentença recorrida incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito.

J. Tendo sido considerado pela sentença recorrida que a decisão sancionatória proferida pela Entidade Requerida se encontra deviamente fundamentada sob um ponto de vista formal, o mesmo não foi considerado quanto à fundamentação sob o ponto de vista material, designadamente no que respeita a três situações em que está a ser imputada ao Requerente responsabilidade disciplinar. Nesse sentido, entende a sentença recorrida ser provável e previsível a procedência da pretensão do Requerente, com consequente anulação do ato impugnado.

K. Ao concluir da forma descrita, a sentença recorrida incorreu em vários e manifestos erros de interpretação e aplicação do direito.

a. Da violação do princípio da separação de poderes

L. Se atentarmos nos fundamentos invocados pela sentença recorrida para fundamentar o preenchimento do requisito de fumus boni iuris, verificamos que a mesma se pronuncia sobre o cerne das competências próprias da Recorrente e, dentro destas, na discricionariedade e na margem de livre apreciação de conceitos jurídicos indeterminados que a lei confere à Recorrente.

M. A verdade é que determinar se certa conduta consubstancia, ou não, uma infração disciplinar insere-se no âmbito da reserva da administração consubstanciada numa margem de livre decisão administrativa (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 17/09/2015, no âmbito do processo n.º 04839/09).

N. A decisão sobre se certo facto ocorreu ou não pode ser avaliado pelo Tribunal; a qualificação desse facto como infracção disciplinar integra a margem de livre decisão administrativa que, no caso, é conferida à Recorrente pela al. h), do n.º 1, do artigo 5.º, e pelo artigo 18.º, ambos da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, e pelo Estatuto da Ordem dos Enfermeiros.

O. Ora, a sentença recorrida, ao não colocar em causa os factos subjacentes ao acto suspendendo, mas ao entender que os mesmos não consubstanciam infrações disciplinares, viola os artigos 111.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente os referidos preceitos devendo os mesmos ser interpretados no sentido de que a qualificação de determinados factos como consubstanciando uma infração disciplinar insere-se no âmbito da reserva da administração consubstanciada numa margem de livre decisão administrativa.

b. Reclamação de RB...: parto da Utente KS….

P. Considera a sentença recorrida, em contraposição ao considerado pela Entidade Requerida, que em face da recomendação existente sobre os partos no domicílio, não era exigível ao Arguido ter garantido um meio de transporte para o período previsível de parto.

Q.Com o devido respeito, não se pode concordar com a conclusão da sentença recorrida.

R. Ainda que se admita que a situação que ocorreu no caso que aqui se analisa não se encontra expressamente prevista na recomendação, certo é que do espírito da letra da recomendação se retira que os profissionais de saúde escolhidos pelo casal asseguram o acompanhamento e assistência no trabalho de parto, parto e pós-parto, independentemente do momento em que tal assistência se verifique necessária.

S. Note-se que da análise do ponto 3 da Recomendação da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica conclui-se que toda a situação ocorrida com o casal poderia ter sido ultrapassada caso o ora Recorrido se encontrasse acompanhado por outro profissional de saúde.

T. Note-se que ainda que a avaria do veículo tenha ocorrido em momento anterior ao parto, e se tenha como um evento imponderável, a verdade é que o ora Recorrido, como profissional diligente e zeloso, deveria ter contactado o casal cuja gravidez se encontrava a acompanhar e dar conta da ocorrência de forma a que, em conjunto, chegassem a uma solução para que, caso o trabalho de parto se iniciasse no entretanto, o casal soubesse como actuar – o que não ocorreu (cfr. fls. 98 e 99 do processo administrativo instrutor junto com a oposição à providência cautelar).

U. Na verdade, não está aqui em causa, como parece resultar da sentença recorrida, que a situação em causa se tratasse de “(…) uma situação de emergência que impusesse o transporte a realizar pelo requerente”, mas antes o facto de um casal que tinha planeado a realização do parto no domicílio, com o acompanhamento e assistência do Recorrido, ter contactado e informado o mesmo quanto ao início do trabalho de parto e este não se ter deslocado à residência do casal, o que lhes impossibilitou a realização do parto no domicílio tal como tinham planeado e sem que houvesse plano de emergência a seguir, bem como informações quanto ao Hospital para o qual se deveriam dirigir – note-se que o casal se dirigiu para um Hospital sito na (…), quando o Hospital de F… seria mais próximo da sua residência…

V. Por todo o exposto, decidiu mal a sentença recorrida ao considerar que da situação aqui em apreço não resulta que possa estar em causa a prática de uma infração disciplinar. A conduta do Recorrido adotada nesta situação deve ser entendida como demonstrativa de uma enorme falta de diligência, zelo e cuidado para com os Utentes que acompanha. Nessa medida, não pode ser assacado qualquer vício à decisão da ora Recorrente, não se verificando o requisito do fumus boni iuris.

W. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente o artigo 120.º, do CPTA, os artigos 76.º e 77.º e as alíneas a), b), g) e i), do n.º 1, do artigo 97.º, as alíneas a) a c), do artigo 100.º, a alínea d), do artigo 104.º, as alíneas a) e b), do artigo 109.º e a alínea a), do artigo 111.º, todos do EOE. Estes preceitos devem ser entendidos no sentido de a não garantia pelo Requerente de um meio de transporte para o período previsível de parto constituir uma infração disciplinar e, consequentemente, não se encontrar preenchido no presente caso o requisito de fumus boni iuris.

c. Conduta negligente reiterada do Requerente.

X. Considera a sentença recorrida que para que a circunstância de o Recorrido já ter tido necessidade, anteriormente, de se deslocar ao Centro Hospitalar de (...), E.P.E. por complicações em partos no domicílio fosse valorada como “(…) juízo condenatório, impunha-se aferir quais as concretas condições em que noutras ocasiões o requerente se dirigiu ao referido Centro Hospitalar”.

Y. Não podemos, no entanto, concordar com a sentença recorrida…

Z. Foi o próprio Recorrido, que confessou, tanto em sede de inquirição realizada no âmbito do processo disciplinar (cfr. oitavo parágrafo do auto de inquirição, constante a fls. 146, do processo disciplinar que integra o processo administrativo), como no Requerimento Inicial (cfr. artigo 106.º), que já anteriormente tinha efetuado transferências para a Unidade de Saúde (...), ainda que não nos termos que se encontravam a ser analisados, nem em pós-parto, mas sempre em situações de anteparto.

AA. Para efeitos de avaliação da situação que se encontrava a ser analisada no procedimento disciplinar instaurado apenas se pretendia dar como assente que no acompanhamento de uma gravidez e realização de trabalho de parto no domicílio pode ser necessário recorrer a Unidades Hospitalares – tal como o Recorrido já havia experienciado anteriormente –, pelo que a atuação do ora Recorrido deveria respeitar as recomendações emanadas pela Mesa do Colégio, desde logo no que respeita à prévia articulação com tais Unidades Hospitalares, o que não se verificou no caso do parto aqui em análise…

BB. Por todo o exposto, erra a sentença recorrida ao considerar que o facto de se ter ponderado negativamente a actuação do ora Recorrido no facto em causa, enferma o acto administrativo de erro sobre os pressupostos. O facto apurado n.º 7 deve ser interpretado no sentido de que um acompanhamento de gravidez e parto no domicílio carecem de articulação com as Unidades Hospitalares mais próximas de forma a socorrerem a grávida e o feto ou recém-nascido em caso de emergência médica ou qualquer outra intercorrência. Nessa medida, não pode ser assacado qualquer vício à decisão da ora Recorrente, também não se verificando, nesta situação, o requisito do fumus boni iuris.

CC. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente o artigo 120.º, do CPTA, os artigos 76.º e 77.º e as alíneas a), b), g) e i), do n.º 1, do artigo 97.º, as alíneas a) a c), do artigo 100.º, a alínea d), do artigo 104.º, as alíneas a) e b), do artigo 109.º e a alínea a), do artigo 111.º, todos do EOE. Estes preceitos devem ser entendidos no sentido de a não garantia pelo Requerente de um acompanhamento de gravidez e parto no domicílio carecem de articulação com as Unidades Hospitalares mais próximas de forma a socorrerem a grávida e o feto ou recém-nascido em caso de emergência médica ou qualquer outra intercorrência constituir uma infração disciplinar e, consequentemente, não se encontrar preenchido no presente caso o requisito de fumus boni iuris.

d. Transporte pelo Requerente, em veículo próprio, da Utente após realização de parto domiciliário

DD. No que respeita ao transporte da Utente pelo Recorrido, conclui a sentença recorrida não se retirar da atuação deste a prática de uma infração disciplinar.

EE. Ora, a verdade é que o facto de o Recorrido não ter contactado o INEM, nem a Unidade Hospitalar para a qual se dirigiu fez com que, necessariamente, o atendimento não fosse tão célere quanto poderia ter sido, quando muito porque a Unidade Hospitalar não esperava sequer receber a Utente, situação que poderia ter sido perfeitamente diligenciada pelo Recorrido. Neste contexto, deve reconhecer-se que das condições existentes num veículo habilitado para o transporte de pessoas com necessidades de prestação de cuidados de saúde – como o são as ambulâncias – são bem diferentes das que existem nos veículos de uso comum e sem qualquer preparação para tal transporte.

FF. Face à situação pós-parto da Utente, bem como ao facto de se transportar não só uma grávida com hemorragias, mas também um recém-nascido num dia especialmente frio, o transporte para o Centro Hospitalar de (...), E.P.E. deveria ter sido assegurado pelo INEM (com o devido acompanhamento de uma equipa de enfermagem) e não pelo Recorrido, em carro particular.

GG. Caso o ora Recorrido estivesse acompanhado por mais um profissional de saúde – em cumprimento da Recomendação do Colégio de Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, bem como do Parecer n.º 31/2013, de 24 de maio, proferido pelo mesmo órgão –seria possível que um elemento a vigiasse/acompanhasse a grávida e o recém-nascido e outro efetuasse os contactos para o INEM ou para o Hospital (note-se que o ora Recorrido, no seu Requerimento Inicial, admitiu que não poderia estar a contactar o INEM e a explicar como chegar à residência do casal, pois se o fizesse não estaria a prestar cuidados à Utente, ficando esta sem vigilância…).

HH. Mais do que perceber qual o transporte mais rápido e com as melhores condições para socorrer a situação, se o estado de saúde da grávida permitira tal transporte, bem como as concretas intercorrências que poderiam ter sido evitadas com o transporte pelo INEM, tem de se ter em consideração a concreta atuação do Recorrido, sendo que a mesma é, em tudo, demonstrativa de uma atuação negligente, pouco zelosa e praticada em incumprimento das normas e recomendações que sobre o mesmo impendem.

II. Por todo o exposto, decidiu mal a sentença recorrida ao considerar que quanto à situação do transporte da Utente não é possível perceber da decisão condenatória em que medida o Requerente, ora Recorrido, praticou uma infração disciplinar. Ora, a conduta do Recorrido adotada nesta situação deve ser entendida como demonstrativa de uma profunda e grave falta de diligência, zelo e cuidado para com os Utentes que acompanha. Nessa medida, não pode ser assacado qualquer vício à decisão da ora Recorrente, não se verificando o requisito do fumus boni iuris.

JJ. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente o artigo 120.º, do CPTA, os artigos 76.º e 77.º e as alíneas a), b), g) e i), do n.º 1, do artigo 97.º, as alíneas a) a c), do artigo 100.º, a alínea d), do artigo 104.º, as alíneas a) e b), do artigo 109.º e a alínea a), do artigo 111.º, todos do EOE. Estes preceitos devem ser entendidos no sentido de se considerar verificada no presente caso uma profunda e grave falta de diligência, zelo e cuidado para com os Utentes que o Requerente acompanha e, consequentemente, estarmos perante uma infração disciplinar, não se encontrando preenchido no presente caso o requisito de fumus boni iuris.

e. Da verificação do periculum in mora: dos prejuízos para o Requerente

KK. A sentença recorrida entende que, no caso, se encontra verificado o requisito de periculum in mora na medida em que a privação de obtenção de rendimento por parte do Requerente em resultado da suspensão do exercício profissional é suscetível de acarretar um prejuízo e descrédito para a sua imagem, bem como causar prejuízos de ordem económica reais e efetivos ao Requerente (fls. 48 a 52 da sentença recorrida).

LL. Ora, é evidente que a decisão de aplicação de uma sanção disciplinar tem sempre efeitos no visado, sendo esse, aliás, o pressuposto e a finalidade de qualquer sanção disciplinar.

MM. Trata-se de um poder de autodisciplina essencial à organização das Associações Públicas como o é a Ordem dos Enfermeiros, por só assim poderem cumprir a função, para que foram constituídas, de assegurar o bom exercício da profissão por cada um dos seus membros. Contudo, isso não implica qualquer situação de facto consumado, nem qualquer prejuízo irreparável.

NN. Acresce que a sanção aplicada não impede que o Recorrido tenha uma actividade profissional e que aufira rendimento pela mesma. Ainda que o Recorrido não possa exercer atividades como Enfermeiro – isto durante 3 meses –, nada o impede de, socorrendo-se dos seus conhecimentos na área da saúde, bem como das valências que foi adquirindo ao longo da sua vida profissional, conseguir obter rendimentos na área da saúde ou em qualquer outro ramo profissional.

