Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00049/11.8BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/30/2011
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Álvaro Dantas
Descritores:SENTENÇA
OBSCURIDADE DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
ANULAÇÃO OFICIOSA
Sumário:I. É obscura a decisão sobre a matéria de facto que se mostre equívoca, inintelegível ou imprecisa.
II. O Tribunal Central Administrativo pode anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando, relativamente a pontos determinados da matéria de facto a repute de obscura.
III. Verificando-se uma incontornável necessidade de desenvolver diligências instrutórias tendentes a esclarecer pontos da matéria de facto que são de importância crítica na perspectiva da boa decisão da causa a obscuridade de parte da decisão sobre a matéria de facto não pode deixar de implicar a oficiosa anulação da decisão proferida em 1ª instância.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:DGI e Ministério Público
Recorrido 1:A... e mulher
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
O Digno Magistrado do Ministério Público e o Director de Finanças …, não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente o recurso judicial do acto de fixação por avaliação indirecta do rendimento tributável em sede de IRS respeitante ao ano de 2008 nos termos do disposto no nº 4 do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária (LGT) que foi interposto por A… e por M…, melhor identificados nos autos, dela vieram interpor o presente recurso.
As alegações de recurso apresentado pelo Ministério Público culminam com as seguintes conclusões:
1 - Não existem nos autos elementos de prova da utilização/mobilização dos concretos 113 504.00 €, ou de sua grande parte, para suprimentos efectuados na sociedade.
2 - Por isso, ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou os artigos 89º-A da LGT e 653, nº 2, por omissão e errada análise crítica das provas e omissão de apreciação ponderada, 655º, nº 1, por errada aferição das provas e errada livre convicção, ambos do CPC, aqui aplicáveis subsidiariamente e o principio da livre apreciação das provas.
3 - Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o recurso interposto por A… e cônjuge.
4 - Com o que se julgará procedente, como é de lei e de justiça, o nosso recurso aqui interposto.
As alegações do Director de Finanças … terminam com a formulação das seguintes conclusões:
1. A Entidade ora Recorrente requer a reapreciação da sentença proferida em 1ª instância - na parte em que deu como assente a factualidade identificada no ponto 6 do probatório - com fundamento em erro de julgamento da matéria de facto e erro na aplicação do direito.
2. A douta sentença, agora em crise, julga assim: “III. (...) Aquelas transferências não estavam provadas. E se aceitássemos que para provar os alegados suprimentos bastava sem mais a prova da transmutação do prémio de perda de rendimento para suprimentos estava encontrada a fórmula mágica de driblar o “Fisco” em matéria de manifestações de fortuna. (...) vieram os Autores, desta vez (e não antes), juntar diversos documentos de natureza bancária (...) que permitem, agora sim, estabelecer um concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, (...) e a efectivação dos suprimentos em causa” - negrito nosso.
3. A sentença não faz a correlação entre os suprimentos efectuados pelos A., ao longo do ano do 2008, e a respectiva origem, conforme alegada pelos autores e pretensamente provada pelos documentos.
4. Precisamente ao contrário do que se expressa na douta sentença, os documentos não permitem “ (...) estabelecer um concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, e a efectivação dos suprimentos em causa.”.
5. A extrapolação de conclusões - como as aqui recorridas - não decorrentes directamente de tais documentos, e firmadas no facto de não terem sido impugnados os mesmos documentos, traduz não só uma incorrecta interpretação e aplicação do nº 4 do art. 83° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) - aplicável ex vi art. 2° do CPPT - como também, uma incorrecta análise dos documentos juntos.
6. Os documentos agora juntos pelos autores provam, antes de mais, aquilo que a Administração Fiscal já sabia, em sede de procedimento inspectivo, e que deu origem à tributação indirecta. Provam que (doc. 1):
a) da conta nº 50008391226, do BCP, de que é titular A…, saíram, no ano de 2008, nas datas e montantes neles indicados, cheques que,
b) foram creditados na conta bancária nº 6860 1173 0000, do BES, de que é titular a AMP.
