Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00490/09.6BEVIS
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:11/23/2011
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Álvaro Dantas
Descritores:DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
PERSONALIDADE JURÍDICA
MANDATO JUDICIAL
Sumário:1. A sociedade comercial dissolvida e em procedimento de liquidação mantém a sua personalidade jurídica, só se considerando extinta com o registo do encerramento da liquidação.
2. A mudança operada na representação de uma sociedade comercial em procedimento de liquidação resultante da renúncia do anterior liquidatário e da nomeação de um outro em sua substituição não afecta a subsistência do mandato judicial.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:I..., S.A.
Recorrido 1:Fazenda Pública
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. Relatório
I…, S.A., em liquidação (Recorrente), pessoa colectiva nº 5…, com sede na T…, dizendo-se inconformada com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que absolveu a Fazenda Pública da instância da impugnação judicial do acto de indeferimento da reclamação graciosa da liquidação de Imposto Municipal de Sisa, dela veio interpor o presente recurso.
A rematar as alegações do seu recurso, apresentou as seguintes conclusões:
A. Entendeu o Ilustre Tribunal a quo que o mandato conferido pela ali Impugnante ao Mandatário signatário da petição inicial cessou com a nomeação da novo Liquidatário, e, por conseguinte, não tendo a mesma dito ou junto seja o que for aos autos, no seguimento de notificação pelo Ilustre Tribunal a quo para tanto, entendeu estar-se perante uma situação de mandato caducado, nos termos do artigo 40º do CPC, ex vi al. e) do artigo 2º do CPPT, ficando, naqueles termos, sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário, julgando assim, o Tribunal a quo verificada a falta de mandato, dando, consequentemente, sem efeito o processado pelo Mandatário da ali Impugnante, culminando com a absolvição da instância.
B. Da factualidade relevante resulta que foi interposta impugnação judicial contra o acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada do acto tributário de liquidação de Imposto Municipal de Sisa, e, bem assim, do próprio acto de liquidação.
C. Foi instaurado procedimento oficioso de liquidação contra a identificada Recorrente, que corre termos na Conservatória de Registo Comercial do Porto sob o nº de processo 1165/2008-3S, do que foi dado conhecimento aos presentes autos, tendo sido deliberado pelas Accionistas dessa sociedade a aprovação das contas da liquidação – e, na assembleia-geral em que foi proferida tal deliberação, foi declarada a renúncia do Liquidatário que antes havia sido nomeado, tendo sido nomeado novo Liquidatário, o Dr. A….
D. Decisão esta que, entendeu o Mandatário ora subscritor, fez cessar o mandato antes emanado, cessando, consequentemente, os poderes de representação forense antes conferidos, uma vez que quem detinha poderes de representação da ora Recorrente era o seu Liquidatário.
E. Por tal facto, requereu o Mandatário subscritor que fosse ordenada notificação dirigida ao seu Liquidatário em exercício de funções, para que este renove o mandato antes conferido ou proceda à constituição de novo mandatário forense.
F. Tendo o Ilustre Tribunal a quo proferido despacho, em 08/03/2010, a ordenar a notificação do Administrador de Insolvência, porquanto devia a Impugnante ser representada em juízo pelo mesmo, nos termos do 81.º n.º 4 do CIRE (?!?!).
G. Sucede, porém, que, notificado o Liquidatário em exercício de funções, veio este comunicar a renúncia a tal cargo, mais dando conhecimento aos autos de que, por força de tal renúncia, havia sido nomeado novo Liquidatário pela Exma. Sr.ª Conservadora, a Dr.ª A….
H. Notificada pelo Ilustre Tribunal a quo para os mesmos efeitos acima descritos, resulta dos autos e da douta sentença que nada veio comunicar aos mesmos.
I. Na verdade, a Liquidatária nomeada pela Sr.ª Conservadora não aceitou as funções para as quais havia sido designada, conforme requerimento da mesma datado de 14/04/2010 – cf. doc. nº 1, que ao diante se junta sob a égide do art.º 693º - B do CPC ex vi al. e) do artigo 3º do CPPT e se dá por integralmente reproduzido, para os devidos efeitos legais, por só agora ter tido conhecimento da ausência de resposta da Sr.ª Liquidatária.
