Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00342/07.4BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/03/2022
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Cristina da Nova
Descritores:ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO, INTERPRETAÇÃO DO ART. 13.º EFC, FINS COOPERATIVOS E SERVIÇOS PRESTADOS A TERCEIROS:
QUOTAS LEITEIRAS
Sumário:1-O probatório tem de respeitar a factos, acontecimentos da vida real desprovidos de considerações de índole subjetiva, conclusiva ou valorativa.
A impugnação da matéria de facto tem de cumprir este parâmetro e densificar de que modo a prova testemunhal foi sobreavaliada, é preciso identificar o vício que identifica essa valorização de meios de prova produzidos.

2- Não obstante a existência de contrato que prevê o pagamento da recolha de leite com um itinerário diferente do estabelecido e se ter autonomizado contabilisticamente o adicional do transporte não implica que se assumiu uma atividade diferente aos fins da cooperativa, pois ficou demonstrado que se trata de continuação da atividade cooperativa que passa pela compra de leite às cooperativas que formam a união e agremiam os produtores de leite.

3-A cedência de quotas leiteiras não é alheia aos fins cooperativos quando se trata serviço prestado pela recorrida promovendo uma gestão integrada das quotas leiteiras com vista à cedência aos seus associados evita sanções económicas no setor, em particular aos produtores de leite que não atinjam a quota necessária, e caírem na alçada das sanções do DL n.º 80/2000 de 9/5, do mesmo passo, desenvolve-se uma gestão eficiente das capacidades produtivas dos produtores de leite, o que claramente se insere nos fins cooperativos e como tal não poderá estar sujeita a tributação [art. 4.º, als. g) e h) do respetivo estatuto publicado no D. R., III série, n. º8, de 10/01/86].*
* Sumário elaborado pela relatora
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
A Fazenda Pública vem recorrer da sentença que anulou a liquidação do IRC do exercício de 2001, na parte das correções em matéria de serviços de transporte e cedência de quotas leiteiras, por erro de julgamento de facto e de direito.
*
Formula a recorrente, Fazenda Pública, nas respetivas alegações, as conclusões que se reproduzem:
«A- Vem o presente recurso interposto contra a sentença proferida nos presentes autos que julgou a impugnação parcialmente procedente e, em consequência anulou parcialmente a liquidação de IRC, referente ao exercício de 2001, bem como a decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa, na parte em que procede à seguinte correção à matéria coletável: acréscimo do lucro tributável no montante de 270.059,22 €, referente a serviços de transporte prestados pela impugnante à G. e acréscimo do lucro tributável do montante de 30.005,23 €, referente à cedência de quotas leiteiras, aqui impugnada.
B- A Fazenda Pública não se conforma com o decidido, pois entende que a douta sentença incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, nomeadamente do artigo 7º, nº 3 e artigo 13º, nº 1 do Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC) e artigo 4º do Estatuto publicado no Diário da República, III série, nº 8, de 10/01/1986.
C- No que concerne ao objeto social a atividade principal desenvolvida pela impugnante, integra-se na indústria de leite e derivados, à qual corresponde o CAE – 15510 e encontra-se enquadrada no regime normal de tributação em sede de IRC e para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade mensal.
D- Da conjugação do nº 3 do artigo 7º e do nº 1 do artigo 13º do citado EFC, à data dos factos, resulta que as cooperativas agrícolas estão isentas de IRC, com exceção dos resultados provenientes de operações com terceiros, de atividades alheias aos fins cooperativos e dos abrangidos pela tributação do lucro consolidado.
E- A impugnante efetuou celebrou em 1/09/2000 um contrato com a GL. no qual se compromete a transportar o leite recolhido na área afeta ao núcleo de C… diretamente para as instalações industriais da GL. sita em M e na área afeta ao núcleo de Lousada para as instalações industriais da G sitas em O ou Leça do Balio, e ainda quando solicitado transportar o leite entre as unidades industriais da G. sitas em Vila do Conde, Leça do Balio, M, T… e O, mediante o pagamento, pela G, de 2$00 e 1$50 por litro de leite transportado respetivamente no caso do transporte de leite efetuado na área afeta ao núcleo de C diretamente para as instalações industriais da G sita em M… e na área afeta ao núcleo de L… para as instalações industriais da G sitas em O ou Leça do Balio. [cláusula 6ª a), b) e c) do contrato]
F- De acordo com a cláusula 10ª, nº 1 do citado contrato “O valor do transporte não será integrado na factura do leite transportado sendo facturado em separado e pago nas condições em vigor para o fornecimento de leite”
G- Como consta da cláusula 13ª do citado contrato, este verte a vontade contratual das partes envolvidas – impugnante e G.
H- A impugnante registou na conta 7251 – Transportes de Comercialização, em 2001 os seguintes montantes: ao setor sujeito € 397.856,07 e ao setor isento € 270.059,22 suportado esse registo por notas de lançamento, com IVA à taxa de 17%, mencionado no respetivo histórico o transporte de leite (incluindo os cálculos dos valores debitados com suporte em documentação adicional) efetuado pela impugnante entre as unidades industriais da G e as unidades industriais de T….ocha, M …e O…, da mesma sociedade.
I- A prestação a um terceiro, não cooperante, G, de serviços de transporte, como tal reconhecidos, quer contratualmente, quer na ata da Direção da impugnante, não pode ser considerada como integrante da industria de leite e derivados que constitui a atividade da cooperativa pois caso tais serviços estivessem integrados na atividade da cooperativa não se justificaria a celebração de um contrato regulando de forma especifica, os serviços de transporte efetuados a um terceiro, nomeadamente o preço, mas assistir-se-ia, ao correspondente reflexo no preço do produto.
J- Os proveitos em causa, obtidos em 2001, não resultando da atividade normal da impugnante, mas de serviços prestados a um terceiro, devem ser afetos ao setor sujeito ao regime geral.
K- A impugnante afetou ao setor isento de IRC, no ano de 2001, o valor de € 372.152,02 registado na conta 7111122 – Outras Mercadorias, relativo a cedência a associados de quotas leiteiras e, o valor de € 342.146,79, tendo sido o mesmo registado na conta 31201 – Compra de Mercadorias – Mercado Interno, respeitante à aquisição das quotas leiteiras com vista à cedência a associados, o que originou, nesse ano, um resultado liquido da impugnante, positivamente influenciado pelo montante de € 30.005,23 (€ 372.152,02 - € 342.146,79), em resultado da compra e posterior cedência de quotas leiteiras e que não contribuiu para o cálculo do imposto a pagar pela cooperativa, pois foi afeto ao setor isento de IRC.
L- A impugnante é uma cooperativa agrícola que se rege pelos estatutos publicados no Diário da República, III série, nº 8, de 10/01/1986, e sucessivas alterações sendo que das diversas alíneas do artigo 4º do estatuto, não se vislumbra em nenhuma delas que a compra e cedência de quotas leiteiras, com realização de proveitos para a cooperativa, seja uma das funções da impugnante.
M- A aquisição e posterior cedência de quotas leiteiras não faz parte do objeto social da impugnante, pelo que os proveitos que daí resultem são resultantes de atividade alheia aos seus fins cooperativos e como tal têm de ser tributados no regime geral do IRC.
N- À factualidade dada como provada no douto decisório devem ser aditados os seguintes pontos:
20. “O contrato celebrado entre a impugnante e a G em 1/9/2000 configura um verdadeiro contrato de transporte/prestação de serviços de transporte que foge ao objeto social da impugnante e cujos valores recebidos foram faturados em separado, ou seja, não integrados na fatura do leite vendido e afetados ao setor isento, quando deveriam ter sido afetos ao setor sujeito a IRC”.
21. “A impugnante registou na conta 7251 – Transportes de Comercialização, em 2001 ao setor sujeito € 397.856,07 e ao setor isento € 270.059,22, suportado esse registo com base em notas de lançamento, com IVA à taxa de 17%, mencionado no respetivo histórico o transporte de leite efetuado pela impugnante entre as unidades industriais da G”
22. “A prestação a um terceiro, não cooperante, a G, de serviços de transporte, como tal reconhecidos, quer contratualmente, quer na ata da Direção da impugnante, não pode ser considerada como integrante da indústria de leite e derivados que constitui a atividade da cooperativa.
23. “Desta forma, o proveito em causa, obtido em 2001, não resultando da atividade normal da impugnante, mas de serviços prestados a um terceiro, devem ser afetos ao setor sujeito ao regime geral”.
24. “A impugnante registou na conta 31201- Compra de Mercadorias – Mercado Interno o montante de € 342.146,79 e na conta 7111122 – Outras Mercadorias o montante de € 372.152,02 relativo a compra e posterior cedência a associados de quotas leiteiras, tendo sido apurado um resultado líquido de € 30.005,23.”
25. “A aquisição e posterior cedência de quotas leiteiras não faz parte do objeto social da impugnante, pelo que os proveitos que daí resultem são resultantes de atividade alheia aos seus fins cooperativos e como tal têm de ser tributados no regime geral do IRC”
O- O Tribunal a quo não pode valorizar a prova testemunhal, como valorizou, para provar factualidade, quando existe prova documental nos autos com cariz contrário, ou seja, a contabilidade da impugnante, que nos termos do disposto no artigo 75º da LGT se presume verdadeira e de boa-fé, bem como o contrato celebrado com a G em 1/09/2000 e a ata da Direção.
P- Afigura-se à Fazenda Pública que as liquidações impugnadas não padecem de qualquer vício ou deficiência determinante da sua anulação parcial.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências.»
*
A recorrida, L., UCRL, apresentou contra-alegações nos seguintes termos:
«I – A Fazenda Pública imputa à sentença recorrida “erro de julgamento de facto e de direito”, mas não custa verificar que não tem qualquer alcance a censura dirigida à decisão da matéria de facto.
Desde logo, apesar de a Fazenda Pública enfatizar na sua penúltima conclusão que “o Tribunal a quo não [poderia] valorizar a prova testemunhal, como valorizou, para provar factualidade, quando existe prova documental nos autos com cariz contrário...”, a afirmação é absolutamente inócua.
Na realidade, dispõe o artigo 640º, nº 1, do C.P.C. que, quando seja impugnada a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ora, embora se depreenda da conclusão O) que a Fazenda Pública censura a decisão recorrida por ter considerado provados factos com base em prova testemunhal, apesar de, no seu entender, existir prova documental em sentido contrário, a verdade é que não especifica nas conclusões os concretos pontos de facto que assim teriam sido incorrectamente julgados, nem os meios probatórios que imporiam decisão diferente, nem o exacto sentido em que os factos deveriam ter sido julgados.
O mesmo é dizer que não há remédio senão rejeitar essa parte do recurso, por falta da especificação imposta pelo artigo 640º, nº 1, do C.P.C..
É certo que, no corpo da alegação, a Fazenda Pública acusa o Tribunal a quo de ter motivado a sua convicção sobre os factos provados em 12), 13), 14) e 16) no depoimento de prova testemunhal que não poderia ser valorizada, por contrariar a contabilidade da impugnante, o contrato de 01/09/2001 e uma acta da Direcção. Mas, como nota ABRANTES GERALDES1, a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto impugnados não pode senão conduzir à rejeição do recurso, uma vez que essa especificação serve para delimitar o objecto do recurso.
1 Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., Coimbra, 2018, pp. 165 e 168.
Aliás, mesmo que se entendesse que a referência contida no corpo da alegação pudesse valer como cumprimento da especificação dos pontos de facto impugnados, ficaria ainda sem se saber porque imporiam os invocados documentos decisão diferente daqueles factos e, ainda, se deveriam considerar-se esses pontos inteiramente não provados, ou provados apenas parcialmente, ou simplesmente provados com uma distinta formulação.
Na realidade, falta na alegação da Fazenda Pública qualquer apreciação crítica de tais documentos que justifique a tese de que imporiam decisão diferente dos factos dos pontos 12), 13), 14) e 16).
A Fazenda Pública abstém-se de explicar em que é que o contrato, a acta ou as facturas e os lançamentos contabilísticos da impugnante podem contrariar os circuitos de recolha, transporte e descarga do leite descritos nos pontos 12 e 14, a decisão de encerramento das fábricas da G referida no ponto 13 ou a opção de autonomizar contabilisticamente o adicional referente ao transporte do leite recolhido para as unidades industriais a que alude o ponto 16.
E bem se compreende que se abstenha, porque, se a acta, as facturas e os lançamentos contabilísticos em nada contrariam a matéria de facto, podendo, quando muito ir no sentido da decisão do ponto 16, já as cláusulas 3ª, 4ª e 5ª do contrato confirmam inteiramente os factos dos pontos 12, 13 e 14.
II – O que vem de escrever-se vale para o ingénuo ataque aos pontos de facto que foram julgados provados. Já no plano da invocação de factualidade que, no entender da Fazenda, deveria ter sido julgada provada e não o foi, o problema é outro, mais grave até do que a simples infracção ao artigo 640º, nº 1, do C.P.C..