7. Mas não provam a origem dos valores debitados da conta do A., ou seja, a origem da fortuna manifestada nos cheques que vieram a ser depositados na conta da AMF.
8. Não provam o “(...) concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, (...) e a efectivação dos suprimentos em causa.” - negrito nosso.
9. O doc. 2 prova que, efectivamente o IFADAP depositou, ao longo dos anos 2003, 2004, 2005 e 2007, diversos valores na conta nº 50008391226, do BCP, de que é titular A…. Mas, não prova que foram esses mesmos montantes os canalizados para os suprimentos efectuados no ano de 2008.
10. O doc. 2 e, bem assim, o doc. 1 provam, outrossim, que durante o ano em que ocorreram os suprimentos dos autores à sociedade (durante o ano de 2008), ocorreram, também, movimentos inversos.
11. Ou seja, na conta do A. nº 50008391226, do BCP, foram depositados, não só valores cuja origem permanece desconhecida, como também, foram depositados diversos chegues provenientes (debitados) da conta da sociedade AMF.
12. Ou seja, os A. emprestavam à sociedade montantes que esta mesma sociedade lhes ia depositando na conta nº 50008391226.
13. Dos referidos documentos resulta que:
a) Em 15/10/2003, o IFADAP transfere para a conta do A. o valor de €28.376,00 (doc. 2, folha 1);
b) Até ao fim desse mesmo mês são debitados dessa conta valores no montante total de €27.220,42, designadamente, e pelo menos, 3 transferências efectuadas para a conta da AME (doe. 2, folha 1);
c) A 31 do mesmo mês a conta apresentava o saldo de €1.043,27 (doe. 2, folha 1);
d) Donde resulta que o subsidio auferido em 2003 pelos A. não foi utilizado nos suprimentos efectuados em 2008 (doc. 2, folha 1);
e) Em 15/10/2004, o IFADAP transfere para a conta do A. o valor de €28.376,00 (doc. 2, folha 2);
f) A 03/10/2005, a conta apresentava o saldo de €86,82 (doc. 2, folha 3vs.);
g) Donde resulta que os subsídios auferidos em 2003 e em 2004 não foram utilizados nos suprimentos efectuado em 2008 (doc. 2, folha 3vs.);
h) Em 14/10/2005, o IFADAP transfere para a conta do A. o valor de €28.376,00 (doc. 2, folha 3vs.)
i) A 03/04/2007 a conta apresentava o saldo de €1.39 (doc. 2, folha 4);
j) Donde resulta que os subsídios auferidos em 2003, em 2004 e em 2005, não foram utilizados nos suprimentos efectuados em 2008 (doc. 2, folha 4);
k) Em 27/04/2007, o IFADAP transfere para a conta do A. o valor de €2 8.3 76.00 (doc. 2, folha 4vs.);
l) A 30/04/2007 a conta apresentava o saldo de €22.865,16 (doc. 2, folha 4vs.);
m) De 30/04 a 03/12 de 2007 nada se sabe mas, a 03/12/2007 a conta apresentava o saldo de €57.065,16 - valor cuja origem é desconhecida e os A. não esclarecem
n) Em 20/12/2007, o IFADAP transfere para a conta do A. o valor de €28.376.00 (doc. 2, folha 5);
o) A 04/01/2007, a AMF emite o cheque nº 00154645, de €37.248,69 (sacado sob a conta 6860 1173 0000) que é depositado na conta do A. a 07/01/2008 (doc, 1, folhas 1 e 2);
p) Na mesma data, de 07/01/2008, mas em movimento posterior, é efectuado o 1º suprimento, dc €15.000;
q) Ou seja, em 07/01/2008, a sociedade deposita €37.248,69 na conta do A. e, este deposita na conta da sociedade €15.000.
r) A 15/01/2008, o A. volta a depositar na conta da sociedade €20.000.
s) A 18/01/2008, novamente, a AMF emite o cheque nº 00154653, de €19.091,38 que é depositado na conta do A. a 21/01/2008 (doc.1, folhas 1 e2vs);
t) O saldo da conta do A. tem origens diversas. Não está estabelecido o nexo causal entre os suprimentos e os subsídios do IFADAP!
