Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00433/13.2BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:10/30/2020
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:MUROS DE CONTENÇÃO; REPOSIÇÃO DA LEGALIDADE URBANÍSTICA; ARTº 102.º DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E EDIFICAÇÃO - RJUE
Sumário:1 – Tendo os Serviços do Município reconhecido que a Santa Casa foi vítima de trabalhos realizados em terreno adjacente ao seu, mal se compreenderia que esta pudesse vir a ser penalizada em decorrência de circunstância para a qual não contribuiu, nem por ação, nem por omissão, consubstanciada na verificada instabilidade da encosta.

2 – Uma vez que os verificados deslizamentos de terras resultaram comprovadamente das obras referentes ao «projeto de obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da Conchada», executadas por titulares de alvará válido, mas em desconformidade com o projeto aprovado, deverão estes ser responsabilizados pela ocorrência, e não a Santa Casa, enquanto titular do prédio para onde deslizaram as terras.

3 - Correspondentemente, deveria o Município, nos termos do Artº 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - RJUE, designadamente, ter determinado ao titular do alvará, a reposição do terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras.

4 – Resultando dos Autos que a Santa Casa não promoveu a realização no seu prédio de quaisquer obras, muito menos aquelas que vieram a determinar os deslizamentos de terras, tendo-se, aliás, oposto expressamente à sua efetivação, mostrar-se-ia inaceitável ser responsabilizada pelas consequências das obras levadas a cabo, e face às quais o Município, podendo e devendo tê-lo feito, não interveio na reposição da legalidade Urbanística.

5 – Assim, deverá o Município, enquanto titular da obrigação de reposição da legalidade urbanística na sua área territorial, diligenciar diretamente, ou por via do titular do referido Alvará, no sentido de dar satisfação às conclusões de relatório de inspeção realizada, tendente à reposição normalidade urbanística.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Santa Casa da Misericórdia de (...)
Recorrido 1:Município de (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:N/A
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório

A Santa Casa da Misericórdia de (...), devidamente identificada nos autos, no âmbito da ação administrativa especial, intentada contra o Município de (...), tendente à impugnação do despacho de 21/03/2013 e, cumulativamente, que o R. seja condenado a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da Câmara Municipal de (...) de 16/07/2001, bem como às conclusões constantes do relatório de inspeção efetuado no dia 29/01/2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 a 35 do Loteamento n.º 427/99, em nome da M., Lda., inconformado com a decisão proferida em 18 de abril de 2020, no TAF de Coimbra, na qual a Ação foi julgada improcedente, veio interpor recurso jurisdicional.

Formula o aqui Recorrente/Misericórdia nas suas alegações do Recurso Jurisdicional, apresentado em 29 de junho de 2020, as seguintes conclusões:

“1- Foi proferida sentença à ordem dos presentes autos na qual o Município de (...) (Réu, ora Recorrido) foi absolvido dos pedidos formulados pela Santa Casa da Misericórdia de (...) (Autora, ora Recorrente), através dos quais se pretendia que aquele fosse condenado a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua aprovação, bem como a dar cumprimento às conclusões que constam do relatório da inspeção realizada no dia 29/01/2013 ao talude das traseiras dos lotes 17 a 35 do loteamento n.º 427/99, sito na Estrada de (...), em (...);
2- Na sentença recorrida, justifica-se a decisão com a urgência que haveria na resolução do problema que havia com o talude e que tal circunstância seria suficiente para que se considerasse que naquele contexto nada mais seria exigível ao Município a não ser deixar que as obras efetuadas pelos contrainteressados pudessem ser finalizadas (apesar de elas desrespeitarem por completo os projetos inicialmente aprovados). Do mesmo modo, considerou-se que jamais deveria ficar o Recorrido com o ónus de dar cumprimento às conclusões inscritas no relatório relativo à inspeção realizada em 29/01/2013 na medida em que esse encargo cabe somente ao proprietário dos terrenos afetados (a ora Recorrente);
3- Deverá ser dado como provado o seguinte facto: A execução das escavações por parte dos contrainteressados teve como consequência, nomeadamente, um aumento da inclinação do terreno (20.º a 30.º) e a descompressão superficial dos pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água, por força do disposto no Doc. 10 junto com a petição inicial;
4- Do mesmo modo, em função do teor da informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso, também deverá integrado na lista do acervo probatório dado como provado o seguinte facto: A Santa Casa da Misericórdia de (...) nunca deu autorização aos contrainteressados para que estes pudessem fazer obras ou outras intervenções similares nos seus terrenos, situação que foi atestada pelo próprio Município na informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso, datada de 06/07/2006;
5- O ponto 5) dos factos dados como provados na sentença sublinha que (e citando) “Nos termos da informação n.º 187/01, de 11/02/2001, a DGUC alertou para a possibilidade de ocorrerem deslizamentos e/ou derrocadas, uma vez que tinham sido efetuados pela M., Lda. «trabalhos de desmonte na crista dos taludes posteriores dos lotes, do lado Poente, tendo-se prolongado pela encosta adjacente, propriedade da Santa Casa da Misericórdia» tendo, em consequência, aquela sociedade sido notificada, através de ofício de 02/03/2001, para apresentar, no prazo de 30 dias, um «projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde tinham sido ou viessem a ser efetuados trabalhos»”;
6- Contudo, não foi tido em consideração o facto de a necessidade de se proceder à estabilização do talude ter decorrido diretamente da atuação dos contrainteressados (nomeadamente a M.), sendo essa a única razão para que a partir do ano de 2001 tivesse passado a haver sinais evidentes (e preocupantes, segundo a informação prestada por aquele organismo) de instabilidade na encosta (tal como evidenciado pelo Doc. 10 junto com a petição inicial);
7- A Recorrente sempre se opôs à realização e prolongamento das obras feitas pelos contrainteressados ao abrigo do alvará n.º 427/99 para terrenos que são sua propriedade, facto que foi por inúmeras vezes reportado ao Município (como se pode constatar nos pontos 11), 13), 30) e 34) da matéria de facto dada como provada), ao contrário do que havia sido transmitido pelos contrainteressados, de tal forma que a aprovação das obras de estabilização ficou pendente de apresentação de comprovativo de consentimento que nunca foi junto;
8- O Município, ora Recorrido, deveria ter usado os mecanismos previstos nos art. 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, nomeadamente lançando mão da medida de reposição do terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras.
9- Ao invés, autorizou uma alteração ao projeto original que fez com que passasse a haver trabalhos em terrenos da Santa Casa da Misericórdia, sem a sua autorização e sem ter sido consultada para o efeito pelo Município, com a agravante de ter sido crucial para o Recorrido deliberar no sentido da aprovação o facto de os contrainteressados terem insistido na tese de que haveria autorização verbal por parte do então Provedor da ora Recorrente, sem que alguma vez tivesse sido apresentado documento comprovativo (ver, neste âmbito, o ponto 36) dos factos dados como provados);
10- O Recorrido, salvo melhor opinião, demitiu-se na totalidade das suas obrigações enquanto garante da legalidade urbanística, até porque tanto no momento em que teve conhecimento da instabilidade da encosta (em 2001), como à data da primeira comunicação remetida pela Recorrente (em 2002) seria certamente muito mais fácil adotar na íntegra qualquer medida, sobretudo aquela que foi acima indicada, que repusesse a legalidade (razão pela qual, entre tantas outras, a Recorrente estranha que na sentença recorrida se refira que não seria adequado que se adotassem medidas de tutela de legalidade urbanística nesta situação em apreço);
11- Perante este problema, o Recorrido sempre teve a intenção de se demitir das responsabilidades que lhe cabiam, focando-se antes em passá-las para outras entidades, sobretudo a Recorrente (veja-se, neste âmbito os pontos 25), 35) e 36) da matéria de facto dada como provada na sentença ora recorrida);
12- O Recorrido não fez o que lhe competia para que ficasse garantida a legalidade urbanística no caso em apreço e é apenas e só isso que está aqui em discussão, não obstante em vários pareceres e recomendações ter querido dar à questão em análise uma aparência de problema do foro privado. A Recorrente nunca teve o intuito de discutir nesta sede danos ou montantes indemnizatórios (por isso mesmo fez os pedidos constantes da petição inicial e apresentou ação num tribunal administrativo);
13- A Recorrente não fez obras no local, não as autorizou nos terrenos que são sua propriedade e opôs-se de forma evidente às mesmas. Como tal, não poderá ser onerada com o cumprimento de obrigações decorrentes de uma situação que não criou nem tão-pouco agravou;
14- Apesar do conhecimento que o Recorrido tinha da situação desde o seu início e de nada ter feito para repor a legalidade, acresce ainda que, a título de exemplo, não desempenhou devidamente as suas funções de fiscalização, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 93.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação;
15- As obras relativas à contenção, arranjo e estabilização do talude são parte integrante do projeto de obras de urbanização na medida em que o projeto que lhes diz respeito foi considerado projeto complementar (ver ponto 8) da matéria de facto provada), ou seja, é parte integrante do projeto de obras de urbanização do alvará n.º 427/99;
16- Sabendo que a deliberação camarária de aprovação da receção definitiva das obras de urbanização nunca foi comunicada à Recorrente, não se poderá considerar, ao contrário do que consta da sentença recorrida, que este aspeto já se encontra consolidado na ordem jurídica;
17- O Recorrido cometeu uma ilegalidade ao ter prescindindo das garantias bancárias com a aceitação da receção definitiva das obras, sabendo que parte delas não respeitaram o projeto aprovado (mais concretamente, o projeto de desaterro, de construção de muros de suporte e de contenção);
18- Crê a Recorrente que, em sede destes autos, resulta devidamente provado que a atuação do Município, ora Recorrido, foi insuficiente;
19- Serão violados princípios tais como os da legalidade, da proporcionalidade, da razoabilidade e da boa-fé caso a Recorrente, por força de tão pobre desempenho do Recorrido na defesa da legalidade urbanística, venha a ter em cima dos seus ombros o ónus de legalizar obras que não executou, não autorizou e que ultrapassaram os limites do loteamento, ainda para mais sabendo que tais intervenções tiveram origem em trabalhos dos contrainteressados que causaram danos à estrutura da encosta, simplesmente porque aquela é proprietária de um terreno afetado;
20- A argumentação da sentença recorrida vai, na sua generalidade, totalmente ao encontro do exposto na petição inicial, tendo resultado, porém, num veredicto oposto àquele que deveria ter sido proferido, pelo que importa aqui adequar a decisão aos fundamentos invocados na sentença (para além da inclusão no catálogo da factualidade dada como provada os factos a que já se fizeram referência em momento anterior nestas alegações, constantes dos pontos 5 e 7 das conclusões aqui vertidas);
21- Finalmente, em face do exposto, deverá caber ao Recorrido a obrigação de dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção nos exatos termos em que o mesmo foi aprovado (nomeadamente, lançando mão dos institutos previstos nos arts. 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação). Caso se entenda que atualmente já não será possível utilizar tais instrumentos, deverá então o Município, pelo menos, providenciar pelo cumprimento das conclusões vertidas no relatório elaborado na sequência de inspeção realizada no dia 29/01/2013 sobre o talude em apreço nestes autos, pedidos em relação aos quais a Recorrente volta a pugnar nesta sede pela sua procedência.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser alterada a matéria de facto provada através da inclusão da factualidade vertida nos pontos 3 e 4 das conclusões supra vertidas, devendo também ser revertida a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, sendo substituída por outra que dê provimento aos pedidos formulados pela Recorrente no sentido de o Município de (...), ora Recorrido, ser condenado a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua aprovação, bem como a dar cumprimento às conclusões que constam do relatório da inspeção realizada no dia 29/01/2013 ao talude das traseiras dos lotes 17 a 35 do loteamento n.º 427/99, sito na Estrada de (...), em (...). Assim se fará a necessária e habitual JUSTIÇA”