J. O que resultou na nomeação de um novo Liquidatário, Dr. J… – cf. doc. nº 2, aqui dado por integrado sob a égide do art.º 693.º-B do CPC ex vi al. e) do art.º 3.º do CPPT, pelas mesmas razões acima explanadas -, que veio conferir poderes ao Mandatário subscritor, outorgando, assim, procuração forense a favor deste e que seguiu junta ao requerimento de interposição do presente.
K. Da factualidade ora enunciada, resulta não assistir razão, salvo o devido respeito, que é muito, ao Mmo. Juiz a quo, como se passa a demonstrar:
L. Nos termos do art.º 18.º n.º 2 do Decreto-Lei 76-A/2006, de 29/03, a Sr.ª Conservadora titular do procedimento de liquidação oficiosa seleccionou os liquidatários nomeados no âmbito daquele procedimento, e acima identificados, da lista oficial dos administradores de insolvência do Distrito Judicial do Porto.
M. Ora, não obstante os Senhores Administradores de Insolvência/Liquidatários inscritos na referida lista serem susceptíveis de serem nomeados para qualquer processo e para mais do que um, certo é que estão, naturalmente, habilitados a recusar tal nomeação.
N. Na verdade, pese embora a lei seja omissa quanto a essa capacidade, certo é que jamais o contrário era admissível, ou seja, não terem os Senhores Administradores de Insolvência/Liquidatários nomeados a possibilidade de recusarem essa mesma nomeação.
O. Do que resulta ser necessário um termo expresso de aceitação por parte dos Senhores Administradores de Insolvência/Liquidatários.
P. De regresso ao caso em apreciação, a Sr.ª Liquidatária A…, nomeada pela Sr.ª Conservadora para o procedimento de liquidação oficiosa acima identificado, renunciou/recusou a mesma, por não poder “realizar dignamente as suas funções como liquidatária” – cf. doc. nº 1, aqui dado por integrado.
Q. Jamais tendo, por tal, ingressado nas funções de liquidatária no âmbito daquele procedimento, não poderia também dar cumprimento ao despacho para o qual havia sido notificada pelo Ilustre Tribunal a quo, nem, tão pouco, conferir mandato ao ora mandatário subscritor ou qualquer outro.
R. Sendo que a falta de comunicação aos autos, por parte da Sr.ª Liquidatária, da sua renúncia às funções para que havia sido nomeada só a ela poderá prejudicar.
S. No entanto, impunha-se a notificação à Sr.ª Conservadora, enquanto titular do procedimento administrativo de dissolução, quanto mais não fosse para aferir da aceitação da nomeação daquela Sr.ª Liquidatária.
T. Com efeito, no estrito cumprimento do disposto no artigo 24.º do CPC ex vi al. e) do art.º 2.º do CPPT, confrontado o Mmo. Juiz com a falta de representação da sociedade Impugnante, impunha-se providenciar pela regularização da instância, ordenando a citação daquela sociedade, na pessoa dos seus accionistas, ou – em bom rigor – da Sr.ª Conservadora, entidade titular do procedimento e responsável pela nomeação de representante/liquidatário, nos termos do n.º 2 da aludida disposição normativa.
U. Pelo que mal andou o Mmo. Juiz a quo quando se bastou com a notificação à Sr.ª Liquidatária nomeada, e cuja identificação foi facultada pelo Liquidatário renunciante antecessor, aquando do conhecimento aos autos da sua própria renúncia.
V. Acresce que, não é líquido que a renúncia do liquidatário faça cessar o mandato, pois que, esmiuçando as causas de cessação do mandato forense, temos que este cessa por renúncia, revogação ou caducidade, causas essas que, clara e indubitavelmente, não sucederam no âmbito dos presentes autos.
W. Sendo certo que, no que respeita à liquidação e dissolução das sociedades comerciais, a lei não prevê a cessação de mandato conferido por estas, ao inverso do que sucede na insolvência – e que, salvo o devido respeito, não deve ser confundida com o procedimento administrativo de dissolução, tal como parece suceder no mui douto despacho proferido em 08/03/2010, despacho este que é inconsequente e ineficaz, porquanto ordena a notificação do Administrador de Insolvência, que não existe, por não existir nenhum processo de insolvência a correr contra a sociedade Impugnante - a qual, por disposição expressamente prevista no CIRE, impõe a constituição de mandatário pelo Administrador de Insolvência.