14.Logo, não pode a sentença recorrida considerar estar estabelecido “(...) um concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, (...) e a efectivação dos suprimentos em causa.” com base em documentos que apenas provam que, naquelas datas, aquela conta bancária apresentava aquele saldo, não sendo demonstrada a utilização dos subsídios do IFADAP na realização dos suprimentos sob discussão.
15. De todo o probatório carreado pelo recorrente ao conhecimento da Administração Fiscal e do Tribunal, quer em sede inspectiva, quer no decurso do presente contencioso, nunca ficou demonstrado que as importâncias aplicadas nos suprimentos não tiveram origem em rendimentos susceptíveis de tributação no ano de 2008.
16. Para efectuar a prova exigida pelo n°3 do art. 89°-A da LGT e, consequentemente, afastar a presunção de rendimentos destinada a acautelar situações de evasão e fraude fiscal ç a aplicação do rendimento padrão, não bastaria comprovar que, à data, os recorrentes detinham capital suficiente para constituir aqueles suprimentos, sendo necessário comprovar qual a proveniência concreta dos montantes efectivamente aplicados naqueles suprimentos.
17. Para além desta primeira prova, da origem e detenção do capital à data dos suprimentos, deviam os recorrentes apresentar documentos bancários comprovativos de que o capital proveniente dos subsídios do IFADAP havia sido canalizado para a sociedade a título de suprimentos, demonstrando o nexo causal entre a alegada fonte e a referida manifestação de fortuna,
18. Só esta prova ilide a presunção constante do artigo 89°-A da LGT.
19. Não obstante a inversão do ónus da prova, os A. não provaram a origem dos capitais mobilizados e, consequentemente, que a importância aplicada em suprimentos tem subjacente rendimentos não tributáveis naquele período de imposto.
20. Na verdade, tentam justificar a origem dos montantes aplicados com rendimentos supostamente auferidos noutros anos, não excluídos de tributação - (art. 12° do CIRS) - e que ademais não mantiveram na sua esfera patrimonial até à data da realização dos suprimentos. E, sem querer,
21. Deixam provado que a sociedade beneficiária dos suprimentos, em simultâneo, lhes vinha fazendo entregas de dinheiro (por via de depósitos de cheques) na conta de onde iam sendo retirados os valores dos suprimentos.
22. Donde, a decisão de mérito proferida em P instância denota erro na aplicação do direito e erro na apreciação e valoração das provas e na fixação da factualidade dada como provada, em violação do n°4 do art. 83° do CPTA, do nº 3 do art. 89°-A da LGT e do n°2 do art. 653° e n° 1 do art. 655°, ambos do CPC.
23. À cautela, e sem conceder, se acaso for mantida o sentido da decisão de mérito em 1ª instância, que imputou a responsabilidade pelo pagamento das custas processuais à ED, ora Recorrente, sendo certo que o art. 446° do CPC determina que é responsável pelas custas a parte que a elas tiver dado causa, a ora Recorrente demonstrou não ter dado causa ao processo contencioso, intentado pelos então recorrentes contra a ED.
24. Em face do comportamento dos sujeitos passivos perante a Administração Tributária, e dos elementos que por esta eram conhecidos até à data da prolação do despacho contenciosamente atacado, outra não poderia ser a atitude da Administração Tributária.
25. Razão pela qual o tribunal a quo determinou a improcedência do recurso e a condenação dos A. no pagamento das custas.
26. Inconformados com aquela decisão, estes recorreram para o Tribunal Central Administrativo Norte, tendo este mui douto Tribunal superior decidido revogar a sentença recorrida, por insuficiência instrutória, e determinar a remessa dos autos ao Tribunal de 1ª instância para realização de diligências de prova.
27. Na sequência do que vêem, os autores, fazer a junção dos documentos 1 e 2.
Porém, a ED - aqui recorrente - não impugnou nenhum desses documentos.