O Município Recorrido veio a apresentar as suas contra-alegações em 16 de julho de 2020, sem conclusões, terminando, referindo:

“Termos em que e nos mais de direito, deve o recurso interposto ser julgado totalmente não provado e improcedente, com todas as legais consequências, confirmando-se a douta sentença recorrida. Assim se fazendo Justiça!”

As Contrainteressadas T., Lda. e A. vieram apresentar as suas contra-alegações conjuntas em 15 de setembro de 2020, concluindo:

“1.ª A motivação do recurso apresentado pela Recorrente, assente no pedido de alteração/aditamento à matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, e na alegação de que a mesma desrespeita normas e princípios de direito administrativo, cujo cumprimento alega deveria ter sido assegurado pelo Município de (...) não poderá proceder, porquanto assenta em fundamentos que carecem manifestamente de sustentação, subscrevendo-se na íntegra o entendimento plasmado na douta sentença recorrida, bem como nas contra-alegações apresentadas pelo Réu Município de (...).
2.ª Carece de utilidade o aditamento da matéria vertida nas conclusões 3 e 4 das alegações de recurso ao elenco dos factos provados pela sentença recorrida, porquanto não terá como consequência qualquer alteração do sentido da decisão recorrida, na medida em que a encosta a intervencionar está inserida em terrenos que não estão abrangidos pelo Alvará de Loteamento n.º 427/99, e que são propriedade da ora Recorrente, pelo que no caso de se verificar qualquer situação de risco nessa encosta, que exija uma intervenção exterior ao Talhamento/Alvará das obras de urbanização n.º 427/99, como se verifica in casu, conforme informação vertida no relatório de ação de fiscalização realizada a 29.01.2013, é à Santa Casa que incumbe efetuar os trabalhos de consolidação dessa encosta e dos edifícios ou obras que nela existam.
3.ª A matéria alegada pela Recorrente nas conclusões 5 a 21 das alegações de recurso também terá que ser julgada improcedente, por não merecer qualquer censura o julgamento vertido na sentença recorrida.
4.ª O projeto de desaterro e o projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta são projetos distintos, e relativamente ao projeto de desaterro, nada ficou por decidir ou por executar, por parte dos titulares do alvará n.º 427/99 – cf. pontos 2, 3) e 4) do probatório.
5.ª As obras referentes ao projeto da obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da (...) (aprovado em reunião camarária de 16.07.2001), encontram-se hoje integralmente executadas, e de acordo as com alterações que lhe foram introduzidas em 2002 e 2005, após a aprovação do projeto inicial.
6.ª As alterações ao projeto e respectivas obras justificaram-se pela necessidade de evitar uma possível derrocada do talude sobre as construções existentes, que exigia, por isso, uma intervenção urgente, não compatível com uma execução do projeto nos exatos termos em que o mesmo tinha sido aprovado em 16.07.2001.
7.ª As sobreditas alterações não foram ainda aprovadas por não ter sido apresentado o documento comprovativo da autorização da Santa Casa da Misericórdia para a realização de tais obras no seu terreno. No entanto, a loteadora apenas apresentou aquele projeto de contenção, procedeu à realização das obras de contenção dos taludes, e apresentou os subsequentes projetos de alterações porque, na sua boa-fé, pretendeu obviar a uma eventual interrupção das obras e garantir as condições de segurança das mesmas, pois a proprietária da encosta, a Santa Casa da Misericórdia, não se mostrava disposta a realizá-las em tempo oportuno.
8.ª O projeto aprovado em 16.07.2001 deixou de ser exequível face à realidade encontrada em obra e à urgência de fazer face à instabilidade dos taludes detetada no decurso dos trabalhos realizados em obra, pelo que não pode proceder o entendimento que a Recorrente insiste em fazer valer, de que impende sobre os titulares do alvará n.º 427/99 a obrigação de executarem aquele projeto nos exatos termos da sua aprovação.
9.ª E também não se vislumbra como é que o Município ora Recorrido poderia ter atuado nos termos pretendidos pela Recorrente – no sentido da reposição da legalidade, lançando medidas de tutela da legalidade previstas na lei, quer embargando a obra, quer impondo medidas corretivas (que poderiam passar pela reposição do terreno no estado em que se encontrava antes da intervenção) – atendendo a que as alterações ao projeto de contenção de muros, submetidas pelos titulares do alvará n.º 427/99, foram ditadas por urgência imperiosa, e de forma a garantir a segurança de pessoas e bens face à comprovada instabilidade do talude.
10.ª A própria Recorrente reconhece que a adoção de medidas de tutela da legalidade urbanística já não é sequer possível, como deixou expresso no ponto 21 das conclusões do seu recurso.
11.ª A deliberação camarária tomada em reunião de 27.02.2012, de aprovação da receção definitiva das obras de urbanização do alvará n.º 427, nomeadamente quanto às infraestruturas viárias, de abastecimento de água e drenagem de águas residuais e pluviais, elétricas, de telecomunicações e de gás, e que determinou a libertação das garantias existentes no valor de € 22.207,24, não foi oportunamente impugnada, pelo que se consolidou na ordem jurídica, com as legais consequências.
12.ª Não obstante, e sem prescindir, o projeto de contenção, arranjo e estabilização dos taludes e encosta adjacente é um projeto complementar dos projetos de obras de urbanização relativos ao alvará n.º 427/99 e foi aprovado pelo Município Recorrido precisamente nesses termos, como projeto complementar – cf. ponto 8) do probatório – pelo que se trata, pois, de um projeto autónomo relativamente a estes, e não de um projeto que é parte integrante daquele projeto de obras de urbanização, como a Recorrente quer fazer valer a todo o custo, pelo que não existia qualquer fundamento para que não fosse aprovada, como foi, e bem, a receção definitiva das obras de urbanização do alvará n.º 427.
13.ª Face aos fundamentos de facto e de direito supra expostos, não pode proceder, como se confia não procederá, o recurso da Recorrente no segmento em que pugna pela condenação do Recorrido Município a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião camarária do dia 16/07/2001, nos exatos termos da sua aprovação.
14.ª Também não poderá proceder, como se crê-se que não procederá, por manifesta falta de fundamentos atendíveis, o pedido de revogação do segmento da sentença recorrida que julgou pela improcedência do pedido de condenação do Município Réu, por si, ou através de intimação dos titulares do alvará n.º 427/99, respetivamente a expensas do Réu ou destes, a dar cumprimento às conclusões vertidas no relatório de inspeção de 29.01.2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.º 17 a 35 do Loteamento n.º 427/99, em nome da M., Lda..
15.ª Sendo a Recorrente a proprietária dos terrenos onde se verifica, em concreto, a instabilidade dos taludes onde foram realizadas as obras de execução do projeto de contenção, arranjo e estabilização desses taludes e encosta adjacente, não pode o Município Recorrido deixar de exigir-lhe, precisamente nessa qualidade de proprietária dos terrenos – e independentemente de quem provocou a situação em que se encontram a encosta e os seus terrenos, que aqui não está manifestamente em causa – a execução das obras dirigidas à estabilização dos taludes conforme as conclusões do relatório de inspeção de 29.01.2013.
16.ª Conforme bem ajuizou a sentença a quo, mesmo que se verificasse que foi a execução das obras relativas ao projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta, levada a cabo pelos titulares do alvará n.º 427/99, que provocou a situação em que se encontra a encosta e os seus terrenos, tal como descrita no relatório de inspeção de 29/01/2013, tal não constitui fundamento para que não possa ser exigida à Autora, na qualidade de proprietária dos terrenos em causa, e perante uma situação de risco na encosta, exterior à área abrangida pelo alvará n.º 427/99, a execução das referidas obras dirigidas à estabilização dos taludes, conforme as conclusões do dito relatório de inspeção.
17.ª A decisão da sentença a quo é a única possível face às circunstâncias de facto e de direito em causa no presente pleito, não existindo outra solução jurídica suscetível de ter sido adotada, pelo que não lhe pode ser imputada a invocada violação dos princípios da proporcionalidade, justiça e boa-fé.
18.ª Termos em que, pelos fundamentos supra expostos, não merece qualquer censura a decisão recorrida, pelo que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente, por manifesta falta de fundamentação de facto e de direito atendível, o recurso interposto pela Autora, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo Justiça!”

Em 8 de outubro de 2020 foi proferido Despacho de Admissão do Recurso Jurisdicional interposto.