X. No entanto e pelo contrário, refere o artigo 146.º n.º 2 do CSC que a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando diferentemente se disponha nas disposições subsequentes ou assim resulta da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas,
Y. Assim, mantendo a sociedade Recorrente a sua personalidade jurídica e, portanto, a sua capacidade jurídica, estamos apenas perante uma situação de “irregularidade” na sua representação, e àquele momento, uma vez que a mesma “irregularidade” se encontra actualmente sanada.
Z. Acresce que todo o acabado de expor serve de fundamentação à douta sentença recorrida, e que jamais poderá sustentar legalmente a decisão proferida, antes justificando a manutenção do mandato conferido ao advogado signatário.
AA. Pelo que, não tendo sucedido nenhuma das causas legalmente previstas para a cessação do mandato conferido pela Sociedade Recorrente ao mandatário subscritor, o mesmo mantém-se em vigor.
BB. Sendo certo que a pretensa cessação também não sucederia pelo facto de, uma vez instaurado o procedimento oficioso de liquidação, o liquidatário em funções ter renunciado às mesmas, pois que, até ser nomeado novo liquidatário, mantém-se válidos os actos praticados pelo anterior liquidatário, nomeadamente, o mandato conferido ao advogado signatário.
CC. Pelo que tendo julgado verificada a falta de mandato, com as demais consequências daí advenientes, violou a Ilustre Tribunal a quo o disposto nos artigos 146.º n.º 2 do CSC e art.º 24.º e 40.º do CPC ex vi al. e) do art.º 2.º do CPPT.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de ser anulada a decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir já a tal nada obsta.
Questão a decidir:
A questão que importa apreciar, suscitada e delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, é a de saber se a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que deu sem efeito o processado pelo mandatário da Impugnante e absolveu a Fazenda Pública da instância no pressuposto da ocorrência da caducidade do mandato e do não suprimento da falta no prazo legal, incorreu em erro de julgamento.
2. Fundamentação
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto provada
A decisão recorrida, embora sem proceder à sua especificação separada, considerou provada a seguinte a matéria de facto que agora se reproduz ipsis verbis:
a) A Impugnante foi alvo de um processo administrativo oficioso de liquidação de sociedade comercial;
b) Na sequência desse procedimento e em virtude do primeiro liquidatário ter renunciado expressamente ao cargo para que foi designado, foi nomeada oficiosamente pela Exma. Senhora Conservadora, da Conservatória do Registo Comercial do Porto, para liquidatária da sociedade acima indicada, a Exma. Sra. Dra. A…, como consta dos documentos da referida Conservatória.
2.1.2. Aditamento oficioso de matéria de facto provada
Ao abrigo do disposto no artigo 712º, nº 1, alínea a) do CPC, aplicável por força do artigo 2º, alínea e) do CPPT, adito ao probatório a seguinte matéria de facto:
c) Com data de 9 de Maio de 2008, a I…, S.A., em liquidação, representada pelo seu liquidatário J…, subscreveu a procuração de fls. 20 cujo teor aqui se dá por reproduzido e através da qual conferiu poderes forenses aos advogados ali referenciados e entre os quais se contam as subscritoras da petição inicial – (cf. fls. 20 dos presentes autos).
2.2. De direito
A questão que, nesta sede, importa decidir e que vem suscitada pela Recorrente é a de saber se a decisão do Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu que deu sem efeito o processado pelo mandatário da Impugnante e absolveu a Fazenda Pública da instância no pressuposto da ocorrência da caducidade do mandato e do não suprimento da falta no prazo legal, incorreu em erro de julgamento.
Vejamos.
Este Tribunal Central Administrativo Norte já se pronunciou em muitos outros processos sobre questão inteiramente idêntica à que agora se nos coloca.
Iremos, por isso, limitar-nos a reproduzir uma dessas decisões, no caso a que foi proferida no processo 483/09.3BEVIS através do acórdão de 24 de Outubro de 2011, ainda inédito. Assim:
Na decisão recorrida, depois de enunciadas considerações genéricas sobre o regime da dissolução das sociedades comerciais, exarou-se o seguinte: “Estando-se perante uma situação de mandato caducado, importa chamar à colação as regras do art. 40.º do CPC, aplicável “ex vi” al. e) do artigo 2.º do CPPT.