28. Todavia, o tribunal a quo determinou a condenação da ED no pagamento das custas.
29. Ora, com tal não pode a Entidade aqui Recorrente concordar, porquanto tal conduzirá a que impenda sobre a Administração Tributária a obrigação de custear uma acção intentada pelos autores - acção que seria desnecessária caso tivessem sido carreados em momento devido, os competentes elementos de prova, que, de resto, e não obstante se tratar do cumprimento de um dever legal, foram solicitados pela Administração Fiscal, também, em nome do principio do colaboração.
30. Ademais, não podem os sujeitos passivos ser “premiados” sempre que optam voluntária e conscientemente pelo recurso às vias contenciosas para dirimir os seus litígios, em detrimento das vias graciosas que, oportunamente, lhe estão asseguradas,
31. E não pode ser a Administração Tributária condenada a suportar encargos a que não dá causa, respeitantes a litígios dirimíveis em sede graciosa.
32. Razão pela qual, deverá o douto Tribunal reconhecer não ser a Entidade aqui Recorrente responsável pelos encargos decorrentes da acção judicial contra si intentada - custas processuais - porquanto, agindo no estrito cumprimento da legalidade, e em face dos elementos de que dispunha, outra não poderia ser a sua atitude, sob pena de clara violação dos princípios da legalidade tributária, e da indisponibilidade do crédito tributário.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Norte não emitiu parecer.
Com dispensa dos vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre agora apreciar e decidir já que a tal nada obsta.
2. Fundamentação
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada na sentença recorrida
1. No ano de 2008, os sujeitos passivos (A…, e mulher, M…) efectuaram empréstimos/suprimentos à sociedade A…, Lda., de que ambos são sócios, no montante global de € 94.944,30, a que corresponde o rendimento padrão de € 47.472,15, tendo nesse ano de 2008 declarado em sede de IRS rendimentos líquidos no valor de € 12.792,36, valor este inferior a 50% do referido rendimento padrão: Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos e apensos aos autos (v.g. processo administrativo).
2. Para obstar ao procedimento de fixação do rendimento tributável por métodos indirectos (art 89°-A da LGT) podem os sujeitos passivos fazer prova de que correspondem à realidade os rendimentos por si declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna evidenciadas, nomeadamente herança ou doação, rendimentos que não estejam obrigados a declarar, utilização do seu capital ou recurso ao crédito, mediante apresentação, nomeadamente de cópia dos extractos bancários que evidenciem a origem e a mobilização dos recursos financeiros utilizados para a realização dos suprimentos. Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos e apensos aos autos (v.g, processo administrativo).
3. Em exercício do direito de audição junto da Administração Tributária, o sujeito passivo A… exibiu um contrato promessa de compra e venda que previa a antecipação do pagamento resultante da venda de imóveis sua propriedade, mas tendo sido instado pela Administração Tributária a que remetesse esses elementos de prova juntamente com os comprovativos do recebimento antecipado e extractos de conta bancária para que pudessem ser apreciados no âmbito da acção de inspecção tributária que se encontrava a decorrer, não o veio fazer. Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos e apensos aos autos (v.g. processo administrativo).
4. Na sequência do que a Administração Tributária (AT) concluiu que os sujeitos passivos não comprovaram a proveniência dos montantes integrantes dos empréstimos/suprimentos, em consequência do que a AT procedeu à correspondente fixação do rendimento colectável em sede de IRS. Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos e apensos aos autos (v.g. processo administrativo).
5. Os sujeitos passivos não comprovaram como lhes competia junto da Administração Tributária de onde provieram os montantes alegadamente integrantes dos sucessivos empréstimos/suprimentos, e não obstante já nesta sede judicial, tenham vindo invocar que beneficiam de uma compensação desde 1996 até 2015 juntando documentos relativos a 4 anos, o certo é que, até ser proferida Sentença e do subsequente recurso jurisdicional para o TCAN, não lograram a prova de recebimento dos concretos montantes pagos anualmente e onde foram depositados, conta e banco, e a favor de quem, nem sequer logrando provar o fluxo ou mobilização desse dinheiro para a sociedade em causa sob a forma de empréstimos/suprimentos. Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos e apensos aos autos (v.g. processo administrativo).