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
As questões a apreciar resultam predominantemente da necessidade de verificar a suscitada alteração da matéria de facto dada como provada, mais se propondo a reversão do sentido da decisão recorrida, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade:
“1) Em 15/03/1999 foi emitido pelo R. o alvará de obras de urbanização n.º 427, nos termos do qual foi concedida à R., S.A. (hoje R., Lda.), à M., Lda., a A. e a J. licença para procederem à execução das obras de urbanização que incidem sobre os lotes 17 a 28 e 30 a 35 do designado “Talhamento da Santa Casa da Misericórdia” – Estrada de (...), da freguesia de (...), lotes esses que foram adquiridos pelas referidas entidades à ora A., obrigando à realização de obras de urbanização (cfr. doc. de fls. 21 a 29 do suporte físico do processo).
2) Do referido alvará n.º 427/99 consta que os seus titulares ficavam vinculados ao cumprimento, entre outras, da seguinte condição: “(…) Deve ser apresentado, no prazo de 30 dias, o projeto de gás, bem como completado o projeto de desaterro, a articular com o estudo geológico a que se refere o processo regt.º 17725/98 de 07/05” (cfr. doc. de fls. 21 a 29 do suporte físico do processo).
3) Em 29/03/1999 a sociedade M., Lda. apresentou um aditamento ao projeto de desaterro para a execução dos trabalhos de infraestruturas urbanísticas do “Talhamento da Santa Casa da Misericórdia” – Estrada de (...), tendo em vista completar o anterior projeto de desaterro, articulando-o com elementos do parecer geológico já entregue nos serviços camarários, e de cuja memória descritiva e justificativa consta, além do mais, o seguinte:
“A solução de desmonte e estabilidade dos taludes preconizada para a 1.ª fase foi encontrada tendo em conta as recomendações do parecer geológico e considerações de ordem económica, sempre presente em qualquer opção.
(…)
A estabilidade final dos taludes para a 2.ª fase será feita, como preconizada no projeto apresentado, através da execução de muros de suporte em betão armado, incluídos na estrutura dos edifícios a construir. Dada a sua razoável altura, estes muros deverão ser executados ‘por fatias’, evitando sistemas de escoramento muito volumosos e caros” (cfr. docs. de fls. 39 a 41 do suporte físico do processo e doc. de fls. 646 a 661 do processo administrativo).
4) Em 21/07/1999 a Divisão de Gestão Urbanística Centro (DGU-C) emitiu a informação técnica n.º 1206/99, na qual confirmou que o aditamento ao projeto de desaterro que foi apresentado estava elaborado com base no estudo geológico (cfr. doc. de fls. 152 a 169 do suporte físico do processo).
5) Nos termos da informação n.º 187/01, de 11/02/2001, a DGU-C alertou para a possibilidade de ocorrerem deslizamentos e/ou derrocadas, uma vez que tinham sido efetuados pela M., Lda. “trabalhos de desmonte na crista dos taludes posteriores dos lotes, do lado Poente, tendo-se prolongado pela encosta adjacente, propriedade da Santa Casa da Misericórdia”, tendo, em consequência, aquela sociedade sido notificada, através de ofício de 02/03/2001, para apresentar, no prazo de 30 dias, um “projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde tinham sido ou viessem a ser efetuados trabalhos” (cfr. doc. de fls. 152 a 169 do suporte físico do processo).
6) Em resposta à notificação que antecede, a M., Lda. apresentou, em 26/03/2001, um “projeto da obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da (...)”, de cuja memória descritiva e justificativa consta, além do mais, que se optou por “colocar em toda a extensão um maciço de gabiões, assente sobre bancada com 4,0m de largura”, bem como que “os muros de suporte que apoiam esta bancada são os que já estão previstos no projeto de estabilidade dos lotes, o que obriga a que os trabalhos do talude sejam feitos em simultâneo com os muros das garagens” (cfr. docs. de fls. 629 a 645 do processo administrativo).
7) Sobre o projeto que antecede foi elaborada, pela Chefe da DGU-C, a informação n.º 955, de 05/07/2001, na qual se pode ler o seguinte:
“(…) O projeto poderá ser deferido com as seguintes condições:
- Não é autorizada a construção de paredes e lajes ao nível do r/c dos edifícios. Só é admissível a construção de pilares e pérgula, cujos elementos poderão ser em betão armado, formando uma estrutura reticulada e não fechada. Este assunto relaciona-se com a área de construção autorizada, assunto já tratado em sede do loteamento e processos de licenciamento dos edifícios.
- Deverá atender-se ao estudo geológico, que integra o processo de licenciamento das obras de urbanização.
- O talude deverá ser plantado com vegetação adequada”
(cfr. doc. de fls. 628 do processo administrativo).
8) Sob a referida informação o Diretor do Departamento de Administração Urbanística emitiu, em 11/07/2001, o seguinte parecer e proposta de decisão:
“Proponho que a Câmara Municipal delibere aprovar o projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta, nos termos da presente informação n.º 955 da DGU/C.
N.B. – Trata-se de projeto complementar dos projetos de obras de urbanização oportunamente aprovados e licenciados”
(cfr. doc. de fls. 628 do processo administrativo).
9) Em reunião camarária de 16/07/2001, o R. deliberou, por unanimidade, aprovar o projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta que foi apresentado pela M., Lda., nos termos e com os fundamentos da proposta do Diretor do Departamento de Administração Urbanística que antecede (cfr. doc. de fls. 42 a 45 do suporte físico do processo).
10) Em 26/07/2002 a M., Lda. apresentou, sob o registo n.º 35113/2002, uma alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes, de cuja memória descritiva e justificativa consta, além do mais, o seguinte:
“No decorrer da obra e com o acompanhamento da equipa técnica, na qual estão integrados engenheiros civis e geólogo, foram surgindo algumas dificuldades que para serem ultrapassadas não permitem o cumprimento integral do projeto aprovado.
Assim apresenta-se o presente projeto de alterações no qual se podem definir como alterações mais significativas as que a seguir se apresentam:
- Diminuição da inclinação do talude
- Consequente criação de duas bancadas para apoio de muros de gabiões
- Impermeabilização das plataformas criadas”
(cfr. docs. de fls. 536 a 544 do processo administrativo).
11) Através do ofício n.º 771, de 01/08/2002, a A. apresentou uma exposição dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de (...), na qual informou que estavam em curso “obras de remoção de terras e colocação de gaviões, cuja execução não é da nossa responsabilidade, nem direção, em terreno localizado na encosta da Estrada de (...) e que pertence a esta Santa Casa da Misericórdia, sem que esta instituição as haja consentido”, bem como solicitou informação sobre se “essas obras estão autorizadas por essa autarquia, se a solução encontrada é a adequada à sustentação das terras e se é a única possível e viável para que os respetivos executantes possam concluir as obras de construção dos edifícios de habitação que têm em curso na Estrada de (...), ou seja, se a ocupação de uma área superior a 6.000 m2 de terreno pertencente a esta Santa Casa é a única solução para o fim em causa”
(cfr. doc. de fls. 517 do processo administrativo).
12) Sobre a exposição que antecede foi elaborada a informação interna n.º 1544, de 04/10/2002, com despacho de concordância de 19/11/2002, na qual foi proposto informar a A. de que “as obras decorrem dos projetos de especialidade, infraestruturas e arranjos exteriores apresentados na Câmara”, projetos que são “objeto de análise pelos serviços municipais, sendo que a responsabilidade pelas soluções técnicas é dos técnicos subscritores a quem são exigidos os respetivos termos” (cfr. doc. de fls. 494 do processo administrativo).
13) Através do ofício n.º 142, de 24/01/2003, a A. dirigiu nova exposição ao Presidente da Câmara Municipal de (...), na qual se pode ler o seguinte:
“(…) Foi esta Santa Casa recentemente notificada, pelos proprietários das parcelas n.º 13 e n.º 14 do talhamento da Estrada de (...), nos termos da carta da qual se anexa cópia. Dela se depreende que a execução das valas nessa carta referidas estão a ter como consequência o ‘arrastamento de terras e pedras em direção às construções vizinhas’, potenciando possíveis derrocadas. Queremos deixar bem claro que não temos qualquer responsabilidade nesta situação.
No entanto não podemos deixar de estar extremamente preocupados com as obras que continuam a ser feitas em terreno desta Santa Casa, sem nosso consentimento, em especial porque há alguns meses atrás fomos informados por essa Câmara que a referida obra não estava a ser executada de acordo com o projeto aprovado nem tinha técnico responsável, dado que o engenheiro que inicialmente assumiu a direção técnica da obra veio posteriormente a renunciar a essa responsabilidade.
Atendendo à gravidade desta situação, solicitamos a V. Ex.ª sejam tomadas as medidas que achar adequadas e ao mesmo tempo solicitar uma audiência urgente, tendo em vista o completo esclarecimento desta questão”
(cfr. doc. de fls. 514 do processo administrativo).
14) Em 12/11/2003 a Divisão de Licenciamentos Diversos e de Fiscalização (DLDF) elaborou a informação n.º 315, que versou sobre o projeto de alterações referido supra no ponto 10), da qual consta o seguinte:
“1 – As obras efetuadas na encosta (contenção e estabilização de taludes) encontram-se executadas de acordo com o projeto entregue sob o registo n.º 35113/2002, e que se encontra em anexo.
2 – As obras referidas anteriormente foram executadas em julho e agosto de 2002, segundo informações colhidas no local.
3 – Os trabalhos foram executados por: M., Lda., R., S.A., F., Lda. e A..
4 – Segundo informações, prestadas por representantes das firmas atrás descritas, os trabalhos executados obtiveram o acordo do anterior Provedor da Santa Casa, entretanto falecido”
(cfr. doc. de fls. 523 do processo administrativo).
15) À informação referida no ponto anterior a DLDF juntou fotografias que evidenciavam alguns sinais de instabilidade da encosta, nomeadamente desmoronamentos de terras e fissuras na parte superior do terreno/talude (cfr. docs. de fls. 525 a 528 do processo administrativo).
16) Em 20/11/2003 foi exarado despacho sob a informação n.º 315, nos termos do qual foi determinada a notificação da M., Lda. para apresentar o acordo estabelecido com a ora A. quanto à execução dos trabalhos objeto do projeto de alterações (cfr. docs. de fls. 522 e 523 do processo administrativo).
17) Através de requerimento apresentado em 26/12/2003, em resposta à notificação que antecede, a M., Lda. expôs e informou o seguinte:
“1 – A M. e outros são proprietários de lotes no designado Talhamento da Santa Casa da Misericórdia, sito na Estrada de (...);
2 – Os referidos lotes foram objeto de um processo de gestão urbanística, coordenado pela Câmara Municipal de (...) e pelo então Provedor, Eng.º A., no qual colaboraram os proprietários, dando o seu acordo ao processo de reconversão acordada pela Câmara Municipal de (...) e pela Santa Casa;
3 – Após ter sido concretizado esse processo de trabalhos, os proprietários dos lotes acederam, em substituição da Santa Casa, apresentar os diversos projetos de especialidades, respeitantes às infraestruturas urbanísticas e ao arranjo do espaço público exterior, que não estavam contemplados no talhamento, num processo de colaboração com a Santa Casa da Misericórdia e que veio a ser licenciado através do Alvará de Obras de Urbanização n.º 427;