Efectivamente, facilmente se constata que o que a AT pretende ver aditado à factualidade dada como provada é sobretudo matéria de direito ou puramente conclusiva que aí não tem o seu lugar.
Seguindo uma formulação de ANTUNES VARELA2, que entronca na lição de MANUEL DE ANDRADE3 e muitas vezes foi invocada pelos tribunais superiores, pode dizer-se que os factos abrangem as ocorrências concretas da vida real, bem como o estado, a qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas; e, sempre na senda do Mestre, que a área dos factos cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas, embora possa abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que, não sendo em bom rigor, factos, mas verdadeiros juízos de facto, não se situam ainda na matéria de direito, e os juízos de valor, se estes não exigirem na sua formulação a aplicação de qualquer regra de direito.
2 ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, pp. 406-410.
3 Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de ANTUNES VARELA, edição revista e actualizada por HERCULANO ESTEVES, Coimbra, 1979, pp. 194-195.
Ora, a esta luz, a Fazenda Pública faz tábua rasa da distinção entre factos e direito quando pretende que, como ponto 20 da decisão da matéria de facto, se qualifique o contrato celebrado com a G em 01/09/2000 como contrato de transporte, se tome posição sobre a sua inclusão no objecto da impugnante e se conclua que os valores ao abrigo dele recebidos deveriam ter sido afectos ao sector sujeito a IRC.
E o mesmo sucede quando a Fazenda aspira a incluir na decisão da matéria de facto, como novos pontos 22 e 23, que a prestação de serviços de transporte à G não pode ser considerada como integrante da indústria do leite e derivados que constitui a actividade da impugnante e que o proveito daí extraído deve ser afecto ao sector sujeito ao regime geral.
Ou ainda quando deseja ver assente num novo ponto 25 que a aquisição e cedência de quotas leiteiras não faz parte do objecto social da impugnante, que os proveitos daí resultantes decorrem de actividade alheia aos seus fins cooperativos e ainda que, como tal, teriam que ser tributados no regime geral do IRC...
Nada disso consubstancia ocorrências concretas da vida real, estado, qualidade ou situação real de pessoas ou de coisas. Trata-se, isso sim, de juízos conclusivos que não passam sem a aplicação de regras de direito.
Ou seja: nada há nos pretendidos novos pontos 20, 22, 23 e 25 que possa ser acrescentado a uma decisão da matéria de facto.
III – Afastada assim a maior parte da pretensão ao aditamento de novos pontos à decisão da matéria de facto – pela singela razão de que não são factos aquilo que se pretende aditar –, sobra a matéria dos registos contabilísticos da impugnante que a Fazenda Pública quer incluir na decisão como novos pontos 21 e 24.
À recorrida não repudia, em princípio, que se inclua na matéria de facto provada qualquer registo contabilístico a que tenha efectivamente procedido; o que não pode aceitar é que se destorçam esses registos contabilísticos, como sucederia se se acolhesse a redacção que a Fazenda Pública gostaria de dar ao seu ponto 24.
Basta atentar no relatório da inspecção, copiosamente transcrito na alegação de recurso, para verificar que, se é exacto que “a impugnante registou na conta 7251 - Transportes de Comercialização, em 2001 ao sector sujeito € 397.856,07 e ao sector isento € 270.059,22”, já não o é que tenha “suportado esse registo com base em notas de lançamento, com IVA à taxa de 17%, mencionado [sic] no respetivo histórico o transporte de leite efetuado... entre as unidades industriais da G”.
Em parte nenhuma se provou que as notas de lançamento que estão na origem dos proveitos afectos ao sector isento tivessem o descritivo invocado pela AT e, com o segundo trecho transcrito, a Fazenda escamoteia a destrinça, que no próprio relatório se estabelece, entre os proveitos resultantes dos transportes efectuados entre a fábrica da G de V… e as unidades industriais da T…, de M e de O, que a impugnante afectou ao sector sujeito ao regime geral de IRC, e os proveitos imputados a transportes entre as zonas de C…. e de L…. – onde se sabe que, em 2001, já não existiam quaisquer fábricas – e unidades industriais ou outros pontos em que a G pretendia a entrega do leite vendido pela impugnante, e que esta afectou ao sector isento de IRC.
Reitera-se que, desde que os seus registos contabilísticos e documentos de suporte não fossem desvirtuados, a impugnante não veria impedimento a que a sua existência figurasse nos factos provados.
Tal não impede, porém, que observe que não sendo a existência de tais registos questionada nos autos, nem constituindo eles quaisquer factos principais ou acessórios, não se pode censurar a sua omissão na decisão da matéria de facto, nem se vislumbra razão para a pretendida alteração.
IV – Flui do exposto que a pretensão da alteração da decisão da matéria de facto improcede na totalidade. Mas sucede, ainda, que essa improcedência torna absolutamente insustentável a tese da Fazenda de que o contrato celebrado entre a impugnante e a G em 01.09.2000 visaria a simples prestação de serviços de transporte a um terceiro, não cooperante, que, não integrando a actividade cooperativizada, deveria considerar-se sujeito ao regime geral da tributação em IRC.
Provou-se, na verdade, que:
10. Em 27/12/1996, foi celebrado um contrato mediante o qual a P, a P1. e a P2 obrigaram-se a entregar à G, a título de venda, todo o leite em natureza que recolhem dos produtores seus associados e esta obrigou-se a comprar àquelas, pelo mesmo preço, todo o leite em natureza que recebem dos referidos produtores associados.
11. Nos termos da cláusula 10.º, n.º 4 do referido contrato no ponto anterior, o preço foi fixado à porta da fábrica, sendo da responsabilidade da vendedora o seu transporte, mais se tendo acordado um acréscimo de valor entre as partes para compensar o transporte de leite para fábrica situada fora da área social da empresa vendedora.
12. Até ao ano de 2000, a Impugnante recolhia o leite dos produtores do núcleo de C e descarregava-o nos tanques da fábrica da G instalada em C, tal como recolhia o leite dos produtores do núcleo de L… e descarregava-o nos tanques da fábrica da G instalada em LL…, para posterior tratamento e comercialização.
13. Nesse ano de 2000, a G encerrou as fábricas sitas em C e de LL… e decidiu transportar o leite depositado nessas concentrações para as unidades industriais sitas em M, O e L….
14. Por outro lado, o leite que era destinado às unidades encerradas (C.. e L…) passou a ser transportada pela Impugnante para as unidades industriais em M, O e L….
15. Nessa sequência, por escrito datado de 01/09/2000, em que foram intervenientes, como primeira outorgante, a Impugnante e como 2º outorgante a G, foi celebrado um contrato, no qual consta, com relevo, as seguintes cláusulas cujo teor se transcrevem:
(Omissas - dá-se aqui por reproduzido)
16. Por razões que se prendem com o controlo de gestão, a Impugnante optou por automatizar contabilisticamente o adicional referente ao transporte do leite recolhido junto dos produtores para as unidades industriais em M, O… e L….
O contrato de 1996, provado sob os nºs 10 e 11 da decisão da matéria de facto, retrata um aspecto fundamental da actividade cooperativizada da .P, que passa pela compra do leite às cooperativas que formam a união e agremiam os produtores de leite e pela sua venda à G, e que envolve a recolha do leite nas explorações dos produtores, para ser entregue nas instalações industriais da compradora.
Tal actividade, que assegura o escoamento do leite para o mercado, insere-se de forma evidente na actividade da impugnante, como união de cooperativas agrícolas de produtores de leite, que, de acordo com o artigo 4.º dos seus estatutos, transcrito na douta sentença recorrida, tem por fim exercer uma acção supletiva e/ou complementar das actividades técnicas e económicas daquelas, nomeadamente, promovendo e realizando a venda do leite no território nacional ou no estrangeiro.
E bem se compreende que, face à vantagem que representa a garantia da venda da totalidade da produção, a fileira produtora assuma a responsabilidade pelo transporte até às instalações da G.
Também a Fazenda assim o entende, visto que não questiona a afectação ao regime isento de IRC dos proveitos que a Impugnante colhe de tal actividade.
Ora, como resulta dos factos provados sob os nºs 12 a 15, o contrato celebrado em 2001 entre a impugnante e a G teve na sua origem a extensão dos circuitos de transporte do leite provocada pelo encerramento de unidades industriais que, à data do contrato de 1996, a G possuía em C e L….
A P., face ao encerramento da fábrica de C…, viu-se forçada a passar a transportar o leite recolhido nesse distrito para a fábrica de M… do seu cliente e, perante o fecho da fábrica de L…., teve que transportar o leite recolhido na área respectiva para as fábricas mais longínquas de O…. ou de L….
Os pagamentos previstos nas alíneas a) e b) da cláusula 7ª do contrato de 2001 constituem, como aí se lê, contrapartidas dos percursos de transporte entre a área de C…. e a fábrica de M… e entre a área de L… e as fábricas de O… ou L…, não alterando a substância das obrigações existentes entre a impugnante e a G que continuaram a subsumir-se à compra e venda de leite com entrega nas instalações do comprador, nem – e é o que mais importa – fazendo surgir qualquer actividade da P. distinta daquela que já desenvolvia para assegurar o escoamento do leite e cuja natureza cooperativa a Autoridade Tributária não questiona.
O que mudou foi apenas o valor da contraprestação devida pelo comprador, cujo acréscimo foi autonomizado por razões que, como se provou sob o nº 16, se prendem com o controlo de gestão da impugnante que não pretendeu reconhecer diferenças de preço entre o leite proveniente de diferentes áreas.
V – Como a impugnante recolhe o leite nos produtores para o entregar nas unidades industriais da G, a quem o vendeu, a posição da Fazenda, ao considerar operação com terceiros, alheia aos fins cooperativos, o transporte – rectius, parte do transporte – entre as explorações dos produtores e as fábricas, retiraria com uma mão (a da administração) o benefício que foi dado com outra (a do legislador), tributando a actividade mais característica de uma cooperativa agrícola, que passa por recolher, concentrar e escoar bens e produtos provenientes dos seus membros.
Para defender esse resultado perverso, a AT, além de deturpar a factualidade provada, despreza a natureza complementar do transporte do leite até às instalações do cliente, forçando, para além do admissível, o conceito de terceiro pressuposto pelo Código Cooperativo e pelo EFC.
O Código Cooperativo, na redacção que vigorava ao tempo dos factos, embora admitisse no artigo 2º, nº 2, que as cooperativas realizassem operações com terceiros, não oferecia um conceito de terceiro.
Segundo RUI NAMORADO4, citado na douta sentença recorrida, “terceiros de um ponto de vista cooperativo, são todos aqueles que mantenham com uma coope­rativa relações que se enquadrem na prossecução do seu objecto principal, como se fossem seus membros, embora de facto não o sejam”. Mas como observa, DEOLINDA APARÍCIO MEIRA5, “não deverão confundir-se os actos próprios da actividade cooperativizada que se realizam com terceiros (que correspondem a uma actividade não mutualista, mas lucrativa e, por isso, extracooperativa), com as actividades que a cooperativa desenvolve com terceiros, mas de forma instrumental, relativamente à sua actividade cooperativizada (actos preparatórios e instrumentais)”.
4 Cooperatividade e Direito Cooperativo, Estudos e Pareceres, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 184-185
5 O Regime Económico das Cooperativas no Direito Português – O capital social, Porto, 2009, p. 273.
Esta distinção é de óbvio relevo no plano fiscal: quando o Estatuto Fiscal Cooperativo exclui do campo da isenção de IRC as “operações com terceiros”, tem em vista os actos próprios da actividade das cooperativas que se realizam com terceiros e que, cumulativamente, correspondam a uma actividade não mutualista, mas lucrativa, por isso extracooperativa, e que, como tal, deve ser tributada.
A lei não tem – não pode ter – em vista as actividades que a cooperativa desenvolve com terceiros de forma preparatória ou instrumental, relativamente à sua actividade cooperativizada.
O que acabou de dizer-se é particularmente fácil de entender no caso das cooperativas agrícolas como a impugnante que, de acordo com o artigo 2º do DL 335/99, de 20/08, que estabelece o seu regime jurídico, têm por objecto recolher, concentrar e escoar bens e produtos provenientes dos seus membros.
Assim, se uma cooperativa agrícola, procurando o lucro, recolhe, concentra, transforma armazena e escoa bens e produtos provenientes de entidades que não são seus membros, está-se perante operações com terceiros, no sentido que o legislador dá a essas operações. Em contrapartida, se para desenvolver essas actividades com bens e produtos dos seus membros, proporcionando-lhes as vantagens correspondentes, a cooperativa agrícola é chamada a contratar com terceiros – vendendo-lhes os bens e produtos dos seus membros, por exemplo – já não se está perante operações com terceiros, no sentido visado pela lei.
Como já se escreveu nos autos, entra pelos olhos dentro que a venda a não membros dos bens e produtos recolhidos é instrumental da actividade cooperativizada que não se poderia desenvolver sem ela. Daí que essa venda e todos os actos com ela conexos – designadamente o transporte dos produtos até às instalações do comprador – não possam ser havidos como uma operação com terceiro.