6. Acontece porém que, em cumprimento do douto Acórdão do TCAN, foram os Autores, através do respectivo Mandatário, notificados para, nesta nova oportunidade concedida, juntarem aos autos os comprovativos das saídas de levantamentos bancários e das entradas dos suprimentos na sociedade, isto é, prova que permita traçar o circuito financeiro que desembocou na realização dos suprimentos em causa. Na sequência do que vieram os Autores, desta vez, juntar diversos documentos de natureza bancária (v.g. extractos de contas bancárias, comprovativos de depósitos e de saldos, com a identificação dos respectivos titulares, a saber, quer da sociedade A…, Lda.”, quer do Autor A…), que permitem, agora sim, estabelecer um concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, nomeadamente em razão da respectiva actividade de exploração florestal, e a efectivação dos suprimentos em causa. Facto provado pelos articulados e pelos documentos juntos (incluindo já os subsequentemente juntos) e apensos aos autos (v.g. processo administrativo).
2.1.2. Do recurso apresentado pelo Director de Finanças de Vila Real
2.1.2.1. Do invocado erro da sentença recorrida no julgamento sobre a matéria de facto
O Recorrente Director de Finanças de Vila Real impugnou, nas suas alegações, o julgamento efectuado pelo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela em sede de matéria de facto e plasmado no ponto 6 do probatório da sentença sob recurso, em especial na parte em que aí se refere que os ora Recorrido lograram provar “um concreto nexo entre os montantes pecuniários que os Autores (Recorrentes) alegam ter recebido ao longo dos anos, nomeadamente em razão da respectiva actividade de exploração florestal, e a efectivação dos suprimentos em causa”.
No entender do referido Recorrente, os documentos juntos aos autos pelos Recorridos e que tinham em vista demonstrar a origem dos meios financeiros que permitiram as manifestações de fortuna que estiveram na base do acto de determinação da matéria tributável em litígio, nos termos que foram por aqueles alegados na petição inicial do recurso judicial, não provam a factualidade que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela deu como provada naquele ponto 6 do probatório.
Vejamos.
É desde logo evidente que o referido ponto da matéria de facto provada que agora é atacado pelo Recorrente não concretiza, minimamente que seja, que nexo é que o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela vislumbrou e, a entender-se que um nexo existe, entre que concretos montantes pecuniários, por um lado, e que manifestações de fortuna, por outro. A decisão sobre a matéria de facto enferma, por isso e nessa parte, de ostensivo vício de obscuridade (é obscura a decisão sobre a matéria de facto que se mostre equívoca, inintelegível ou imprecisa: cf. Antunes Varela – J. Miguel Bezerra – Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 656).
Nos termos preceituados no nº 4 do artigo 712º do CPC, aplicável aqui por força da alínea e) do artigo 2º do CPPT, a Relação (leia-se: Tribunal Central Administrativo) pode anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando, relativamente a pontos determinados da matéria de facto a repute de deficiente, obscura ou contraditória. Tal anulação dependerá de, no processo, constarem ou não todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1 daquele artigo 712º do CPC, permitam a reapreciação da matéria de facto.
Sendo assim, a pergunta que se impõe é a seguinte: poder-se-á dizer que os autos contêm todos os elementos indispensáveis a uma adequada reapreciação da decisão sobre a matéria de facto?
A resposta a tal questão não pode deixar de ser negativa. Vejamos porquê.
É certo que, na sequência de notificação feita pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, os Recorridos juntaram aos autos diversa documentação bancária tendente a justificar as manifestações de fortuna que desencadearam o procedimento de determinação da matéria tributável aqui em causa. No entanto, tal documentação não é, por si só, suficiente para que, de forma conscienciosa e segura, se possa proferir uma decisão sobre a questão central do presente litígio e que, recordamos, é a de saber qual a fonte dos meios financeiros mobilizados pelos Recorridos para efectuarem os suprimentos à sociedade comercial “A…, Lda.”, durante o ano de 2008.