OO. Note-se que o ora Recorrido foi condenado na pena de suspensão pelo período de 1 (um) ano, com pena efetiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos. Assim, ainda que a pena efectiva seja de 3 (três) meses, facto é que o remanescente, ou seja, 9 (nove) meses, ficará suspenso pelo período de 3 (três) anos. Assim, também por esta via não se pode alegar que caso o processo principal venha a ser julgado procedente não será possível proceder à reintegração no plano dos factos, na medida em que caso tal aconteça o Arguido deixa de ter qualquer sanção disciplinar suspensa. Note-se que a actuação de um membro que tem sobre si a iminente aplicação de uma sanção disciplinar que se encontra suspensa tem necessariamente de ser diferente da atuação de um membro que nunca teve qualquer conduta censurável e merecedora de reparo por parte da sua ordem profissional.

PP. Mais se refira que o facto de o Requerente ser um Enfermeiro com uma vasta experiência no exercício profissional sem qualquer aplicação de sanção disciplinar foi considerado como como circunstância atenuante na concreta sanção aplicável, daí que o ora Recorrido tenha sido condenado a uma pena de suspensão do exercício profissional de 1 (um) ano, com pena efectiva de apenas de 3 (três) meses… De todo o modo, tal experiência nunca poderia levar a uma inacção por parte da Ordem dos Enfermeiros quanto a uma actuação contrária à legis artis praticada por um Enfermeiro…

QQ. Não se verifica nem uma situação de facto consumado, nem um prejuízo de difícil reparação, pois caso a acção venha a ser considerada procedente – o que se admite, sem conceder, por mera cautela de patrocínio –, a condenação do Requerente será eliminada do respetivo registo disciplinar e, no limite, a Entidade Requerida será condenada na compensação dos prejuízos resultantes da sanção aplicada, sendo, reconstituída a situação existente caso o ato anulado não tivesse sido praticado e serão os prejuízos reparados.

RR. Em face do exposto, não se verifica o periculum in mora como concluiu a sentença recorrida, visto não existir qualquer receio (muito menos fundado) de constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de efeitos jurídicos de difícil reparação para os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal.

SS. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente o artigo 120.º, do CPTA. Este preceito deve ser entendido no sentido de não se encontrar preenchido no presente caso o requisito de periculum in mora quando estão em causa, apenas, prejuízos facilmente reparáveis através de eventual compensação financeira.

f. Da verificação do periculum in mora: da inexistência de prejuízos para o interesse público.


TT. A sentença recorrida entende que inexiste qualquer prejuízo para o interesse público com a adopção da providência cautelar (fls. 69 a 73 da sentença recorrida).

UU. Discorda-se com a sentença recorrida, na medida em que toda a paralisia da eficácia de um ato administrativo afeta, necessariamente, o interesse público que o acto prossegue. Neste sentido, a suspensão da execução da sanção disciplinar seria severamente prejudicial para o interesse público.

VV. Ora, a aplicação da sanção de suspensão do exercício profissional por um período 1 (um) ano, com pena efetiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos não resultou de uma análise rápida e superficial da participação remetida pelo Centro Hospitalar (...), E.P.E., mas antes de uma profunda e detalhada análise e ponderação, tendo a mesma sido motivada pela prática, por parte do ora Recorrido, de infrações disciplinares, designadamente por incumprimentos dos deveres previstos nas das alíneas a) b), g), e i), do n.º 1, do artigo 97.º; nas alíneas a) a c), do artigo 100.º, na alínea d), do artigo 104.º; nas alíneas a) e b), do artigo 109.º e na alínea a), do artigo 111.º, todos do Estatuto dos Oficiais do Exercito.

WW. Com esta forma de actuação o ora Recorrido colocou indubitavelmente em causa o prestígio da profissão perante os seus pares, bem como perante a Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, bem como a própria imagem da Ordem dos Enfermeiros enquanto Associação Pública profissional.

XX. A não execução da sanção criaria uma sensação de impunidade perante tais factos praticados pelo Requerente, o que conduziria a uma perda de credibilidade da Ordem dos Enfermeiros; credibilidade essa que se mostra absolutamente essencial para a Ordem dos Enfermeiros conseguir prosseguir as suas atribuições e, dessa forma, garantir o interesse público que presidiu à sua constituição.

YY. A sentença recorrida parece pretender fazer crer que a aplicação de uma sanção disciplinar não terá qualquer efeito na futura actuação do visado, numa tentativa de subversão de toda a filosofia que norteia o regulamento disciplinar e a aplicação de sanções disciplinares a condutas censuráveis. Aplicando-se tal raciocínio a outras áreas do direito – por mero exercício de hermenêutica – no limite poder-se-ia deixar toda uma comunidade impune, uma vez que toda e qualquer pessoa que cometesse uma infração ou um qualquer crime não seria punido, tendo em consideração que tais pessoas apenas durante o período em que cumprissem a sanção/pena não cometeriam a mesma infração/crime, podendo retomar tais práticas após total cumprimento da sanção/pena…

ZZ. Não se pode deixar também de considerar o impacto que a não execução da sanção teria na Ordem dos Enfermeiros, não só a imagem pública, mas ainda a imagem que deixaria passar internamente.

AAA. Não sancionar um membro pelas suas práticas incorretas e infratoras, não fazer do caso sub judice um exemplo daquela que não deve ser a atuação e o procedimento a seguir pelos Enfermeiros, fragilizaria, em muito, toda esta classe profissional.

BBB. Desta forma, e ainda que se atenda a um juízo de proporcionalidade e de adequação, na comparação entre o interesse privado do Requerente e o interesse público da Ordem dos Enfermeiros, não podemos considerar que a execução da sanção produzisse danos muito superiores ao Requerente, ora Recorrido.

CCC. O argumento da subsistência própria e familiar não tem acolhimento, na medida em que o Requerente apenas fica impossibilidade de exercer funções como Enfermeiro, podendo exercer outras funções que lhe permitam obter rendimento.

DDD. A não execução da sanção resultará numa grave lesão do interesse público, fazendo cair por terra uma das atribuições das Associações Públicas, previstas no artigo 18.º, da Lei n.º 2/2013, de 19 de janeiro, o poder disciplinar, podendo mesmo inquinar processos disciplinares futuros, deixando os membros da Ordem dos Enfermeiros de ser sancionados.

EEE. Não sendo o Requerente, ora Recorrido, sancionado pelas suas nefastas actuações, não sentindo as consequências negativas que as mesmas tiveram na sua vida pessoal e profissional, pode o mesmo ser tentado a reincidir na prática de tais ilícitos.

FFF. Ainda neste contexto refira-se que uma vez que o Recorrido é Enfermeiro Especialista em Saúde Materna e Obstétrica, o mesmo pode continuar a realizar partos no domicílio sem que tenha de dar disso conhecimento à sua ordem profissional, na medida em que a realização de partos faz parte das suas habilitações/competências.

GGG. Uma vez que o nome e contactos do Recorrido continuam a encontrar-se disponíveis na página da Internet da “Rede Portuguesa de (…)” ((:::), torna-se claro que o Recorrido mantém a sua atividade…

HHH. Por todo o exposto, resulta evidente que os prejuízos para o interesse público resultantes do decretamento da providência cautelar são bastante gravosos.

III. Ao entender de forma distinta, a sentença recorrida interpretou e aplicou incorretamente o artigo 120.º, do CPTA. Este preceito deve ser entendido no sentido de não se encontrar preenchido o requisito de periculum in mora quando o interesse público é fortemente prejudicado com o decretamento da providência.
*
II- Questão prévia. O efeito a atribuir ao presente recurso.

Pretende a Recorrente que seja alterado o efeito fixado ao recurso sustentando que “a atribuição de efeito devolutivo ao presente recurso criaria uma sensação de impunidade perante tais factos o que conduziria a uma perda de credibilidade da Ordem dos Enfermeiros; credibilidade essa que, como se sabe, é absolutamente essencial para a Ordem dos Enfermeiros poder prosseguir as suas atribuições e, dessa forma, garantir o interesse público que presidiu à sua constituição.”

Sucede que este juízo foi afastado expressamente na decisão recorrida, na ponderação de interesses em presença, nos termos e para o efeito do disposto no n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que a fixação do efeito suspensivo ao recurso traduzir-se-ia numa revogação da decisão recorrida pela mera alteração do efeito ao recurso, o que, manifestamente, contraria a própria natureza e função do recurso.

Em todo o caso, como veremos, a decisão recorrida é de manter, no sentido do deferimento da providência, sujeitando-se, no entanto, a mesma a condição que salvaguarde o interesse público.

Termos em que se impõe manter o efeito devolutivo fixado ao recurso – artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
*
III –Matéria de facto.

A decisão recorrida deu como indiciariamente provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:

A) AA..., ora Requerente, é enfermeiro há cerca de 23 anos, especialista em enfermagem de saúde materna e obstétrica e membro nº (…) (Cfr. folhas 28 e 29 do processo administrativo).

B) No dia 12.12.2018, deu entrada na Ordem dos Enfermeiros, participação remetida pelo Centro Hospitalar (...), EPE, subordinada ao assunto, parto no domicílio, de onde é possível extrair:

“No dia 12-11-2018 as Sras. Enfermeiras CA..., mecanográfico (...) e LR... (…), e o Sr. Enfermeiro JC..., mecanográfico (…) fizeram a seguinte ocorrência:

No dia 08-11-2018 deu entrada na Urgência de Obstetrícia e Ginecologia, pelas 17h04 a utente LM..., episódio de urgência 18500621, processo nº 18006013, por parto eutócico no domicílio às 13h50, em gestação de 40 semanas e 6 dias do qual nasceu uma recém-nascida com 3320g. A Sra. Enfermeira CA..., que vinha do parque de estacionamento, relata que se deparou com uma senhora deitada no banco traseiro de um carro preto, pálida, que tinha em curso uma perfusão de Lactato de Ringer 1000cc, a quem, a Assistente Operacional CG... tentava colocar numa cadeira de rodas. A Sra. Enfermeira CA... foi abordada pelo condutor, que não se identificou, esta apresentou-se, dizendo que era Enfermeira Especialista de Saúde Materna e Obstétrica, ele referiu que tinha sido um parto no domicílio não prestando qualquer outra informação. Simultaneamente deparou-se com um indivíduo, que saía do banco da frente do automóvel, trazendo ao colo um recém-nascido vestido unicamente com um babygrow e um gorro na cabeça, que apresentava sinais de hipotermia, cianose facial, perante esta evidência trouxe o recém-nascido imediatamente para o serviço, pediu ajuda ao colega Enf. JC... para vir cuidar da puérpera. O Enfermeiro JC… acorreu de imediato, ajudou a trazer a utente para o serviço, nesta altura o condutor da viatura identificou-se como sendo Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstétrica, de nome AF..., referiu que tinha realizado o parto no domicílio e que trazia e puérpera “com umas perdazitas aumentadas e que suspeitava que tivesse restos placentares”, mais informou que a utente era “um grupo negativo e que trazia no carro um tubo de sangue que colheu do cordão umbilical”. A utente teve uma lipotimia, no transfer da urgência, estava já acompanhada, também, pela equipa médica, foi colocada na maca e transportada para o Quarto de Partos nº 8.

Nos registos do Padrão de Documentação de Enfermagem, e do Processo Médico, está escrito:

Puérpera com palidez acentuada, vítima de lipotimia. Apresentava extensa laceração do 1º grau do grande lábio esquerdo, que foi corrigida, edema vulvar exuberante com condilomas múltiplos vulvares e na parede vaginal. Foi cateterizada 2ª veia periférica para colheita de sangue para Hemograma, Bioquímica e Coagulação ficaram em perfusão de 500cc de Voluven. Às 17h15 tinha os seguintes valores:

Tensão Arterial 112/67mmHG, Pulso 135bat/minuto. A utente referiu que “o problema foi a placenta e que o AF… teve necessidade de introduzir a mão para a retirar”. Foi chamada a Pediatra, Dra. CF..., que observou a recém-nascida, desta observação registou que “Recém-nascido frio, colocado na fonte de calor, rosado, sem SDR, boa vitalidade e choro vigoroso. Sem malformações aparentes”.

(…)”.
(Cfr. folhas 1 a 4 do processo administrativo).

C) Em 13.12.2018, foi deliberado pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional a abertura de processo de averiguações (processo administrativo/ 167/2018/CJRC/VA) (Cfr. folhas 8 do processo administrativo).

D) Em 12.12.2019, foi elaborado relatório de instrução no âmbito do referido processo de averiguações, com a seguinte proposta: “Em face das conclusões e do enquadramento dos factos descritos, propõe-se a conversão do presente processo de averiguações em processo disciplinar, nos termos e para os efeitos do nº 1, do artigo 81º, do Regulamento Disciplinar, contra o Enfermeiro AA..., membro nº 1290.” (Cfr. folhas 91 a 93 do processo administrativo).

E) Em 30.10.2019 e no seguimento da participação apresentada pelo Senhor RB…, contra o Enfermeiro AA..., por indícios de violação de normas deontológicas, o Conselho Jurisdicional Regional do Centro propôs a abertura de processo disciplinar e apensação ao PA/167/2018/CJRC/VA que se encontrava em fase de relatório com proposta de conversão do mesmo em processo disciplinar (Cfr. folhas 97 do processo administrativo).

F) Em reunião da 1º secção do Conselho Jurisdicional, de 07.11.2019, foi feita apreciação liminar da participação remetida pelo Sr. RB... e deliberado apensar a mesma ao processo de averiguações nº PA/167/2018/CJRC/VA (excerto da ata número sessenta e quatro) (Cfr. folhas 96 do processo administrativo).

G) Foi deliberado pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional, em 24.01.2020, a conversão do processo de averiguações (PA/167/2018/CJRC/VA em processo disciplinar (excerto da ata número dois) (Cfr. folhas 108 e 109 do processo administrativo).