4 – De igual modo foi também apresentado ‘um estudo urbanístico de conjunto’, a solicitação da Câmara Municipal, de modo a garantir uma solução urbanística e arquitetónica de conjunto, a que se aditou o estudo técnico de contenção e requalificação paisagística da encosta localizada junto aos lotes, também pertencente à Santa Casa da Misericórdia.
Todas estas ações e iniciativas foram devidamente conversadas e acordadas com o Sr. Eng.º A., então Provedor da Santa Casa da Misericórdia, que sempre mostrou total disponibilidade para todas as obras, incluindo as da barreira, em virtude dos proprietários terem efetuado as obras referidas no ponto 3, da responsabilidade daquela Instituição.
Estes são os factos essenciais para salientar que a M., as empresas proprietárias dos lotes do Talhamento da Santa Casa e proprietários das construções neles erigidas executaram todas as iniciativas e obras que a Câmara Municipal e a Santa Casa da Misericórdia entenderam necessárias e convenientes, tendo apresentado todos os projetos e documentos que lhes foram solicitados, não possuindo quaisquer outros para apresentar”
(cfr. doc. de fls. 498 e 499 do processo administrativo).
18) Em 15/01/2004 a AC, Águas de (...), EM enviou ao R. um ofício, com o assunto “Risco de colapso e inundação dos lotes 13 e 14 na Estrada de (...)”, do qual consta o seguinte:
“(…) informa-se que em consequência das obras de escavação dos muros de suporte (gabions) para a execução dos edifícios nos lotes que compõem o loteamento com o alvará de loteamento n.º 427 em nome da firma M., Lda. e outros, foi executada uma vala na crista do talude resultante da referida escavação, a qual recolhe as águas pluviais de parte da encosta compreendida entre o cemitério e o terreno do loteamento, concentrando estas e encaminhando-as para a linha de água que atravessa o edifício objeto da exposição.
A referida vala, que não consta de qualquer projeto aprovado por esta Empresa Municipal relativo à drenagem do loteamento, contribuirá de algum modo para o agravamento das condições de deficiente escoamento do sistema de drenagem que atravessa o edifício em causa, por si só insuficiente face à área da bacia contribuinte a montante.
Entende-se assim conveniente que, no que toca ao loteamento, se efetue no âmbito deste a reanálise das condições de escoamento proporcionadas pela vala aí executada, inserida no estudo do comportamento estrutural dos muros de suporte executados no talude, que vise a adoção de uma solução que não interfira, quer pelo acréscimo de caudal pluvial, quer pelo arrastamento de terras por erosão, com as condições de escoamento do sistema coletor que atravessa o edifício”
(cfr. doc. de fls. 492 do processo administrativo).
19) No dia 14/02/2005 foi realizada uma reunião entre o R. (DLDF) e a M., Lda., na qual esta esclareceu que “tiveram autorização da S.ª Casa da Misericórdia para efetuar a drenagem da encosta” e que “já procederam ao aterro da vala efetuada a meio da encosta e não representado no projeto apresentado sob registo n.º 41220/2002, efetuado em sequência ao requerimento apresentado sob reg. n.º 72924/2004” (cfr. doc. de fls. 479 do processo administrativo).
20) No dia 21/02/2005 foi realizada nova reunião entre o R. (DLDF), a M., Lda. e os técnicos Arq.º V. e Eng.º J., na qual foi referido “ter existido autorização da Santa Casa da Misericórdia, em reuniões havidas com o Provedor, Eng.º F.., que várias vezes visitou a obra”, que “os limites dos lotes ultrapassam o do muro de suporte de betão armado, chegando até ao primeiro muro de gabião”, e que “o projeto de drenagem da encosta ultrapassa os limites dos lotes” (cfr. doc. de fls. 474 do processo administrativo).
21) No dia 05/03/2005 foi elaborado e assinado o auto de receção provisória da rede de abastecimento de água e de drenagem de esgoto doméstico e pluvial da urbanização com o alvará de loteamento n.º 427/99, tendo aí ficado consignado que, “inspecionadas as referidas obras, constatou-se estarem executadas de acordo com os projetos respetivos, condições de aprovação e observação da fiscalização em obra e tendo já sido também aterrada a vala de crista do talude posterior aos lotes que em parte desviava e concentrava na linha de água as águas pluviais da encosta sobranceira confinante com o cemitério, podendo assim ser rececionadas provisoriamente” (cfr. doc. de fls. 472 do processo administrativo).
22) Em 30/08/2005 a M., Lda. apresentou, sob o registo n.º 53231/2005, nova alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes, de cuja memória descritiva e justificativa consta, além do mais, o seguinte:
“Devido às dificuldades da inclinação do terreno e dos limites da propriedade alterou-se a rede de drenagem de águas pluviais, ficando da seguinte forma:
- Linha em meia cana na base do muro de gabiões inferior;
- caixas de recolha e ligação ao ramal de evacuação;
- coletores de passagem por dentro da cave”
(cfr. docs. de fls. 450 a 468 do processo administrativo).
23) No dia 05/12/2005 foi elaborado e assinado o auto de receção definitiva da rede de abastecimento de água e de drenagem de esgoto doméstico e pluvial da urbanização com o alvará de loteamento n.º 427/99, tendo aí ficado consignado que, “inspecionadas as referidas obras, constatou-se estarem executadas de acordo com os projetos respetivos, condições de aprovação e observação da fiscalização em obra e em bom estado de conservação, podendo ser rececionadas definitivamente” (cfr. doc. de fls. 448 do processo administrativo).
24) Através de requerimento apresentado em 15/12/2005, sob o registo n.º 74517, a M., Lda. veio requerer a receção definitiva das obras de urbanização executadas no âmbito do alvará n.º 427/99 (cfr. doc. de fls. 446 do processo administrativo).
25) Em 24/05/2006 foi elaborada a informação n.º 739, tendo em vista a apreciação dos pedidos de receção definitiva das obras de urbanização e do segundo aditamento ao projeto de contenção e estabilidade dos taludes, tendo sido na mesma concluído e proposto o seguinte:
“Conclusão:
5.1. Da leitura de todo o processo, incluindo o Parecer Geológico relativo aos terrenos do Talhamento da Santa Casa da Misericórdia, datado de janeiro/1998 e após consulta informal junto do DOGIEM, não me parece curial que a solução implementada para a estabilização da encosta (aditada com o reg.º 53231/2005) seja, em definitivo, adequada às características geomorfológicas do local (…).
5.2. Recorde-se que a intervenção incide em área exterior ao Talhamento/Alvará de Obras de Urbanização n.º 427.
Proposta:
6.1. Com fundamento no exposto, antecedendo proposta de decisão conclusiva e sem prejuízo de se acionarem os mecanismos normais decorrentes do enunciado nos pontos 4.3 e 4.4, propõe-se:
a) Solicitar parecer técnico especializado e específico acerca da estabilidade da Encosta da Concha e sobre a solução implementada e aditada com o reg.º 53231/2005;
b) Solicitar o parecer específico do GAJ, uma vez que a verificar-se qualquer situação de risco nesta encosta, a área a intervencionar é exterior ao Talhamento/Alvará de Obras de Urbanização n.º 427”
(cfr. doc. de fls. 438 a 442 do processo administrativo).
26) Em 06/07/2006 foi elaborada, pelo Gabinete Jurídico e de Contencioso, a informação n.º 161/2006, da qual constam as seguintes análise e conclusões:
“IV – Conclusões/Propostas:
4.1 O Alvará de Obras de Urbanização n.º 427/99 titula a licença concedida a R., S.A., M., Lda., A. e J. ‘para proceder à execução das obras de urbanização que incidem sobre os lotes 17 a 28 e 30 a 35 do designado ‘Talhamento da Santa Casa da Misericórdia – Estrada de (...)’.
(…)
4.2 Detetada a possibilidade de ocorrerem deslizamentos e/ou derrocadas, a M. foi intimada a apresentar ‘projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde tinham sido ou viessem a ser efetuados trabalhos’, o que veio a suceder em 26 de março de 2001.
Tendo merecido informação técnica favorável por parte do DAU, o mencionado projeto foi aprovado na reunião da Câmara Municipal de 16 de julho de 2001 – como projeto complementar dos projetos de obras de urbanização relativos ao Alvará de Obras de Urbanização n.º 427/99 –, com as condições de ser respeitado o estudo geológico, de serem construídos pilares e pérgulas em betão armado formando uma estrutura reticulada e de ser colocado um maciço de gabiões na encosta da propriedade da Santa Casa da Misericórdia e executadas drenagens (…).
4.3 No entanto, a M. executou as obras em desconformidade com esse projeto, alterações que pretendeu licenciar/legalizar, com a apresentação dos seguintes projetos:
4.3.1 Projeto de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’ – apresentado em 26 de julho de 2002 (reg.º 35113/02) – não foi objeto de informação técnica, que era considerada indispensável por tal alteração implicar o incumprimento do projeto aprovado, por ser reconhecida a sensibilidade da encosta e por haver necessidade de saber se tais alterações respeitavam o estudo ou parecer geológico (…).
Assim, a referida alteração não deverá ser aprovada pela Câmara Municipal sem que, antes, seja emitida a competente informação técnica favorável e seja apresentado pela M. documento comprovativo de que tem poderes bastantes para realizar as obras nela previstas para o terreno da Santa Casa da Misericórdia.
4.3.2 Projeto de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’ – apresentado em 30 de agosto de 2005 (reg.º n.º 53231/05) – que, por razões idênticas às acima invocadas, não deverá ser aprovada pela Câmara Municipal sem que seja prestada informação técnica favorável, ou, conforme é proposto na informação 739/06 da DERU seja emitido ‘parecer técnico especializado e específico’, tendo por objeto, também, a estabilidade da encosta da Conchada, e, no caso de haver obras a realizar em terrenos da Santa Casa da Misericórdia, a empresa apresente documento comprovativo de que tem poderes bastantes para tal (…).
(…)
4.5 Quanto ao pedido de receção definitiva das obras de urbanização do Alvará de Obras de Urbanização n.º 427/99, formulado pela M. em 15 de dezembro de 2005, há a dizer o seguinte:
Considerando que o projeto, aprovado em 16 de julho de 2001, é complementar dos projetos relativos ao Alvará n.º 427/99, como permanecem por aprovar os projetos relativos às alterações que lhe foram introduzidas no decurso das obras, (…) é evidente que não poderá haver lugar à receção provisória destas obras até que as mesmas sejam licenciadas/legalizadas e se mostrem concluídas
(…).
4.6 No caso de se verificar qualquer situação de risco na encosta, que exija uma intervenção exterior ao Talhamento/Alvará de Obras de Urbanização 427/99, esta deverá ser conduzida nos termos expostos nos pontos 3.9, 3.10 e 3.11, fazendo-se salientar o seguinte:
4.6.1 Pertencendo a dita encosta, como resulta do processo, à Santa Casa da Misericórdia, é a esta que incumbe, numa situação normal, efetuar os trabalhos de conservação e de consolidação dessa encosta e dos edifícios ou obras que nela existam, nos termos do n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil, por forma a impedir que, por causas naturais ou artificiais, se degradem e se abatam sobre pessoas e bens.
Contudo, visto que a Câmara Municipal é sempre interessada na consolidação da encosta pela necessidade de garantir a segurança de pessoas e bens que usem ou se encontrem nas vias públicas, de forma a não incorrer em responsabilidade civil extracontratual, pode e deve exigir à proprietária, Santa Casa da Misericórdia, a execução das obras de conservação e consolidação que se mostrem necessárias, e, perante séria ameaça de desabamentos de terras que ponham em risco a segurança de pessoas e bens, pode, até, proceder à realização das obras de consolidação devidas, caso a Santa Casa, notificada para o efeito, as não efetue, e exigir-lhe o reembolso das despesas feitas, nos termos do artigo 155.º do Código do CPA”