Basta pensar que o próprio escopo das cooperativas agrícolas passa por recolher bens e produtos dos seus membros para os escoar no mercado, onde a venda será necessariamente feita a não membros, para logo intuir que não basta que, num determinado contrato, falte a qualidade de membro à contraparte da cooperativa para se poder afirmar que se está perante uma operação com um terceiro.
A douta sentença recorrida alcançou a mesma conclusão, notando, ainda, que “a lei, nos artigos 13.º, n. 1, e 7º, nº 3, do EFC, refere “resultados” provenientes de operações com terceiros e não “rendimentos” provenientes de operações com terceiros, o que significa que a limitação só será aplicável se quer a operação positiva de que advém o proveito (v.g. venda) quer a operação negativa de que advém o respetivo custo (v.g. compra) forem realizadas com terceiros. Por conseguinte, será afeto ao setor sujeito a IRC o resultado de uma compra e de uma venda pela cooperativa a terceiros, mas já será afeto ao setor isento de IRC quer o resultado de uma compra a terceiros e de uma venda a cooperantes, quer de uma compra a cooperantes e de uma venda a terceiros”. E registou que “está nesta última situação a compra de leite pela Impugnante aos seus membros, para venda à G que é terceiro”.
Pois bem: apesar de a P. e a G terem entendido definir por contrato autónomo o valor adicional a pagar à primeira por força da extensão dos circuitos de recolha e entrega do leite provocado pelo encerramento das fábricas de L… e C… é evidente que esse valor representa uma fracção do preço devido pela venda do leite nos termos acordados entre as duas entidades.
O valor adicional acordado pelo contrato de 2000 representa parte da prestação devida pela G por contrapartida do leite que lhe é transmitido e entregue pela P.. E, sendo assim, não se encontra qualquer justificação para dividir o proveito da venda em duas partes, uma isenta e outra não, como se parte do percurso entre as explorações dos produtores e as fábricas da compradora fosse actividade tipicamente cooperativa e outra uma operação com terceiro...
Como se lê na douta decisão em crise: “pese embora este acréscimo de custo não esteja incluído no preço do leite acordado com a G, sendo faturado em separado de acordo com a cláusula 10ª do citado contrato, ... não se tratou do pagamento da transferência de leite depositado, mas sim do transporte de leite recolhido junto dos produtores e vendido à G, daí que a contrapartida tenha sido fixada por litro de leite (e não por km), pelo que o proveito daí decorrente há de necessariamente considerar-se inerente a atividades respeitantes aos fins cooperativos da Impugnante.”
VI – O que vem de dizer-se evidencia também a falta de razão da AT na crítica que dirige à decisão recorrida por ter anulado a parte da liquidação que incidiu sobre os proveitos gerados pela cedência de quotas leiteiras, que a impugnante também afectou ao sector isento.
Como certeiramente se observou na douta decisão em crise, “atentas as finalidades da Impugnante, previstas nos respetivos estatutos, designadamente, as concernentes, em geral, ao setor leiteiro e as funções que lhe competem, em particular, a possibilidade de promover a utilização dos meios aconselháveis para aumentar e melhorar a produção do leite e providenciar no sentido da sua melhor valorização e aproveitamento (alínea g) do artigo 4.º), bem como os objetivos postos a seu cargo pelo Código Cooperativo (de satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais dos cooperantes), a par com o regime jurídico da Imposição Suplementar então aplicável, o qual tinha por objetivo reduzir o desequilíbrio entre a oferta e a procura de leite e produtos lácteos, prevendo para o efeito a possibilidade de transferência ou cedência de quantidades de referência entre produtores, mostra-se plenamente justificada a intervenção da Impugnante através da gestão integrada das quotas leiteiras, designadamente, pela aquisição destas com vista à sua cedência a associados, de forma evitar, assim, sanções económicas que inevitavelmente se repercutiriam no setor, em particular nos produtores de leite, que ultrapassassem as suas quantidades de referência.”
E daí a conclusão de que “resulta indubitável que o serviço de intermediação prestado pela Impugnante... encontra-se claramente compreendido nas atribuições e competências postas a seu cargo pelos seus estatutos e pelo Código Cooperativo, sendo irrelevante para o efeito o facto de o resultado dessa atividade de intermediação entre oferta e procura ter sido positivo”6.
6 Sem esquecer a nota pertinente da Senhora Juíza “a quo” de que “em tal equação não foram tidos em conta [pela AT] os custos administrativos/operacionais inerentes a essa atividade de intermediação, cuja existência se afigura plausível à luz das regras da experiência, e cujo montante se desconhece.”
Dúvidas não há, na verdade, de que, ao contrário do que pretende a Fazenda, a actividade de compra e venda de quotas leiteiras não é alheia aos fins cooperativos da Impugnante. Pode até dizer-se que essa actividade está no cerne dos seus fins e que, como tal, não está sujeita a tributação.
Mas há mais: também no caso da compra e venda de quotas leiteiras se torna manifesto que se está perante um daqueles casos de operações que se inserem em “actividades que a cooperativa desenvolve com terceiros, mas de forma instrumental, relativamente à sua actividade cooperativizada (actos preparatórios e instrumentais)”.
Com efeito, visando a compra e venda de quotas leiteiras pela P., não o lucro, mas sim uma eficiente gestão das capacidades dos produtores, de que resulta um mais perfeito aproveitamento das suas potencialidades produtivas, também aqui se encontram actos que não podem deixar de se considerar preparatórios ou instrumentais da recolha e escoamento do leite, que constitui o núcleo da actividade cooperativizada da P. e cujo sucesso depende, como qualquer actividade que coloca produtos no mercado, da regularidade do aprovisionamento e do preço.
Assim, não ocorre compra e venda de quotas leiteiras a quem deva ser havido como terceiro, nos termos e para os efeitos dos artigos 7º, nº 3, e 13º, nº 1, do EFC.
A própria natureza das operações em causa torna-as acessórias ou instrumentais da actividade cooperativizada (designadamente, a recolha e escoamento do leite), afastando a possibilidade de as encarar como “operações com terceiros” referentes a um sector não isento de IRC.
Também por aqui, portanto, se evidencia a falta de razão da Administração Tributária.
TERMOS EM QUE, NA IMPROCEDÊNCIA DE TODAS AS CONCLUSÕES DO RECURSO, DEVE CONFIRMAR-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA.»
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O Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se do seguinte modo:
«A Fazenda Pública veio recorrer da douta sentença proferida nos autos que considerou, parcialmente, procedente a impugnação instaurada por L., UCRL, pessoa coletiva n.º (…), contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2004 8310024975, referente ao exercício de 2001, no valor de €184.271,44, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2005 00000042790, de 07/04/2005.
Conforme se alcança da douta sentença e das alegações da recorrente a questão central terá a ver, antes de mais, com a interpretação do contrato entre a impugnante e a G relativamente ao transporte de leite.
A recorrente entende que estamos perante uma prestação a um terceiro que se não integra na actividade de industria de leite e seus derivados pelo que os proveitos daí resultantes deveriam ser afectos ao sector sujeito ao regime geral, como refere nas suas conclusões “A prestação a um terceiro, não cooperante, G, de serviços de transporte, como tal reconhecidos, quer contratualmente, quer na ata da Direção da impugnante, não pode ser considerada como integrante da industria de leite e derivados que constitui a atividade da cooperativa pois caso tais serviços estivessem integrados na atividade da cooperativa não se justificaria a celebração de um contrato regulando de forma especifica, os serviços de transporte efetuados a um terceiro, nomeadamente o preço, mas assistir-se-ia, ao correspondente reflexo no preço do produto.
Os proveitos em causa, obtidos em 2001, não resultando da atividade normal da impugnante, mas de serviços prestados a um terceiro, devem ser afetos ao setor sujeito ao regime geral.”
No entanto o tribunal recorrido entendeu de forma diferente referindo expressamente “...não temos duvidas de que não se tratou do pagamento da transferência de leite depositado, mas sim do transporte de leite recolhido junto dos produtores e vendido à G, daí que a contrapartida tenha sido fixada por litro de leite (e não por km), pelo que o proveito daí decorrente há de necessariamente considerar-se inerente a atividades respeitantes aos fins cooperativos da Impugnante.”
Perante tal, e na parte relacionada, o tribunal concluiu ter existido erro na quantificação e qualificação da matéria colectável tendo concluído “Falhando o pressuposto em que assentou a correção efetuada, mormente de que se tratou de serviços resultantes de atividades alheiras aos fins cooperativos da Impugnante, prestados a um terceiro, resulta cabalmente demonstrado o erro na quantificação e na qualificação da matéria coletável, pelo que se impõe a anulação parcial do ato de liquidação, na parte em que compreende a correção à matéria coletável com fundamento na existência de uma alegada prestação de serviços de transporte à G.”
De igual forma o tribunal considerou ter havido erro dos serviços na correcção resultante da cedência de quotas leiteiras considerando que a actividade da impugnante, quando controla as quotas dos seus cooperantes para que não existam deficits nem excessos de produção, se enquadra no seu objectivo mutualista como refere “A Impugnante chama a si esse papel relevante de atuar como ajustando os deficits e excessos de quotas/quantidades de referência. Esse serviço disponibilizado pela Impugnante é resultante do seu escopo mutualista e das próprias funções que lhe estão acometidas estatutariamente enquanto cooperativa, atendendo aos interesses gerais dos cooperadores.”
Tendo concluído pela existência de erro na quantificação e qualificação da matéria tributável, também quanto ao valor em causa, uma vez que a AT não refere que essas operações tenham sido efectuadas com terceiros.
Assim considerou, a final, e quanto a nós correctamente, parcialmente procedente a impugnação e declarando nula “...a liquidação de IRC impugnada, na parte em que procede às correções à matéria coletável da Impugnante, nos montantes de € 270.059,22 e de € 30.005,23, referentes a serviços de transporte prestados à G e à cedência de quotas leiteiras, respectivamente.”
Também a recorrida se pronunciou na sua resposta sobre as questões em referência considerando que ambas as situações resultam da actividade efectiva da impugnante enquanto cooperativa e em prol dos seus cooperantes.
Pelo que conclui a recorrida a sua posição pela improcedência de todas as conclusões do recurso mantendo-se a douta sentença recorrida.
Assim e concordando, por inteiro, com os termos da douta sentença, é nosso parecer que o recurso deve improceder.»
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Sem vistos dos Exmos. Juízes adjuntos, por assim ter sido acordado, foi o processo à Conferência para julgamento.
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2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO: QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações:
[i] saber se a sentença incorreu em erro de julgamento de facto, na vertente de não inclusão no acervo factual os itens que descreve relativos ao contrato celebrado pela impugnante e a G. em 1-09-2000, sugerindo o seu aditamento.
[ii] saber se houve sobreavaliação da prova testemunhal quando a prova documental é de cariz contraditório àquela.
[iii] saber se a sentença errou no enquadramento legal decorrente do Estatuto Fiscal das Cooperativas, aplicável no caso.
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3. FUNDAMENTOS DE FACTO
Em sede de probatório, a 1.ª Instância fixou os seguintes factos:
«1. A Impugnante é uma União de Cooperativas de Produtores de Leite, sedeada em (…), cuja atividade principal se integra na indústria de leite e derivados – cfr. o relatório de inspeção tributária junto como doc. 1 e constante do processo administrativo apenso.
2. Com início em 17/11/2003, a Impugnante foi objeto de uma ação inspetiva, de âmbito geral, relativamente aos exercícios de 2000 e 2001 – cfr. o relatório de inspeção tributária junto como doc. 1 e constante do processo administrativo apenso.
3. Na sequência da acção inspetiva referida em 2), a Direção de Serviços de Prevenção e Inspeção Tributária (DSPIT) procedeu a correções em sede de IRC, à matéria tributável da Impugnante do exercício de 2001, referentes, além do mais, a cedência de quotas leiteiras, transporte de comercialização e a subsídios para investimentos – equipamento transferido para a G, nos seguintes montantes:
CorreçãoMontante
(€)
Cedência de quotas leiteiras30.005,23
Transporte de comercialização270.059,22
Subsídios para investimentos – equipamento transferido para a G163.731,27
– cfr. o relatório de inspeção tributária junto como doc. 1 e constante do processo administrativo apenso.
4. De acordo com o relatório da inspeção tributária, as correções referidas em 3), assentaram no seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