H) Em 31.01.2020, foi dado conhecimento ao Enfermeiro AA... da instauração de processo disciplinar e da nomeação do respectivo instrutor, Conselheiro Enfermeiro VA..., membro nº (…) – (Cfr. folhas 111 a 114 do processo administrativo).

I) Em 11.03.2020, o Requerente prestou declarações no âmbito do processo disciplinar nº PD/167/2018/CJRC/VA, sendo possível extrair do respetivo auto de inquirição:

“(…)
Refere o Arguido ter tido necessidade de recorrer ao “Plano B”, tendo, nesse sentido, efetuado o transporte da utente na sua própria viatura, por esta ser a forma mais rápida de a transportar e após a ter estabilizado hemodinamicamente, depois de lhe ter colocado uma infusão expansor plasmático no caso lactato de ringuer.
(…)
Tendo sido questionado se foi uma análise abstrata de tempo reduzido que levaria a chegar ao Hospital ou porque a ativação do INEM não corresponderia ao tempo útil, o Arguido referiu não ter sido motivado nem por uma, nem por outra. Referiu o Arguido que não foi uma questão de socorro à pessoa em contexto normal, nem foi uma análise abstrata, mas que dentro das suas competências e tendo em conta o pós-parto e a dequitadura, tendo a utente sido estabilizada, ainda tinha suspeitas de retenção de cutilédones no útero, não sendo esta, na opinião do Arguido, uma situação urgente, mas exigindo uma observação mais técnica, tomou como decisão, em complemento do socorro efetuado, e uma vez que a distância até ao Centro Hospitalar era curta, de a transportar, por meio próprios, para o mesmo. Refere o Arguido ter considerado estar em condições de segurança, tanto para a puérpera, como para o recém-nascido, para efetuar o transporte.

Questionado se tinha materiais necessários para o parto e pós-parto, o Arguido refere que sim, informando encontrar-se acompanhado por todo o tipo de material próprio igual ao que existe numa sala de partos a nível nacional para assistência em parto normal.

Considera o Arguido haver uma intenção incriminatória à sua pessoa por parte do Centro Hospitalar, não entendendo o motivo, na medida em que o mesmo, na sua opinião, recorreu à boa prática e às competências que lhe foram incutidas enquanto profissional de saúde, tendo transferido a utente em segurança e para salvaguarda da saúde da utente.
(…)
Refere ainda o Arguido que nos 15 minutos de viagem até ao Centro Hospitalar manteve-se sempre a conversar com a utente, questionando-a se se sentia bem, se estava a sentir perdas hemáticas, comprovando haver estabilidade hemodinâmica, respiratória, mantendo-se a utente consciente e orientada.
(…)
Tendo sido questionado se situações de transferências anteriores já teriam ocorrido para a Unidade de Saúde de (...), o Arguido referiu que sim, ainda que nunca nestes termos, nem em pós-parto, sempre em situações anteparto.

Quanto à participação apresentada em 23.09.2019 pelo Sr. RB..., e que foi apensada aos presentes autos, o Arguido refere que são intercorrências que podem ocorrer a qualquer pessoa. Refere que, de facto, o seu automóvel avariou, não tendo o mesmo como se deslocar até Tomar. Refere ainda que o Sr. RB... também estava a ser acompanhado por uma dola, tendo a mesma alertado o Arguido de práticas ilegais por parte do Sr. RB..., designadamente consumo de substâncias ilícitas. O Arguido não conseguiu confirmar esta situação com o Sr. RB..., na medida em que o mesmo durante um largo período de tempo não o contactou, mas refere o Arguido que caso a situação fosse confirmada, não iria continuar a acompanhar o casal. Por fim, refere o Arguido que aquando do contacto por parte do Sr. RB..., e na impossibilidade de se deslocar a Tomar, aconselhou o Sr. RB... a chamar a emergência médica (INEM) ou a deslocar-se ao seu Hospital de referência.”.

(Cfr. folhas 145 a 147 do processo administrativo).

J) No dia 11.05.2020, o Conselho Diretivo Regional da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros remeteu ao Conselho Jurisdicional Regional da Secção Regional Centro da Ordem dos Enfermeiros, nota interna com a seguinte informação “…. no processo informático e físico do Senhor Enfermeiro AA..., membro nº 1290, não consta qualquer registo disciplinar.” (Cfr. folhas 162 do processo administrativo).

K) Em 02.07.2020 foi elaborado relatório de instrução com a seguinte proposta de acusação:

“Em face das conclusões e do enquadramento efetuado, propõe-se, nos ternos e para os efeitos do artigo 55º, nº 1, do Regulamento Disciplinar, a acusação do Arguido pela prática de uma infração grave, nos termos e para os efeitos da al. b), do nº 2, do artigo 18º, do Regulamento Disciplinar, à qual cabe a aplicação de uma sanção de entre censura escrita e suspensão do exercício profissional até cinco anos, nos termos e para os efeitos dos nºs 2 e 3, do artigo 19º, do Regulamento Disciplinar, por violação das obrigações descritas nas alíneas a), b), g) e i), do nº 1, do artigo 97º; alíneas a), b) e c), do artigo 100º; alínea d), do artigo 104º; alíneas a) e b), do artigo 109º e alínea a), do artigo 111º, todos do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, isto sem prejuízo de aplicação de sanção acessória, nos termos do artigo 23º, do Regulamento Disciplinar. Como circunstâncias atenuantes a considerar, refira-se o facto de o Arguido ter realizado o exercício efetivo da atividade profissional por um período superior a cinco anos, sem aplicação de qualquer sanção disciplinar, nos termos da alínea a), do artigo 21º, do Regulamento Disciplinar.” (Cfr. folhas 165 a 172 do processo administrativo).

L) Foi deliberado pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional, em 24/07/2020, “…., promover a acusação do Arguido AA..., membro nº 1290, pela prática de infração disciplinar atentos os fundamentos invocados no relatório de instrução com proposta de acusação.” (excerto da ata número nove) (Cfr. folhas 180 a 181 do processo administrativo).

M) No dia 29.07.2020, o Enfermeiro AA... foi notificado do despacho de acusação e respetivo relatório (Cfr. folhas 183 a 192 do processo administrativo).

N) O Enfermeiro AA... apresentou a sua defesa por escrito no dia 31/08/2020, referindo que:
(imagem na decisão recorrida que aqui se dá por reproduzida).

(Cfr. folhas 217 a 249 do processo administrativo que se têm por reproduzidas).

O) Em 16.04.2021, o instrutor elaborou o relatório final, do qual para aqui se extrai o que se segue:

“(…)
IV - Factos Apurados

Das diligências realizadas foram apurados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

1. No dia 08.11.2018, às 17h04, a Sra. LM... (de ora em diante designada por “ Utente ” ), deu entrada na Urgência de Obstetrícia e Ginecologia do Centro Hospitalar (...), EPE;

2. A Utente foi transportada para o Centro Hospitalar de (...), EPE, em carro particular, conduzido pelo Enfermeiro AA…, especialista de

3. Saúde Materna e Obstétrica (de ora em diante designado por “ Arguido ” );

4. O Arguido realizou o parto à Utente, em gestação de 40 semanas e 6 dias, tendo o mesmo ocorrido no domicílio desta, às 13h50;

5. No final do parto, o Arguido não realizou sutura perianal à Utente;

6. No final do parto, que apenas termina com a dequitadura, deu-se uma intercorrência que levou o Arguido a transportar a Utente e o recém-nascido para o Centro Hospitalar de (...), EPE, designadamente, a possível existência de restos placentários acompanhada de perda hemorrágica da Utente maior do que o habitual;

7. Perante a possibilidade de retenção de cotilédones no útero da Utente, o Arguido decidiu transportá-la para o Centro Hospitalar de (...) EPE pelos seus próprios meios, descartando a ativação do serviço de INEM, por não considerar que estaria em causa uma situação urgente;

8. Em outras situações de parto no domicílio, o Arguido já tinha recorrido ao Centro Hospitalar de (...), EPE, em momento de anteparto;

9. A Enfermeira CA... (membro n.° (…)) deparou-se com a Utente deitada no banco traseiro de um carro preto estacionado no parque do Centro Hospitalar de (…) EPE, encontrando-se pálida e com uma perfusão de lactato de ringer de 1000cc em curso, sendo que nesse momento a Assistente Operacional CG... tentava colocar a utente numa cadeira de rodas;

10. O Arguido indicou à Enfermeira CA... que se havia dirigido ao Centro Hospitalar de (...) EPE após ter sido realizado o parto da Utente no seu domicílio; Dentro do carro, conduzido pelo Arguido, encontrava-se outro indivíduo que transportava ao colo o recém-nascido, que apresentava sinais de hipotermia e cianose facial, vestindo unicamente um babygrow e um gorro na cabeça;

11. Face a tal situação, a Enfermeira CC... solicitou ajuda ao seu colega Enfermeiro JC... (membro n.° 1 377), para a auxiliar com o recém-nascido;

12. O Arguido não se identificou como Enfermeiro especialista de Saúde Materna e Obstétrica perante a Enfermeira CA... e o Enfermeiro JC..., apenas o tendo feito perante o colega de urgência obstétrica;

13. Aquando do transporte da Utente e do recém-nascido para o Centro Hospitalar de (...), EPE, o Arguido referiu que a utente apresentava “ (...) umas perdazitas aumentadas e que suspeitava que tivesse restos placentares ” , mais informou que a Utente pertence a “ um grupo negativo e que trazia no carro um tubo de sangue que colhi do cordão umbilical ” ;

14. Na transferência para o serviço de urgência do Centro Hospitalar de (...), EPE, a Utente sofreu uma lipotimia, tendo sido colocada pela equipa de enfermagem e equipa médica numa maca e transportada para o quarto de partos n.° 8;

15. Os registos médicos da Utente indicam: puérpera com palidez acentuada, vítima de lipotimia. Apresenta extensa laceração do 1 .° grau do grande lábio vaginal esquerdo, que foi corrigida, edema vulvar exuberante com condilomas múltiplos vulvares e na parede vaginal;

16. A Utente indicou à equipa que lhe prestou cuidados de saúde que “o problema foi a placenta e que o António teve necessidade de introduzir a mão para a tirar ” ;

17. À Utente foi realizado um procedimento da dequitadura manual, tendo sido necessário que a equipa de enfermagem contactasse o Arguido para esclarecimentos;

18. O recém-nascido foi também observado, tendo sido realizado o seguinte registo "recém nascido frio, colocado na fonte de calor, rosado, sem SDR, boa vitalidade e choro vigoroso.
Sem malformações aparentes ” ;

19. Enquanto a Utente se encontrava no serviço de urgências, solicitou por diversas vezes a presença do Arguido;

20. A Utente opôs-se à vacinação do recém-nascido;

21. A Utente teve alta no dia 13.1 1.2018, no 5.° dia pós-parto, sem queixas, boa involução uterina, lóquios fisiológicos, edema moderado do grande lábio esquerdo vaginal e sem sinais inflamatórios exteriores;
(…)

25. RB... (de ora em diante designado por “ Queixoso ” ), acordou com o Arguido de que este realizaria o parto no domicílio da sua esposa, em Tomar;

26. O Queixoso, a sua esposa, KS (de ora em diante designada por “ Utente KS ” ) e o Arguido reuniram-se presencialmente por forma a preparar o parto no domicílio;

27. O Queixoso e a Utente KS realizaram os procedimentos prévios necessários para a realização do parto no seu domicílio;

28. O Queixoso e a Utente KS eram acompanhados por uma dola, tendo-lhe solicita do a sua opinião relativamente à toma de ayahuasca por ambos durante o momento de nascimento do bebé;

29. Ayahuasca não é considerada uma planta medicinal, nem é permitido o seu uso em Portugal;

30. No dia 16 de setembro, às 04:00 horas da madrugada, tendo a Utente KS entrado em trabalho de parto, o Queixoso entrou em contacto com o Arguido para que este se dirigisse ao domicílio o mais rápido possível;

31. Perante a solicitação do Queixoso, o Arguido alegou que não poderia auxiliar no parto em questão pois não tinha forma de se deslocar, visto que o seu carro estava na oficina;

32. Por essa razão, o parto da Utente KS realizou-se no Hospital;

33. O Arguido preparou os partos no domicílio, sem prever o acompanhamento por outro profissional de saúde ao momento do parto.
(…)
VI – Conclusões
(…)
De acordo com as recomendações para a realização de parto no domicílio elaboradas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, o parto deve ser encarado como um acontecimento que, como qualquer evento no ciclo vital do ser humano, contém algum grau de risco, sendo por isso importante que as famílias e, em particular, as grávidas/casal, estejam bem informados sobre os aspetos fundamentais que dizem respeito à conceção, à gravidez, ao parto e ao crescimento e desenvolvimento dos seus filhos.

Atualmente, a possibilidade da escolha por parte das mulheres/casais grávidos em relação ao local do parto/nascimento dos seus filhos é uma realidade, incluindo o parto no domicílio e, em Portugal, devido a diversos fatores, aumentou o número de partos no domicílio.

Relativamente aos partos no domicílio, deve ser garantido que a situação de saúde da mãe/bebé cumprem todos os critérios básicos de segurança - gestação saudável entre as 37 e as 42 semanas, início de trabalho de parto espontâneo e bem-estar materno/fetal ao início do processo de trabalho de parto. Deve também ser escolhido um profissional de saúde adequado, devendo este realizar vigilância pré-natal, permitindo a confirmação e a garantia de uma gravidez normal, sem episódios de patologia concomitante e com desejável preparação para o nascimento. Conforme resulta do Parecer n.° 31 /201 3, de 24 de maio, elaborado pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, em Portugal, apenas os Enfermeiros especialistas de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica estão habilitados e são legalmente competentes para realizar partos no domicílio.