(cfr. doc. de fls. 420 a 437 do processo administrativo).
27) Em 07/12/2007 foi elaborada, pela DLDF, a informação n.º 3105/2007, que mereceu despacho de concordância de 28/12/2007 e da qual consta a seguinte proposta:
“3.1 Face ao exposto propõe-se notificar o promotor:
3.1.1 Do teor da presente informação, esclarecendo-se que a Receção Definitiva das Obras de Urbanização só poderá ocorrer após 5 anos da Receção Provisória e que ainda não foi efetuada a Receção Provisória das Obras de Urbanização (Infraestruturas viárias e arranjos exteriores/contenção da encosta) e esta só poderá acontecer após 5 anos da Receção Provisória.
3.2 Remeter à DERU para análise os Reg.º n.ºs 35113/02 e 53231/05”
(cfr. doc. de fls. 407 e 408 do processo administrativo).
28) Em 27/07/2009 foi elaborada, pela Divisão de Estruturação e Renovação Urbana (DERU), a informação n.º 1314/MN, da qual consta a seguinte proposta:
“3.1 Em face do exposto, propõe-se que a câmara delibere aprovar o projeto de alterações/legalização da estabilização do talude (anexo ao reg. 53231/05), na condição de ser apresentado documento comprovativo em como a M. teve autorização para realizar as obras no terreno da Santa Casa da Misericórdia, considerando que as obras se encontram executadas e evitaram assim uma possível derrocada do talude sobre as construções existentes”
(cfr. doc. de fls. 315 do processo administrativo).
29) Em reunião camarária de 31/08/2009, foi deliberado, por maioria, aprovar o projeto de alterações/legalização da estabilização do talude, na condição de ser apresentado documento comprovativo em como a M. teve autorização para realizar as obras no terreno da Santa Casa da Misericórdia, considerando que as obras se encontram executadas e evitaram, assim, uma possível derrocada do talude sobre as construções existentes (cfr. docs. de fls. 313 a 315 do processo administrativo).
30) Através de carta apresentada em 06/12/2010, a A. informou o R. de que “nunca autorizámos as obras realizadas na encosta da Quinta da (...), junto à Estrada de (...), em terrenos da nossa propriedade”, bem como de que “solicitámos a essa Câmara Municipal que nos informasse se autorizou a realização de tais obras abusivas e em que termos e condições, para efeitos de responsabilização judicial dos autores de tais operações urbanísticas, não tendo, até agora, obtido resposta da vossa parte” (cfr. doc. de fls. 189 do processo administrativo).
31) Através do ofício n.º 1501, de 13/01/2011, foi a A. notificada de que “o deferimento do projeto de contenção e estabilização de taludes, aprovado com condições por deliberação camarária n.º 8388 de 2009/08/31 ainda não está concluído” (cfr. docs. de fls. 183 e 184 do processo administrativo).
32) Em 21/01/2011 a M. veio novamente requerer o deferimento do pedido de receção definitiva das obras de urbanização tituladas pelo alvará n.º 427/99 e, em consequência, a libertação da garantia bancária prestada para a execução de tais obras, no valor de € 22.207,24, tendo junto um parecer técnico, subscrito por engenheiro civil e com data de 15/01/2011, do qual consta que “a obra de ‘Contenção e Estabilidade de Taludes – muros de gabiões’ relativa ao talhamento em epígrafe, concluída em 2002 e, portanto, neste momento já decorridos mais de oito anos após a conclusão, que a mesma se encontra em boas condições de estabilidade, sem apresentar defeitos de construção, cumprindo assim a função para que foi projetada” (cfr. docs. de fls. 167 a 175 do processo administrativo).
33) Através do ofício n.º 17059, de 17/05/2011, a A. foi notificada do seguinte:
“Em cumprimento de despacho do Exm.º Diretor do DMAT com competência subdelegada, Eng.º M., exarado em 05/05/2011, notifico V. Ex.ª para, no prazo de 15 dias, vir ao processo afirmar se manifesta oposição fundamentada à receção das obras de urbanização, tendo em conta que:
1.1 – Foram obras urgentes;
1.2 – Estão estáveis desde 2002;
1.3 – O parecer técnico emitido pelo Sr. Eng.º J. atesta que as obras se encontram bem executadas, conforme cópia anexa”
(cfr. doc. de fls. 143 do processo administrativo).
34) Através de carta datada de 31/05/2011, a A. informou o R. de que as obras de urbanização em apreço foram “abusivamente realizadas, sem nossa autorização, na Quinta da (...), propriedade desta Santa Casa” (cfr. doc. de fls. 125 e 126 do processo administrativo).
35) Em 12/08/2011 foi elaborada a informação n.º 2836/2011, que mereceu despacho de concordância de 24/08/2011 e da qual consta o seguinte:
“(…) 7. No intuito de encontrar uma solução para a situação concreta em análise, solicitei à DIGS (via e-mail) informações acerca do cadastro da Conchada para verificação da efetiva localização dos citados muros de contenção, concluindo-se conforme planta anexa disponibilizada por aquela Divisão que os mesmos estão implantados na sua totalidade fora dos limites do loteamento, ou seja, estão executados em propriedade da Santa Casa da Misericórdia de (...).
8. Face ao teor do exposto nos pontos anteriores e considerando que:
8.1 Estão em causa obras executadas fora do limite do loteamento por imposição da Câmara Municipal em sede de garantia da segurança pública face à instabilidade dos taludes, então detetada;
8.2 As referidas obras não foram objeto de caução, mas estão executadas, estáveis e com garantias de segurança conforme parecer técnico anexo ao processo;
(…)
8.4 Tendo em conta o período de tempo desde então decorrido (cerca de 9 anos), ou seja, praticamente o dobro do prazo de garantia hoje exigido para concessão da receção definitiva.
Proponho o seguinte:
A. Seja determinada a realização de vistoria para aferição do estado de execução e de conservação das infraestruturas viárias do loteamento, a fim de ser efetuada uma melhor reflexão quanto à possibilidade de concessão da receção definitiva solicitada desde 2005.
B. Se pondere na remissão da questão da legitimidade quanto à execução da operação urbanística (estabilização da encosta em propriedade de outrem) para o foro jurídico-privado, face ao caráter urgente e de interesse público que condicionou a imediata realização das obras em questão”
(cfr. doc. de fls. 120 e 121 do processo administrativo).
36) Em 18/11/2011 foi elaborada, pela Divisão de Apoio Jurídico e Contencioso, a
informação n.º 133/2011, da qual consta o seguinte:
“(…) 2. Os factos referidos nos pontos II.3.1 mostram que a Câmara Municipal de (...) aprovou em 16/07/2001, a requerimento da M., ‘projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente’, propriedade da Santa Casa da Misericórdia, considerando tal projeto como ‘projeto complementar dos projetos de obras de urbanização relativos ao Alvará de Obras de Urbanização n.º 427/99’.
Ora, não obstante a atribuição desse sentido de complementaridade material e funcional, que nos parece advir, também, da necessidade de acautelar a existência de uma caução para esses trabalhos que não estavam previstos no projeto inicial, convém esclarecer que as obras em causa não se confundiam, do ponto de vista da legitimidade, com as obras de urbanização do Alvará n.º 427/99, porquanto iriam ser executadas em prédio distinto do prédio do loteamento e pertencente a terceiro.
Por esse motivo, o respetivo requerimento carecia de ser instruído com documento comprovativo de que o requerente era proprietário do prédio ou de que possuía poderes bastantes para o representar (…).
Contudo, tal não sucedeu, pois o dito ‘projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente’ foi aprovado sem que esse documento comprovativo tivesse sido apresentado.
Já o mesmo não sucedeu com os projetos de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’, de 2002 e 2005, que não foram aprovados até à data, devido ao incumprimento pela M. das sucessivas exigências de entrega de ‘documento comprovativo de que tem poderes bastantes para realizar as obras previstas para o terreno da Santa Casa da Misericórdia’, de ‘documento comprovativo em como (…) teve autorização para realizar as obras no terreno da Santa Casa da Misericórdia (…)’ e de ‘declaração subscrita pela Santa Casa da Misericórdia de (...) que, de forma inequívoca, tenha autorizado a realização dos trabalhos de contenção e estabilização da encosta’ e devido às declarações da Santa Casa da Misericórdia de 25/03/2010, 06/12/2010 e 30/06/2011 no sentido de que as obras em apreço foram efetuadas sem a sua autorização.
3. Face ao informado pela DLDF, em 12/11/03, poderá admitir-se que as aludidas obras tiveram, segundo ‘declarações dos representantes dos empreiteiros’, o consentimento do ‘anterior Provedor da Santa Casa da Misericórdia, entretanto falecido’ e que, por esse motivo, a aprovação do ‘projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente’ foi feita no pressuposto de que a requerente M. estava autorizada pelo dito anterior Provedor da Santa Casa da Misericórdia.
Mas, no que respeita à aprovação desse projeto, mesmo que se conclua que essa autorização não existiu, a decisão camarária – afetada pelo vício de falta ou erro nos pressupostos – já não está em tempo de ser anulada, encontrando-se o mesmo vício sanado na ordem jurídica, o que não impede, atento o princípio da submissão exclusiva das licenças e autorizações urbanísticas a regras de direito do urbanismo e a sua consequente emissão sob reserva de direitos de terceiros, que a Santa Casa da Misericórdia faça valer nos tribunais quaisquer direitos seus que entenda terem sido violados.
Já no que toca aos projetos de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’ apresentados pela M., em 2002 e 2005, a Câmara Municipal agiu bem ao não aprová-los, porquanto está em causa a legitimidade que, sendo, nos termos do artigo 83.º, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), um pressuposto procedimental, leva a que a sua não verificação impeça a tomada de decisão sobre o requerido. Efetivamente, como é facto assente que os referidos projetos de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’ incidem sobre terrenos da Santa Casa da Misericórdia, a Câmara Municipal não os poderá aprovar enquanto a M. não fizer prova de que tal intervenção lhe foi autorizada, mesmo que tal questão venha a ser objeto de ação judicial entre os particulares (…).
(…)
4. Do exposto, parece-nos que é conveniente separar, para efeitos de receção, as obras de urbanização do loteamento e as obras do ‘projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente’. Com efeito, a questão da legitimidade só diz respeito à aprovação do projeto de ‘Alteração ao projeto de contenção e estabilidade de taludes’, pelo que encontrando-se as restantes infraestruturas (Viárias, de Abastecimento de Água e Drenagem de Águas Residuais Domésticas e Pluviais, Telefónicas, de Gás e Elétricas) do Alvará n.º 427/99, em condições de ser recebidas, devem sê-lo, ainda que, claro, de forma parcial”
(cfr. doc. de fls. 98 a 102 do processo administrativo).
37) Em reunião camarária de 27/02/2012, foi deliberado, por unanimidade, “aprovar
a receção definitiva (total) das obras de urbanização do alvará n.º 427, nomeadamente quanto às infraestruturas viárias, de abastecimento de água e drenagem de águas residuais e pluviais, elétricas, de telecomunicações e de gás, procedendo, em consequência, à libertação das garantias existentes, no valor de 22.207,24€” (cfr. doc. de fls. 88 do processo administrativo).
38) Em 11/04/2012 foi elaborada, pela Divisão de Fiscalização Urbanística, a informação n.º 1156/2012, nos termos da qual foi proposto o seguinte:
“3.1 Notificar a Santa Casa da Misericórdia na qualidade de proprietária dos terrenos alvo de obras sem licenciamento, para que no prazo de 90 dias apresentem projeto para uma eventual legalização.