(...)» – cfr. o relatório de inspeção tributária junto como doc. 1 e constante do processo administrativo apenso.
5. No seguimento das correções efetuadas, foi emitida a liquidação adicional IRC n.º 2004 8310024975, no valor a pagar de €184.271,44, que deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2005 00000042790, de 07/04/2005, no valor a pagar de € 192.443,15, com data limite de pagamento de 16/05/2005 – cfr. documento 2 junto com a petição inicial.
6. Em 21/07/2005, a Impugnante deduziu reclamação graciosa da liquidação referida em 5) – cfr. o doc. 3) junto com a petição inicial e o processo de reclamação apenso.
7. Por despacho de 02/01/2007, notificado à Impugnante por carta registada de 18/01/2007, a reclamação graciosa referida em 6) foi deferida parcialmente – cfr. o doc. 4) junto com a petição inicial e o processo de reclamação apenso.
8. Nesse seguimento, foi emitida a liquidação n.º 2007 831000669, no valor a pagar de €179.659,13 – cfr. o processo de reclamação apenso.
9. Em 02/02/2007, a presente impugnação deu entrada no Serviço de Finanças de Vila do Conde – cfr. fls.2 do processo físico.
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Mais se provou, com interesse para a decisão, o seguinte:
10. Em 27/12/1996, foi celebrado um contrato mediante o qual a P., a P1. e a P2 obrigaram-se a entregar à G, a título de venda, todo o leite em natureza que recolhem dos produtores seus associados e esta obrigou-se a comprar àquelas, pelo mesmo preço, todo o leite em natureza que recebem dos referidos produtores associados – Cfr. Facto admitido por acordo; págs. 17 e 39 do Relatório de inspeção.
11. Nos termos da cláusula 10.º, n.º 4 do contrato referido no ponto anterior, o preço foi fixado à porta da fábrica, sendo da responsabilidade da vendedora o seu transporte, mais se tendo acordado um acréscimo de valor entre as partes para compensar o transporte de leite para fábrica situada fora da área social da empresa vendedora – Cfr. Facto admitido por acordo; pg. 17 do relatório de inspeção.
12. Até ao ano de 2000, a Impugnante recolhia o leite dos produtores do núcleo de C… e descarregava-o nos tanques da fábrica da G…. instalada em C…., tal como recolhia o leite dos produtores do núcleo de L…e descarregava-o nos tanques da fábrica da G instalada em L…, para posterior tratamento e comercialização – cfr. prova testemunhal.
13. Nesse ano de 2000, a G encerrou as fábricas sitas em C… e de L… e decidiu transportar o leite depositado nessas concentrações para as suas unidades industriais sitas em M…, O… e L… – cfr. prova testemunhal.
14. Por outro lado, o leite que era destinado às unidades encerradas (C… e L… passou a ser transportado pela Impugnante para as unidades industriais em M…, O… e L… – cfr. prova testemunhal.
15. Nessa sequência, por escrito datado de 01/09/2000, em que foram intervenientes, como primeiro outorgante, a Impugnante e como 2.º outorgante a G, foi celebrado um contrato, no qual consta, com relevo, as seguintes cláusulas cujo teor se transcrevem:
«1.ª
A primeira outorgante desenvolve as suas actividades sociais na área da produção, recolha e comercialização de leite junto dos seus associados.
2.ª
A segunda outorgante dedica-se à indústria e comercialização de leite.
3.ª
A primeira outorgante procede à recolha do leite produzido pelos seus associados em localidades dos concelhos de C…., V….. V1…, M, B, V2 e V3, sob orientação e responsabilidade do seu núcleo sito em C….
4.ª
Procede igualmente à recolha do leite produzido pelos seus associados em localidades nos concelhos de L, A, C B, M, F, R P, P2, P3, V, F, V, G(freguesia de ), e algumas freguesias do concelho de So, sob orientação e responsabilidade do seu núcleo de L.
5.ª
A segunda outorgante decidiu:
a) cessar a actividade das suas unidades industriais de C e L e o transporte de todo o leite depositado nessas concentrações para as suas unidades industriais sitas, respectivamente, em M, O e L;
b) Acordar com a primeira outorgante, em regime de exclusividade, o transporte do leite que era destinado às unidades encerradas (C e L) para as unidades industriais de destino, M, O e L;
6.ª
Tendo em vista o referido na cláusula anterior a primeira outorgante compromete-se a:
a) transportar o leite recolhido na área afecta ao núcleo de C…. directamente para as instalações industriais de segunda outorgante sita em M;
b) transportar o leite recolhido na área afecta ao núcleo de L… para as instalações industriais da segunda outorgante sitas em O ou L;
c) transportar, quando solicitado, leite entre as unidades industriais da segunda outorgante sitas em V, L, M, T e O.
7.ª
A segunda outorgante, por seu lado, obriga-se a:
a) pagar a quantia de 2$00 (dois escudos) por litro de leite transportado como contrapartida do estipulado na alínea a) da cláusula anterior;
b) pagar a quantia de 1$50 (um escudo e cinquenta centavos) por litro de leite transportado como contrapartida do estipulado na alínea b) da cláusula anterior;
c) pagar a quantia de 160$00 (cento e sessenta escudos) por KM percorrido como contrapartida do estipulado na alínea c) da cláusula anterior, independentemente da taxa de ocupação da cisterna, cabendo a esta a responsabilidade pela gestão da ocupação das cargas.
d) (...)
9.ª
O presente contrato é valido por um período de três anos, com início no dia 1 de Novembro do corrente ano, considerando-se prorrogado por períodos de um ano, se não for denunciado, pelas partes por carta registada com a antecedência mínima de 90 dias relativamente ao termo do prazo em curso.
10.ª
1 – O valor do transporte não será integrado na factura do leite transportado sendo facturado em separado e pagos nas condições em vigor para o fornecimento de leite.
2 – Ambas as partes acordam em que o preço do transporte do leite seja actualizado no mês de Janeiro de cada ano, conforme o último índice de inflação anual publicado até à data do Instituto Nacional de Estatística.»
- Cfr. Fls. 98 a 101 do processo de reclamação graciosa; prova testemunhal.
16. Por razões que se prendem com o controlo de gestão, a Impugnante optou por autonomizar contabilisticamente o adicional referente ao transporte do leite recolhido junto dos produtores para as unidades industriais em M, O e L – cfr. prova testemunhal.
17. De acordo com o contrato de concessão de incentivos financeiros à Impugnante, outorgado por representantes do IAPMEI e desta ultima, em 03/05/1996, a Impugnante obrigava-se a, além do mais, «não utilizar para outro fim, não ceder, alienar, locar ou onerar, no todo ou em parte, quer a gestão, quer a propriedade dos bens adquiridos com o subsídio, sem prévia autorização do Ministro da Industria e Energia, até cinco anos após a concretização do projeto» (cláusula 6.ª, alínea j)), podendo o IAPMEI rescindir o contrato, caso a Impugnante não cumprisse as obrigações do mesmo decorrentes (cláusula 11.ª, alínea a)) – cfr. Fls. 161-166 do processo físico.
18. No ano de 2001, a Impugnante monitorizava as quantidades de leite produzidas pelos seus cooperantes – cfr. prova testemunhal.
19. No ano de 2001, a Impugnante adquiriu quotas a cooperantes que nesse mesmo período não alcançaram o limiar máximo da sua quota de referência e cedeu quotas leiteiras a cooperantes cuja produção excedia as suas quotas de referência – cfr. prova testemunhal.
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Com relevância para a decisão a proferir, não existem factos não provados ou outros factos provados para além dos acima elencados.
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A decisão sobre a matéria de facto baseou-se na ponderação crítica: (i) dos documentos juntos aos autos e dos constantes do processo administrativo apenso, os quais se dão por inteiramente reproduzidos, não tendo sido impugnados, designadamente, o relatório da inspeção tributária efetuada à Impugnante, cuja força probatória se reporta aos factos que nele são referidos, na medida em que se mostraram devidamente fundamentados através de elementos externos e assentes em critérios objetivos [cfr. o disposto no artigo 76.º, n.º 1 da LGT, valendo os meros juízos pessoais afirmados pela AT como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador, sendo de aplicar o regime geral previsto para a força probatória dos documentos autênticos (artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil); (ii) das posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados; (iii) dos depoimentos prestados, que foram livremente apreciados pelo Tribunal, nos termos do que dispõe o artigo 396.º do Código Civil, atendendo, para tal efeito, à razão de ciência e credibilidade demonstrada por cada uma das testemunhas inquiridas e que corroboraram a veracidade do teor dos documentos juntos pelo Impugnante, tudo conforme indicado em cada um dos itens do probatório, designadamente:
Relativamente aos factos referidos nos itens 12) a 14) e 16) do probatório, o Tribunal atendeu ao depoimento prestado pelas testemunhas inquiridas AM. e BN., chefes dos núcleos de L… e C da Impugnante, bem como, CA. e DV., diretor do departamento de transportes e diretor financeiro, que, por virtude das funções exercidas, demonstraram possuir conhecimento direto dos factos em causa, tendo prestado depoimentos isentos, sérios e credíveis, através dos quais foi possível concluir ao Tribunal que, por força do encerramento das referidas unidades industriais da G, o leite recolhido a partir de então e que era destinado às unidades encerradas (C e L passou a ser transportado pela Impugnante para as unidades industriais em M, O e L, pelo que a Impugnante passou a ter de percorrer uma maior distância até aos novos locais onde faria o depósito do leite, fora da área de recolha do leite, o que determinou um aumento de custos (com mão-de-obra, horas extraordinárias com motoristas, combustível, manutenção), o que forçou um ajustamento de preço, tudo em consonância com o contrato celebrado entre a Impugnante e a G em 01/09/2000 (cfr. os itens 15) do probatório), mais tendo esclarecido que a razão pela qual o adicional cobrado foi autonomizado do preço do leite prendeu-se com razões de gestão, designadamente, porque ia implicar a existência de várias tabelas de preço do leite (por exemplo, o preço do leite transportado para L seria diferente do preço do leite transportado para M). As testemunhas em causa ainda esclareceram que o preço do serviço de transporte (de leite depositado) entre unidades industriais da G constituía uma situação diferente, não associada a uma venda de leite, daí ter um preço muito superior, com regras diferentes (v.g. preço ao KM e não por litro de leite).
Também relativamente aos factos referidos nos itens 18) e 19) do probatório, o Tribunal atendeu ao depoimento prestado pelas testemunhas CA. e DV. que, por virtude das funções exercidas, descreveram com detalhe o regime de quotas leiteiras e como a Impugnante atua na procura do equilíbrio desse sistema de quotas leiteiras, com vista a assegurar que o nível de quotas existentes na sua circunscrição territorial se mantém relativamente estável ou venha mesmo a aumentar, evitando-se que se perca o nível de quota de referência dos produtores/cooperantes para a reserva nacional, a partir da qual pode ser transferida para outro produtor fora dessa zona, o que a Impugnante procura combater.»
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3.1. Erro de julgamento da matéria de facto.