De acordo com o Parecer acima mencionado, é recomendado que o profissional de saúde não trabalhe sozinho; que seja formalizado um consentimento informado e esclarecido, escrito e assinado pelo casal e pelo profissional de saúde; que haja assistência profissional contínua e individualizada; articulação com equipas de assistências perinatal e outros serviços de saúde existentes, sempre que surja algum indicador de compromisso do bem-estar materno-fetal. No âmbito da relação entre o enfermeiro e a puérpera/casal, o profissional de saúde escolhido deve esclarecer a distância entre o local de parto, a urgência obstétrica mais próxima e a residência do profissional de saúde escolhido, o plano a estabelecer em caso de emergência e o equipamento/material a utilizar durante o trabalho de parto, parto e pós-parto.

E igualmente fundamental a presença de dois profissionais aquando do parto e forma de atuação caso surja uma urgência obstétrica. Nessa medida, formas de transportes e articulação com a maternidade mais próximas são temas que devem ser acordados entre o casal e o profissional de saúde.

Refira-se desde logo, e ainda em fase pré parto, que o Arguido deveria ter encaminhado a Utente para a apreciação médica dos condilomas na vulva e canal vaginal que esta apresentava ao momento de entrada no serviço de urgências do Centro Hospitalar de (...) EPE. Apesar de alegar na sua defesa que fez um acompanhamento à grávida, que a mesma fez exames no SNS e que não detinha qualquer tipo de condilomas, este não logrou provar tal afirmação, tendo-se por isso como não provada. Nesta medida, o Arguido não cumpriu com as recomendações para realização de um parto no Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna a vigilância pré-natal recomendada.

Por outro lado, resultou também provado que, face à situação pós-parto da Utente, esta deveria ter sido transferida para o Centro Hospitalar de (...) EPE, através do INEM e não num carro particular, onde se deitou nos bancos traseiros, sem condições adequadas ao seu estado clínico, sendo que apresentava hemorragias. Considerando também que as temperaturas nesse dia eram baixas e que também se transportava o recém-nascido, é notório que o transporte seguro de ambos apenas seria possível com o acompanhamento de uma equipa diferenciada do INEM.

Acresce que, de acordo com as declarações prestadas por várias testemunhas – Enfermeira LR... (folhas 76 dos autos), Enfermeira EB... (folhas 81 dos autos) e Enfermeiro JC... (folhas 87 dos autos) -, não é a primeira vez que o Arguido se dirige ao Centro Hospitalar de (...) EPE por complicações em partos no domicílio, o que indica uma conduta negligente reiterada, que não pode deixar de ser valorada no âmbito do presente processo disciplinar.

Importa ainda referir que, aquando da entrada da Utente e do recém-nascido no serviço de urgências do Centro Hospitalar de (...) EPE, o Arguido demonstrou-se pouco colaborante com a equipa de enfermagem e médica, transmitindo poucos dados sobre o estado de saúde da Utente e, em específico, por não se ter identificado como Enfermeiro perante a Enfermeira CA... e JC..., quando estes se dirigiram ao veículo, no parque de estacionamento, conforme confessado por este nas declarações prestadas (folhas 145 dos autos). Entende-se que o estado de saúde da Utente e do recém-nascido obrigariam à extrema cooperação entre os profissionais de saúde que aí se encontravam, sendo que o Arguido os deveria ter informado de imediato da situação de pré-parto, parto e pós-parto da Utente, assim como as complicações que daí advieram.

Relativamente à situação do Queixoso RB... e da Utente KS, considera-se que resultou provado que o Arguido deveria ter assegurado um meio de transporte para o período em que fosse previsível que a Utente KS entrasse em trabalho de parto, não sendo justificável a sua ausência devido ao facto de ter o carro em reparação. O Arguido refere que não deveria ser exigida a obtenção de um segundo veículo, para que pudesse ter acorrido ao parto, contudo tal não lhe é exigido, havendo meios de transportes disponíveis para o efeito, por exemplo, o Táxi.

Neste sentido, referem as recomendações para realização de um parto no domicílio elaboradas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica que o profissional de saúde escolhido deve esclarecer a distância entre o local de parto, a urgência obstétrica mais próxima e a residência do profissional de saúde escolhido e o plano a estabelecer em caso de emergência, o que se revela, pelo testemunho do Queixoso e pelas declarações do Arguido, que estes são aspetos que não foram devidamente assegurados. O mesmo decorre do Parecer n.° 31 /201 3, de 24 de maio, elaborado pela Mesa do Colégio de Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, segundo o qual é fundamental a presença de dois profissionais aquando do parto e forma de atuação caso surja uma urgência obstétrica e que, nessa medida, devem ser pré-estabelecidas formas de transportes e articulação com a maternidade mais próximas. Contudo, tal como confessa o Arguido na sua Defesa, tal não foi assegurado.

Dos factos analisados resulta que o Arguido não atuou de forma diligente nem em concordância com os deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, designadamente, alíneas a), b), g) e i), do n.° 1, do artigo 97.° (deveres em geral); alíneas a), b) e c), do artigo 100.° (dos deveres deontológicos em geral); alínea d), do artigo 1 04.° (do direito ao cuidado); alíneas a) e

b), do artigo 109.° (da excelência do exercício) e alínea a), do artigo 111.° (dos deveres para com a profissão).

Como circunstância atenuante a considerar, refira-se o facto de o Arguido ter realizado o exercício efetivo da atividade profissional por um período superior a cinco anos, sem a aplicação de qualquer sanção disciplinar, nos termos da alínea a), do artigo 21.°, do Regulamento Disciplinar.

VII – Proposta

Em face das conclusões e do enquadramento efetuado, propõe-se, nos termos e para os efeitos do artigo 60.°, n.° 1, do Regulamento Disciplinar, a aplicação de uma sanção disciplinar de Suspensão do Exercício Profissional por l(um) ano com pena efectiva por 3 (três) meses e os remanescente suspensos pelo período de 3(três) anos, ao Arguido AA..., membro n.° 1290, nos termos e para os efeitos dos n.° 3, do artigo 1 9.°, do

Regulamento Disciplinar, conjugado com os art. 76.° n.° 1, c) e n.° 4 do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, pela violação das obrigações constantes das alíneas a), b), g) e i), do n.° 1, do artigo 97.°; alíneas a), b) e c), do artigo 100.°; alínea d), do artigo 104.°; alíneas a) e b), do artigo 109.° e alínea a), do artigo 111.°, todos do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, as quais consubstanciam uma infração grave, nos termos e para os efeitos do artigo 1 8.°, n.° 2, al. b), do Regulamento Disciplinar tendo em conta a circunstância atenuante previstas na alínea a), do artigo 21 .°, do Regulamento Disciplinar, ou seja, o exercício efetivo da profissão por um período superior a 5 anos sem a aplicação de qualquer sanção disciplinar.
(…)”.

(Cfr. folhas 256 a 274 do processo administrativo).

P) Foi deliberado pela 1ª Secção do Conselho Jurisdicional, em reunião ordinária realizada no dia 23.04.2021, aplicar a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional pelo período de 1 (um) ano, com pena efectiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos, ao Arguido AA..., Membro nº 1290 (excerto da acta número dezanove; cfr. folhas 276 a 277 do processo administrativo).

Q) No dia 07.05.2021, o Enfermeiro AA... foi notificado da deliberação final da 1ª Secção do Conselho Jurisdicional, tomada em reunião ordinária de 23.04.2021 – (Cfr. folhas 278 e 388 do processo administrativo).

R) Da referida decisão foi interposto, em 20.05.2021, recurso hierárquico (Recurso nº 8/2021) para o Plenário do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros – (Processo Recurso Hierárquico, folhas 1 a 19).

S) Com data de 01.10.2021 a relatora nomeada no recurso hierárquico nº 8/2021, Conselheira CL…, emitiu relatório de recurso, de onde se extrai a seguinte conclusão:

“Em face do exposto, propõe-se que o recurso apresentado pelo Recorrente seja considerado improcedente, mantendo-se a aplicação de sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional por um ano com pena efectiva por três meses e os remanescentes suspensos pelo período de três anos ao Arguido António Manuel
Rodrigues Ferreira (membro nº 1290).”.

(Processo recurso hierárquico, folhas 39 a 46).

T) Em 27.10.2021, o Enfermeiro AA... foi notificado do relatório do recurso hierárquico e da deliberação final do Plenário do Conselho Jurisdicional, tomada em reunião ordinária de 08.10.2021, da sua aprovação por escrutínio secreto, com 5 (cinco) votos a favor (excerto da acta número vinte e dois).
(Processo recurso hierárquico, folhas 47, 60 a 70 e 74, cujo teor se considera inteiramente reproduzido).

U) Através de ofício nº SAI-OE/2021/10649, de 29/12/2021, da Ordem dos Enfermeiros, Secção Regional Centro, o Enfermeiro AA... foi notificado do seguinte:

“(…)
O período de aplicação da sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional que lhe foi aplicada inicia-se no dia 01 de janeiro de 2022 e termina no dia 31 de março de 2022;
A sanção disciplinar aplicada (suspensão do exercício profissional por 1 (um) ano com pena efectiva por 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos, será registada na Base de Dados da Gestão de Membros da Ordem dos Enfermeiros e ainda no Registo Disciplinar de V. Exma.
(…)
Mais informo que a sanção de suspensão do exercício profissional, no período em que vigora, é impeditiva do exercício da profissão de enfermeiro abrangendo quer a prática dos actos próprios da profissão quer o uso do respectivo título profissional os quais, apenas a partir do dia 01.04.2022 poderão ser retomados, sob pena da prática do crime de usurpação de funções, p.p. pela alínea b) do artigo 358º do Código Penal.
(…),
deverá V. Exma. No prazo máximo de 10 dias a partir da data de recepção da presente notificação, proceder à entrega da Cédula Profissional de que é titular …”.

(Cfr. documento nº 4 junto com a petição inicial).

V) Na reunião de 24.05.2013 da Mesa do Colégio de Especialidade em Enfermagem de Saúde Obstétrica foi aprovado o Parecer n.º 31/2013, com o título “Parto no Domicílio_ Hipótese de realização de parto em casa”, acessível em https://www.ordemenfermeiros.pt/arquivo/documentos/Documents/ MCEESMO_Parecer_31_2013_Parto_no_domicilio_Hipotese_de_realizacao_d e_parto_em_casa.pdf, cujo teor se tem por reproduzido, e do qual se extraem os seguintes excertos:

“(…)

3.Conclusão

A Ordem dos Enfermeiros não pretende fomentar o parto no domicílio ou qualquer outro tipo de parto, visto que esta decisão deve ser esclarecida e apenas pertence ao casal.

(…)

1. O seguimento da vigilância da gravidez pelo profissional escolhido deve ser fomentado pois assegura que este esteja em pleno conhecimento tanto das caraterísticas da gravidez como das caraterísticas e anseios do casal com que desenvolve as suas funções. Esta relação de proximidade também facilita ao profissional o conhecimento do local de parto escolhido, possibilitando-lhe a emissão do seu parecer e possíveis ajustamentos das condições para o parto.

(…)”.

W) Pela Mesa do Colégio da especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica foi elaborada a “Recomendação n.º1/2012 Informação/Recomendações à grávida/casal sobre o local do parto, tipo de parto e nascimento dos seus filhos”, acessível em https://www.ordemenfermeiros.pt/arquivo/colegios/Documents/Recomendac ao_1_2012_MCEESMO.pdf, cujo teor se tem por reproduzido, e da qual se extraem os segmentos infra:

“(…)
- Questionem os profissionais de saúde escolhidos quanto à sua metodologia de trabalho, perante o trabalho de parto no domicílio, recomenda-se que:
(…)
-Esclareçam-se junto dos profissionais de saúde escolhidos, relativamente:
- à distância entre o local de parto, a urgência de obstetrícia mais próxima e a residência dos profissionais de saúde escolhidos.
- ao plano de urgência/emergência, prevenção/necessidade.
- o equipamento/material a utilizar durante o trabalho de parto, parto e pós-parto.
(…)”.

X) No seguimento de acordo homologado no âmbito do Proc. nº 10/12.5TMCBR-E – Regulação das responsabilidades parentais, o Requerente ficou obrigado a pagar mensalmente a quantia de 300€00 a título de pensão de alimentos devidos à menor FM... (Cfr. documento nº 5 junto com a petição inicial).

Y) O Requerente contraiu junto do Millennium BCP um empréstimo, com uma dívida que a 31.12.2021 era de 39.385€98, com data de início em 03.10.2014 e data de fim em 25.03.2039, com pagamento da prestação no dia 25 de cada mês no valor de 211€85 (Cfr. documento nº 6 junto com a petição inicial.

Z) O Requerente contraiu junto do Millennium BCP um empréstimo, com uma dívida que a 31.12.2021 era de 44.545€67, com data de início em 06.06.2019 e data de fim em 25.05.2039, com pagamento da prestação no dia 25 de cada mês, no valor de 237€67 (Cfr. documento nº 7 junto com a petição inicial).

AA) O Requerente contraiu junto do Banco Montepio um empréstimo, com uma dívida que a 31.12.2021 era de 40.887€73, com data de contratação em 03/01/2020 e data de vencimento em 03.01.2038, com pagamento da prestação no dia 3 de cada mês, no valor de 242€64 (Cfr. documento nº 6 junto com a petição inicial).

BB) O Requerente contraiu junto do Banco Montepio um empréstimo, com uma dívida que a 31.12.2021 era de 63.398€92, com data de contratação em 14.08.2006 e data de vencimento em 14.02.2037, com pagamento da prestação no dia 14 de cada mês, no valor de 348€35 (Cfr. documento nº 9 junto com a petição inicial).