Ora, diz-nos o n.º 2 do citado preceito, no que nos interessa, que “Findo este prazo sem que esteja regularizada a situação, fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário…”, pelo que importa, atendendo a todos os argumentos acima expostos, dar sem efeito tudo o que o Ilustre Mandatário da Impugnante praticou nos presentes autos.”
Como se constata, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu decidiu absolver a Fazenda Pública da instância por considerar que o mandato judicial que sustentava a actuação das subscritoras da petição inicial e constituído através da procuração forense de fls. 20 havia caducado na sequência da renúncia do liquidatário da Impugnante que passou a dita procuração e que, por isso, passou a haver uma situação de falta de procuração que não foi devidamente suprida.
Salvo o devido respeito, não vemos como possa manter-se tal decisão.
Está assente que a Impugnante é uma sociedade comercial que se encontra em procedimento administrativo oficioso de liquidação nos termos previstos no nº 6 do artigo 146º do CSC subsequente à respectiva dissolução.
Ora, nos termos do disposto no artigo 146º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), “a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas.”
Por outro lado, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 160º do CSC, “a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação.”
Decorre dos normativos que vimos de transcrever que a sociedade comercial em liquidação mantém a sua personalidade jurídica, só se considerando extinta com o registo do encerramento da liquidação.
Deste modo, a nomeação do liquidatário da sociedade, nos termos previstos no artigo 18º, nº 1 e 2 do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais que constitui o Anexo III ao Decreto-Lei 76-A/2006, de 29 de Março, não implica senão uma modificação na representação orgânica da sociedade.
Como assim, mantendo-se intacta a personalidade jurídica da sociedade comercial que entra em procedimento de liquidação, parece claro que a dissolução não implica a extinção das relações jurídicas de que aquela era titular.
Ora, quando o anterior liquidatário da Recorrente constituiu mandatárias as subscritoras da petição inicial através da procuração forense de fls. 20 dos presentes autos, fê-lo em representação da sociedade e como tal, foi esta que ingressou na titularidade da relação jurídica dali emergente, sendo que, em princípio, enquanto a sociedade mantiver a sua personalidade jurídica igualmente se manterá essa titularidade.
A mudança operada na representação da Recorrente em resultado da renúncia de um liquidatário e da nomeação de um outro em sua substituição não será susceptível de afectar a subsistência daquela relação jurídica ou, dito de outra forma, de afectar a subsistência do mandato judicial.
Aliás, a situação também não encontra enquadramento possível na previsão da norma do artigo 1174º do Código Civil que se refere a situações de caducidade do mandato nem na previsão na previsão da norma do artigo 275º, nº 1 do mesmo diploma legal a qual alude às situações de extinção da procuração.
Na verdade, não se extinguindo, como vimos, a relação jurídica que serviu de base à procuração também esta não se extingue.
Falece, pois, a base legal que permita concluir, como concluiu o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que, com a renúncia do primitivo liquidatário e com a nomeação de uma nova liquidatária, caducou o mandato judicial das subscritoras da petição inicial e que, por via dessa caducidade, se caiu numa situação de falta de mandato a exigir a aplicação da norma do artigo 40º do Código de Processo Civil.
Assim, não obstante a comprovada inércia da nova liquidatária na sequência da notificação que lhe terá sido efectuada no sentido de constituir novo mandatário, é para nós evidente que não pode, por essa razão, dar-se sem efeito tudo quanto foi praticado pelos mandatários da ora Recorrente, nomeadamente, a petição inicial”.
Sem necessidade de maiores considerandos se conclui que a decisão recorrida não pode subsistir na ordem jurídica devendo, por isso, proceder o presente recurso.
3. Decisão
Assim, pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a decisão recorrida;
c) Ordenar a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu para aí prosseguirem os seus termos se nenhuma razão, que não aquela que serviu de fundamento à decisão recorrida, a isso obstar.
Sem custas.
Porto, 23 de Novembro 2011
Álvaro Dantas
Anabela Russo
Catarina Almeida e Sousa