A recorrente entende que se deve aditar aos factos provados por resultar do contrato celebrado em 1/9/2000 e da contabilidade da recorrida, o seguinte:
“O contrato celebrado entre a impugnante e a G em 1/9/2000 configura um verdadeiro contrato de transporte/prestação de serviços de transporte que foge ao objeto social da impugnante e cujos valores recebidos foram faturados em separado, ou seja, não integrados na fatura do leite vendido e afetados ao setor isento, quando deveriam ter sido afetos ao setor sujeito a IRC”.

“A impugnante registou na conta 7251 – Transportes de Comercialização, em 2001 ao setor sujeito € 397.856,07 e ao setor isento € 270.059,22, suportado esse registo com base em notas de lançamento, com IVA à taxa de 17%, mencionado no respetivo histórico o transporte de leite efetuado pela impugnante entre as unidades industriais da G”

“A prestação a um terceiro, não cooperante, a G, de serviços de transporte, como tal reconhecidos, quer contratualmente, quer na ata da Direção da impugnante, não pode ser considerada como integrante da indústria de leite e derivados que constitui a atividade da cooperativa.

“Desta forma, o proveito em causa, obtido em 2001, não resultando da atividade normal da impugnante, mas de serviços prestados a um terceiro, devem ser afetos ao setor sujeito ao regime geral”.

“A impugnante registou na conta 31201- Compra de Mercadorias – Mercado Interno o montante de € 342.146,79 e na conta 7111122 – Outras Mercadorias o montante de € 372.152,02 relativo a compra e posterior cedência a associados de quotas leiteiras, tendo sido apurado um resultado líquido de € 30.005,23.”

“A aquisição e posterior cedência de quotas leiteiras não faz parte do objeto social da impugnante, pelo que os proveitos que daí resultem são resultantes de atividade alheia aos seus fins cooperativos e como tal têm de ser tributados no regime geral do IRC”

Como se intui da leitura da formulação apresentada pela recorrente tal aditamento não pode ocorrer pelas razões que se indicam:
Primeiro, os conteúdos das afirmações são claramente conclusivos, estão eivados de juízos valorativos e conclusivos. Numa assentada a recorrente em sede de julgamento de facto concentraria factos [acontecimentos da vida real desprovidos de considerações subjetivas] e ilações que deles se podem retirar em uníssono com o direito aplicável.
Segundo, não concretiza os factos que impugna, pois que, não rebate ou explicita a apreciação da prova feita pelo tribunal a quo não ensaia sequer como é que a prova valorada pelo tribunal está errada.
Na verdade, a impugnação do julgamento de facto é genérica na medida em que não identifica a prova produzida, documental e testemunhal, que contraria o que subjaz ao juízo valorativo e de apreciação da decisão recorrida, queda-se pela afirmação singela de que o tribunal não pode valorizar a prova testemunhal do modo como fez. Não explicita o seu argumento de a prova testemunhal ter sido sobreavaliada em relação à prova documental que, no seu entender, é de cariz contrário àquela.
Terceiro,
Apesar de insinuar ter sido valorada prova testemunhal em detrimento da documental, não densifica essa sua convicção de modo a que o tribunal de recurso possa avaliar em que medida tal aconteceu, que haja sido desprezada o valor intrínseco da prova documental, através dos depoimentos das testemunhas.