CC) No dia 14.04.2021, o Requerente entregou declaração modelo 3 de IRS, Anexo A, de onde se extrai que foram declarados à AT os seguintes rendimentos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(Cfr. documento nº 3 junto com o incidente de declaração de ineficácia dos atos de execução indevida).

DD) Em 14.01.2022, a Requerida veio apresentar resolução fundamentada, de onde se extrai:

“(…)
12. Pelos deveres violados e anteriormente transcritos, rapidamente se torna notório que o deferimento da execução da sanção disciplinar aplicada ao Enfermeiro AA... seria gravemente prejudicial para o interesse público.

13. Note-se que está em causa uma atuação muito grave que coloca – e até irremediavelmente – em causa o bem-estar, a saúde e vida das parturientes e recém nascidos.

14. Relembre-se que estamos perante um enfermeiro quem ainda que detentor da Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, realiza partos no domicílio sem cumprimento das recomendações para realização de um parto no domicílio emanadas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, na medida em que realiza os partos sem a devida e recomendada vigilância pré-natal.

15. Mais se refira que a atuação do Enfermeiro AA... – realização de partos no domicílio sem articulação com equipas de assistências perinatal e outros serviços de saúde existentes, por forma a assegurar situações em que exista algum indicador de compromisso do bem-estar materno-fetal -, em incumprimento das recomendações para realização de um parto no domicílio emanadas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, tem sido pelo mesmo repetido, tendo resultado das diligências efetuadas em sede de processo disciplinar não ser a primeira vez que o referido Enfermeiro se dirige ao Centro Hospitalar de (...), E.P.E por complicações em partos realizados no domicílio.

16. Acresce que a realização de partos no domicílio, em especial da forma como o Enfermeiro AA... os realiza, é particularmente sensível porque feito de forma individualizada sem possibilidade de ser acompanhado por outros profissionais de saúde.

17. Por outro lado, das diligências realizadas em sede de processo disciplinar verificasse a inexistência de qualquer intenção do Enfermeiro AA... alterar o seu procedimento.

18. Assim, o diferimento da execução da sanção iria permitir ao Enfermeiro AA... continuar a realizar partos no domicílio, sem ser acompanhado por qualquer outro profissional de saúde, colocando em causa o bem estar, a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos.

Em face do exposto, ao abrigo do nº 1, do artigo 128º, do CPTA, a Ordem dos Enfermeiros emite a presente Resolução Fundamentada na qual reconhece que o diferimento da execução da sanção disciplinar aplicada ao Enfermeiro AA... seria gravemente prejudicial para o interesse público e determina, por este meio, o prosseguimento da execução até que seja proferida decisão sobre o pedido de suspensão de eficácia do ato administrativo.”
*
IV - Enquadramento jurídico.

É o seguinte o discurso jurídico da sentença recorrida:

“(…)

- DO PERICULUM IN MORA

Segundo o disposto na primeira parte do nº 1 do artigo 120º do C.P.T.A., o requisito do periculum in mora encontra-se verificado quando, “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal”.

De acordo com as palavras de Mário Aroso de Almeida, o facto consumado ocorre quando, não falhando os demais critérios de que depende a concessão da providência, “… os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio de que, se a providência for recusada, se tornará depois impossível, no caso de processo principal vir a ser julgado procedente, proceder à reintegração no plano dos factos, da situação conforme à legalidade. É este o único sentido que pode ser atribuído à expressão facto consumado”. – Manual de Processo Administrativo, 4ª Edição, Almedina, pág. 475.

Ou seja, o facto consumado ocorre quando, proferida a decisão no âmbito da ação principal, o resultado da decisão cuja suspensão é requerida, ainda que favorável ao requerente da providência, seja absolutamente inalterável no plano da factualidade.

Não obstante, o periculum in mora não se verifica apenas quando perante a demora da ação principal ocorre uma situação de facto consumado.

Na verdade, a providência deve igualmente ser concedida quando, não ocorrendo uma situação de facto consumado, “… os factos concretos alegados pelo requerente inspirem o fundado receio da produção de “prejuízos de difícil reparação” no caso da providência ser recusada, seja porque a reintegração no plano dos factos se perspectiva difícil, seja porque pode haver prejuízos que, em qualquer caso, se produzirão ao longo do tempo e que a reintegração da legalidade não é capaz de reparar ou, pelo menos, de reparar integralmente”. – obra citada, pág. 475.

Assim, o requisito do periculum in mora ter-se-á igualmente por verificado quando, ainda que seja possível a reintegração no plano dos factos, esta seja causadora, em caso de improcedência da providência cautelar, de graves prejuízos para o requerente, cuja reintegração no plano dos factos não é capaz de reparar ou reparar integralmente.

Pelo que, na primeira situação a adoção da providência torna-se necessária para evitar o risco da infrutuosidade e na segunda o risco de retardamento, em ambos os casos, da tutela a assegurar aquando da prolação da sentença no processo principal.

De salientar ainda que o fundado receio que a lei refere é o receio, “…apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, …” – António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 3ª Edição, pág. 103.

De facto, a qualificação legal do receio como “fundado”, visa evitar a concessão indiscriminada de medidas cautelares, com o risco associado de obtenção de efeitos em sede cautelar que só devem ser obtidos tendo por base a segurança e a ponderação inerentes às ações principais.

Deste modo, ao requerente da providência cabe alegar a matéria de facto que integra a verificação dos pressupostos legais, de cuja ocorrência cumulativa depende a concessão da providência requerida – artigo 342º do C.C.

Efetivamente, ao requerente compete alegar factos integradores dos referidos pressupostos de modo especificado e concreto, não bastando alegações conclusivas e de direito ou com utilização de expressões vagas e genéricas.

Neste sentido, entre outros, Acórdão do TCA Norte, de 08.02.2013, proc. nº 02104/11.5BEBRG, de 17.04.2015, proc. nº 02410/13.4BEPRT, de 28.04.2017, proc. nº 00480/16.2BEBRG-A e de 22.01.2021, proc. nº 01028/20.8BEBRG.

Vejamos o que alega o requerente a respeito do requisito em análise.

No caso dos autos e segundo refere o requerente, a não suspensão de eficácia do ato em crise, que ainda não se encontra consumado, poderá infligir na sua esfera jurídica prejuízos sérios, graves e irreparáveis.

De facto, como refere, o que se pretende é a paralisação da execução do ato administrativo que o suspendeu do exercício da sua profissão.

Assim, salienta o requerente, além dos prejuízos a acautelar passarem pela imagem dos enfermeiros em geral e da sua em particular, acrescem motivações de ordem económica.

Motivações que o mesmo concretiza [factos provados nas als. X) a BB)], e que perante um cenário de não decretamento da providência se traduzem em prejuízos, concretamente na impossibilidade de continuar a suportar o pagamento da prestação de alimentos a que está vinculado, no âmbito do Proc. nº 10/12.5TMCBR-E (Regulação das Responsabilidades Parentais), bem como de proceder ao pagamento de 4 (quatro) créditos hipotecários que contraiu junto do Millennium BCP e do Banco Montepio.

Pelo que, conclui o requerente, a presente providência deve ser julgada procedente por provada, “…, sob pena da verificação dos aludidos prejuízos, antes da procedência da acção principal, onerando o ora Requerente com prejuízos irreparáveis.”

Ora, no âmbito da providência em questão, consideramos que o requerente densifica e concretiza em termo factuais a verificação do requisito em análise, no que concerne à sua dimensão de prejuízos de difícil reparação para os interesses que visa assegurar no processo principal.

Com efeito, desde logo alega o requerente, em termos de prejuízos que pretende ver acautelados através da presente providência, não só os decorrentes para a imagem dos enfermeiros, bem como para a sua em particular, como também os que se traduzem na impossibilidade de garantir o cumprimento das obrigações que assumiu e respetivas responsabilidades financeiras, concretamente quanto à obrigação de alimentos a que se encontra vinculado por força da regulação das responsabilidades parentais (Proc. nº 10/12.5TMCBR-E) e ainda os quatro créditos hipotecários que contraiu junto de duas instituições bancárias.

Sendo certo que tais prejuízos, decorrentes da execução do ato suspendendo, no pressuposto de que ficará afastado do exercício das suas funções e privado da remuneração do seu trabalho por um período de três meses, tem um período de aplicação que se conhece, correspondente à pena efectiva de 3 (três) meses, com início no dia 01/01/2022 e com termo de execução previsto para 31/03/2022.

Ainda que outra prova não fosse junta aos autos, o que não é o caso pois o requerente fez prova de que não possui outros rendimentos para além dos que lhe advém da profissão de enfermeiro [cfr. al. CC) do probatório] , certo é que a execução da sanção disciplinar sempre lhe traria onerosas sequelas, traduzidas na própria inatividade a que ficaria sujeito por força da execução do ato suspendendo, à perda de retribuição correspondente ao tempo de pena efetiva da sanção disciplinar aplicada e ainda consequências sócios profissionais decorrentes da efetivação da sanção disciplinar.

Efetivamente, a aplicação de sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional a um enfermeiro que exerce as suas funções há cerca de 23 anos, sendo especialista em enfermagem de saúde materna e obstétrica e sem qualquer registo em termos disciplinares [cfr. als. A) e J) dos factos provados], acarreta necessariamente prejuízo e descrédito para a sua imagem, face aos restantes colegas e à opinião pública em geral, que caso a ação principal venha a ser julgada procedente, face ao curto tempo de execução do ato suspendendo (três meses), estarão já efetivados e terão efeitos irreversíveis.

Acresce que, no caso em apreço, por força da resolução fundamentada apresentada pela Entidade Requerida, sempre os alegados prejuízos decorrentes do impedimento do exercício da sua profissão e da correspondente perda de retribuição, se traduzem em prejuízos reais e efetivos, uma vez que o ato em crise já não se encontra suspenso na sua execução.

De todo o modo, consideramos que no caso sub judice, a apreciação da situação económica do Requerente e a privação do valor da sua remuneração correspondente ao tempo de execução da sanção disciplinar, constituirá apenas um acréscimo no que toca a verificação do requisito do periculum in mora.

Pois que, num primeiro plano, em termos de integração do referido requisito, estamos perante uma situação de facto consumado, desde logo por decorrência da própria aplicação da sanção disciplinar.

Neste sentido Acórdão do TCA Sul, de 19.04.2018, proc. nº 150/17.4BEPDL-A, in.www.dgsi.pt, “II – A pena disciplinar de 25 dias de suspensão, uma vez suspensa, implica, no imediato, consequências gravosas para o visado e reconduz-se a uma situação de facto consumado. III – Há que presumir que um corte no valor de 25 dias de salário do Recorrido, que será a sua fonte de subsistência, implicará sempre um dano com consequências imediatas no montante pecuniário que mensalmente é colocado ao dispor do Recorrido para fazer face ao seu trem de vida, que ficará necessariamente prejudicado. Esses prejuízos terão, desde logo, que se presumir pelas regras da experiência comum, constituindo presunção judicial. Mesmo que não se entendam tais factos como presunções judiciais, sempre deveriam ser considerados factos notórios, que não carecem de prova.”

E continua o citado arresto, “Na situação em análise está-se frente a uma pena disciplinar de 25 dias de suspensão, que uma vez não suspensa ou efectivada, implica, no imediato, consequências gravosas para o Recorrido. Isto porque, a não suspensão da pena disciplinar implica a sua execução. Consequentemente, no caso de não ser decretada a providência requerida, obtendo o Recorrido ganho na causa principal, já teria certamente passado pelas onerosas sequelas de uma inactividade por 25 dias, decorrente da pena disciplinar. Portanto, na situação em apreço, a não suspensão do acto punitivo, traz, sem dúvida, uma situação de facto consumado.

(…)

E tais sequelas também derivam da correlativa diminuição do rendimento durante aqueles 25 dias. O que por si só é outro dano imediato.

(…)

No entanto, no caso dos autos, o periculum in mora existe, como acima se disse, desde logo por decorrência da própria aplicação da pena disciplinar, que constitui um facto consumado.

Por essa razão, apenas tem um relevo acrescido àquela circunstância a apreciação da situação económica do Recorrido e à privação dos seus rendimentos laborais por 25 dias, não sendo este o facto determinante para a verificação daquele periculum.

Em suma, há que confirmar a decisão recorrida quando julgou verificado o requisito periculum in mora, decorrente de, no caso, a execução do acto suspendendo provocar uma situação de facto consumado.”

Ainda no mesmo seguimento, vide Acórdão do TCA Sul, de 06.02.2014, proc. nº 10784/13, in.www.dgsi.pt, “I – O acto que determina a aplicação de uma pena disciplinar de 30 dias de suspensão, uma vez não suspenso ou efectivado implica, de imediato, consequências gravosas para o Requerente da providência cautelar. Isto porque, a não suspensão da pena disciplinar, implica a sua execução. Consequentemente, no caso de não ser decretada a providência requerida, obtendo o Requerente da providência ganho na causa principal, já teria certamente passado pelas onerosas sequelas de uma inactividade por 30 dias, decorrente da pena disciplinar. II – A não suspensão do acto punitivo que determinou a aplicação de uma pena disciplinar de 30 dias de suspensão, trás, sem dúvida, uma situação de facto consumado, que conduz à verificação do periculum in mora.”

Jurisprudência à qual aderimos integralmente, uma vez que, no caso em apreço, o período de inatividade previsto de 3 (três) meses, decorrente da execução do ato suspendendo, em caso de procedência da ação principal, jamais poderá ser eliminado da vida do requerente, apresentando assim os contornos de uma situação de facto consumada.