3.2 Dar conhecimento da tramitação do processo à firma M., atendendo a que foi a Empresa que efetuou os trabalhos.
3.3. Efetuar-se uma ação de fiscalização aos muros de gabião para averiguar as condições de segurança (…)”
(cfr. doc. de fls. 58 e 59 do processo administrativo).
39) Em 13/04/2012 foi proferido despacho, exarado sob a informação que antecede, a determinar a realização da ação de fiscalização aí proposta (cfr. doc. de fls. 58 do processo administrativo).
40) Em 21/01/2013 foi elaborada, pela Divisão de Fiscalização Urbanística, nova informação com o n.º 221/2013, que, na mesma data, mereceu despacho de concordância e na qual foi reiterada a proposta de realização de uma ação de fiscalização aos muros de gabião existentes na encosta e no talude exterior ao talhamento, propriedade da A. (cfr. doc. de fls. 48 e 49 do processo administrativo).
41) Em 29/01/2013 foi efetuada uma ação de fiscalização ao talude existente nas traseiras dos lotes 17 a 35 do loteamento n.º 427/99 para averiguar as suas condições de segurança, constando do respetivo relatório o seguinte:
“No local foi possível constatar que:
1 – Os taludes encontram-se em zonas pontuais com um avançado grau de instabilidade, tendo-se verificado recentemente numa destas zonas a queda de um bloco de grandes dimensões, cerca de 4 toneladas, conforme se verifica pela análise dos documentos em anexo, do Serviço de Proteção Civil.
2 – Nos locais onde se verifica uma maior degradação dos materiais que constituem o talude (solo alterado), o maciço rochoso encontra-se ‘descalço’, apresentando risco potencial de fraturação dos materiais que consequentemente poderá provocar a queda de blocos rochosos, atendendo à litologia dos materiais que constituem o talude (calcários dolomíticos e margosos), e à grande exposição deste aos processos erosivos.
3 – Existem zonas pontuais onde o deslizamento dos solos de cobertura sobre o nível superior dos gabiões tem contribuído para o esmagamento e degradação dos mesmos ao longo do tempo.
4 – Na maioria dos casos, a altura dos muros de gabião é claramente insuficiente, face à altura/inclinação do corte efetuado no talude, incluindo a zona limite deste Loteamento a Nascente.
5 – A caixa de retenção existente no tardoz dos muros de contenção de terras dos prédios, em betão armado com cerca de 0,20m a 1,0m, é reduzida face à inclinação dos taludes e características dos solos/rochas que os constituem.
6 – Ao longo de uma das banquetas existentes verificou-se a presença de uma ‘loca’ onde se verifica a infiltração das águas pluviais com o arrastamento de finos.
7 – Ao longo de toda a encosta verifica-se uma deficiente drenagem de águas pluviais, nomeadamente valetas de crista e valetas de plataforma.
Conclusão:
Face às considerações expostas, entende a Comissão de Vistoria que deverá ser promovida a estabilização global dos taludes e respetiva rede de drenagem de águas pluviais.
Até que se verifique o desenvolvimento dos trabalhos necessários à estabilização referida, deverá ser efetuada a monitorização das áreas potencialmente mais instáveis”
(cfr. doc. de fls. 39 e 40 do processo administrativo).
42) Em 11/02/2013 foi elaborada, pela Divisão de Fiscalização Urbanística, a informação n.º 403/2013, com o assunto “Exposição da Firma C. – Administração e Gestão de Condomínios, Lda. referente a desprendimento de pedras no talude e muros de gabião da Encosta do Lote 27/28 da Estrada de (...), freguesia de (...)”, da qual consta, além do mais, o seguinte:
“3. Analisado o processo, verificou-se:
3.1 Por despacho do Ex.mo Sr. Chefe da DFU, Eng.º J., exarado em 11/04/2012, foi referido que a instabilidade do talude resultou em sequência a obras de edificação no âmbito do talhamento/Alvará de Urbanização 427/99 que a Santa Casa da Misericórdia vendeu a privados, nomeadamente à Empresa M., que teve que intervir de urgência na estabilização do talude exterior ao talhamento, propriedade da Santa Casa da Misericórdia, pelo que compete aos proprietários promover a aprovação junto da Câmara Municipal das obras realizadas no seu terreno, devendo todavia ter-se em conta que, neste caso, as obras em causa foram realizadas por terceiros, não sendo possível confirmar se as mesmas mereceram, na época, autorização do proprietário, pelo que foi proposto realizar-se uma ação de fiscalização com todos os intervenientes para que fosse acordado o procedimento seguinte a tomar pelas partes, tendo em vista a legalização/licenciamento dos trabalhos executados/a executar.
(…)
3.3.1 Face às considerações expostas, entende a Comissão de Vistoria que deverá ser promovida a estabilização global dos taludes e respetiva rede de drenagem de águas pluviais. Até que se verifique o desenvolvimento dos trabalhos necessários à estabilização referida, deverá ser efetuada a monitorização das áreas potencialmente mais instáveis.
(…)
Face ao exposto propõe-se à Consideração superior:
3.5 Notificar-se a Santa Casa da Misericórdia de (...):
3.5.1 Do teor da ação de fiscalização realizada no dia 29/01/2013 pelas 14h30m e para no prazo de 90 dias proceder conforme a Conclusão do referido relatório (…).
3.5.2 Deverá ainda no mesmo prazo promover o licenciamento das obras executadas referentes à contenção dos taludes, sendo que as questões referentes à Empresa executante (M.) são questões do foro jurídico-privado”
(cfr. doc. de fls. 34 e 35 do processo administrativo).
43) Em 21/03/2013 o Chefe de Divisão de Fiscalização Urbanística proferiu o seguinte despacho, exarado sob a informação que antecede:
“Concordo.
Notifique-se a Santa Casa da Misericórdia do teor da presente informação, do relatório de inspeção de 29/01/2013 e da informação n.º 672/2012, para proceder conforme proposto no ponto 3.5 desta informação, ou pronunciar-se sobre o assunto.
Dê-se conhecimento do relatório de inspeção de 29/01/2013 à M., ao Eng.º J., à firma C. e à Junta de Freguesia de (...).
Dê-se ainda conhecimento à M. do teor da informação n.º 672/2012, na perspetiva da colaboração dessa empresa com a proprietária da encosta, Santa Casa da Misericórdia, atendendo à sua responsabilidade na execução das obras de consolidação do talude, nos procedimentos sequentes de legalização e de manutenção”
(cfr. doc. de fls. 34 do processo administrativo).
44) Através do ofício n.º 12807, de 22/03/2013, recebido pela A. em 26/03/2013, foi esta notificada para, nos termos do despacho do Chefe de Divisão de Fiscalização Urbanística que antecede, proceder, no prazo de 90 dias, “de acordo com a conclusão do relatório de inspeção de 29/01/2013, e da informação n.º 672/12, face ao teor do ponto 3.5 da informação n.º 403/13, cujas cópias se anexam, ou no mesmo prazo pronunciar-se sobre o assunto” (cfr. doc. de fls. 52 do suporte físico do processo).
45) A petição inicial da presente ação deu entrada em juízo no dia 01/07/2013 (cfr. doc. de fls. 2 do suporte físico do processo).
46) Na sequência da comunicação ao R. da petição inicial apresentada neste processo, foi elaborada, em 08/07/2013, pelo Chefe de Divisão de Fiscalização Urbanística, a informação n.º 1758/2013, que mereceu despacho de concordância do Diretor do Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística de 10/07/2013, da qual consta, além do mais, o seguinte:
“2. O meu despacho de 21/03/2013 que recaiu sobre a informação n.º 403 de 11/02/2013 refere-se, entre outros, ao despacho para notificar a Santa Casa da Misericórdia de (...) para proceder de acordo com as conclusões do relatório de inspeção de 29/01/2013 e promover o licenciamento das obras executadas na encosta, ou, no mesmo prazo de 90 dias, para se pronunciar sobre o assunto.
3. Este tipo de notificações, em geral, refere-se à constatação, através de ações inspetivas de fiscalização, de factos que carecem de ser sanados nos termos da legislação ou regulamentos em vigor, num prazo que se entenda adequado face às situações em causa. Através da notificação, dá-se conhecimento ao proprietário do prédio da constatação desses factos e dá-se a oportunidade de serem regularizadas as situações em causa através da apresentação de projeto para eventual legalização ou através da reposição voluntária nas condições anteriores, ou ainda dá-se a oportunidade de se pronunciar sobre o assunto face a eventuais dúvidas ou factos que possam estar na posse do proprietário e interessem à decisão final.
4. Numa larga maioria dos casos, os proprietários vêm apresentar projeto para legalização e os procedimentos decorrem normalmente nesse âmbito. Noutros casos são apresentadas exposições que, depois de analisadas, são objeto de proposta em função das conclusões obtidas, podendo nesta fase resultar a proposta para decisão superior de ordem de demolição ou de reposição da legalidade, devidamente caracterizada e fundamentada, sujeita previamente a audiência dos interessados. Por último, no caso de o notificado não reagir à notificação, decorrido o prazo concedido é então elaborada a proposta adequada para que seja ordenada superiormente a demolição ou a reposição da legalidade urbanística, igualmente sujeita a audiência dos interessados.
5. Na situação em apreço, que se poderá essencialmente enquadrar nesta tipificação, verifica-se que, através do requerimento agora apresentado, acabou por ser dado cumprimento à notificação uma vez que a notificada veio pronunciar-se sobre o assunto. Tal significa que, como aliás se pretende, todas as restantes alternativas constantes na notificação deixam de ter qualquer validade. A exposição será agora devidamente analisada, resultando uma proposta para decisão superior que será ainda sujeita a audiência prévia caso se revele desfavorável à requerente, fundamentada e instruída tendo em vista todos os procedimentos sequentes previstos no RJUE que eventualmente se venham a revelar necessários”
(cfr. docs. de fls. 5 a 7 do processo administrativo).
Factos Adicionados:
47) Consta da Informação da Divisão de Estudos e Projetos do Município, anexa à informação n.º 739/06 da DERU, sob o título “Causas da Instabilização”, designadamente, o seguinte:
“A execução das escavações provocou um aumento da inclinação do terreno (atualmente 20.º a 30.º) e descomprimiu superficialmente os pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água. A degradação das suas propriedades mecânicas e consequente perda de resistência é muito rápida em presença da água, provocando a rotura dos taludes.
Desta forma, assim que novas superfícies de pelitos sejam expostas a variações do teor de água, novas instabilizações são geradas.
Em resultado da descompressão da rocha e da exposição à água, os pelitos evoluem em poucos minutos de uma rocha branda para um solo siltoso, ou mesmo uma lama, quando saturados, criando instabilizações de taludes muito graves.
Os deslizamentos ocorridos são do tipo planar e surgiram devido a condições geológicas e hidrogeológicas desfavoráveis, tendo contribuído para este facto, a inclinação do talude ser superior ao ângulo de atrito interno do material (16º)”
47) Refere-se na informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso do Município de 06/07/2006, o seguinte:
“3.4. (…) Diga-se, ainda, que atendendo a que a execução deste projeto era feita, em parte, sobre terreno da Santa Casa da Misericórdia, considera-se que teria sido pertinente exigir-se à requerente documento comprovativo de que tinha poderes bastantes para realizar as obras projetadas para o terreno da Santa Casa da Misericórdia. Porém, não se encontra em todo o acervo documental relativo ao processo em análise qualquer alusão a essa questão.
3.5. (…) É, assim evidente, que as alterações foram realizadas sem precedência de autorização municipal, que, nunca foi dada, também não se comprovando que tenha havido consentimento da Santa Casa da Misericórdia (…)”