Na verdade, como bem assinala o Recorrente Director de Finanças … nas suas alegações, a conta bancária com o nº 50008391226 de que é titular o Recorrido A… e domiciliada no Banco Millenium BCP e da qual saíram os montantes que serviram para efectuar os suprimentos aqui em causa, apresentava, em 3 de Abril de 2007, um saldo de 1,39 euros e em 3 de Dezembro de 2007 o saldo já era de 57.065,28 euros, sem que seja possível determinar a proveniência deste último montante (cf. documentos de fls. 172 e 173).
Por outro lado, também não consta dos autos a declaração de rendimentos dos Recorridos relativa ao ano de 2007 que permita o seu confronto com o que, na sequência das diligências instrutórias a efectuar para esclarecer o ponto anterior, venha a ser, eventualmente, apurado.
Finalmente, como também assinala o Director de Finanças d…, no mês de Janeiro de 2008 existiram depósitos na referida conta bancária com o nº 50008391226 de que é titular o Recorrido A… e da qual saíram os montantes que serviram para efectuar os suprimentos à sociedade comercial “A…, Lda.”, de cheques emitidos por esta mesma sociedade e cuja justificação se desconhece e importava conhecer (cf. documentos de fls. 145 e 146).
Existem, portanto, questões fácticas de importância crítica às quais os elementos que constam dos autos não permitem, de modo algum, responder.
E são de importância critica, porquanto, se bem vemos, a exigência legal que decorre da norma do artigo 89º-A, nº 3 da LGT impõe, não só que o sujeito passivo alegue e prove quais os meios financeiros que, concretamente, mobilizou para manifestar fortuna mas também qual a fonte, qual a origem, desses meios financeiros.
De resto, isso mesmo está em consonância com o carácter residual que a boa doutrina assinala ao mecanismo de tributação das manifestações de fortuna e que deriva da circunstância de, através dele, serem absorvidos os rendimentos de proveniência não identificada que, normalmente, são explicados como o resultado de rendimentos ocultados à administração tributária em anos anteriores, servindo, portanto, aquele mecanismo, de válvula de escape para tributar esses rendimentos de origem desconhecida – neste sentido, João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, Um contributo para Reequacionar os Métodos Indirectos de Determinação da Matéria Tributável, Almedina, 2010, págs. 283-284.
Sendo isto assim, verifica-se, portanto, uma incontornável necessidade de desenvolver diligências instrutórias tendentes a esclarecer aqueles pontos que anteriormente assinalámos e respeitantes à determinação da origem dos meios financeiros que foram utilizados pelos Recorridos para a efectivação dos suprimentos que consubstanciam as manifestações de fortuna em litígio.
O que equivale a dizer que os autos não dispõem de todos os elementos de prova indispensáveis a que este Tribunal Central Administrativo reaprecie o julgamento da matéria de facto.
Deste modo, a assinalada obscuridade do ponto 6 do probatório não pode deixar de implicar a oficiosa anulação da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela nos termos que decorrem do disposto no nº 4 do artigo 712º do CPC por forma a que, tal obscuridade, após a realização das diligências probatórias que se mostrem relevantes, seja superada, nomeadamente através da fixação precisa, inteligível e inequívoca dos pontos fácticos relevantes para a boa decisão da causa.
Da anulação oficiosa da decisão que, a final, se irá determinar, resulta que fique prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Recorrente e bem assim o recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público.
Refira-se, a finalizar que, nos termos previstos no artigo 3º, nº 3 do CPC, se nos afigurou manifestamente desnecessário ouvir as partes antes do decretamento oficioso da anulação da decisão recorrida.
3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:
a) Anular a decisão recorrida;
b) Ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela a fim de aí se determinar a realização das diligências de prova tidas por relevantes tendo em vista o esclarecimento das questões fácticas referidas na fundamentação do presente acórdão e, após, se proferir nova decisão.
Sem custas.
Porto, 30 de Novembro de 2011
Álvaro Dantas
Anabela Russo
Catarina Almeida e Sousa