De facto, é de considerar que aquando da decisão a proferir na ação principal e em caso da sua procedência, já se encontrará ultrapassado o prazo de 3 (três) meses a que corresponde a pena efetiva da sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional aplicada ao requerente, com a consequente consumação das consequências decorrentes da completa execução da sanção.

Ou seja, como supra se referiu, o facto consumado ocorre quando proferida a decisão no âmbito da ação principal, o resultado da decisão cuja suspensão é requerida, ainda que favorável ao requerente da providência, seja absolutamente inalterável no plano da factualidade, não sendo mais possível proceder à reconstituição específica da sua situação.

Em suma, caso a sanção disciplinar em causa não seja suspensa, ainda que o requerente venha a obter vencimento na ação principal, a mesma estará então totalmente executada, com os consequentes prejuízos consumados.

Assim sendo, afigura-se-nos estarmos perante um caso de impossibilidade de restabelecimento da situação anterior, o que consubstancia uma situação de facto consumado, para efeitos do deferimento da providência requerida.

Por todo o exposto, conclui-se estar verificado o requisito do periculum in mora.

- DO FUMUS BONI IURIS

O critério do fumus boni iuris (aparência do bom direito), encontra-se previsto na segunda parte do nº 1 do artigo 120º do C.P.T.A., nos seguintes ternos, “… e seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.”

Efetivamente, “A par do periculum in mora, o nº 1 do presente artigo faz depender também a atribuição de providências cautelares da formulação de um juízo sobre as perspectivas de êxito do requerente no processo principal”. – Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, 4ª Edição, Almedina, pág. 973.

O referido critério, tal como se encontra previsto no citado normativo, intervém na sua vertente positiva, tornando necessária, para o decretamento da respetiva providência, a existência de um juízo positivo de probabilidade quanto ao êxito do processo principal.

“Tal juízo na apreciação do requisito do fumus boni iuris não é sinónimo da evidência da concreta ilegalidade e consequente muito provável e evidente procedência da pretensão a deduzir a título principal, nem significa que apenas ocorra ou se mostre preenchido quando as ilegalidades ou questões que as mesmas envolvem se apresentem como simples, ou incontroversas”. – Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.11.2018, Proc. nº 0229/17.2BELSB 0649/18, in.www.dgsi.pt.

Vejamos o caso sub judice.

Como resulta dos autos, a providência cautelar ora requerida, providência de suspensão de eficácia da deliberação da 1º Secção do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, de 23/04/2021, que aplicou ao requerente a sanção disciplinar de suspensão do exercício profissional pelo período de 1 (um) ano, com pena efetiva de 3 (três) meses e os remanescentes suspensos pelo período de 3 (três) anos, foi intentada na pendência do processo principal, nos termos do disposto no artigo 114º, nº 1, alínea c) do C.P.T.A., o qual tem em vista, como alega o requerente, a impugnação do ato suspendendo.

Posto isto, entremos agora na análise perfunctória e sumária das concretas ilegalidades apontados ao ato suspendendo.

- Da nulidade procedimental em face da falta de imparcialidade do instrutor

O requerente começa por alegar que, relativamente ao instrutor nomeado, sendo o mesmo um elemento ativo pertencente aos quadros do INEM/VMER, este teve uma visão enviesada e tendenciosa na análise do processo, faltando-lhe a imparcialidade que se impunha.

Esta assim em causa o facto de o instrutor desempenhar um cargo junto da Ordem dos Enfermeiros, situação que, para o requerente, compromete a imparcialidade que seria exigida ao mesmo.


Conforme resulta efetivamente dos autos, o Enfermeiro VA... é Presidente do Conselho Jurisdicional Regional da Secção Regional do Centro.

Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 31.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (EOE), o Conselho Jurisdicional é um órgão colegial integrado por um Presidente e 10 vogais, sendo que cinco deles são, por inerência, os Presidentes dos Conselhos Jurisdicionais das Secções Regionais.

Por sua vez, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º do EOE, “(C)ompete ao conselho jurisdicional instruir os procedimentos disciplinares que respeitem aos membros da respetiva secção, com exceção dos que sejam competência do conselho jurisdicional”.

No que se refere à nomeação do instrutor, esta é competência do órgão competente para instruir o procedimento disciplinar [cfr. artigo 48.º do Regulamento Disciplinar da Ordem dos Enfermeiros (RDOE)].


No caso concreto, entende o requerente que o facto do instrutor ser igualmente membro de um órgão da Ordem dos Advogados é violador da imparcialidade que lhe seria exigida enquanto tal, bem como das deliberações que tomou.

Concretamente no que se refere à exigência de imparcialidade do instrutor, prescreve o n.º 1 do artigo 50.º do referido RDOE, que “(O) membro e o participante podem arguir o impedimento ou a suspeição do instrutor, com os fundamentos previstos no Código do Procedimento Administrativo e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.”

Estabelece o n.º 1 do artigo 209.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, sob a epigrafe “Suspeição do Instrutor” que:

“O trabalhador e o participante podem deduzir a suspeição do instrutor do processo disciplinar quando ocorra circunstância por causa da qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção e da retidão da sua conduta, designadamente:

a) Quando o instrutor tenha sido direta ou indiretamente atingido pela infração;

b) Quando o instrutor seja parente na linha reta ou até ao 3.º grau na linha colateral do trabalhador, do participante ou de qualquer trabalhador ou particular ofendido ou de alguém que, com os referidos indivíduos, viva em economia comum;

c) Quando esteja pendente processo jurisdicional em que o instrutor e o trabalhador ou o participante sejam intervenientes;

d) Quando o instrutor seja credor ou devedor do trabalhador ou do participante ou de algum seu parente na linha reta ou até ao 3.º grau na linha colateral;

e) Quando haja inimizade grave ou grande intimidade entre o trabalhador e o instrutor ou entre este e o participante ou o ofendido.”

Perscrutadas as situações previstas nas alíneas que antecedem, nenhuma das mesmas se mostra subsumível à situação sob apreciação, desconhecendo-se que o instrutor tenha sido atingido, de qualquer modo pela infração, que seja familiar do trabalhador, dos participantes ou de um eventual ofendido, que haja inimizade entre ambos ou que o mesmo seja credor ou devedor do trabalhador, ou de participante. No que se refere à previsão da alínea c), também se desconhece da existência de processo jurisdicional a abranger instrutor e trabalhador.

Assim, nenhuma incompatibilidade prevista na LGTFP se levantava em causa em relação à nomeação do instrutor.

No que se refere às incompatibilidades previstas no Código do Processo Administrativo, reguladas no artigo 69.º do mesmo, prescreve o n.º 1 do referido artigo que:

“ Salvo o disposto no n.º 2, os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, nos seguintes casos:

a) Quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa;

b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil; c) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, tenham interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior; d) Quanto tenham intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou hajam dado parecer sobre questão a resolver;

e) Quando tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;

f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas.

Analisadas as previsões que antecedem, das mesmas não resulta o impedimento de um membro de um órgão, no caso da Ordem dos Enfermeiros, em ser nomeado instrutor de um procedimento disciplinar.

Com efeito, nada impedia assim o referido instrutor de desempenhar aquelas concretas funções.

Porém, ao ser Presidente do Conselho Jurisdicional Regional, e membro, por inerência, do Conselho Jurisdicional, estava assim aquele impedido, por força, respetivamente, das als. d) e f), de intervir na votação para a aplicação de sanção disciplinar, bem como do recurso sobre a decisão que aplicou a mesma.

Todavia, confrontados os factos provados, conclui-se da ata da reunião n.º 22 do Plenário do Conselho Jurisdicional de 8/10/2021, que fruto do referido impedimento, o Sr. Instrutor não participou da deliberação sobre o recurso apresentado pelo requerente [cfr. al. T) do probatório].

Tal como havia já acontecido em relação à votação sobre a proposta do relatório [cfr. extrato da ata n.º 19 da 1ª Secção do Conselho Jurisdicional, de 23/05/2021 – al. P) dos factos provados].

Em face de tal, não se mostra provável que possa proceder a alegação do requerente nesta parte.

- Da alegada nulidade processual por falta de tradução de um documento redigido em inglês

Alega o requerente que, na sequência de uma mensagem de correio eletrónico junta aos autos pelo próprio, o seu teor, sem ter merecido tradução em português, foi vertido na acusação. A falta de tradução do referido documento, para o requerente, configura uma nulidade processual nos termos do artigo 92.º do Código de Processo Penal (CPP) e artigo 133.º do Código de Processo Civil (CPC), o que deverá conduzir ao arquivamento do processo.

Nada dispondo o RDOE sobre a língua dos atos a praticar no procedimento, mostra-se aplicável o disposto no artigo 92.º do CPP, em face do artigo 10.º do referido regulamento disciplinar, sendo igualmente aplicáveis os artigos 133.º e 134.º do CPC, ex vi o artigo 54.º do CPA.

Perscrutadas as normas em causa, das mesmas decorre que a língua do procedimento é a língua portuguesa, pelo que, de acordo com o n.º 1 do artigo 134.º do CPC, “(Q)uando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte”.

Não obstante, da falta de tradução, contrariamente ao alegado pelo requerente, não decorre qualquer nulidade ou mesmo irregularidade (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019, Processo n.º 19156/18.0T8LSB, aliás referido também pela entidade requerida).

Com efeito, aplicando a norma ao processo disciplinar, caberá ao instrutor decidir se o documento em causa é carecido de tradução, decisão que cabe no âmbito da sua discricionariedade. Estando em causa um documento redigido em língua inglesa, esta é uma língua habitualmente compreendida pela generalidade da população, sendo que, compreende-se a decisão de não mandar traduzir o mesmo. Importante será igual salientar que, tendo o documento sido entregue pelo próprio requerente, então arguido, será de presumir que o mesmo, ao utilizar aquele instrumento, compreendia o seu teor, e, ao mesmo tempo, inexistindo no processo disciplinar contraparte que pudesse alegar não compreender a redação em língua estrangeira, não se mostra censurável a não tradução do mesmo, decisão compreendida no poder do instrutor.

Deste modo, também no que se refere a este argumento não será provável que o requerente venha a obter provimento em sede de ação principal.

- Da alegada nulidade processual por apensação do “processo do Sr. Rui RB...”

Alega ainda o autor que a apensação aos autos da queixa apresentada pelo Sr. RB... configura uma nulidade processual, por terem sido coartados os direitos de defesa do então arguido, na medida em que o referido processo nunca chegou ao seu conhecimento, enquanto processo disciplinar.

Prescreve o artigo 25.º do RDOE, que relativamente às infrações não punidas cometidas por um enfermeiro, será instaurado um único processo, sendo que, no caso de se mostrarem instaurados mais do que um serão todos apensados àquele que tenha sido instaurado em primeiro lugar. Em complemento do que se deixou referido, estabelece o n.º 3 do mesmo artigo, que “(Q)uando, antes da decisão de um procedimento, sejam instaurados novos procedimentos disciplinares contra o mesmo membro, os novos procedimentos são apensados ao primeiro, ficando a instrução de todos eles a cargo do instrutor deste.”

Conforme decorre dos factos provados, os presentes autos tiveram início na sequência de uma participação apresentada pelo Centro Hospitalar (...), E.P.E., em 12/12/2018.

Já após ter sido ordenado processo de averiguações, e após ter a fase instrutória do mesmo terminado, foi recebida participação apresenta pelo Sr. RB... em 12/09/2019, relativa a factos praticados pelo requerente.

Em face de tal, em observância da norma antedita, decidiu a 1.ª Secção do Conselho Jurisdicional apensar a participação acabada de referir ao processo em curso.

Ainda que não resulte dos autos ter o requerente sido notificado da referida apensação, daí não decorre o prejuízo para o seu direito de defesa. Com efeito, ao arguido foi possibilitado pronunciar-se sobre os factos daquela participação aquando da prestação de declarações pelo mesmo.

Concomitantemente, após a dedução de acusação, também nesse momento teve aquele oportunidade de rebater as alegações trazidas ao processo contra o mesmo, oferecendo a sua versão dos factos, e podendo requerer prova sobre os mesmos.

Em face do que se deixou dito, será previsível que a improcedência da suscitada nulidade em sede de ação principal.

- Da alegada nulidade processual por não ter sido vertida na acusação as explicações prestadas pelo requerente enquanto arguido

Alega o requerente que a acusação não teve em conta as explicações que o mesmo prestou, fundando-se ao invés em relatos de avaliações subjetivas feitas pelos profissionais do hospital enão evidenciada em documentação.

Por forma a ser elaborada a acusação, foi produzida uma fase instrutória na qual o instrutor recolheu prova relativamente aos factos participados e que poderiam compreender a prática de infração disciplinar. Foi nesse âmbito que o arguido foi ouvido, cabendo efetivamente ao instrutor, retirar da prova produzida em sede de instrução a factualidade que julga mostrar-se provada, valorando mais ou menos cada uma das provas recolhidas.

É sobre essa factualidade que poderá resultar da instrução, que será depois vertida para a acusação, que o arguido será depois ouvido em sede de defesa, e onde o mesmo poderá apresentar provas e contestar os factos e ações que lhe são imputados. Nesta fase, exigir-se-á a ponderação da defesa apresentada e a confrontação da mesma com a demais prova recolhida, por forma a chegar-se ao apuramento da matéria efetivamente provada nos autos.
A atuação da entidade requerida, nesta parte será igualmente objeto de apreciação infra, importando aferir sobre a fundamentação material da decisão.

Porém, concretamente à nulidade suscitada e que se refere à fase que precede a acusação, não ocorrerá a mesma, porquanto está-se ainda num momento instrutório, anterior à ponderação da prova recolhida que ocorre em sede de julgamento, após a apresentação da defesa.