O erro de julgamento da matéria de facto ocorre quando se conclua, da confrontação entre os meios de prova produzidos e os factos dados como provados, que o juízo feito está em desconformidade com a prova produzida, independentemente da convicção pessoal do juiz acerca do facto.

A discordância sobre a valoração da prova testemunhal e documental produzida e sobre a convicção do julgador, sem precisar ou identificar o vício lógico em que se incorre não permite a alteração da matéria de facto.

A alteração da matéria de facto nos moldes pretendidos, pelo Tribunal de Recurso, só poderá ocorrer em situações de erro manifesto ou grosseiro ou se os elementos documentais e dos depoimentos fornecerem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado em 1ª instância. No sentido do texto Ac. do TCA Sul no processo 07219/13 de 29/5/2014, disponível no site da dgsi, Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 2ª edição, Almedina e CPC anotado, art. 640.º, Vol. I, 2.ª edição de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, Almedina.

Tal como a Recorrente configura o erro de julgamento da matéria de facto não permite ao tribunal de recurso aquilatar o concreto erro de que padece o julgamento em ordem à alteração da matéria de facto, razão pela qual se rejeita o recurso [arts. 640.º e 607.º do CPC].
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4.APRECIAÇÃO JURÍDICA DO RESTANTE RECURSO
Estabilizado o julgamento de facto, importa, agora, ajuizar do invocado erro de julgamento de direito.
A recorrente nas conclusões manifesta o seu desacordo com a sentença, em matéria do julgamento de direito, nomeadamente no que respeita ao artigo 7.º, n. º3 e art. 13.º do Estatuto Fiscal Cooperativo [EFC], atendendo a que a atividade principal desenvolvida pela recorrida integra-se na indústria de leite e derivados, sendo uma cooperativa, logo as referidas operações porque realizadas com terceiros, fora do âmbito do estatuto cooperativo, não beneficia das disposições especiais em matéria de IRC, antes, sujeita à regra do n.º3 do ar.7.º do EFC, não integrando nenhuma das operações a que alude o Código Cooperativo [Lei n.º 51/96 de 7/09, com a redação do DL n.º 108/2001, de 6/04].
O artigo 7.º, n. º3 do EFC dispõe que:” A taxa de IRC aplicável ao resultado tributável das cooperativas é de 20%, com excepção dos resultados provenientes de operações com terceiros, de actividades alheias aos fins cooperativos e dos abrangidos pela tributação pelo lucro consolidado, aos quais será aplicável a taxa prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código do IRC.”

Já o art. 13.º, n.º 1, estatui sobre as isenções do IRC, com as exceções previstas no n.º 3 do art. 7.º.

Vejamos, pois, em face do quadro factual apurado, o que discreteou a sentença na subsunção dos factos ao direito que aplicou. Prevê a nossa Lei Fundamental, no seu artigo 61.º, inserto no capítulo dos direitos e deveres económicos, a par com o direito à iniciativa económica privada, o direito à livre constituição de cooperativas, desde que observados os princípios cooperativos (n.º 2), aí se estabelecendo que as cooperativas desenvolvem livremente as suas atividades no quadro da lei e podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas (n.º 3).
Ademais, dispõe o artigo 85.º da mesma CRP, a respeito da organização económica, que o Estado estimula e apoia a criação e a atividade de cooperativas e que a lei definirá os benefícios fiscais e financeiros das cooperativas, bem como condições mais favoráveis à obtenção de crédito e auxílio técnico.
Ora, o conceito de cooperativa encontra-se presente no n.º 1, do artigo 2.º do Código Cooperativo, aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de setembro, aplicável à data dos factos, que estabelece que «As cooperativas são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles».
Resulta, assim, da noção de cooperativa que o objeto desta se traduz na satisfação das necessidades dos seus membros (escopo mutualístico). As cooperativas são formadas por pessoas que querem cooperar entre si e que, para cumprir este propósito, constituem uma pessoa coletiva (a cooperativa) no âmbito da qual cooperam, consumindo, comprando e vendendo e prestando serviços.
Neste sentido, o art. 34.º, n.º 2, al. c) do Código Cooperativo, estabelece que os cooperadores deverão «participar em geral nas atividades da cooperativa e prestar o trabalho ou o serviço que lhes competir».
Os resultados provenientes da atividade económica desenvolvida entre a cooperativa e os seus membros designam-se de resultados cooperativos e, se positivos, são designados como excedentes cooperativos.
Todavia, ainda que centrada nos membros, a cooperativa pode limitadamente desenvolver operações com terceiros.
Assim, prevê o n.º 2 do referido artigo 2.º, que «As cooperativas, na prossecução dos seus objetivos, podem realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo».
O Código Cooperativo não define o que se deve entender por “terceiros”, o que nas palavras de Rui Namorado1, só pode significar que «se considerou que a noção pré-jurídica de terceiro, consagrada na doutrina cooperativa, tinha a clareza suficiente para dispensar uma intervenção inovadora ou clarificadora do legislador», defendendo que «terceiros, de um ponto de vista cooperativo, são todos aqueles que mantenham com uma cooperativa relações que se enquadrem na prossecução do seu objeto principal, como se fossem seus membros embora de facto não o sejam» e alertando para a circunstância de que «nem todos os não cooperadores que se relacionem com a cooperativa são abrangidos pela categoria de terceiros. Terceiros, no sentido que a doutrina dá a esta noção, são apenas aqueles que se relacionam com uma cooperativa através das atividades nela cooperativizadas, e não outros». Tal significa, por exemplo, que, numa adega cooperativa, serão terceiros os produtores que fazem o seu vinho na adega, não sendo seus membros, mas já não serão terceiros os eventuais compradores do vinho, nem os trabalhadores da adega que não sejam cooperadores e que, numa cooperativa de comercialização, serão terceiros aqueles que não sendo cooperadores fornecem à cooperativa os bens por si produzidos ou transformados como se fossem membros da cooperativa.
1 In “Cooperatividade e Direito Cooperativo. Estudos e Pareceres”, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 184-185.
Do exposto resulta que as operações com terceiros estão ainda compreendidas no objeto social da cooperativa. Porém, os resultados provenientes das operações com terceiros, quando positivos, são juridicamente encarados como lucros, uma vez que não foram realizados no âmbito de uma atividade mutualista e designam-se de resultados extracooperativos.
Daí que, de forma assegurar que as operações com terceiros são compatíveis com o conceito de mutualismo, os resultados obtidos por essa via não são suscetíveis de serem distribuídos aos cooperadores, devendo ser afetos a reservas obrigatórias, contribuindo para o reforço da estrutura empresarial cooperativa (73.º, n.º 1 a contrario e 70.º, n.º 2, al. c) do Código Cooperativo).
Ademais, nos termos do artigo 5.º, n.ºs 1 a 3 do Código Cooperativo, as cooperativas podem ser do primeiro grau ou de grau superior, sendo cooperativas do primeiro grau, aquelas cujos cooperadoras sejam pessoas singulares ou coletivas e cooperativas de grau superior, as uniões (como é o caso da Impugnante), federações e confederações de cooperativas.
Assim, de acordo com o disposto nos artigos 102.º e 103.º do mesmo diploma legal, as uniões de cooperativas resultam do agrupamento de, pelo menos, duas cooperativas do primeiro grau, podendo agrupar-se entre si e com cooperativas do primeiro grau e têm finalidades de natureza económica, social, cultural e de assistência técnica aos seus membros, podendo, nos termos da lei e com observância dos princípios cooperativos2, exercer qualquer atividade.
2 No âmbito da sua constituição e funcionamento, as cooperativas devem observar determinados princípios cooperativos, previstos no artigo 3.º do Código Cooperativo a saber: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos membros; participação económica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; e interesse pela comunidade.
Finalmente, dispõe o artigo 120.º do Código Cooperativo, que os benefícios fiscais e financeiros das cooperativas, previstos pela Constituição, são objeto de legislação autónoma.
Ora, desde logo, segundo os arts. 2.º, n.º 1, alínea a) e 3.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código do IRC, as cooperativas são sujeitos passivos deste imposto, tal como o são as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as empresas públicas e as demais pessoas coletivas de direito público ou privado com sede ou direção efetiva em território português, incidindo o IRC (i) sobre o seu rendimento global, correspondente à soma algébrica dos rendimentos das diversas categorias considerados para efeitos de IRS ou (ii) sobre o seu lucro, consoante estas não exerçam ou exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, respetivamente.
Não obstante, há que considerar o regime fiscal aplicável às cooperativas, instituído pelo Estatuto Fiscal Cooperativo (EFC), aprovado pela Lei n.º 85/98, de 16 de dezembro, o qual estabelece determinados benefícios, condicionados à observância dos requisitos específicos aí previstos, mas cuja usufruição não carece de ser requerida (cfr. o artigo 3.º), o qual deve ser interpretado e aplicado de acordo com os seguintes princípios gerais nele previstos (cfr. o artigo 2.º):
a) autonomia e especialidade - o regime fiscal do sector cooperativo é autónomo e especial face ao regime fiscal geral e adaptado às especificidades do setor cooperativo;
b) sujeição geral da atividade cooperativa a tributação - como contributo para o financiamento das necessidades coletivas e do desenvolvimento de uma política eficaz de fomento cooperativo;
c) não discriminação negativa - as cooperativas não poderão ser discriminadas negativamente face a outras entidades quando no desempenho de funções idênticas;
d) discriminação positiva - o regime fiscal deverá, em função das prioridades de desenvolvimento económico-social, conceder um tratamento de apoio e incentivo ao setor cooperativo.
Desde logo, as cooperativas especificamente mencionadas no artigo 13.º, n.º 1 do EFC, como é o caso das cooperativas agrícolas (al. a)), estão isentas de IRC, sendo que tal regime é aplicável uniões de cooperativas agrícolas (cfr. o n.º 6 do mesmo artigo), qualidade que é reconhecida à Impugnante.
Trata-se, pois, de uma isenção subjetiva, estabelecida em função das características da própria entidade.
Já as demais cooperativas gozam de uma taxa reduzida de IRC de 20%, bem mais favorável que a que era prevista no art.º 80.º, n.º 1 do Código do IRC na redação do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de julho, de 32%.
Porém, da leitura conjugada dos artigos 13.º, n.º 1 e 7.º, n.º 3 do EFC (na redação dada pela Lei nº 30-G/2000, de 29 de dezembro), resulta que a lei estabeleceu três limitações à aplicação quer da isenção de IRC, quer desta taxa reduzida IRC, a saber:
a) resultados provenientes de operações com terceiros;
b) resultados provenientes de atividades alheias aos fins cooperativos; e
c) resultados abrangidos pela tributação pelo lucro consolidado,
sendo que cada uma dessas limitações opera por si própria, vedando o direito a usufruir do benefício, sendo os resultados assim obtidos tributados à taxa geral de IRC, para o qual o art. 7.º, n.º 3 do EFC expressamente remete.
De notar, ainda, que a lei refere “resultados” provenientes de operações com terceiros e não “rendimentos” provenientes de operações com terceiros, o que significa que a limitação só será aplicável se quer a operação positiva de que advém o proveito (v.g. venda) quer a operação negativa de que advém o respetivo custo (v.g. compra) forem realizadas com terceiros. Por conseguinte, será afeto ao setor sujeito a IRC o resultado de uma compra e de uma venda pela cooperativa a terceiros, mas já será afeto ao setor isento de IRC quer o resultado de uma compra a terceiros e de uma venda a cooperantes, quer de uma compra a cooperantes e de uma venda a terceiros (veja-se que está nesta última situação a compra de leite pela Impugnante aos seus membros, para venda à G que é terceiro).
Por outro lado, o n.º 4 do artigo 3.º do EFC estabelecia que «a contabilidade das cooperativas deverá estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade e refletir todas as operações realizadas, permitindo apurar claramente os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas aos diferentes regimes de tributação».
Finalmente, as cooperativas beneficiárias estão sujeitas a fiscalização da DGCI e demais entidades competentes para o controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais e do cumprimento das obrigações acessórias impostas, sendo que a extinção dos benefícios previstos no Estatuto tem por consequência a reposição automática da tributação regra (cfr. os arts. 5.° e 6.º, n.º 3 do EFC). (…)
Conforme resulta relatório de inspeção tributária, vertido no item 4) do probatório, a Administração Tributária procedeu a esta correção à matéria coletável da Impugnante por considerar que, tratando-se da recuperação de despesas com o serviço de transporte de leite entre unidades industriais da G, por esta solicitado, estaria em causa a prestação de um serviço suplementar de transporte a terceiro – a G – o qual não pode ser considerado como integrante da industria de leite e derivados que constitui a atividade da cooperativa, pois que, caso tais serviços se integrassem na atividade da cooperativa, não se justificaria a celebração de um contrato regulando, de forma específica, os serviços de transporte efetuados a um terceiro. (…) a matéria levada ao probatório com relevância para a resolução da questão em apreço:
— No âmbito da sua atividade, em 27/12/1996, a Impugnante e a sociedade “G” celebraram um contrato de compra e venda de leite em estado natural, estipulando a obrigação de vender à G todo o leite em estado natural que recolhesse junto dos produtores (cfr. o item 10) dos factos provados);
— Nos termos da cláusula 10.º, n.º 4 do referido contrato, o preço foi fixado à porta da fábrica, sendo da responsabilidade da vendedora o seu transporte, mais se tendo acordado um acréscimo de valor entre as partes para compensar o transporte de leite para fábrica situada fora da área social da empresa vendedora (cfr. o item 11) dos factos provados);
— Em virtude do encerramento das fábricas da G sitas em C e L, a Impugnante e aquela entidade acordaram que a Impugnante passaria a entregar o leite recolhido dos produtores localizados no âmbito geográfico de recolha do núcleo de C (cfr. âmbito geográfico previsto na cláusula 3 do referido contrato) na fábrica sita em M e o leite recolhido dos produtores localizados no âmbito geográfico de recolha do núcleo de L (cfr. âmbito geográfico desse núcleo previsto na cláusula 4 do referido contrato) nas unidades industriais de O e L, recebendo em contrapartida 2$00 e 1$50 por litro de leite transportado (cfr. os itens 13) a 15) dos factos provados);
— Nesse seguimento, foi necessário transportar todo o leite depositado nessas concentrações para as novas unidades industriais de destino, tendo as partes acordado na contrapartida de 160$00 por KM percorrido, independentemente da capacidade da cisterna (cfr. os itens 13) e 15) dos factos provados);
— No apuramento do IRC do exercício de 2001, a Impugnante afetou ao setor isento de IRC, o valor de €270.059,22, registado na conta “7251-transporte de comercialização”, com base em notas de lançamento que mencionam no respetivo histórico o transporte de leite por si efetuado, motivado pelo encerramento das unidades de C e L;
— Também no apuramento do IRC do exercício de 2001, a Impugnante afetou ao setor sujeito ao regime geral de IRC, o valor de €397.856,07, registado na mesma conta “7251-transporte de comercialização”, respeitante ao transporte de leite já recolhido, por si efetuado, a solicitação da G, entre unidades industriais desta.
Ora, como resulta da factualidade apurada, supra descrita, do que se tratou efetivamente foi de uma compensação pelo acréscimo do custo de transporte decorrente da extensão dos circuitos de recolha de leite, motivada pelo encerramento das unidades industriais desta em C e L, a que a G passou a estar contratualmente vinculada desde setembro de 2000.
Assim sendo, pese embora este acréscimo de custo não esteja incluído no preço do leite acordado com a G, sendo faturado em separado de acordo com a cláusula 10ª do citado contrato, não temos duvidas de que não se tratou do pagamento da transferência de leite depositado, mas sim do transporte de leite recolhido junto dos produtores e vendido à G, daí que a contrapartida tenha sido fixada por litro de leite (e não por km), pelo que o proveito daí decorrente há de necessariamente considerar-se inerente a atividades respeitantes aos fins cooperativos da Impugnante.
Com efeito, como ficou demonstrado nos autos, o contrato celebrado em setembro de 2000 resultou do encerramento das unidades industriais de C e L, que determinou duas situações distintas: por um lado, a mudança do transporte do leite destinado às unidades encerradas para unidades industriais em M, O e L; por outro lado, o transporte do leite aí depositado para estas unidades com a consequente necessidade de fixação de preços distintos (2$00 e 1$50 por litro de leite, respetivamente, no primeiro caso e 160$00 por km, no segundo caso).
Com efeito, analisados o contexto e as circunstâncias em que o mesmo foi celebrado, vemos que o mesmo regula, para o futuro, as operações de recolha de leite junto dos produtores e a sua entrega nas unidades industriais ativas da compradora final do leite (G), motivada pelo encerramento das unidades de C e L, pelo que a alteração contratual resultante da aplicação das alíneas a) e b) da cláusula 6.ª do contrato, visou apenas repercutir o aumento do custo verificado em consequência de uma alteração que a G unilateralmente implementou e não se traduz na prestação de um serviço de transportes à mesma sociedade, pois a atividade de transporte, neste caso, não é autónoma em relação ao contrato de compra e venda do leite (isto é, o transporte não ocorre após a transferência da propriedade do bem em causa), antes consubstancia uma atividade acoplada à concretização da transferência da propriedade associada à venda do leite, que deverá estar isenta de IRC do mesmo modo que o está a compra de leite pela Impugnante aos seus membros, para venda à G, que é terceiro.