IV – Do Direito

A Sentença recorrida concluiu, a final, que “Ante todo o exposto (...) impõe-se concluir no sentido da improcedência do pedido de condenação do R., por si (devido à omissão dos seus deveres de fiscalização e de tutela da legalidade urbanística) ou através da intimação para tanto dos titulares do alvará n.º 427/99, respetivamente a expensas do R. ou destes, a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da Câmara Municipal de (...) de 16/07/2001, bem como às conclusões vertidas no relatório de inspeção efetuado no dia 29/01/2013 sobre o talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 a 35 do Loteamento n.º 427/99, em nome da M., Lda.”

O presente recurso, interposto pela aqui Recorrente Santa Casa da Misericórdia de (...) tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em 18.04.2020, que julgou improcedente a ação administrativa instaurada, tendente, em síntese, à condenação do Município a dar cumprimento ao projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção de terras aprovado em reunião da CMC de 16.07.2001, bem como às conclusões constantes do relatório de inspeção efetuado no dia 29.01.2013 relativo ao talude existente nas traseiras dos lotes n.ºs 17 e 35 do Loteamento n.º 427/99 em nome de M..

O Recurso tem por objetivo a alteração/aditamento à matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida, mais se alegando que a referida decisão desrespeitará normas e princípios de direito administrativo, no pressuposto de que o Município deveria zelar pelo cumprimento do regime vigente relativo ao Urbanismo.´

Dos fundamentos do recurso
No que concerne à matéria de facto, pretende a Recorrente que seja aditada ao elenco de factos provados o constante das conclusões 3 e 4 das suas alegações de recurso de modo a evidenciar a necessidade do Município diligenciar no sentido da realização de obras de estabilização e contenção global dos taludes, em resultado dos trabalhos realizados na encosta, face aos quais a Santa Casa da Misericórdia de (...) nunca deu a sua autorização.

A este respeito, afirmou-se na Sentença Recorrida que:
(…) A questão de saber se foram os titulares do alvará n.º 427/99 a criar, com a sua atuação, a situação atual de instabilidade dos taludes, por terem executado obras sem a autorização da A. e em violação do projeto inicial de construção de muros de suporte e de contenção da encostas, é, como referido nas últimas informações internas elaboradas pelos serviços camarários no processo, uma questão de foro privado que deve ser dirimida, em termos de responsabilidade civil, entre a A. e os titulares do alvará n.º 427/99, no tribunal competente e em ação própria, mas que não pode, nem deve, ser invocada pela A. para afastar a sua legitimidade, enquanto proprietária dos terrenos, no cumprimento das obrigações que lhe foram exigidas pelo R. na sequência da ação de fiscalização de 29.01.2013 (…)
(…) mesmo que se verificasse que foi a execução das obras relativas ao projeto de muros de suporte e de consolidação e tratamento da encosta, levada a cabo pelos titulares do alvará n.º 427/99, que provocou a situação em que se encontra a encosta e os seus terrenos, tal como descrita no relatório de inspeção de 29/01/2013, tal não constitui, todavia, fundamento para que não possa ser exigida à A., como foi, na qualidade de proprietária dos terrenos em causa, e perante uma situação de risco na encosta, exterior à área abrangida pelo alvará n.º 427/99, a promoção da estabilização global dos taludes e respetiva rede de drenagem de águas pluviais, acompanhada da monitorização das áreas potencialmente mais instáveis, bem como a promoção do licenciamento ou legalização das obras executadas referentes à contenção dos taludes. (…)”.

Refira-se desde já que se não acompanha o entendimento adotado em 1ª Instância.

Se é certo que relativamente à alteração da matéria de facto, o entendimento que tem vindo a ser adotado pela Jurisprudência é relativamente limitativo e excecional, aqui, como se verá, há necessidade de incorporar na matéria de facto dada como provado, alguma factualidade acrescida.

Em qualquer caso, diga-se o seguinte:
Como sumariado, entre muitos outros, no Acórdão deste TCAN nº 766/13.8BEBRG, de 29-05-2020 “1 – O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1.ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.
Com efeito, em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.
Pretendendo a recorrente que o tribunal ad quem procedesse à alteração da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, sempre teria de indicar, além dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, quais os meios de prova que impunham decisão divergente da adotada.”