- Da alegada nulidade processual por falta de realização de provas requeridas pelo requerente

Entende o requerente que se mostram violados os direitos do mesmo ao não terem sido realizadas as diligências de prova por si requeridas, os registos clínicos, nomeadamente as recolhas de sangue e temperaturas, em que a acusação se sustenta, em relação às quais inexiste qualquer referência.
Em face de tal, entende o requerente, atento o disposto nos artigos 71.º do RDOE, e o artigo 116.º do CPA, está-se perante nulidade insanável, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, al. d) do CPA.

Aquando da apresentação de defesa, o ali arguido fez consignar na mesma que não requeria a produção de qualquer prova.

Porém, em sede de recurso sobre a decisão de aplicação de sanção, veio o requerente apresentar requerimento de prova onde peticionava a junção aos autos de todos os registos clínicos, designadamente, recolhas de sangue e temperaturas em que a acusação se sustentou.

Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do RDOE, “(C)om o requerimento de interposição do recurso, o recorrente pode requerer novos meios de prova ou juntar documentos que entenda convenientes, desde que não pudessem ter sido requeridos ou utilizados em devido tempo, por facto que não lhe seja imputável.”

Daqui decorre que a possibilidade de em sede de recurso serem produzidas novas provas, está dependente da impossibilidade de as mesmas terem sido requeridas ou utilizadas em devido tempo.

Como se deixou dito, o arguido optou por nada requerer em sede de apresentação de defesa, em reação à acusação.

Por outro lado, a prova requerida em sede de recurso, destinava-se à contraprova de factos dados como provados da acusação. Estando em causa matéria relativa à acusação, o momento para requerer a produção de prova sobre a mesma era aquando da apresentação de defesa. Não tem pois aplicação no caso a possibilidade prevista no artigo 71.º do RDOE, porquanto não se mostra evidenciado, ou mesmo alegado, que aquando da dedução da acusação o requerente não tivesse já apresentado requerimento de produção de prova.

Estando assim vedada a produção da prova requerida, fora de tempo, a sua não produção, porque não admissível, não configura qualquer nulidade, ou mesmo anulabilidade.

Deste modo, não se verificará a suscitada nulidade, o que fará de prever a improcedência da pretensão do requerente nesta parte.

- Da prática das infrações disciplinares

O requerente impugna ainda igualmente a decisão sancionatória alegando que reagiu às acusações que sobre si recaíram, alegando factos que ocorreram e que levaram à decisão de atuação que levou a cabo, tendo por base as intercorrências obstétricas, e assente nas evidências obstétricas.

Refere que a razão de ser da queixa que sobre si recaiu teve na sua base o transporte da utente, e não a situação clínica da mesma, todavia, da acusação não resultam factos, dados e registos que demonstrem um nexo de causalidade que permitisse perceber que se utente tivesse sido transportada pelo INEM não teria hemorragia, lipotimias, edema vulvar, ou que o bebé não apresentasse sinais de hipotermia.

Impugnou em seguida os factos dados como provados no relatório final, alegando que cabe ao acusador, em sede de processo disciplinar, o ónus da prova, inexistindo evidência ou prova de qualquer facto descrito na acusação e decisão final, desconhecendo-se exames médicos que tivessem sido realizados à utente ou recémnascido que comprovassem as afirmações acusatórias quanto ao estado clínico dos mesmos.

A decisão encontra-se assim deficientemente fundamentada.

Não se provaram factos bastantes que pudessem permitir concluir pela violação dos deveres apontados ao requerente.

No que se refere à alegação de falta de fundamentação, o n.º3 do artigo 268.º, da CRP consagra o dever de fundamentação, resultando para o administrado o contraposto direito a conhecer as razões legais que fundamentam o sentido da decisão tomada pela autoridade administrativa permitindo-se assim que aquele possa compreender e se conformar com a mesma decisão ou, caso contrário, impugnar a mesma com base nos fundamentos que constam da mesma decisão.

Os artigos 152.º e 153.º do CPA decorrem diretamente da supra citada norma constitucional, impondo a fundamentação dos atos administrativos nos casos previstos no n.º 1 do artigo 152.º.

Prescreve o artigo 153.º a que fundamentação deverá ser expressa, devendo ser feita com recurso a uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão. Resulta pois dos referidos normativos legais que a obrigação de fundamentar importa a explicitação dos motivos, de facto e de direito, que conduziram à prática de determinado ato administrativo por parte do órgão administrativo.

Conforme referiu no Ac. do TCAN de 25-05-2012, Processo n.º 00730/10.9BECBR : “A fundamentação da decisão administrativa consiste, portanto, na enunciação de forma expressa das premissas fácticas e jurídicas em que a mesma assenta, visando, desta feita, impor à Administração que pondere antes de decidir e, assim, contribuir para uma mais esclarecida formação de vontade por parte de quem tem essa responsabilidade para além de permitir ao administrado seguir o processo intelectual que a ela conduziu.”

A fundamentação deverá pois permitir ao administrado, enquanto homem médio, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo constante do ato em causa, perceber o porquê do sentido da decisão proferida.

Perscrutado relatório final que constitui a fundamentação da decisão sancionatória proferida pela entidade requerida, temos que esta se encontra deviamente fundamentada sob um ponto de vista formal, constando da mesma, por remissão, uma factualidade considerada provada, e que foi em seguida analisada e subsumida nas previsões estatutárias aplicáveis à atividade do requerente, enquanto enfermeiro.

Com efeito, da leitura do relatório final que fundamenta a decisão sancionatória de primeiro grau é percetível ao destinatário compreender as razões conducentes à decisão em causa, como se conclui, aliás, pela impugnação que o mesmo faz da decisão.

Assim, será previsível que, em sede de ação principal, o requerente não veja o ato ser anulado por falta de fundamentação.

Questão distinta será o aferir se a decisão se encontra devidamente fundamentada sob um ponto de vista material, por não padecer a mesma de erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

No ponto “VI-Conclusões” do relatório final é onde é feito o enquadramento da factualidade provada nos autos e, após uma sumária análise das alegações do ali arguido, a sua subsunção no enquadramento legal aplicável.
Não obstante não haver uma recondução concreta de cada um dos factos apurados e tidos como disciplinarmente relevantes aos deveres considerados violados, resulta do aludido relatório final que a Ordem dos Enfermeiros considerou ter sido disciplinarmente relevante uma alegada falta de acompanhamento pré-natal. Considerou a entidade requerida, neste ponto, que o ali arguido deveria ter encaminhado a utente para a apreciação prévia dos condilomas apresentados pela mesma no momento da entrada no serviço de urgências do Centro Hospitalar de (...), E.P.E., não considerando como provado que, como alegado pelo requerente, a grávida tivesse sido acompanhada no SNS e que não detinha qualquer tipo de condilomas.

Entendeu a Ordem dos Enfermeiros, que o acompanhamento pré-natal pelo profissional escolhido era uma exigência para a realização de parto no domicílio, como constava das recomendações para a realização de parto no domicílio elaboradas pela Mesa do Colégio da Especialidade.

Foi igualmente autonomizado pela Ordem dos Enfermeiros, como tendo relevância disciplinar, o meio de transporte utilizado pelo requerente para o transporte da puérpera para o Centro Hospitalar – o seu carro particular, entendendo aquela entidade que, ao não ter recorrido ao INEM, mas a um meio de transporte sem as condições adequadas, nomeadamente em face das baixas temperaturas sentidas, o transporte não foi realizado no único meio seguro, com o acompanhamento de uma equipa diferenciada.

Resulta igualmente da análise efetuada pelo Sr. Instrutor que não era já a primeira vez que o arguido se dirigia ao Centro Hospitalar de (...), E.P.E. por complicações em partos no domicílio, o que, para aquele, era revelador de uma conduta negligente reiterada, que deveria ser valorada no âmbito do processo disciplinar.

Foi igualmente valorado como tendo dignidade disciplinar o facto de o requerente não se ter identificado como enfermeiro perante a enfermeira CA... e o enfermeiro JC..., embora o tivesse feito perante o enfermeiro da urgência, porquanto, entende a requerida, que se impunha que o requerente tivesse imediatamente informado aqueles da situação de pré-parto, parto e pós-parto, bem como das complicações que daí advieram.

Foi ainda valorizado a não presença de dois profissionais de saúde aquando do parto, em contradição com a recomendação constante do Parecer n.º 31/2013 da Mesa do Colégio de Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica.

Finalmente, no que se refere à situação relativa ao queixoso RB..., entendeu a requerida que ao requerente era exigível ter assegurado um meio de transporte para o período em que fosse previsível a utente KS entrasse em trabalho de parto, não sendo justificável a sua ausência devido ao facto de ter o carro em reparação.

Tal argumento funda-se nas recomendações para a realização de parto no domicílio elaboradas pela Mesa de Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, que dispõem que o profissional de saúde deverá esclarecer a distância entre o local do parto, a urgência obstétrica mais próxima e a residência do profissional escolhido, e o plano a estabelecer em caso de emergência.

Analisada a argumentação da entidade requerida vertida no relatório final, temos que, nesta parte, será previsível a procedência da pretensão do requerente, com a anulação do ato impugnado.

Com efeito, considerando esta última atuação censurada do requerente, entendeu a requerida que, em face da recomendação existente sobre os partos ao domicílio, era exigível ao enfermeiro arguido ter garantido um meio de transporte para o período previsível de parto.

Não entende o Tribunal que assim se possa concluir.

Com efeito, alegou o requerente que no durante o dia de domingo a sua viatura teve uma avaria, tendo sido conduzida a uma oficina, pelo que, quando na madrugada de domingo para segunda-feira, às 4h00, foi contactado pelo queixoso RB..., informou-o que não poderia deslocar-se à residência por falta de transporte, devendo ser chamada uma ambulância e o parto ser realizado no hospital.

Considerou, porém a entidade requerida que a justificação em causa não era válida pelo facto de ser dever do enfermeiro garantir meio de transporte para se poder deslocar para o parto.

A recomendação mobilizada neste ponto, como fundamentação, pela requerida estabelece que os progenitores deverão esclarecer-se junto do profissional de saúde escolhido no que se refere à distância entre o local e parto, a urgência mais próxima e a residência do profissional de saúde, bem como sobre o plano em caso de emergência.

Perscrutada a recomendação em causa, da mesma resulta, desde logo, uma recomendação à “grávida/casal”, como resulta expressamente do seu teor [cfr. al. W) dos factos provados].

Não está assim em causa, sequer, uma recomendação ao próprio profissional de saúde.

No que se refere propriamente ao seu teor, infere-se que pela referida recomendação, se procura que esteja previamente definido um plano de forma a salvaguardar uma situação de eventual emergência, ou perigo para a grávida e feto, que possa ocorrer em sede de parto, mediante procedimentos a observar que permitam assegurar à grávida ou puérpera a mais rápida assistência hospitalar disponível. Resumidamente, pretende-se assim que, antes do parto se saiba para onde se deverá ir, no caso de algo correr mal.

Entende-se porém, que o que se verificou não tem previsão naquela recomendação. Com efeito, a falta de transporte em causa terá ocorrido num momento anterior ao parto, e ter-se-á devido a um evento imponderável, a avaria da viatura do requerente, facto que limitou a possibilidade de deslocação do mesmo naquele dia.

Não resulta demonstrado dos autos que em causa estivesse uma situação de emergência que impusesse o transporte a realizar pelo requerente. Tanto que a grávida terá sido conduzida ao hospital por meios próprios, e tido ali o parto. Não se mostrando relatadas quaisquer intercorrências da realização do parto no hospital. A atuação do requerente poderá ser considerada como violadora do contrato celebrado com o casal em causa, contudo, não decorrendo da aludida recomendação, que, saliente-se, era uma recomendação, aquele teria de ter sempre um meio para se deslocar em qualquer momento, e tendo a grávida sido encaminhada para um hospital, não resulta que em causa possa estar a prática de uma infração disciplinar.

Simultaneamente, concluiu o relatório final que o facto de o requerente se ter anteriormente deslocado ao Centro Hospitalar de (...) EPE por complicações em partos no domicílio, é demonstrativo de uma conduta negligente reiterada.

Todavia, para se poder compreender a referida conclusão, a qual foi valorada no juízo condenatório, impunha-se aferir quais as concretas condições em que noutras ocasiões o requerente se dirigiu ao referido Centro Hospitalar.

Com efeito, dos factos provados resulta apenas que “(E)m outras situações de parto no domicílio, o Arguido já tinha recorrido ao Centro Hospitalar de (...), EPE, em momento de anteparto” [facto 7 do relatório], não resultando dali quantas vezes teria tal acontecido, quais os motivos, e, nomeadamente se, estando em causa complicações no parto, estas se deviam à conduta do requerente. Da forma como está redigido o facto, que serviu depois para valorar, negativamente, a conduta do requerente, é igualmente permitida a interpretação de que possa ter estado em causa uma intercorrência natural, e que a atuação do requerente permitiu uma adequada resposta à mesma.

Em face do exposto, ao ser ponderado negativamente na atuação do requerido o facto em causa, tal enferma desde logo o ato administrativo em causa por erro sobre os pressupostos.