A sentença conclui, assim, e bem, que não se verifica o pressuposto de que partiu a AT, de que se tratavam de serviços decorrentes de atividades alheias aos fins cooperativos da recorrida, prestados a um terceiro (G).
Na verdade, a prova testemunhal em conjugação com a documental permitiu explicar e contextualizar as declarações contratuais, [contratos celebrados em 6/07/1995 e 27/12/96 e ofício datado de 14/02/2000 dirigido ao Presidente da LP. e a ata n.º10 de 2000 da Direção da P., de 12/09/2000] no sentido que o último contrato, celebrado em 1//09/2000, visou compensar as despesas a mais que a recorrida passou a incorreu com o transporte do leite face às alterações dos itinerários em virtude de a G ter encerrado as unidades industriais de L e C, passando, a partir de então, a recolher nas unidades industrias de M, O e L. Fica explicada a razão do contrato de 2000, que mais não é do que um complemento do anterior face à nova realidade.
Trata-se, portanto, de forma clara da continuação da atividade cooperativa da recorrida [P. União das Cooperativas dos Produtos de Leite] que passa pela compra de leite às cooperativas que formam a união e agremiam os produtores de leite e pela sua venda à G, o que implica a recolha do leite nas explorações dos produtores para ser colocado nas unidades indústrias da compradora (G), assegurando o escoamento do leite para o mercado interno e externo.
Ora, situação apurada retira qualquer virtualidade ao indicador apontado pela AT para o enquadramento da correção que fez, qual seja o facto de a recorrida ter afetado ao setor isento de IRC, os valores debitados à G, a título de transferências de leite entre unidades G., pois que apresenta-se justificado no facto 16, que por razões de controlo e gestão a recorrida autonomizou contabilisticamente o adicional referente ao transporte do leite recolhido junto dos produtores para as unidades industriais de M, O e .