No entanto, em função da factualidade disponível nos Autos, mostra-se, efetivamente que os factos dados como provados, denotam algumas insuficiências e lacunas que importa corrigir.
Com efeito, consta dos Autos um documento elaborado pelos Serviços do próprio Município, no caso, pela Divisão de Estudos e Projetos, em anexo à informação n.º 739/06 da DERU, relativa às “Causas da Instabilização” onde significativamente se afirma que “A execução das escavações provocou um aumento da inclinação do terreno (atualmente 20.º a 30.º) e descomprimiu superficialmente os pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água. A degradação das suas propriedades mecânicas e consequente perda de resistência é muito rápida em presença da água, provocando a rotura dos taludes.
Desta forma, assim que novas superfícies de pelitos sejam expostas a variações do teor de água, novas instabilizações são geradas.
Em resultado da descompressão da rocha e da exposição à água, os pelitos evoluem em poucos minutos de uma rocha branda para um solo siltoso, ou mesmo uma lama, quando saturados, criando instabilizações de taludes muito graves.
Os deslizamentos ocorridos são do tipo planar e surgiram devido a condições geológicas e hidrogeológicas desfavoráveis, tendo contribuído para este facto, a inclinação do talude ser superior ao ângulo de atrito interno do material (16º)”

Sendo a referida informação relevante face às causas da instabilidade do talude que vieram a determinar a necessidade da realização das obras aqui controvertidas, faz todo o sentido incluir o teor da referida informação como facto provado, não em sentido conclusivo, mas enquanto informação descritiva e opinativa (Novo Facto 47).

Com efeito, incontornavelmente, foram os próprios Serviços do Município que reconheceram que a execução das escavações por parte dos contrainteressados teve como consequência o aumento da inclinação do terreno (20.º a 30.º) e a descompressão superficial dos pelitos, expondo-os a grandes variações do teor em água.

Por outro lado, se é certo que resulta dos Autos que a realização das obras aqui controvertidas ficaram dependentes da apresentação de documento comprovativo da aceitação das mesmas por parte de Misericórdia, enquanto titular do prédio onde as referidas obras se teriam de realizar, o qual nunca foi apresentado, entende-se que, a inclusão de tal circunstância nos factos provados, se consubstanciaria num facto negativo (Ausência de declaração) ao que acresce que tal facto não teria a virtualidade de alterar o sentido da decisão proferida ou a proferir.

Assim, não se reconhece a necessidade ou utilidade de aduzir tal como facto provado.

O referido, não obsta, no entanto, a que se reproduza nos factos dados como provadas o teor relevante de informação dos Serviços Jurídicos do Município, o que é diverso, passando a constituir o facto 48.

Com efeito, refere-se na informação n.º 161/2006 do Gabinete Jurídico e de Contencioso do Município de 06/07/2006, o seguinte:
“3.4. (…) Diga-se, ainda, que atendendo a que a execução deste projeto era feita, em parte, sobre terreno da Santa Casa da Misericórdia, considera-se que teria sido pertinente exigir-se à requerente documento comprovativo de que tinha poderes bastantes para realizar as obras projetadas para o terreno da Santa Casa da Misericórdia. Porém, não se encontra em todo o acervo documental relativo ao processo em análise qualquer alusão a essa questão.
3.5. (…) É, assim evidente, que as alterações foram realizadas sem precedência de autorização municipal, que, nunca foi dada, também não se comprovando que tenha havido consentimento da Santa Casa da Misericórdia (…)”

Do Objeto do Recurso

Resulta desde logo do facto provado 5 que Nos termos da informação n.º 187/01, de 11/02/2001, a DGU-C alertou para a possibilidade de ocorrerem deslizamentos e/ou derrocadas, uma vez que tinham sido efetuados pela M., Lda. «trabalhos de desmonte na crista dos taludes posteriores dos lotes, do lado Poente, tendo-se prolongado pela encosta adjacente, propriedade da Santa Casa da Misericórdia» tendo, em consequência, aquela sociedade sido notificada, através de ofício de 02/03/2001, para apresentar, no prazo de 30 dias, um «projeto de contenção/arranjo/estabilização dos taludes e encosta adjacente onde tinham sido ou viessem a ser efetuados trabalhos»”.

É assim manifesto que os próprios Serviços do Município reconhecem que a Santa Casa foi vítima de trabalhos realizados em terreno adjacente ao seu, mal se compreendendo que pudesse vir a ser penalizada em decorrência de circunstância para a qual não contribuiu, nem por ação, nem por omissão, consubstanciados na verificada instabilidade da encosta.

Aqui chegados, sempre teria e o Município como entidade gestora, por assim dizer, do Urbanismo no seu território, que diligenciar ativamente no sentido de minorar os prejuízos para os quais foi alertada pelos seus próprios Serviços.

Não obstante o problema ter sido detetado, pelo menos, em 2001, só em 2013, a Divisão de Fiscalização Urbanística, através da informação n.º 403/2013 fez referência expressa ao facto de as obras de estabilização do talude deverem ser imediatamente realizadas por força da urgência na resolução do problema.

O Município só se poderá queixar de si próprio, em decorrência da sua inércia interventiva e corretiva.

Paradigmaticamente, refere-se na Sentença Recorrida que “(...) é certo que as obras referentes ao «projeto de obra de construção de um muro de encosto para a consolidação e reparação de talude, no loteamento da Quinta da (...)» foram executadas pelos titulares do alvará n.º 427/99 em desconformidade com o projeto inicialmente aprovado em 16/07/2001 (…)”.

Mais se refere na referida Sentença que “(…) foi a execução das obras relativas ao projeto de muros de suporte de consolidação e tratamento da encosta, levada a cabo pelos titulares do alvará n.º 427/99, que provocou a situação em que se encontram a encosta e os seus terrenos, tal como descrita no relatório de inspeção de 29/01/2013 (…)” .

Não obstante as afirmações constantes da decisão recorrida, precedentemente transcritas, o tribunal a quo, não retirou das mesmas as devidas ilações, antes pretendendo imputar a responsabilidade do sucedido e o ónus corretivo à Santa Casa, entidade que, como se viu já, não contribuiu para a referida situação.

Correspondentemente, entende a Recorrente que o Município, nos termos do Artº 102.º e ss. do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, deveria antes, designadamente, ter determinado ao titular do alvará, a reposição do terreno no estado em que se encontrava antes do início das obras, mal se compreendendo que o tribunal a quo, ao invés, tenha entendido que não seria adequado que se adotassem medidas de tutela de legalidade urbanística nesta situação.

Se é certo que o Município não aprovou o projeto de alteração apresentado, tal não invalidou, no entanto, que se tenha eximido às suas obrigações de Reposição da Legalidade Urbanística, nomeadamente, zelando para que a mesma pudesse ser preservada, garantindo que o responsável material pelo verificado deslizamento de terras, assegurasse, no mínimo, a mitigação dos prejuízos causados a terceiros.

Mal comparado, seria como se num acidente de viação, a vítima do mesmo fosse responsabilizada pelo mesmo, tão-só por se encontrar inadvertidamente no local.

Resulta incontornavelmente dos Autos que a Santa Casa não promoveu a realização no seu prédio de quaisquer obras, muito menos aquelas que vieram a determinar os deslizamentos de terras, tendo-se, aliás, oposto expressamente à sua efetivação, em face do que se mostra, no mínimo, inaceitável ser responsabilizado pelas consequências das obras levadas a cabo, e face às quais o Município, podendo e devendo tê-lo feito, não interveio na reposição da legalidade Urbanística.

Tal como afirmado pela Misericórdia em sede contra-alegações, “entender-se que a ora Recorrente tem o ónus de promover pela legalização das obras feitas nos seus terrenos pelo simples facto de ser proprietária, sabendo que não houve autorização para a realização de tais trabalhos e que estes foram feitos em desrespeito ao projeto de desaterro, é um absurdo que escancara a porta a todo o tipo de abusos ao direito de propriedade.”

Acresce que resultou provado (Facto 42) que por despacho do Chefe da DFU/CMC, Eng.º J., exarado em 11/04/2012, se concluiu que a instabilidade do talude resultou das obras de edificação no âmbito do talhamento/Alvará de Urbanização 427/99.

Por outro lado, mas no mesmo sentido, decorre do facto provado 41 que em resultado de uma ação de fiscalização ao talude realizada em 29/01/2013 pela Comissão de Vistoria, no âmbito da intervenção decorrente do referido Alvará de loteamento n.º 427/99, se concluiu que:
“Face às considerações expostas, entende a Comissão de Vistoria que deverá ser promovida a estabilização global dos taludes e respetiva rede de drenagem de águas pluviais.
Até que se verifique o desenvolvimento dos trabalhos necessários à estabilização referida, deverá ser efetuada a monitorização das áreas potencialmente mais instáveis”.

Aqui chegados, não é difícil concluir que deverá o Município, enquanto titular da obrigação de reposição da legalidade urbanística na sua área territorial, diligenciar diretamente, ou por via do titular do referido Alvará, no sentido de dar satisfação às conclusões do referido relatório da inspeção realizada em 29/01/2013, uma vez que resulta dos autos que se mostra já inexequível proceder ao cumprimento do originário projeto de desaterro e de licenciamento de muros de contenção nos exatos termos em que o mesmo foi aprovado.
Diga-se finalmente e A Latere, e por se tratar de questão suscitada no Recurso, que igualmente mal se atinge por que razão o Município libertou as garantias bancárias relativas às Obras de Urbanização conexas com controvertido alvará n.º 427/99, ao receber definitivamente a totalidade das obras, quando é notório que as mesmas, pelo menos, face ao projeto de construção de muros de suporte e de contenção da encosta, não se encontram executadas.´

Se é certo que o referido projeto de contenção, arranjo e estabilização se trata de um projeto complementar do projeto inicial, tal não o exclui do mesmo, antes se integrando naquele, o que reforça o entendimento de acordo com o qual não estavam reunidos os pressupostos justificativos da verificada receção definitiva das obras e a correspondente libertação da Garantia Bancária.
* * *
Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, em julgar Procedente o Recurso, revogando-se a Sentença Recorrida, mais se determinando;
a) A anulação do Despacho de 21.03.2013 do Chefe de Divisão de Fiscalização Urbanística do DGURU do Município de (...)
b) A condenação do Município a assegurar a Reposição da legalidade urbanística, por si, ou através do titular do Alvará n.º 427/99, de modo a dar satisfação às conclusões constantes do relatório da inspeção realizada em 29/01/2013.
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Custas pelos Recorridos
*
Porto, 30 de outubro de 2020


Frederico de Frias Macedo Branco
Nuno Coutinho
Ricardo de Oliveira e Sousa