Por último, no que se refere concretamente ao transporte pelo requerente da utente, o qual foi considerado inadequado, bem como um transporte pelo INEM poderia ter evitado algumas das intercorrências verificadas, veja-se que, a factualidade provada não permite igualmente a referida conclusão. Com efeito, não é explicada em que medida o transporte poderia ter sido assegurado de um modo mais rápido do que aquele que foi feito porquanto, não foi necessário aguardar pelo mesmo. Simultaneamente, não é possível extrair da decisão e sua fundamentação por que razão o juízo de transportar a utente no carro particular se mostra errado, não sendo alegados fundamentos que justificassem, nomeadamente, que o estado de saúde da mesma não consentia outra solução. Por outro lado, não foi alegado pela requerida quais as concretas intercorrências que poderiam ter sido evitadas com aquele transporte, sendo que, estando em causa intercorrências relacionadas com o parto, sempre o transporte terá acontecido após o mesmo. Circunstância distinta, seria a de as intercorrências se deverem ao meio de transporte escolhido, o que não foi sequer alegado, ou provado, como se tendo verificado.

Concluindo, no que se refere ao transporte, não é possível perceber da decisão condenatória em que medida o requerente, ao ter transportado a utente e o bebé em viatura própria, ainda que a solução de transporte em ambulância pudesse ser mais confortável para aquela, praticou uma infração disciplinar.

Sendo passível de ser assacado erro sobre os pressupostos de facto e de direito à decisão sancionatória relativamente a estas três situações, e porque as mesmas foram consideradas pela entidade requerida na valoração da atuação do requerente que conduziu à aplicação daquela concreta sanção disciplinar, como resulta do relatório final (cfr. “Conclusões VI”), estando vedada ao Tribunal a possibilidade de aplicar nova sanção por outros factos que pudessem importar tal, em face do exposto, afigura-se que, em sede de ação principal, será provável de proceder a pretensão anulatória do requerente, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

Com efeito, não está em causa a não prática pelo requerente de uma conduta disciplinarmente censurável, o que apenas poderá ser aferido em sede de ação principal, com o conhecimento de todos os vícios, mas sim, a existência de erro sobre os pressupostos em relação a algumas das condutas que foram valoradas como infrações disciplinares e que, por isso, foram ponderadas na definição da sanção a aplicar ao requerente, o que enferma assim o juízo condenatório.

Procedendo um dos vícios, verifica-se assim o requisito do fumus boni iuris.

- DA PONDERAÇÃO DOS INTERESSES ENVOLVIDOS

Verificados os requisitos supra enunciados, previstos no nº 1 do artigo 120º do CPTA e que constituem as duas condições positivas de decretamento das providências, as mesmas ainda podem ser recusadas em função da verificação do requisito negativo previsto no nº 2 do citado normativo.

Determina o artigo 120º do CPTA no seu nº 2, “Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.”

No que concerne a este requisito, salienta Mário Aroso de Almeida, “Sucede, porém, que o nº 2 vem acrescentar uma cláusula de salvaguarda neste domínio, permitindo que, no interesse dos demais envolvidos, a providência seja recusada quando, pese embora o preenchimento, em favor do requerente, dos requisitos previstos no nº 1, seja de entender que a sua adoção provocaria danos (ao interesse público e/ou de eventuais terceiros) desproporcionados em relação aqueles que se pretender a evitar que fossem causados (à esfera jurídica do requerente). O nº 2 introduz, assim, um critério de ponderação de danos, por força do qual a decisão sobre a atribuição da tutela cautelar fica dependente da formulação de um juízo de valor relativo, fundado na comparação da situação do requerente com a dos eventuais interesses contrapostos”. – Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª Edição, Almedina, págs. 975 e 976.

Doutro passo, a ponderação dos interesses envolvidos exige a alegação e prova, por parte da entidade requerida, dos danos concretos que a adoção da providência possa causar ao interesse público.

Neste sentido aponta o nº 5 do artigo 120º do CPTA, “Na falta de contestação da autoridade requerida ou da alegação de que a adopção das providências cautelares pedidas prejudica o interesse público, o tribunal julga verificada a inexistência de tal lesão, salvo quando esta seja manifesta ou ostensiva.”

No caso em apreço, compulsada a oposição apresentada pela requerida constata-se que nada foi alegado quanto aos prejuízos para o interesse público eventualmente decorrentes da adoção da providência requerida.

Efectivamente, a este respeito limita-se a requerida a concluir da seguinte forma, “Em face do exposto, e nos termos do artigo 120º, nº 1, do CPTA, é altamente improvável que a pretensão formulada na ação principal seja procedente e não existe qualquer receio (muito menos fundado) da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal.”

Não obstante, não podemos olvidar que a requerida veio apresentar, ao abrigo do disposto no artigo 128º, nº 1 do CPTA, resolução fundamentada.

Recordemos o que a este respeito resulta da referida resolução, “12. Pelos deveres violados e anteriormente transcritos, rapidamente se torna notório que o deferimento da execução da sanção disciplinar aplicada ao Enfermeiro AA... seria gravemente prejudicial para o interesse público.

13. Note-se que está em causa uma atuação muito grave que coloca – e até irremediavelmente – em causa o bem-estar, a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos.

14. Relembre-se que estamos perante um enfermeiro quem ainda que detentor da Especialidade em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, realiza partos no domicílio sem cumprimento das recomendações para realização de um parto no domicílio emanadas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, na medida em que realiza os partos sem a devida e recomendada vigilância pré-natal.

15. Mais se refira que a atuação do Enfermeiro AA... – realização de partos no domicílio sem articulação com equipas de assistências perinatal e outros serviços de saúde existentes, por forma a assegurar situações em que exista algum indicador de compromisso do bem-estar materno-fetal -, em incumprimento das recomendações para realização de um parto no domicílio emanadas pela Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, tem sido pelo mesmo repetido, tendo resultado das diligências efetuadas em sede de processo disciplinar não ser a primeira vez que o referido Enfermeiro se dirige ao Centro Hospitalar de (...), E.P.E por complicações em partos realizados no domicílio.

16. Acresce que a realização de partos no domicílio, em especial da forma como o Enfermeiro AA... os realiza, é particularmente sensível porque feito de forma individualizada sem possibilidade de ser acompanhado por outros profissionais de saúde.

17. Por outro lado, das diligências realizadas em sede de processo disciplinar verificasse a inexistência de qualquer intenção do Enfermeiro AA... alterar o seu procedimento.

18. Assim, o diferimento da execução da sanção iria permitir ao Enfermeiro AA... continuar a realizar partos no domicílio, sem ser acompanhado por qualquer outro profissional de saúde, colocando em causa o bem estar, a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos.

Em face do exposto, ao abrigo do nº 1, do artigo 128º, do CPTA, a Ordem dos Enfermeiros emite a presente Resolução Fundamentada na qual reconhece que o diferimento da execução da sanção disciplinar aplicada ao Enfermeiro AA... seria gravemente prejudicial para o interesse público e determina, por este meio, o prosseguimento da execução até que seja proferida decisão sobre o pedido de suspensão de eficácia do ato administrativo.” – [cfr. al. DD) dos factos provados].

Aqui chegados, distintamente do que se verificou em sede de decisão do incidente de ineficácia dos atos de execução indevida, em que estava em causa apenas a resolução fundamentada, a analisar nos termos que ali foram expressos, cabe agora ao Tribunal efetuar uma ponderação equilibrada dos interesses em jogo, verificando em concreto os eventuais riscos que podem resultar da concessão da providência (quer para o interesse público, quer para interesses privados contrapostos), comparando-os com a magnitude dos danos decorrentes da respetiva recusa.

No caso em apreço, a requerida retira da alegada violação dos deveres por parte do requerente, um grave prejuízo para o interesse público decorrente do deferimento da execução da sanção disciplinar.

Mais argumenta que a violação de tais deveres demonstra uma atuação gravosa por parte do requerente, daqui partindo para a conclusão que tal coloca em causa o bem-estar, a saúde e a vida das parturientes e recém-nascidos.

Sucede porém, que da apreciação da prova efetuada em sede de análise do requisito do fumus boni iuris, não resulta demonstrado que a atuação do requerente possa ser caraterizada como uma atuação negligente e reiterada, nem que tivesse colocado em risco a utente.

Por outro lado, não podemos deixar de considerada desprovida de fundamento a seguinte conclusão constante da resolução fundamentada, “Assim, o diferimento da execução da sanção iria permitir ao Enfermeiro AA... continuar a realizar partos no domicílio, sem ser acompanhado por qualquer outro profissional de saúde, colocando em causa o bem-estar, a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos.”

Note-se desde logo que, a execução da sanção disciplinar aplicada ao requerente conduzirá, na prática, apenas a um interregno de três meses no exercício da atividade do mesmo, o qual poderá retomar a mesma após o cumprimento da sanção. Deste modo, o diferimento da execução da sanção colocará o requerente na mesma situação em que estará após o cumprimento daquela.

Concomitantemente, como se deixou dito, os alegados prejuízos, mais concretamente a saúde e vida das parturientes e recém-nascidos, nunca estiveram em causa em sede de processo disciplinar de que resultou a aplicação da sanção em apreço, cuja suspensão ora se requer.

Não nos parece assim que tais prejuízos possam integrar o elenco dos prejuízos reais, que no decurso do processo, possam vir a surgir.

Acresce que a requerida não dispõe de elementos que permitam concluir e nada no processo o faz antever que, face ao diferimento da execução da sanção em causa, o requerente irá continuar a realizar partos no domicílio.

Pois que a requerida, face ao apurado em processo disciplinar, nada sabe acerca da continuação da realização de partos no domicílio por parte do requerente.

Por outro lado, a não suspensão da sanção disciplinar não impede só a realização de partos no domicílio por parte do requerente, impedindo-se de obter quaisquer rendimentos pelo seu trabalho, de onde resultam evidentes prejuízos para o mesmo, os quais foram já afirmados em sede de periculum in mora.

Por conseguinte, o nº 2 do artigo 120º, igualmente não obsta a que seja decretada a providência requerida.”.

Mostra-se acertada a decisão, no sentido do deferimento da providência, devendo, no entanto, a suspensão do acto punitivo ser sujeita a condição que salvaguarde o interesse público em presença, como adiante se exporá.

Desde logo mostra-se acertado o juízo de verificação do requisito periculum in mora.

A que se pode acrescentar um outro argumento, quanto ao fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado.

Como se sustenta no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06.06.2007, no processo 02571/07:

“I - É de suspender a execução da deliberação do Conselho Jurisdicional Regional de Lisboa da Ordem dos Farmacêuticos que decidiu aplicar a pena de dois anos de suspensão à requerente, farmacêutica, na medida em que, dada a demora média dos processos nos tribunais administrativos, incluindo a possibilidade de haver recurso jurisdicional, é fundado o receio de, até ao trânsito em julgado eventual da decisão anulatória, a requerente ter entretanto já cumprido toda a pena, constituindo-se deste modo uma situação de facto consumado”.

Também no caso dos autos muito provavelmente quando transitasse em julgado a decisão a proferir no processo principal já o Requerente teria cumprido a sanção, caso não se suspendesse a eficácia do acto.

Sendo certo que eventual compensação pecuniária dos prejuízos resultantes da sanção aplicada, não reconstituiria, de facto, a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.

Também quanto ao fumus boni iuris se mostra acertada a decisão recorrida.

Determinar se os factos provados integram uma determinada infracção – ou não – não cabe na esfera de discricionariedade da Administração.

Pelo contrário, cabe naquilo que é função essencial dos tribunais, também na apreciação da validade dos actos administrativos: aplicar o direito aos factos concretos.

Na discricionariedade, técnico-jurídica, da Administração, cabe, isso sim, a tarefa de escolha e graduação da sanção, o que não foi posto em causa na decisão recorrida.

Por outro lado, a situação que ocorreu no caso não se encontra expressamente prevista no ponto 3 da Recomendação da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, como a própria Requerida, aqui Recorrente, reconhece.

Mas também não cabe no espírito da recomendação que regula, como resulta clara e inequivocamente, a realização de partos no domicílio.

No caso não se chegou a realizar um parto no domicílio.

Pelo contrário, o próprio Requerente, informando que não tinha como se deslocar, dado que o seu carro se encontrava na oficina, deu indicação para que a parturiente se deslocasse ao Hospital, onde acabou por se realizar o parto.

Independentemente das razões que determinaram a alteração dos planos, o facto essencial é que o parto se realizou no Hospital, nas mesmas condições em que se teria realizado um parto de urgência.

Sendo assim provável que o acto punitivo em apreço venha a ser anulado por erro num dos pressupostos de facto essenciais, procedendo a acção com principal com esse fundamento, com prejuízo na análise, aqui necessariamente perfuntória e sumária, dos demais fundamentos da impugnação. Assim como da sentença recorrida quanto a este requisito.

Finalmente, quanto à ponderação de interesses:

Defende a Recorrente que a “não execução da sanção criaria uma sensação de impunidade perante tais factos praticados pelo Requerente, o que conduziria a uma perda de credibilidade da Ordem dos Enfermeiros; credibilidade essa que se mostra absolutamente essencial para a Ordem dos Enfermeiros conseguir prosseguir as suas atribuições e, dessa forma, garantir o interesse público que presidiu à sua constituição.”

Sucede que não está em causa a não execução da sanção. Apenas o seu deferimento no tempo, com a suspensão da execução do acto até ao trânsito em julgado da decisão judicial que confirme a sua validade.

Só não será executado o acto se se vier a confirmar – como tudo indica – a sua ilegalidade, em concreto por erro nos pressupostos de facto. Mas nessa hipótese não pode a Recorrente pretender, com o argumento do interesse público, que o acto seja executado.

Não há interesse público que se sobreponha ao da legalidade definida pelos tribunais.

Por outro lado, o interesse público que a Recorrente também invoca, de ser assegurado que o Requerente cumpre a legalidade no futuro quanto aos partos no domicílio, pode ser acautelado pelo controle que incumbe à Requerente no exercício das suas competências disciplinares.
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V - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.
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Porto, 27.05.2022


Rogério Martins
Luís Migueis Garcia
Conceição Silvestre