Por fim, no que respeita à correção relativa à cedência de quotas leiteiras não nos oferece dúvida o que sentenciou a 1.ª instância:(…) apreciar a natureza da atividade em análise – aquisição e cedência de quotas leiteiras -, para depois concluir se a mesma é ou não alheia aos fins cooperativos da Impugnante.
O Regulamento (CEE) n.º 3950/92, do Conselho, de 28 de dezembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Regulamento (CE) n.º 1256/99, do Conselho, de 17 de maio, instituiu um regime de Imposição Suplementar (IS), o qual teve por objetivo reduzir o desequilíbrio entre a oferta e a procura de leite e produtos lácteos, evitando o crescimento da produção leiteira, e fixou, para Portugal, uma quantidade global garantida para efeitos de produção de leite de vaca e estabeleceu que, a partir de 1 de Abril de 2000 e por um período de oito anos consecutivos, os produtores de leite ficam sujeitos, durante um período de 12 meses - que correspondem a uma campanha leiteira - e em determinadas circunstâncias, a uma imposição suplementar sobre as quantidades de leite ou equivalente-leite entregues a um comprador ou vendidas diretamente para consumo.
Surgiu, assim, um regime de IS (vulgarmente designado de regime de gestão de quotas leiteiras), assente na consagração de uma penalização pecuniária financeira aplicável às quantidades de leite de vaca ou equivalente entregues aos compradores ou vendidas diretamente pelos produtores que excedessem as quantidades de referência individuais e em situação de ultrapassagem das quantias globais garantidas.
Para efeito de operacionalização e controlo das quantidades globais garantidas, repartiu-se individualmente por cada produtor uma quantidade de referência (QR).
Previa, ainda, o Regulamento em causa, no seu artigo 8.º, al. e), a possibilidade de os Estados-Membros poderem autorizar, mediante pedido do produtor à autoridade competente ou ao organismo por ela designado, a transferência definitiva de quantidades de referência sem a transferência de terras correspondente ou vice-versa, com o objetivo de melhorar a estrutura da produção leiteira ao nível da exploração ou de contribuir para a extensificação da produção.
Neste quadro, foi elaborado o Decreto-Lei n.º 80/2000, de 9 de maio, que tinha por objetivos, entre outros, o reforço da posição dos produtores ativos e a necessidade de evitar subutilizações das quantidades de referência atribuídas.
Segundo o referido diploma, que estabelecia as normas reguladoras do regime de IS sobre as quantidades de leite ou equivalente-leite entregues a um comprador ou vendidas diretamente para consumo, os produtores que comercializavam leite ou produtos lácteos estavam obrigados a possuir uma quantidade de referência, definida como a quantidade expressa em quilogramas atribuída individualmente a cada produtor para efeitos de produção de leite ou equivalente-leite, destinada a ser entregue pelos produtores a compradores aprovados ou a ser vendida diretamente ao consumo (cfr. artigo 5.º, em conjugação com o artigo 2.º, alínea c) do referido diploma).
O referido diploma previa a possibilidade da transferência definitiva da QR com ou sem transmissão da exploração (artigo 10.º, n.º 1 e n.ºs 6 a 9 do mencionado Decreto-Lei), a transferência temporária da QR em resultado da cessão contratual da exploração (artigo 10.º, n.º 2) e a cedência temporária da QR, por um período mínimo de uma campanha (período de 12 meses que decorre de 1 de abril a 31 de março do ano seguinte), até ao máximo de duas campanhas consecutivas (artigo 11.º).
Previu-se ainda a constituição de uma reserva nacional, para a qual reverteria a parte do produtor que não utilizasse 70% da sua quota de referência (artigo 13.º, n.º 3).
Sempre que a quantidade de leite ou equivalente-leite comercializado na campanha de produção de leite em questão ultrapassasse a respetiva Quota Global Garantida haveria lugar ao pagamento de IS, que constituía encargo dos produtores que contribuíram para o excedente, sendo, no caso das entregas, responsáveis pelo seu pagamento os compradores (artigos 2.º, als. a) e b), 16.º, n.º 1 e 17.º, n.º 1).
Ora, a Impugnante é uma União de Cooperativas que se rege pelos estatutos publicados no Diário da República, III série, n.º 8, de 10/01/86 e sucessivas alterações, em cujo artigo 4.º se refere que «A União tem por fim defender os interesses comuns das cooperativas agrupadas, desenvolver o espírito de cooperação e solidariedade das mesmas e, no setor leiteiro, exercer uma ação supletiva e/ou complementar das atividades técnicas e económicas daquelas» (sublinhado nosso), seguindo-se um elenco de funções, apresentadas a título meramente exemplificativo, como se depreende do uso do adverbio “nomeadamente”, a saber:
«a) organizar, executar, disciplinar e administrar os serviços do primeiro escalão do ciclo económico do leite nas áreas sociais das cooperativas agrupadas e nas restantes em que, legal e ou contratualmente, tais funções lhe competirem;
b) instalar e administrar centros de concentração e centros de tratamento de leite;
c) promover e realizar o abastecimento de leite e produtos lácteos à cidade do Porto, e restantes centros de consumo situados na sua área social, podendo o destes últimos ser executado pelas cooperativas agrupadas, dentro das respectivas circunscrições, quando isso for resolvido em assembleia geral;
d) promover e realizar a venda dos mesmos produtos em todo o restante território nacional ou no estrangeiro;
e) instalar, manter e explorar oficinas tecnológicas, laboratórios, armazéns e outros estabelecimentos para preparação, tratamento, transformação, acondicionamento, selecção, classificação e venda de leite e lacticínios, e ainda oficinas para montagem ou reparação das instalações, dos veículos, dos maquinismos e do restante material da União;
f) Auxiliar as cooperativas agrupadas a vulgarizar entre os produtores de leite as práticas de melhoramento de animais, sua selecção, métodos de alimentação racional e técnicas de maneio e alojamento;
g) Promover a utilização dos meios aconselháveis para aumentar e melhorar a produção do leite e providenciar no sentido da sua melhor valorização e aproveitamento;
h) Estudar as questões económicas relativas ao leite, desde a produção ao consumo;
i) Ajudar a resolver todos os assuntos de interesse comum das cooperativas agrupadas e auxiliar estas financeiramente, através da reserva comum, segundo as possibilidades desta;
j) Coordenar a nível regional as acções das cooperativas agrupadas, relativamente às entidades públicas, instituições de crédito, previdência, laborais, de seguro e instituições análogas;
l) Arbitrar, de acordo com os princípios cooperativos, os conflitos que surjam entre as cooperativas agrupadas;
m) Representar os interesses comuns das cooperativas agrupadas em juízo e fora dele.»
Ora, atentas as finalidades da Impugnante, previstas nos respetivos estatutos, designadamente, as concernentes, em geral, ao setor leiteiro e as funções que lhe competem, em particular, a possibilidade de promover a utilização dos meios aconselháveis para aumentar e melhorar a produção do leite e providenciar no sentido da sua melhor valorização e aproveitamento (alínea g) do artigo 4.º), bem como os objetivos postos a seu cargo pelo Código Cooperativo (de satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais dos cooperantes), a par com o regime jurídico da Imposição Suplementar então aplicável, o qual tinha por objetivo reduzir o desequilíbrio entre a oferta e a procura de leite e produtos lácteos, prevendo para o efeito a possibilidade de transferência ou cedência de quantidades de referência entre produtores, mostra-se plenamente justificada a intervenção da Impugnante através da gestão integrada das quotas leiteiras, designadamente, pela aquisição destas com vista à sua cedência a associados, de forma evitar, assim, sanções económicas que inevitavelmente se repercutiriam no setor, em particular nos produtores de leite, que ultrapassassem as suas quantidades de referência.
Com efeito, resultando do regime jurídico da Imposição Suplementar que, no caso de um produtor não atingir 70% da sua quota de produção, a mesma reverte para a reserva nacional, passando esta a estar disponível para todos os operadores nacionais que pretendem adquiri-la (13.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 80/2000), mostra-se plenamente justificada a atuação da Impugnante no sentido de promover as transações das quotas leiteiras para que estas se mantenham na área geográfica em que atua.
Para o efeito, e conforme resulta demonstrado (cfr. os itens 18 e 19) do probatório), a Impugnante procedia à monitorização das regras de funcionamento do sistema de imposição suplementar (IS), conhecendo as quantidades produzidas ao longo da campanha de leite, dispondo de informação relativamente aos operadores económicos que estariam na iminência de atingir a sua quantidade de referência e aqueles que, por motivos variados, se encontrariam abaixo desse referencial e que, previsivelmente, ficariam em condições de disponibilizar a quantidade de leite que deixarão de produzir.
A Impugnante chama a si esse papel relevante de atuar como ajustando os deficits e excessos de quotas/quantidades de referência. Esse serviço disponibilizado pela Impugnante é resultante do seu escopo mutualista e das próprias funções que lhe estão acometidas estatutariamente enquanto cooperativa, atendendo aos interesses gerais dos cooperadores.
Com efeito, a par do interesse financeiro do produtor que tem ao seu dispor uma quota de leite que não atingiu e pretende transformar em benefício económico, está um outro produtor duplamente interessado em proceder à compra em causa: não apenas para justificar a validade de uma futura venda do leite (uma vez que apenas pode ser vendida a quantidade de leite fixada na sua quota), mas também para evitar que lhe seja aplicada uma imposição pecuniária financeira, em virtude da produção para além da respetiva quota/quantidade de referência.
Assim, resulta indubitável que o serviço de intermediação prestado pela Impugnante, assegurando a gestão racional e eficiente da distribuição de quotas leiteiras entre os seus cooperantes, de modo a garantir, que a produção de leite anual iguala a quantidade de quotas disponível, evitando a eventual aplicação de sanções pecuniárias aos seus cooperantes, e, assim, que a produção de leite global destes se mantenha em níveis eficientes, encontra-se claramente compreendido nas atribuições e competências postas a seu cargo pelos seus estatutos e pelo Código Cooperativo, sendo irrelevante para o efeito o facto de o resultado dessa atividade de intermediação entre oferta e procura ter sido positivo, desde logo, porque em tal equação não foram tidos em conta os custos administrativos/operacionais inerentes a essa atividade de intermediação, cuja existência se afigura plausível à luz das regras da experiência, e cujo montante se desconhece.

Aqui a sentença, concluiu, igualmente que falhou o pressuposto em que assentou a correção efetuada, nomeadamente, tratar-se de serviços resultantes de atividades alheias aos fins cooperativos da recorrida, realçando o facto de a AT em momento algum apontar que as operações foram realizadas com terceiros.

Na verdade, este serviço prestado pela recorrida promovendo uma gestão integrada das quotas leiteiras com vista à cedência aos seus associados evita sanções económicas no setor, em particular aos produtores de leite que não atinjam a quota necessária, e caírem na alçada das sanções do DL n.º 80/2000 de 9/5, do mesmo passo, desenvolve-se uma gestão eficiente das capacidades produtivas dos produtores de leite, o que claramente se insere nos fins cooperativos e como tal não poderá estar sujeita a tributação [art. 4.º, als. g) e h) do respetivo estatuto publicado no D. R., III série, n. º8, de 10/01/86]

A sentença que assim decidiu não padece de qualquer erro de julgamento que terá de ser mantida na ordem jurídica.
*

5. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.

Notifique-se.

Porto, 03 de fevereiro de 2022

Cristina da Nova
Cristina Bento
Celeste Oliveira
_______________________________________________

i) No sentido do texto Ac. do TCA Sul no processo 07219/13 de 29/5/2014, disponível no site da dgsi, Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 2ª edição, Almedina e CPC anotado, art. 640.º, Vol. I, 2.ª edição de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, Almedina.